Você está na página 1de 439

Revista de

Filosofia Modern a
e Contemporânea
Equipe Editorial/Editorial Team João Vergílio Gallerani Cuter (USP)
Joãosinho Beckenkamp (UFMG)
Jon Stewart (Universidade de Copenhagen)
Editor Chefe/Editor in Chief: Maria das Graças de Souza (USP)
Alexandre Hahn Oswaldo Giacoia Junior (UNICAMP)
(hahn.alexandre@gmail.com) Todd Ryan (Trinity College)
Zeljko Loparic (UNICAMP)
Editores Associados/Associated Editors:
Márcio Gimenes de Paula Editores de Diagramação/Layout Editors:
Priscila Rossinetti Rufinoni Alan Renê Antezana
Rodrigo Freire Gregory Wagner Carneiro

Editores de Seção/Section Editors: Capa/Cover:


Fabio Mascarenhas Nolasco Montagem com fotos de Gilles-Gaston Granger e
Giovanni Zanotti Jules Vuillemin. Uso autorizado pelos Archives Henri-
Isabella Holanda Poincaré—Philosophie et Recherches sur les Sciences
João Renato Amorim Feitosa et les Technologies (AHP-PReST), UMR 7117.
Lorrayne Colares Alexandre Hahn
Editores de Texto/Text Editors:
Agnaldo Cuoco Portugal Universidade de Brasília/University of Brasília
Alex Sandro Calheiros de Moura Reitora/Rector: Márcia Abrahão Moura
Cláudio Araújo Reis Vice-reitor/Vice Rector: Enrique Huelva
Erick Calheiros de Lima
Herivelto Pereira de Souza Instituto de Ciências Humanas/Institute of Hu-
Marcos Aurélio Fernandes man Sciences
Maria Cecília Pedreira de Almeida Diretor/Director: Neuma Brilhante Rodrigues
Phillipe Lacour Vice-diretor/Vice Director: Herivelto Pereira de Souza

Departamento de Filosofia/Philosophy Depart-


Conselho Científico/Scientific Council: ment
Adriana Veríssimo Serrão (Universidade de Lisboa) Chefe/Head: André Leclerc
Alessandro Pinzani (UFSC) Vice-chefe/Vice Head: Agnaldo Cuoco Portugal
Alvaro Luiz Montenegro Valls (UNISINOS)
César Augusto Battisti (UNIOESTE) Programa de Pós-graduação em Filosofia/Graduate
Daniel Omar Perez (UNICAMP) Program in Philosophy
Elisabete M. J. de Sousa (Universidade de Lisboa) Coordenador/Coordinator: Rodrigo Freire

Contato / Contact Indexação / Indexed in


Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea BASE, Biblat, CiteFactor, CLASE, Diadorim, DOAJ,
Universidade de Brasília DRJI, Google Scholar, Latindex, Microsoft Aca-
Departamento de Filosofia demic, Sumários, Periódicos, PhilBrasil, Phipapers,
Programa de Pós-Graduação em Filosofia SHERPA/RoMEO
ICC Ala Norte - Bloco B - 1º Andar (B1 624)
Telefone: (61) 3107-6677 / 6680 / 6679 Qualis CAPES – B2
Campus Universitário Darcy Ribeiro
70910-900 – Brasília – Distrito Federal – Brasil
E-mail: rfmc@unb.br DOI: https://doi.org/10.26512/rfmc.v8i2
A Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea é uma
publicação quadrimestral do Departamento de Filosofia e do
Programa de Pós-graduação em Filosofia da Universidade de
Brasília (UnB)
The Journal of Modern and Contemporary Philosophy is a
triannual publication of the Department of Philosophy and the
Graduate Program in Philosophy of the University of Brasília

Brasília, volume 8, número 2, agosto de 2020


ISSN 2317-9570 (publicação eletrônica)
http://periodicos.unb.br/index.php/fmc
Pareceristas desta Edição/Reviewers of this Issue:

André Luís Bonfim Sousa (IFA – Campus Murici), André Luis Muniz Garcia
(UnB), Arthur Bartholo (IFG), Cecília Pedreira de Almeida (UnB), Cláudio
Araújo Reis (UnB), Emmanuel Zenryo Chaves Nakamura (UNIP), Erick
Calheiros de Lima (UnB), Fábio Mascarenhas Nolasco (UnB), Felipe dos
Santos Durante (UFAC), Filipe Ceppas (UFRJ), Francisco William Mendes
Damasceno (UFPI), Gabriel Valladão Silva (Unicamp), Germano Nogueira
Prado (Colégio Pedro II), Gleisy Tatiana Picoli (Unicamp), Gustavo Leal
Toledo (UFSJ), Gustavo Silvano Batista (UFPI), Jadir Antunes (Unicentro),
José da Cruz Lopes Marques (IFCE), Laiz Fraga Dantas (UFBA), Luís
Eduardo Ramos de Souza (UFPA), Luis Fellipe Carvalho Garcia
(Ludwig-Maximilians-Universität de Munique), Marcelo de Sant’Anna Alves
Primo (UFS), Marcos Aurélio Fernandes (UnB), Marilia Mello Pisani
(UFABC), Michela Bordignon (UFABC), Philippe Claude Thierry Lacour
(UnB), Ramon Bolivar Cavalcanti Germano (UFPB), Roberto de Almeida
Pereira de Barros (UFPA), Rodrigo Augusto Rosa (IFSP), Rodrigo Cristino
de Faria (USP), Scheila Cristiane Thomé (UFRGS), Vanessa Furtado Fontana
(Unioeste), Wilson Antonio Frezzatti Junior (Unioeste).
Sumário / Summary

i. Páginas Iniciais / Initial Pages . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 01


ii. Editorial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 07
iii. Dossiê: Origens da Filosofia Contemporânea / Dossier: Ori-
gins of Contemporary Philosophy . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13
Dossier Presentation
Mario A. G. Porta; Evandro O. Brito . . . . . . . . . . . . . . . . . 13
Kant en tant que Philosophe de la Science de la Nature
Pedro M. S. Alves . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15
Der Schematismus reiner Verstandesbegriffe bei Kant, seine Transfor-
mation im südwestdeutschen Neukantianismus und in der späteren kan-
tianisierenden Transzendentalphilosophie: eine problemgeschichtliche
Betrachtung
Christian Krijnen . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35
Similar Ways of Creating Thirdness: Kant’s “Synthetic Judgments a
priori” and Frege’s “Thoughts” as Intermediate Cases
Ingolf Max . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 79
Intentionality and the Logico-Linguistic Commitment: A Critique of
Roderick Chisholm
Luis Niel . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 119
Harald Høffding and the Historical Roots of the Bohrian Concept of
Symbol
Hernán Pringe . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 139
’Epistemology Naturalized’ and the Vienna Circle
Thomas Uebel . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 157
Logical and Analogical Thinking
Gottfried Gabriel . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 177
Frege Encore une Fois? Construction de l’Intelligible et Figures Savoir
Claude Imbert . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 191
iv. Artigos / Articles . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 209

1
A Religião Redimida pela Razão: A Ilustração segundo Gotthold E.
Lessing
Saulo Krieger . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 209
Estoicismo, Ceticismo e Consciência Infeliz: Uma Alegoria Hegeliana
da Modernidade
Henrique Raskin . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 233
Espécie Monstro: Variações sobre Darwin
Marco Antonio Valentim . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 251
Ruptura, Dobra e Emenda do Eu: Esboço para uma Teoria da Subje-
tividade
Cássio Robson Alves da Silva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 275
Considerações sobre a Relação entre Filosofia e Ciência em Alexandre
Koyré a partir de uma Questão
Filipe Monteiro Morgado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 293
Crı́tica da Finalidade à Racionalidade Cientı́fica: A Perda Radical do
Mundo-da-Vida
Rafael Ferreira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 313
Ensaio para uma Teoria da Crença segundo a Concepção Tripartite do
Tempo
João Renato Amorim Feitosa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 333
O Nomear e a Direita
Fabien Schang . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 355
Nem a Favor, nem Contra, Bem ao Contrário: Metapolı́tica dos Coletes
Amarelos e a Situação Recolonial
Philippe Claude Thierry Lacour . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 383
A Urgência da Filosofia em Cursos Superiores de Tecnologia: Para Além
da Pragmática da Eficiência e da Normatividade
Emerson Freire; Marcelo Micke Doti . . . . . . . . . . . . . . . . . 405
iv. Traduções / Translations . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 419
“Sobre Revelação e Instrução do Povo” de Friedrich Wilhelm Joseph
Schelling
Luiz Filipe da Silva Oliveira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 419
“O Marrocos ou a Prescrição em Termos de Roubo” de Simone Weil
Philippe Lacour; Jade Oliveira Chaia; Felipe Matos Lima Melo; Ma-
riana Mendes Sbervelheri; Manuella Mucury; Michelly Alves; Filipe
Ceppas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 429
v. Normas para Publicação / Guidelines for Authors . . . . . . . . 435
DOI: https://doi.org/10.26512/rfmc.v8i2.35869

Editorial

DOSSIÊ: ORIGENS DA FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA


10ª Reunião Anual

O grupo de pesquisa “Origens da Fi- fica na Pontifícia Universidade Católica


losofia Contemporânea” realizou seu de São Paulo (PUC-SP), mas sua rede de
10º encontro internacional anual em pesquisa é nacional e está vinculada a
2019. Para celebrá-lo, organizamos diversos departamentos de Filosofia de
este dossiê de ensaios de vários pro- universidades brasileiras.
fessores que participaram dos encon- O objetivo do grupo é estudar
tros ao longo de sua história; o dos- as relações entre as filosofias analí-
siê oferece uma razoável representa- tica e a fenomenológico-hermenêutica,
ção da rede de relações institucio- com enfoque nas origens da filoso-
nais em que o grupo se insere, bem fia contemporânea, a partir do es-
como do trabalho intelectual produ- tabelecimento de suas raízes comuns
zido nesse ambiente. Este dossiê é e seu posterior isolamento recíproco.
composto por contribuições de Chris- A hipótese de trabalho do grupo é
tian Krijnen (VU University Amster- que tanto a filosofia analítica quanto
dam, Holanda); Claude Imbert (École a fenomenológico-hermenêutica repre-
Normale Supérieure, Paris); Gottfried sentam uma mudança comum, do
Gabriel (Friedrich-Schiller-Universität ponto de vista da história da filoso-
Jena, Alemanha); Thomas Übel (Uni- fia, que pode ser caracterizada como o
versidade de Manchester, Reino Unido); deslocamento do conceito de validade
Ingolf Max (Universidade de Leipzig, (Geltung) para o conceito de sentido
Alemanha); Pedro Alves (Universidade (Sinn). Para perseguir esse objetivo, o
de Lisboa, Portugal); Hernan Pringe grupo considera a filosofia do século 19
(Universidad Diego Portales, Chile; destacando autores que ainda não fo-
Universidad de Buenos Aires, Argen- ram devidamente estudados (como Bol-
tina) e Luis Niel (Universidad Nacional zano, Trendelenburg, Lotze, Brentano,
del Litoral, Argentina). Dilthey, Cohen, Natorp, Windelband
O grupo de pesquisa está oficial- e Rickert). O trabalho desses autores
mente cadastrado no Conselho Nacio- precedeu a cisão atual entre a filosofia
nal de Pesquisa (CNPq) e dirigido pelo analítica e a filosofia fenomenológico-
Prof. Dr. Mario Porta. A sede do grupo hermenêutica e, a partir deste ponto,

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 7-11 7
ISSN: 2317-9570
o grupo formula modificações na peri- temporânea”, que liderou o projeto de
odização e classificação das várias cor- publicação deste dossiê.
rentes filosóficas do período, especial- Esperamos que este dossiê comemo-
mente em epistemologia, lógica, filoso- rativo seja um convite não só para a lei-
fia da linguagem, e metafísica. tura dos ensaios aqui publicados, mas
Agradecemos a Camila Moreira, Di- também para a participação na inicia-
ego Azizi e Alessandro Francisco que tiva mais ampla que é relevante para o
nos auxiliaram na redação dos artigos, debate sobre as origens da filosofia con-
bem como a Alexandre Hahn, editor da temporânea.
“Revista de Filosofia Moderna e Con-

Mário Ariel González Porta e Evandro Oliveira de Brito


(Organizadores do Dossiê)

***

Além dos trabalhos que compõem o Fenomenologia do Espírito, desenvolve


Dossiê, o presente número também uma leitura historicista do desenvolvi-
conta com outras contribuições recebi- mento do direito na modernidade. Para
das em fluxo contínuo. tanto, apresenta a tríade estoicismo, ce-
(1) Em “A Religião Redimida pela ticismo e consciência infeliz como refe-
Razão: a Ilustração segundo Gotthold rência do percurso do pensamento mo-
E. Lessing”, Saulo Krieger, profes- derno, e defende que Hegel, na mencio-
sor adjunto da Universidade Estadual nada obra, entende ser necessário supe-
do Centro-Oeste (Unicentro), apresenta rar o dualismo entre consciência e natu-
o pensamento de Lessing, particular- reza, a fim de compreender que a pró-
mente no Natã, como um projeto de pria experiência ética fornece os termos
emancipação da humanidade pela raci- da razão que, por sua vez, reflete e in-
onalidade e pela educação, que visa sal- corpora a natureza.
var a religião de si mesma, em vez de (3) “Espécie Monstro: Variações so-
combate-la. bre Darwin”, artigo de Marco Anto-
(2) Henrique Raskin, professor da nio Valentim, professor da Universi-
Universidade Positivo, em seu artigo dade Federal do Paraná (UFPR), analisa
“Estoicismo, Ceticismo e Consciência o conceito darwiniano de espécie a par-
Infeliz: Uma Alegoria Hegeliana da tir da obra A origem das espécies e de al-
Modernidade”, propõe que Hegel, já na gumas de suas versões científicas e fi-

8 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 7-11
ISSN: 2317-9570
EDITORIAL

losóficas. Seu objetivo principal é de- a descontinuidade das ciências a partir


monstrar o caráter essencialmente pro- da ideia da inseparabilidade entre filo-
blemático do conceito, cujo estatuto os- sofia e ciência e da ideia de descontinui-
cila, no plano lógico, entre a categoria e dade da razão.
a imagem, e, no plano vital, entre tipo e (6) Rafael Ferreira, doutorando em
aberração. desenvolvimento sustentável do trópico
(4) Em “Ruptura, Dobra e Emenda úmido na Universidade Federal do Pará
do Eu: Esboço para uma Teoria da (UFPA), propõe, em seu artigo “Crítica
Subjetividade”, Cássio Robson Alves da da Finalidade à Racionalidade Cientí-
Silva, doutorando em filosofia na Uni- fica: a Perda Radical do Mundo-da-
versidade Federal do Ceará (UFC), de- Vida”, interrogar as consequências do
fende que o impulso que direciona o eu objetivismo em sua relação com o afas-
para a objetividade do conhecimento é tamento do mundo-da-vida. Neste sen-
o mesmo que se volta sobre si mesmo tido, a partir dos fundamentos anuncia-
no interior da subjetividade. Neste dos por Edmund Husserl para se pensar
sentido, busca mostrar que esse movi- uma fenomenologia da crise, pretende
mento do indivíduo, em que o eu se defender que o empreendimento da ra-
desdobra sobre si mesmo (a dobra), é cionalidade teleológica moderna limi-
sucedido pela atividade livre do pensa- tou a própria forma de se pensar e fazer
mento na qual o eu recupera (emenda) ciência e, por consequência, conduziu a
o que perdeu na busca especulativa. humanidade a um abandono do mundo
(5) Filipe Monteiro Morgado, mestre moral.
em filosofia pela UFF, no artigo “ Con- (7) “ Ensaio para uma Teoria da
siderações sobre a Relação entre Filo- Crença segundo a Concepção Tripartite
sofia e Ciência em Alexandre Koyré a do Tempo ”, artigo de João Renato Amo-
partir de uma Questão”, procura eluci- rim Feitosa, doutorando em filosofia na
dar a relação entre os pensamentos fi- Universidade de Brasília, visa pensar a
losófico e científico em Koyré. Neste possibilidade de uma teoria da crença
sentido, começa apresentando a ofen- entendida como dividida em diferen-
siva do referido filósofo contra a epis- tes modalidades temporais: presente,
temologia e a filosofia da ciência posi- passado e futuro. Para tanto, tendo
tivista de Émile Meyerson, bem como em vista os trabalhos desenvolvidos por
contra as epistemologias continuístas. Tarski e Popper acerca do problema da
Em seguida, aborda a tese koyreana verdade e teorias pragmáticas da lin-
que busca explicar a gênese do mate- guagem como a de Habermas e Austin,
matismo da física clássica como ilustra- busca testar os limites da concepção de
ção do primado teórico da ciência e da verdade enquanto correspondência em
sua descontinuidade. Por fim, discute relação a uma concepção tripartite do

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 7-11 9
ISSN: 2317-9570
tempo. ção francesa, e que tenta se libertar de
(8) Fabien Schang, professor visitante uma situação quase colonial imposta
no departamento de filosofia da Univer- pela União Europeia.
sidade Federal de Goiás (UFG), no ar- (10) Marcelo Micke, professor e pes-
tigo “ O Nomear e a Direita”, inspirado quisador do Centro Estadual de Edu-
na distinção de Kripke entre os concei- cação Tecnológica Paula Souza (CEE-
tos de analiticidade e aprioridade, de- TEPS) e da Fatec Mococa, e Emer-
fende a tese de que há mais tipos de ati- son Freire, professor e pesquisador do
tudes políticas do que se costuma ad- CEETEPS e da Fatec Jundiaí, no ar-
mitir. Neste sentido, argumenta que tigo “A Urgência da Filosofia em Cur-
algumas dessas atitudes são ignoradas sos Superiores de Tecnologia: para
devido a uma profunda confusão en- além da Pragmática da Eficiência e da
tre os conceitos de direita e de con- Normatividade”, partem da constata-
servadorismo. Além disso, pontua que ção de que a grande especialização al-
a separação entre os tipos de ordem cançada nas mais diversas áreas do co-
econômica e moral pode explicar atitu- nhecimento humano pode comprome-
des mais originais de ‘conservadorismo ter o ideal democrático e integral da
de esquerda’ e de ‘progressismo de di- universidade, e defendem que filosofia
reita’, bem como as noções ambíguas de é especialmente necessária nos cursos
centros e extremos políticos. . tecnológicos para promover a restaura-
(9) Em “Nem a Favor, nem Contra, ção de um saber integral e não “tecni-
bem ao Contrário: Metapolítica dos Co- cista”,
letes Amarelos e Situação Recolonial”, Por fim, temos ainda duas traduções
Philippe Claude Thierry Lacour, pro- inéditas. O artigo “Sobre Revelação e
fessor do departamento de filosofia da Instrução do Povo” de Friedrich Wi-
UnB, propõe interpretar o movimento lhelm Joseph Schelling, vertido para o
social dos “coletes amarelos” (gilets jau- português por Luiz Filipe da Silva Oli-
nes) que tem desafiado o poder estatal veira, doutorando em filosofia na Uni-
na França. Reconhecendo a dificuldade versidade Federal do Rio Grande do Sul
de se definir o movimento, associando- (UFRGS); e o ensaio “ O Marrocos ou
o a alguma vertente política, defende a Prescrição em Termos de Roubo” de
que tal revolta não se iguala ao mo- Simone Weil, traduzido coletivamente
vimento social brasileiro de 2013, que pelo Grupo de Tradução do departa-
evoluiu gradualmente para a extrema mento de filosofia da Universidade de
direita. Mais precisamente, interpreta Brasília, composto por alunos da gra-
que se trata de um movimento revolu- duação e pós-graduação em filosofia, e
cionário que ambiciona uma reformu- coordenado pelo professor Philippe La-
lação do pacto social de base da na- cour.

10 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 7-11
ISSN: 2317-9570
EDITORIAL

Gostaríamos de aproveitar o ensejo bros do corpo editorial, avaliadores,


para agradecer a todos os autores, por editores e leitores de provas, pela fun-
terem honrado a nossa Revista com as damental colaboração na confecção da
suas produções, bem como aos mem- presente edição.

Os Editores

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 7-11 11
ISSN: 2317-9570
DOI: https://doi.org/10.26512/rfmc.v8i2.35846

Dossier Presentation

DOSSIER: ORIGINS OF CONTEMPORARY PHILOSOPHY


10th Annual Meeting

The research group “Origins of Con- sity of São Paulo (PUC-SP), but its rese-
temporary Philosophy” held its 10th arch network has a national branch and
annual international meeting in 2019. is linked to several Philosophy depart-
To celebrate it we organized this dos- ments of Brazilian universities.
sier of essays from various profes- The aim of the group is to study
sors that have participated in the me- the relations between analytic and
etings throughout its history; the dos- phenomenological-hermeneutical phi-
sier offers a fair representation of the losophy with a focus on the origins
network of institutional relations the of contemporary philosophy, starting
group is part of, as well as the in- from the establishment of its com-
tellectual work produced by this en- mon roots and their subsequent reci-
vironment. This dossier is composed procal isolation. The group’s working
of contributions from Christian Krij- hypothesis is that both analytic and
nen (VU University Amsterdam, The phenomenological-hermeneutical phi-
Netherlands); Claude Imbert (École losophy represent a common change,
normale supérieure, Paris); Gottfried from the point of view of the his-
Gabriel (Friedrich-Schiller-Universität, tory of philosophy, that can be cha-
Germany); Thomas Übel (University of racterized as the displacement of the
Manchester, United Kingdom); Ingolf concept of validity (Geltung) to the
Max (Leipzig University, Germany); Pe- concept of sense (Sinn). To pur-
dro Alves (University of Lisbon, Portu- sue this aim, the group considers
gal); Hernan Pringe (Universidad Diego 19th century philosophy highlighting
Portales, Chile; Universidad de Buenos authors who have not yet been pro-
Aires, Argentina), and Luis Niel (Uni- perly studied (such as Bolzano, Tren-
versidad Nacional del Litoral, Argen- delenburg, Lotze, Brentano, Dilthey,
tina). Cohen, Natorp, Windelband, and Ric-
The research group is officially regis- kert). These authors’ work preceded
tered at the National Research Coun- the current split between analytic and
cil (CNPq) and directed by Prof. Dr. phenomenological-hermeneutical phi-
Mario Porta. The group’s headquarters losophy and from this starting point,
are at the Pontifical Catholic Univer- the group formulates modifications in

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 13-14 13
ISSN: 2317-9570
the periodization and classification of sofia Moderna e Contemporânea," who
the various philosophical trends of the led the project to publish this dossier.
period, especially in epistemology, lo- We hope that this commemorative
gic, the philosophy of language, and dossier is an invitation, not only to read
metaphysics. the essays published here, but also to
We are grateful to Camila Moreira, take part in the larger initiative that is
Diego Azizi, and Alessandro Francisco relevant to the debate on the origins of
who assisted us in the task of editing contemporary philosophy.
the articles, as well as to Alexandre We hope you find these essays illu-
Hahn, editor of the “Revista de Filo- mintating.

Mário Ariel González Porta


(PUC-SP)
Evandro Oliveira de Brito
(UNICENTRO/Fundação Araucária)

14 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 13-14
ISSN: 2317-9570
DOI: https://doi.org/10.26512/rfmc.v8i2.35850

Kant en tant que Philosophe de la Science de la Nature


[Kant como um Filósofo da Ciência da Natureza]

Pedro M. S. Alves*

Resumé: Nous commençons par souligner les trois innovations kantiennes qui mettent
la philosophie théorique sur une nouvelle voie. Premièrement, une nouvelle forme de
la Philosophie théorique, présentée non plus comme une théorie directe de la nature,
mais comme une enquête réflexive de la science mathématique de la Nature comme
un fait primitif. Deuxièmement, la méthode transcendantale, comme détermination
réflexive-régressive des conditions subjectives de possibilité de la connaissance des objets
en général. Troisièmement, le rôle central joué par la science newtonienne de la nature.
Après cela, je discute de la réévaluation logico-positiviste du récit de Kant à la lumière de
la relativité générale d’Einstein et de la réplique de Cassirer, soulignant avec ce dernier
la nécessité d’une révision des thèses de Kant sur l’espace, sans toutefois abandonner
la posture transcendantale kantienne et sa théorie de la constitution de quelque chose
comme objet de connaissance. Enfin, nous concluons par quelques remarques qui visent
à une esthétique transcendantale renouvelée qui serait capable d’absorber la théorie de
l’espace-temps que la physique d’Einstein a mise en avant.
Mots-clés: Kant. Cassirer. Philosophie de la Nature. Théorie de la Connaissance. Espace.

Resumo: Começo enfatizando as três inovações kantianas que colocam a filosofia teórica
em um novo caminho. Em primeiro lugar, uma nova forma para a Filosofia teórica,
apresentada nao mais como uma teoria direta da natureza, mas como uma investigação
reflexiva da ciência matemática da Natureza como um fato primitivo. Em segundo
lugar, o método transcendental, como determinação reflexivo-regressiva das condições
subjetivas de possibilidade do conhecimento dos objetos em geral. Em terceiro lugar, o
papel central desempenhado pela ciência newtoniana da natureza. Em seguida, discuto
a reavaliação lógico-positivista do relato de Kant a luz da relatividade geral de Einstein
e da réplica de Cassirer, enfatizando com este último a necessidade de uma revisão
das teses de Kant sobre o espaço, sem abandonar, no entanto, a postura transcendental
kantiana e sua teoria da constituição de algo como objeto de conhecimento. Por fim,
concluo com algumas observações que visam uma estética transcendental renovada que
seria capaz de absorver a teoria do espaço-tempo que a física de Einstein propôs.
Palavras-chave: Kant. Cassirer. Filosofia da Natureza. Teoria do Conhecimento. Espaço.

* PhD, Associate Professor with tenure at the Department of Philosophy of the Faculty of Arts of the University of Lisbon. Rese-
archer of the Center of Philosophy of the University of Lisbon. Editor of Phainomenon – A Journal of Phenomenological Philosophy.
E-mail: psalves2@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5259-9367.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 15-33 15
ISSN: 2317-9570
PEDRO M. S. ALVES

1. Liminaires : les trois «innovations» solu de l’espace et la validité du prin-


kantiennes cipe des indiscernables; aussi la ques-
tion du mouvement absolu, le principe
de la continuité et d’autres questions
La Critique de la raison pure, l’ouvre encore - mon idée, je répete, c’est que
majeure de Kant, a été interprétée Kant, apres avoir discuté des questi-
de plu-sieurs points de vue tout a ons conceptuelles concernant les fonde-
fait incompatibles. Cette pluralité ments de la Physique, dans un contexte
d’interprétations d’ensemble a com- de confrontation entre la métaphysique
mencé au temps de Kant lui-meme et, leibnizo-wolffienne et la physique ex-
depuis lors, elle s’est développée sans périmentale de Newton, introduit trois
cesse en des visions toujours nouvelles changements décisifs qui, a eux seuls,
sur la teneur et le but final de la Cri- ont produit quelque chose comme un
tique. Il en résulte qu’on n’est meme « âge kantien » dans la réflexion philo-
pas tout a fait d’accord sur ce que sig- sophique sur les sciences de la nature.
nifie, aux yeux de Kant lui-meme, le C’est donc essentiellement en tant que
projet d’une critique de la raison. De philosophe de la science de la nature
Reinhold, de Beck ou de Fichte jusqu’a que je vois le Kant de la Critique de la
Cassirer et Heidegger, on peut trouver raison pure.
maintes interprétations non seulement
différentes, mais aussi qui a peine par-
tagent un langage commun.
Je ne veux pas discuter ici ni de la 2. Premiere innovation : une forme
pertinence ni meme de la justesse de nouvelle pour la philosophie théori-
quelques-unes d’entre elles, lorsque que
comparées avec les déclarations expli-
cites de Kant sur les objectifs et la sig- Premier changement. Kant découvre une
nification de son ouvre théorique. forme nouvelle de philosophie, qu’il
Mon idée de base est que Kant, apres appelle justement philosophie trans-
s’etre dédié a certains problemes fon- cendantale, laquelle n’est pas une con-
damentaux dans le champ de la Philo- naissance d’objets en particulier, mais
sophie Naturelle, dans la période nom- une exhibition des conditions subjec-
mée « pré-cri-tique » - tels que la con- tives qui rendent possible la connais-
tradiction apparente, dans le concept sance d’objets en général. Ainsi, la phi-
de matiere, entre sa structure corpuscu- losophie transcendantale sera un sa-
laire et la divisibilité infinie de l’espace; voir de second niveau. Elle n’est pas
la querelle leibnizienne des forces vi- le systeme des sciences de la Nature,
ves et de la nature de la substance; le elle n’est pas aussi une discussion sur
caractere réal ou idéal, relatif ou ab- les concepts fondamentaux des scien-

16 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 15-33
ISSN: 2317-9570
KANT EN TANT QUE PHILOSOPHE DE LA SCIENCE DE LA NATURE

ces empiriques ou des sciences pures. l’Esthétique et dans l’Analytique. La


La philosophie transcendantale sera Dialectique, au contraire, est une théo-
l’explicitation du mode comme il sera rie des conditions qui rendent possi-
possible qu’il y ait, en général, une ble (et inévitable) la construction de
conscience et une science de la Nature. pseudo-objets (Kant les nommera « ob-
On sait que Kant distingue soigneuse- jets hyperboliques », excessifs) et la
ment les conditions relatives a la do- parution d’une illusion générale sur
nation intuitive, c’est-a-dire, les condi- l’extension illimitée de notre connais-
tions esthétiques, et ensuite les con- sance. En effet, la Dialectique montre
ditions logiques, relatives a la possi- comment, en partant des processus de
bilité de penser des objets en général, la connaissance objective et a cause de
et, finalement, qu’il renvoie les condi- ces processus memes (notamment, se-
tions logiques et esthétiques a l’unité lon Kant, les syntheses des catégories
de l’aperception, a l’unité du sujet épis- de la relation) se profilent a l’horizon
témique, en tant que condition ultime des objets hyperboliques qui donnent
de possibilité de la connaissance objec- l’illusion d’un rapport cognitif qui dé-
tive en général. Ainsi, la philosophie passe le terrain de l’expérience possible.
transcendantale mettra a découvert le Il y a deux aspects qui, a mon sens,
caractere aprioristique de certaines re- sont importantes dans cette théorie
présentations et montrera comment el- kantienne des pseudo-objets. D’abord,
les rendent possible ou comment el- elle est intimement liée a la théorie des
les sont la source d’ou jaillit la con- objets de connaissance possible. Les
naissance d’objets de premier niveau, pseudo-objets ne son autre chose que,
qu’ils soient les objets des sciences em- (i), des représentations de la totalité des
piriques ou qu’ils soient les objets des syntheses qui constituent les objets de
sciences pures, comme la géométrie et connaissance et (ii) un changement de
l’arithmétique. point de vue, qui mene a considérer ces
Simultanément - ce qui, a mon représentations de la totalité comme
avis, n’a jamais été convenablement re- de nouveaux concepts de choses qui ne
marqué - la philosophie transcendan- sont plus référées a une intuition possi-
tale que Kant développe dans la Criti- ble, mais qui sont « en-soi », c’est-a-dire,
que ne contient seulement une théorie qui sont posées comme si elles étaient
sur ce qui est un objet de connaissance des réalités indépendantes des proces-
possible, mais aussi une théorie sur les sus cognitifs de constitution objective.
pseudo-objets et la connaissance appa- On pourrait faire une théorie plus vaste
rente qui se réfere a eux. Nous pou- des processus de construction hyperbo-
vons trouver la théorie kantienne de lique d’unités objectives. Son principe
l’objet de connaissance possible dans général sera quelque chose comme le

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 15-33 17
ISSN: 2317-9570
PEDRO M. S. ALVES

suivant : chaque fois que l’unité objec- naturelle ou physique et philosophie


tive est posé non pas par référence a premiere, ou métaphysique, englobant
un acte déterminé de synthese et, par chacune d’elles les sciences de la partie
conséquence, par référence au pont de corporelle et de la partie incorporelle
vue du sujet épistémique, mais qu’elle de la réalité, c’est-a-dire, Dieu et l’âme.
est posée comme étant « en soi », dans D’autre part, et c’est quelque chose a la-
la chose meme, indépendamment des quelle Michael Friedman ne semble pas
processus de la connaissance, on aura porter d’attention, la philosophie trans-
devant nous un pseudo-objet, c’est-a- cendantale, définie comme un savoir
dire, une unité dont la structure n’a pas concernant les conditions qui rendent
été constitué par des actes de la pensée possible la connaissance des objets de
objectivante. En ce sens-la, on pour- premier ordre, est aussi une théorie de
rait dire qu’il y a nombreux pseudo- la façon dont la connaissance d’objets
objets et pas seulement les trois objets sécrete des pseudo-objets et l’illusion
inconditionnés de la Dialectique. C’est d’un autre type de connaissance qui se
justement a cause de cela que, deuxi- rapporte a eux.
emement, la critique du concept wolf-
fien de Métaphysique Spéciale, avec les
trois disciplines de Psychologie Rati-
onnelle, de Cosmologie Rationnelle et 3. Deuxieme innovation : la façon de
de Théologie Naturelle, n’est, a mon construire la science de la Nature
avis, que l’application a un cas particu-
lier d’une théorie générale des pseudo- Second changement. Kant développe des
objets qu’on pourrait bâtir ayant pour arguments purement gnoséologiques,
base les principes kantiens. Cette théo- et non plus de teneur métaphysique,
rie des pseudo-objets est, dans la Criti- pour montrer pourquoi l’espace et le
que, limitée a son application au cas de temps sont des conditions universelles
la Métaphysique Spéciale. Une théorie des objets de connaissance possible; en
générale des pseudo-objets, qui est une complémentarité, Kant produit, dans le
des grandes idées kantiennes qui n’ont célebre chapitre de la Déduction Trans-
jamais été assez explicitées, est encore cendantale des Concepts Purs, une
largement a construire. preuve, elle aussi purement gnoséologi-
En somme, comme Michael Fried- que, de la raison par laquelle tout ce qui
man l’a remarqué (2001, p.8), le con- peut etre donné dans l’espace et dans
cept de philosophie transcendantale vi- le temps, comme objet d’une intuition
ent se substituer a ce qui était le concept possible, sera nécessairement soumis
traditionnel, de souche cartésienne, de aux concepts purs de l’entendement et
philosophie, partagé en philosophie sera, donc, toujours pensable par eux.
En un mot, Kant découvre une façon

18 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 15-33
ISSN: 2317-9570
KANT EN TANT QUE PHILOSOPHE DE LA SCIENCE DE LA NATURE

entierement nouvelle de prouver des dans le temps. Ainsi, il faut qu’un ob-
énoncés sur la structure des objets que jet de connaissance possible commence
nous pouvons connaître. Il parle non par etre représentable comme une tra-
directement des choses et de la Nature, jectoire ou un parcours dans l’espace et
mais de notre conscience des choses et le temps. Quoique Kant ne l’explicite
de la Nature, en tant que cette cons- pas dans la Critique, les objets de con-
cience est une conscience cognitive et naissance possible, étant individualisés
non pas, par exemple, esthétique ou par des trajectoires qui leur sont pro-
autre. On pourrait dire que la position pres dans l’espace et le temps, permet-
d’une réalité ou d’une Nature suppose tent de vérifier certaines propriétés tres
la position préalable d’une conscience bien définies. Par exemple, aucun objet
possible de réalité ou d’une Nature for- n’est superposable a un autre, c’est-a-
maliter spectata. C’est a cette conscience dire, aucun objet ne peut avoir la meme
que Kant s’intéresse. On appellera par localisation spatio-temporelle qu’un
apres cette nouvelle façon de réfléchir autre objet différent, ce qui correspond,
une Erkenntnistheorie, une théorie de la physiquement, a l’impénétrabilité, qui
connaissance ou gnoséologie, laquelle est une des propriétés de la matiere,
est, en vérité, une théorie de l’etre en comme Kant l’affirme des sa Monado-
tant que connu. logie Physique (en la dérivant du con-
Avec cette double démonstration cept de force répulsive). Une autre pro-
strictement gnoséologique, centrée sur priété remarquable (que la physique du
les formes subjectives de l’intuition et XXeme siecle a mis en doute) est celle de
sur la relation nécessaire du divers de la continuité, par laquelle on affirme,
l’intuition a l’unité objective de la cons- en substance, que, entre deux positi-
cience, donc a la synthese catégoriale, ons différentes d’un objet dans l’espace
Kant prétend avoir résolu le probleme en deux temps, on doit pouvoir trouver
de la connaissance d’expérience et, par toutes ses positions intermédiaires con-
l’entremise des catégories schématisées, tiguës avec le degré de précision que on
c’est-a-dire, de l’Analytique des Princi- voudra et en admettant une vitesse qui
pes, avoir rencontré les fondements de peut s’accroître a l’infini, sous peine de
la science mathématique de la Nature ne pas pouvoir parler d’un seul ou du
que Newton avait développée et qui est, meme objet. A la fin de l’Esthétique,
pour lui, le modele de la Philosophie nous voyons aussi la raison qui fait que
Naturelle. A la fin de l’Esthétique, nous et la Géométrie et le Calcul soient ap-
possédons un ensemble de raisons qui plicables aux objets qui nous sont don-
nous permettent de dire que tout objet nés : c’est que, par le fait meme qu’ils
s’individualise sous la forme d’un en- nous sont donnés, ils ont des localisa-
semble de localisations dans l’espace et tions spatio-temporelles et des trajec-

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 15-33 19
ISSN: 2317-9570
PEDRO M. S. ALVES

toires continues dans l’espace et dans science de la Nature, Kant a compris


le temps, avec de vitesses changeant donc qu’il y a, dans les sciences em-
en fonction des forces appliqués. Cela piriques, deux types d’énoncés. Ceux
s’avere déterminant pour comprendre qui portent sur les objets donnés ; et
la possibilité de la Mécanique de New- d’autres qui constituent les objets me-
ton et l’utilisation qu’elle fait soit de la mes sur lesquels les premiers di-sent
Géométrie soit de concepts comme ce- quelque chose. Contre la dualité de
lui d’accélération, qui ne peut etre dé- Hume de l’analytique et du synthéti-
fini mathématiquement qu’a partir du que a poste-riori, Kant découvre les ju-
Calcul Différentiel (il s’agit de la déri- gements synthétiques a priori et at-
vée de deuxieme ordre de l’incrément tribue a eux un rôle constructif de
de la vitesse par l’incrément du temps). l’objet de l’expérience possible. Il y
D’autre part, a la fin du Systeme des aura donc, pour Kant, une stricte hié-
Principes, notamment des trois analo- rarchie des sciences. La loi de la gra-
gies de l’expérience, on comprend la vitation, par exemple, est une loi em-
raison ultime des trois Lois du Mouve- pirique et exprime une connaissance
ment de la Mécanique de Newton, qui d’expérience. Toutefois, la loi newto-
sont fondées par le moyen des concepts nienne de la gravitation ne serait pas
de substance, de force active et d’action formulable sans les notions d’inertie et
réciproque ou comercium (Gemeinschaft, de taux de variation instantanée de la
communauté) entre les substances, et vitesse de deux masses l’une par rap-
pas seulement de « coexistence », a la port a l’autre par l’action d’une force
maniere leibnizienne. En fait, le rôle (c’est-a-dire, la notion mathématico-
que les catégories de la relation jouent physique d’accélération), notions qui,
dans la fondation des trois lois de New- plus que matieres empiriques discerna-
ton est peut reconnut par les commen- bles dans l’expérience (l’inertie est déja
tateurs, mais tout a fait visible depuis une situation idéale - Newton l’a défi-
le Duisburgsche Nachlass, de 1775. En nie par rapport a l’espace et au temps
effet, la on peut constater que, avant absolus), sont des lois idéales qui struc-
de découvrir le Leitfaden et, par consé- turent les apparences et donnent la
quence, la dérivation logique des caté- base aux lois empiriques de la méca-
gories en partant des jugements, c’est nique. Ce sont justement les " lois du
la triplicité des lois de Newton (et pas mouvement" des Principia Mathema-
les formes catégorique, hypothétique et tica Philosophia Naturalis, notamment
disjonctive du jugement) qui détermine les deux premieres, que Kant englobe
les réflexions de Kant sur la «causalité», dans la rubrique nommée " théorie gé-
la «substance» et la «réciprocité». nérale du mouvement". D’autre part, la
Dans son travail de fondation de la notion meme d’accélération, qui signi-

20 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 15-33
ISSN: 2317-9570
KANT EN TANT QUE PHILOSOPHE DE LA SCIENCE DE LA NATURE

fie le taux de variation instantanée de core sans contenu empirique), selon les
la vitesse, est informulable sans l’outil concepts purs et les outils mathéma-
mathématique du cal-cul différentiel ou tiques correspondants, par référence a
du calcul des "fluxions", dans le lan- ce qu’il désigne comme l’intuition pure
gage de Newton. Les lois pures du (de l’espace et du temps) c’est le lieu
mouvement (inertie, force nette impri- de la validation de ces connaissances
mée, égalité d’action et de réaction), a priori. La construction anticipatrice
le calcul différentiel et les théoremes de l’expérience possible est la source
géométriques sont donc, plus que con- de connaissances synthétiques a priori,
naissances d’objets discernables dans précisément, de connaissances sur ce
l’expérience, des structures conceptuel- que signifie etre un objet de connaissance.
les qui permettent d’organiser les per- La science de l’espace et la Mathéma-
ceptions dans une expérience d’objet et tique pure, les catégories et le systeme
de déterminer les lois empiriques per- des premiers principes de la Science de
tinentes, dans ce cas, la loi d’attraction la Nature sont, aux yeux de Kant, des
des corps en raison directe des masses connaissances de ce genre.
et en raison inverse du carré des distan-
ces. Sans ces notions, la loi meme de la
gravitation ne serait pas formulable et
le « phénomene » gravitationnel ne se- 4. Troisieme innovation : le rôle fon-
rait meme pas visible en tant que tel.1 damental de la Physique newtonienne
Transformer des jugements de per-
ception en des jugements d’expérience, En dernier lieu, il y a un troiseme
en établissant la façon dont la percep- changement a tout titre décisif. Quel-
tion doit etre différenciée et organisée que chose qui est, a mon sens, pleine
dans une expérience d’objet - voila la d’importance c’est le fait que Kant
force et l’efficacité des principes cons- montre, dans la Critique de la raison
titutifs. Et voici le sens fort de la no- pure, que le langage de la Physique est
tion d’un principe constitutif synthé- le dernier mot sur le monde des objets
tique a priori. Kant le pense comme empiriques. Dans la Monadologie de
l’anticipation méthodique d’une expé- Leibniz, on trouve l’idée d’un monde
rience possible, de telle façon que la de substances simples non-spatiales et
construction de cette expérience (en- non-temporelles, par rapport auquel
la représentation d’un monde de corps

1 On ne parle pas du phénomène sensible de la chute des graves en direction du centre de la Terre, phénomène observable par
la perception commune et que peut être “expliqué” d’une multiplicité de façons différentes. On parle plutôt de la conception selon
laquelle la chute des graves est un cas très spécial d’une loi générale d’attraction universelle entre les masses, loi que rende raison tant
de la chute des pommes comme du mouvement des planètes autour du Soleil, mouvement qu’on ne peut pas voir immédiatement
par l’entremise des organes de la perception commune, mais qu’on peut seul établir théoriquement.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 15-33 21
ISSN: 2317-9570
PEDRO M. S. ALVES

dans l’espace et dans le temps était une que Newton l’avait établie, en montrant
représentation sans doute bien fondée, comment un sujet épistémique aura de-
mais non pas une représentation adé- vant soi comme objets empiriques jus-
quate. Un entendement infini pour- tement une Nature qui sera connaissa-
rait calculer l’ensemble des relations ble seulement par une science telle que
d’ordre entre les substances, la com- la physique newtonienne : une Nature
possibilité de ses propriétés et les re- composée d’une multiplicité de subs-
lations de dépendance entre elles a tances, qui remplissent l’espace ( subs-
partir du principe de raison suffisante tantia phaenomenon, c’est-a-dire mati-
et sans faire intervenir le concept de ere) et se conservent (dans son quantum)
corps, de position dans l’espace et dans au long du temps, et qui sont en rap-
le temps et d’influence réelle entre les ports d’action réciproque, selon l’ordre
substances. Le langage de la Physique de la simultanéité, et d’influx causal, se-
n’était donc pas, pour un leibnizien, lon l’ordre de la succession. Au meme
l’ultima ratio sur la réalité. La Physique temps, il y a certainement une diversité
avait sa raison dans la Métaphysique d’autres problemes qui gravitent autour
et empruntait d’elle ces concepts fon- de celui-ci. Je me réfere au probleme
damentaux. Néanmoins, avec Kant, on humean de la causalité et de la connais-
trouve justement l’idée que le langage sance d’expérience, que Kant a résolu
de la Physique, c’est-a-dire, ses con- par sa déduction transcendantale ; je
cepts et ses méthodes mathématiques me réfere aussi au probleme de la ta-
ne sont pas un langage provisoire sur ble complete des concepts purs, que,
un monde d’apparences sensibles op- selon une suggestion de Vleeschauwer
posé aux essences, mais la seule forme (1976, p. 223), provient surtout d’une
d’intelligibilité possible du monde des lecture des Nouveaux Essais, de Leibniz,
phénomenes, que Kant appelle Erschei- et que Kant a résolu, de la forme mala-
nungen, apparitions, qui ne s’opposent droite qu’on sait, par sa déduction mé-
pas a une autre chose sinon au vide de taphysique, en partant de la table des
la connaissance des choses en-soi. Le jugements ; il y a encore le probleme
monde sensible ne renvoie plus a un conceptuel de l’existence, provenant de
monde intelligible, mais, en tant que Crusius. Mais tout ça se trouve con-
monde de l’apparaître, il renvoie aux ditionné par le probleme fondamen-
conditions subjectives de la possibilité tal de Kant - celui d’une théorie de
de l’apparition, c’est-a-dire, aux formes l’objet de la connaissance possible (ce-
a priori de l’intuition. lui de la Physique) et du pseudo-objet
En somme, j’ai voulu dire que le Kant de connaissance illusoire (celui de la
de la Critique est le Kant qui cherche Métaphysique).
les fondements de la physique, telle Malgré cela, a mon avis, la façon kan-

22 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 15-33
ISSN: 2317-9570
KANT EN TANT QUE PHILOSOPHE DE LA SCIENCE DE LA NATURE

tienne de poser les questions gnoséolo- désormais les idées kantiennes sur la
giques est périmée. Kant ne se libere nature et la structure des facultés et
pas completement du programme em- définir le synthétique a priori comme
piriste d’une science de la nature hu- étant tout énoncé que, au lieu de por-
maine. Il parle partout des facultés de ter sur les objets de l’expérience, cons-
connaissance. Et, en rigueur, ses preu- truit les objets memes de que la sci-
ves gnoséologiques veulent mettre a dé- ence empirique va parler. A la lumi-
couvert la soi-disant structure des fa- ere de cette conception, il y aura tou-
cultés de l’intuition et de la pensée qui jours des principes synthétiques a pri-
appartient a nous, hommes, et qui sera, ori, mais ces principes ne seront jamais
par-la, immuable. Ainsi, l’espace de immuables. Pour la mécanique de New-
notre connaissance physique sera tou- ton, la géométrie euclidienne, le cal-
jours l’espace euclidien de notre faculté cul, les lois d’inertie et de conservation
d’intuition. Et les principes constitu- de la masse seront de tels principes.
tifs de l’objet d’expérience seront tou- Mais, par exemple, pour la relativité
jours les memes, par la simple raison restreinte d’Einstein, on aura comme
que les catégories seront les formes im- principes constitutifs la géométrie qua-
muables de la spontanéité de nôtre en- dridimensionnelle pseudo-euclidienne
tendement. Cette conception, fixée sur de Minkowski et le constant c comme
une prétendue « nature » des facultés vélocité maximale de la propagation
de la connaissance, a conduit Kant a des signaux dans le vide. La relativité
une conception du synthétique a priori généralisée aura d’autres principes («
comme un principe universel et apo- synthétiques a priori ») encore, notam-
dictique, donc absolument immuable. ment le calcul tensoriel.
Mais c’est justement cette immutabilité En un mot, on aura toujours une sci-
des principes constitutifs que le déve- ence avec des principes constitutifs,
loppement de la science physique au contre tous les empirismes, de David
XX eme siecle a contredite. Hume jusqu’a Quine. Cela serait le
Néanmoins, on peut trouver une au- grand enseignement de la gnoséologie
tre perspective plus intéressante chez de Kant. Et cet enseignement est en-
Kant. La Critique balance toujours core actuel. Faut-il parler d’un a pri-
entre deux extremes - d’un côté, il ori révisable et pas immuable ? Ça ne
y a justement cette vision statique et sera pas kantien selon la lettre, certai-
stratifiée des facultés de connaître ; nement. Mais, a mon sens, cela serait
mais, de l’autre, il y a aussi une vi- la seule façon de rester encore kantien
sion dynamique et constructive de aujourd’hui.
l’acte synthétique en tant que proces-
sus d’objectivation. On pourrait oublier

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 15-33 23
ISSN: 2317-9570
PEDRO M. S. ALVES

5. Une lecture néo-kantienne de la re- « auraient perdu l’ultime reste de réa-


lativité d’Einstein lité objective » - surgissent comme les
deux axes principaux de cette évalua-
tion négative des capacités de la philo-
Plus encore que, par exemple, la phé-
sophie critique a incorporer les résul-
noménologie, qui était une philosophie
tats de la nouvelle physique. « C’est a
naissante au temps des essais de Eins-
ce processus de dissolution du synthé-
tein de 1905, sur la relativité restreinte,
tique a priori que nous devrons incor-
et de 1915, sur la relativité générali-
porer la théorie de la relativité, quand
sée, la philosophie transcendantale de
nous désirons la juger au point de vue
Kant - un patrimoine intellectuel af-
de l’histoire de la philosophie. » (REI-
fermi et renforcé par le néo-kantisme
CHENBACH, 2000, p. 307-308)3 Cette
- a été immédiatement mise en ques-
affirmation de Reichenbach, en 1949,
tion en ce qui concerne ses présuppo-
peut nous donner une idée précise de
sés fondamentaux par le surgissement
ce qui a été le centre du débat au début
de la nouvelle physique de la relativité.
des années vingt.
Moritz Schlick et Hans Reichenbach ont
Dans ce contexte, l’essai de 1921
été deux figures majeures en cette con-
de Ernst Cassirer [paru presque en
frontation, qui se développe surtout a
meme temps que l’essai de Reichen-
partir des années vingt du vingtieme
bach (1920)], intitulé Sur la théorie de
siecle. La contestation du « synthé-
la relativité einsteinienne - considérati-
tique a priori », en tant que principe
ons gnoséologiques,4 réalise un mouve-
constitutif de l’objectivité d’expérience,
ment en direction opposée. Cassirer
substitué par le principe de la « défi-
n’y essaie pas une assimilation des the-
nition coordinatrice » (these originaire
ses de la nouvelle physique par le kan-
de Schlick), lequel permet un empi-
tisme classique, travail qui serait vain,
risme avec des principes constitutifs,
mais plutôt une réélaboration de la phi-
mais sans compromis avec l’universalité
losophie critique, tâchant de montrer
et l’apodicticité au sens kantien,2 aussi
comment et en quelle mesure la nou-
que bien que l’exhibition des insuffisan-
velle physique représente un approfon-
ces de la doctrine kantienne de l’espace
dissement de quelques theses fonda-
et du temps - lesquels, selon Einstein,

2 “Between the two [Mach and Kant] remains standing the empiricist view, according to which these constitutive principles are
either hypotheses or conventions; in the first case they are not a priori (since they lack apodeicticity), and in the second they are not
synthetic. [. . . ] A thinker who in general perceives the unavoidability of constitutive principles for scientific experience should not
yet on that account be designated a critical philosopher. An empiricist can, for example, very well recognize the presence of such
principles; he will only deny that they are synthetic and a priori in the sense described above.” (SCHLICK, 1979, p.324)
3 “It is this process of a dissolution of the synthetic a priori into which we must incorporate the theory of relativity, when we desire
to judge it from the viewpoint of the history of philosophy.”
4 Ernst Cassirer – Zur Einsteinschen Relativitätstheorie. Erkenntnistheoretische Betrachtungen., 1921. Republié en Zur modernen
Physik., 1994, pp. 1-125 (on citera d’après cette dernière édition).

24 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 15-33
ISSN: 2317-9570
KANT EN TANT QUE PHILOSOPHE DE LA SCIENCE DE LA NATURE

mentales du criticisme en ce qui con- venu de la théorie électromagnétique


cerne la constitution de l’objectivité de Faraday et de Maxwell ; et, finale-
d’expérience. ment, la question de fond » concernant
A ce propos, la premiere chose a faire l’ « essence » de l’espace et du temps,
sera de délier la philosophie critique la question disputée depuis Leibniz et
de ses attaches a la physique newtoni- Clarke. Comme Cassirer se demande,
enne. Si celle-ci représente une phase Si Kant ne voulait etre autre chose que
définitivement dépassée de la connais- le systématisateur philosophique de la
sance de la réalité physique, la philo- science newtonienne de la Nature, ne
sophie critique, de son côté, en tant que restera, donc, sa doctrine liée aussi au
recherche sur le processus d’objectivation destin de la physique newtonienne, et
qui pose devant le physicien quelque ne devront tous les changements qu’elle
chose comme une réalité physique don- a souffert agir aussi en retour immédi-
née dans l’expérience, doit pouvoir sur- atement sur la configuration des doc-
vivre au moment de la connaissance trines fondamentales de la philosophie
de la Nature auquel elle a été tempo- critique ?
rairement liée et perdurer par-dela de On sait bien que la philosophie kan-
lui. En cela se décide l’actualité de tienne a voulu donner la justification
la philosophie critique, et c’est juste- ultime pour chacun de ses aspects de la
ment celle-la la question fondamen- science mathématique de la Nature, de
tale de l’essai de Cassirer. « Si Kant Newton. L’intuition pure de l’espace,
croyait posséder dans l’ouvre fonda- mise a la base de la science géomé-
mentale de Newton [. . . ] quelque chose trique, assure son caractere apriori-
comme un codex assuré de la vérité » que (contre certaines affirmations de
physique, [. . . ] la relation entre phi- Newton lui-meme), mais la compro-
losophie et science exacte qu’il accep- met, d’une façon apparemment irré-
tait a changé depuis lors » (CASSIRER, médiable, avec la géométrie Euclidi-
1994, p. 5). Les enjeux que, selon Cassi- enne ; les analogies de l’expérience, de
rer, signalent l’obsolescence de la phy- l’analytique des principes, suivent et
sique newtonienne sont « le fait de la décalquent les trois lois des Principia
géométrie », c’est a dire, le dévelop- Mathematica Philosophia Naturalis (soit
pement, depuis Gauss, des géométries les principes de la conservation de la
non-euclidiennes et son usage dans la masse, de la causalité et de l’action ré-
théorie physique par la relativité géné- ciproque, lesquels répondent aux lois
ralisé ; le « systeme de la mécanique newtoniennes de l’inertie, de la force
classique », non seulement réduit a une et de l’égalité de l’action et de la réac-
théorie plus générale, mais aussi outre- tion) ; en ce qui regarde la question de
passé par le concept de « champ », pro- l’espace et du temps en tant que tels, si

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 15-33 25
ISSN: 2317-9570
PEDRO M. S. ALVES

Kant prend des distances soit par rap- - c’est ce processus ou cette fonction
port a Leibniz soit a Newton avec sa d’objectivation que la critique de la con-
théorie de l’idéalité transcendantale et naissance s’efforce pour mettre en lu-
de la réalité empirique, la these selon miere. En ce sens, pour Cassirer, la
laquelle l’espace et le temps sont des in- tâche de la philosophie transcendan-
tuitions pures (ou formes d’intuition) le tale consiste a exhiber les invarian-
mene a défendre qu’il s’agit, en premier tes logiques ultimes, communs a tou-
lieu, de deux représentations séparées, tes les formes possibles de théories, en
et, de suite, qu’il y a une unité primi- tant qu’éléments constitutifs nécessai-
tive de chacune de ces représentations res. Celle-ci n’est pas une tâche qui
(l’espace et le temps, chacune d’elles soit réalisable en quelque phase histo-
étant une singularis repraesentatio), que rique de la pensée scientifique. Mais
les espaces et les temps s’obtiennent la « fonction objectivante » ou la « loi
donc par limitation de cette représen- supreme d’objectivation », que la re-
tation unitaire en tant que ces parties, cherche gnoséologique découvre, doit
nécessairement coordonnés dans une fonctionner comme une exigence de
représentation globale une et unique. l’entendement qui fixe une direction
Tous ces aspects sont des points de pour « le développement continu du
doctrine relativement auxquels le dé- systeme de l’expérience.»6 Non seule-
veloppement historique des sciences ment l’a priori est, donc, une dyna-
exactes, et de la physique en particu- mique d’objectivation constamment en
lier, a décidé contre les theses de la devenir, que se réalise imparfaitement
Critique. Cependant, comme Cassirer et qui s’approfondi en chaque étape
le souligne, l’ouvre de Kant n’est pas de la science de la Nature, mais aussi
un compendium de l’état de la science la division étanche entre science de la
courante a son temps, mais une en- Nature et critique de la connaissance
quete gnoséologique sur les sources de s’avere, aux yeux de Cassirer, comme
la connaissance et la constitution de une séparation artificielle. Cassirer
l’objectivité d’expérience, une recher- l’affirme presque au début de son es-
che qui emploie les sciences qui lui sont sai : « un regard attentif sur l’histoire
contemporaines seulement comme un de la physique nous enseigne justement
matériel pour ces recherches. «Nous que ces progres les plus importants ont
ne connaissons pas « les objets »; [. . . ] en général une connexion intime avec
nous construisons une connaissance de des considérations d’ordre gnoséologi-
l’objet.» (CASSIRER, 1977, p. 343)5 que. » (CASSIRER, 1994, p. 6) On peut

5 (Nous soulignons).
6 A propos de cet a priori relativisé, voire Thomas Ryckman (2005, p. 13 e sgs).

26 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 15-33
ISSN: 2317-9570
KANT EN TANT QUE PHILOSOPHE DE LA SCIENCE DE LA NATURE

voir cela chez Galilée, Kepler, Newton, 6. L’esthétique transcendantale dans


et on peut le voir d’une forme encore un carrefour
plus éclatante a propos de la reformu-
lation einsteinienne du principe de la
relativité, parce que Einstein, « en par- Toute la stratégie argumentative de
ticulier afin de justifier le passage de la Cassirer se concentre sur les deux
relativité restreinte a la générale, s’est points suivants : en premier lieu, pré-
appuyé, en premiere ligne, sur un mo- sentation du principe de la covariance,
tif gnoséologique, auquel il a donné une de la relativité généralisée, non comme
signification décisive, a côté des fonde- une simple these empirique concernant
ments purement physico-empiriques. » le statut des objets physiques, mais
(CASSIRER, 1994, p. 7). comme un principe synthétique, cons-
Une lecture « néo-kantienne » de la titutif, que l’entendement prescrit pour
relativité de Einstein découvre mainte- l’interprétation des phénomenes de la
nant son programme. Il ne s’agit pas Nature ; en deuxieme lieu, affaiblis-
de comparer les theses de la nouvelle sement des theses de l’esthétique, en
physique avec les theses kantiennes po- distinguant entre théorie transcendan-
sitives de la Critique ou meme des Pre- tale de l’espace et du temps en tant que
miers principes métaphysiques de la sci- méthodes d’objectivation et théorie em-
ence de la nature, comme si une inté- pirique de l’espace et du temps en tant
gration ou une adaptation était possi- que grandeurs physiques, cherchant a
ble ou désirable. Il s’agit, plutôt, de situer au niveau du probleme « empi-
s’engager dans cette zone de conflu- rique » de la métrique les changements
ence entre science de la Nature et gno- que la théorie de la relativité a intro-
séologie afin de déterminer en quelle duit.
mesure la compréhension kantienne de Contre cette interprétation, nous
la dynamique d’objectivation, constitu- voudrions montrer que le principe de
tive de l’objectivité d’expérience, est en- la covariance, que Cassirer reconnaît
core suffisamment puissante pour bien justement comme le noyau de la théorie
comprendre le processus de formation relativiste de l’objectivité physique, agit
interne des concepts théoriques de la en retour sur la conception kantienne
nouvelle physique et des theses positi- de l’espace et du temps de l’esthétique
ves qui en dérivent. Telle est la question et demande, par lui seul, une « esthé-
en laquelle se décide l’actualité ou l’ ob- tique transcendantale » de type nou-
solescence de la philosophie critique de veau, organisée autour de problemes et
Kant. d’objectifs différents.
Le principe de la covariance géné-
rale - ce que Einstein désigne comme
« postulat de la relativité générale » -

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 15-33 27
ISSN: 2317-9570
PEDRO M. S. ALVES

prescrit que « les lois physiques doi- différentielles généralement cova-


vent etre d’un type tel qu’elles se peu- riantes, expriment en leur forme
vent appliquer a des systemes de réfé- l’indépendance du point de vue
rence en toutes sortes de mouvement. particulier de l’observateur, et c’est
» ou, dans une autre formulation, que justement cette indépendance qui
« les lois de la Nature doivent etre ex- les qualifie en tant que lois de la
primées par des équations qui soient Nature;
valides pour tous les systemes de coor- 3. Aucun objet empirique ne peut etre
données, c’est a dire, qui soient covari- un référentiel absolument privilé-
antes relativement a tous les remplace- gié (soit la Terre immobile, le cen-
ments arbitraires (généralement cova- tre de rotation du Soleil ou l’éther),
riantes). » (EINSTEIN, 1916, p. 769 - mais tous les référentiels pour les
822) En un mot, le postulat de la rela- mesures d’espace et de temps se
tivité générale, lui-meme une générali- transforment les uns dans les autres
sation du principe de la relativité res- et l’unique référence absolue est la
treinte pour systemes inertiels, déclare loi de transformation elle-meme.
que toutes les coordonnées gaussiennes
(donc, aussi celles des systemes accélé-
rés, identifiés la chute libre des corps Le commentaire de Cassirer est inci-
dans un champ gravitationnel par le « sif. En paraphrasant Max Planck, il dira
principe d’équivalence ») de l’espace- que, avec le postulat de la covariance, «
temps sont équivalentes pour la formu- l’anthropomorphisme de l’image sensi-
lation des lois de la Nature. ble naturelle du monde, dont le dépas-
Comme on l’admet communément, sement est la tâche propre de la con-
la these de la covariance suppose que : naissance physique, a été, ici, poussée
en arriere un pas de plus. » (CASSI-
RER, 1994, p. 37) Or cela se vérifie
1. Les mesures spatiales et tempo- justement parce que le postulat de la
relles (soit les distances d’espace covariance vient exprimer un concept
et de temps entre deux points plus profond d’objectivité, en la pen-
donnés) des événements ne sont sant non par rapport aux particularités
pas invariantes - au contraire, el- de l’intuition sensible d’un sujet épis-
les dépendent du systeme de ré- témique déterminé, mais par rapport á
férence arbitrairement choisi et, l’idée de la totalité des points de vue
donc, de la situation particuliere de possibles et a ce que, dans la variation
l’observateur (idéalisé en la forme arbitraire de ces points de vue, reste ce-
d’un systeme regle-chronometre); pendant invariable. Cet invariant n’est
2. Mais les lois de la Nature, en pas un autre point de vue, « absolu »,
étant énoncées par des équations au-dela de la multiplicité des observa-

28 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 15-33
ISSN: 2317-9570
KANT EN TANT QUE PHILOSOPHE DE LA SCIENCE DE LA NATURE

teurs, une espece de systeme de réfé- que particuliere, mais il est capable
rence privilégié, mais constitue, en re- d’exprimer quelque chose comme une
vanche, la position d’un réel, en soi- loi de la Nature uniquement en faisant
meme pleinement déterminé, dont le varier arbitrairement les coordonnées
corrélat épistémique est l’intégral de spatiales et temporales de l’expérience
ces variations possibles (connectés se- immédiate et en fixant un invariant
lon une loi de transformation) par rap- en tant que regle de transformation
port a une multiplicité ouvert de tous de toutes les coordonnées possibles.
les référentiels possibles. Il ne s’agit, En ce sens, comme Cassirer le remar-
ici, d’une simple sophistication mathé- que, qu’une « loi » soit un tel inva-
matique des équations qui expriment riant pour toutes les transformations
les lois de la Nature (a laquelle, par arbitraires de coordonnées, cela est
exemple, les équations de Newton ne certainement une proposition analyti-
résistent pas). Il s’agit plutôt de la mise que, mais qu’il y a en général de telles
en scene d’un concept plus puissant lois, que l’entendement doive chercher
en ce qui concerne ce qu’on doit en- la forme de l’invariance pour exprimer
tendre par objet de la science de la Na- une connaissance d’objet, cela est une
ture. Ce nouveau concept, s’il nous li- exigence synthétique, c’est a dire, un
bere, comme Cassirer le dit, de l’image principe constitutif que l’entendement
anthropoforme du monde, construite prescrit pour l’interprétation des phé-
dans l’élément de la représentation sen- nomenes naturels - « Nous pouvons
sible immédiate, est, de l’autre côté, seulement désigner comme lois de la
un développement nouveau du prin- Nature, c’est a dire, leur attribuer uni-
cipe kantien de l’objectivité en tant versalité objective, ces relations dont
que corrélat de « l’unité synthétique la forme est indépendante de notre
» d’un divers d’intuitions possibles. mesure empirique, du choix spécifi-
Dans l’interprétation de Cassirer, la co- que des quatre variables x1 x2 x3 x4
variance répond a l’idée kantienne de qu’expriment les parametres d’espace
l’unité de la Nature, de la détermina- et de temps. En ce sens, le principe de
tion univoque - « objet » est, ici, le ré- la relativité générale, selon lequel les
sultat d’une synthese que se réalise par lois de la Nature ne changent pas par
rapport a la diversité des observateurs une transformation completement arbi-
possibles et qui pose comme unité un traire des variables spatio-temporelles,
réel en tant qu’invariant de cette va- peut etre entendu comme une affirma-
riation. Ce concept nouveau au sujet tion analytique, comme un éclaircisse-
de l’objectivité physique ne se rapporte ment de ce que nous devons entendre
pas a quelque chose d’immédiatement par une loi « générale » de la Nature
donné dans une expérience empiri- - synthétique est, pourtant, l’exigence

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 15-33 29
ISSN: 2317-9570
PEDRO M. S. ALVES

qu’il doit y avoir, en général, de tels in- que Cassirer prend de Cohen et de Na-
variants ultimes. » (CASSIRER, 1994, torp. Essayons quelques pas en avant,
p. 37) autrement et au-dela de la stratégie pu-
Disons, cependant, que ce postulat rement défensive de Cassirer, bâtie sur
de l’invariance peut seulement etre in- la distinction entre enquete transcen-
terprété de façon kantienne au prix dantale sur l’espace et le temps pur
d’une profonde réinterprétation de (celle de Kant) et théorie empirique
Kant lui-meme. L’unité de la Nature, de la mesure de l’espace et du temps
ou le principe de la « détermination physiques (celle de Einstein), stratégie
univoque », surgit en tant que corré- qui se heurte a l’objection évidente
lat non pas d’une subjectivité trans- que la théorie kantienne de l’espace
cendantale qui doit opérer la synthese et du temps, qui est aussi une théo-
par rapport a ce que lui est donné dans rie de l’espace et du temps en tant
l’intuition empirique, comme si les me- que déterminations de l’objet empiri-
sures d’espace et de temps étaient des que, est inapplicable a la nouvelle phy-
données absolues, invariables pour tout sique, organisé autour d’une théorie de
sujet épistémique, a subsumer simple- l’objectivité physique qui fait appel a
ment sous les conditions catégorielles, une doctrine de l’espace-temps (non de
logiques, de la représentation objec- l’espace et du temps) et a la métrique
tive, mais le sujet transcendantal est le tout a fait nouvelle qui en résulte.
lieu de droit pour la formulation de lois
qui, en étant généralement covariantes,
doivent non seulement faire abstraction
de la particularité de l’intuition sen- 7. Quelques problemes pour une
sible, mais aussi soumettre dorénavant esthétique transcendantale nouvelle
la forme esthétique elle-meme (c’est a
dire, la théorie des grandeurs d’espace Quelles que soient les lois empiriques
et de temps) aux exigences logiques de que la connaissance de la Nature peut
la représentation objective. On ne va établir, le postulat de la covariance, in-
pas de l’esthétique a l’analytique ; au terprété comme un principe transcen-
contraire, la théorie des formes esthé- dantal constitutif regardant la forme
tiques doit etre déja une fonction de la de toute loi possible (la natura forma-
théorie catégorielle de la pensée objec- liter spectata), demande a l’esthétique
tive. une théorie de l’espace, du temps et de
Cette subordination de l’esthétique la détermination spatio-temporelle des
a la logique transcendantale est, phénomenes qui soit compatible avec
d’ailleurs, une des vertus majeures de le principe suivant : bâtir une théorie
l’école de Marburg et un héritage ferme de l’espace-temps, en tant que grandeur
mathématico-physique, tel que les phé-

30 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 15-33
ISSN: 2317-9570
KANT EN TANT QUE PHILOSOPHE DE LA SCIENCE DE LA NATURE

nomenes empiriques puissent etre uni- deux arguments, qui vont en directi-
voquement localisables pour tout chan- ons opposées, on sera tenté de conclure
gement arbitraire des coordonnées qui qu’espace et temps sont des représen-
s’enracinent en la position particuliere tations co-originaires, qui s’impliquent
d’un l’observateur. C’est cette locali- mutuellement. Kant ne suggere pas,
sation univoque des phénomenes qui cependant, que les représentations de
permettra la forme covariante des lois l’espace et du temps s’entremelent dans
de l’« entendement. » Le probleme de la représentation unitaire et seulement
l’esthétique serait, ainsi, le probleme concrete de l’espace-temps. La théo-
(déja kantien) de l’individuation par rie des formes du sens interne et ex-
rapport a l’espace-temps ou de l’espace- terne offre une origine différente pour
temps en tant que conditions de possi- chacune de ces représentations. El-
bilité de l’individuation en général. les sont séparées - il y a le temps et
Cela exigera : l’espace, et chacune de ces représenta-
tions a une unité propre en tant que
1. Un changement en profondeur des représentation singuliere. Malgré cela,
concepts fondamentaux de l’esthétique. si on regarde du côté des objets de
On doit, en premier lieu, substituer la la Nature, donnés dans une intuition
théorie kantienne et newtonienne de empirique, on voit les déterminations
l’espace et du temps, laquelle est, en d’espace et de temps se superposer :
vérité, une théorie de l’espace a travers tout objet dans l’espace est donné a un
le temps, par une théorie de l’espace- moment du temps et tout moment du
temps en tant que continuum quadri- temps est donné par l’entremise d’un
dimensionnel. Kant lui-meme a donné objet dans l’espace, d’une façon telle
quelques pas hésitants dans la direc- que l’expérience des objets physiques
tion d’une unité de ces deux représen- ne nous donne aucunement l’espace et
tations. D’un côté, il a soutenu que la en plus le temps, mais l’union des deux,
représentation de l’espace, en tant que c’est a dire, quelque chose comme la
condition du sens externe, est dépen- grandeur une et unique de l’espace-
dante de la représentation du temps, temps. En deuxieme lieu, par rapport
en tant que forme du sens interne. De aux points de l’espace-temps, qui se dé-
l’autre côté, surtout a propos de la « finissent par des coordonnées spatiales
réfutation de l’idéalisme », il a aussi et temporelles, on aura dans le concept
soutenu, cependant, que la détermina- d’événement le premier concept concret
tion de temps (c’est a dire, la consci- de l’esthétique. « Evénement » désigne
ence empiriquement déterminée de ma non pas seulement ce que remplit un
propre existence) est seulement possi- espace, mais quelque chose qui a lieu
ble par rapport a un permanent donné ou qui arrive dans l’espace-temps. Afin
dans l’espace. Du croisement de ces

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 15-33 31
ISSN: 2317-9570
PEDRO M. S. ALVES

de donner les coordonnées d’un événe- xieme point en partant du premier. On


ment, on doit parler unitairement de sa doit, ainsi, parler d’une vitesse (d/t)
localisation spatio-temporelle. A pro- pour définir la translation d’un point A
pos de ce que remplit l’espace et le sur un point B et, en particulier, on peut
temps dans une intuition empirique, faire la supposition d’une vitesse maxi-
Kant parle simplement de Erscheinung, male, V. Si, au contraire, on admet que
c’est a dire, d’apparition. On doit pen- V peut s’accroître a l’infini, on arrive
ser l’apparition comme événement et au concept d’une connexion entre deux
redéfinir l’esthétique. La théorie des événements a distance dans un temps
conditions de possibilité de l’intuition égal a zéro, c’est a dire, on obtient les
d’objets en général deviendra une théo- concepts de simultanéité absolue entre
rie des conditions de possibilité de la lo- deux événements a distance et d’une
calisation spatio-temporelle univoque connexion qui se fait dans l’instant. En
des événements pour tout observateur un mot : on arrive aux conceptions de
possible. Newton et de Kant. Mais, comme Min-
kowski l’a bien souligné, la supposi-
2. Une réélaboration de la métrique de tion selon laquelle V = ? est « moins
l’espace-temps. On a le concept géomé- intelligible » que l’hypothese selon la-
trique de « distance » entre deux points quelle V = c, « c » étant une quantité
de l’espace. En ce qui concerne la gran- finie qu’on doit définir empiriquement
deur mathématico-physique (pas sim- (soit la vitesse de la lumiere dans de
plement « géométrique ») de l’espace- vide). Par ailleurs, les équations de la
temps, le concept de distance entre mécanique de Newton ne sont pas in-
deux points » implique non seulement variantes pour toutes les transformati-
une valeur différente de zéro pour les ons arbitraires de coordonnées spatio-
variables spatiales, mais aussi une va- temporelles. Si, en conformité avec les
leur différente de zéro pour la varia- exigences « logiques » de l’invariance
ble temporelle. Si on pense géométri- pour les lois de la Nature, on admet la
quement la distance entre deux points, supposition « plus intelligible » selon
on considere tous les points de l’espace laquelle la « distance » (on parlera d’
comme donnés dans le meme instant. « intervalle ») entre points de l’espace-
En revanche, le concept mathématico- temps implique que V soit finie et la
physique d’espace-temps implique que meme pour tous les observateurs (en
la distance entre deux points soit a la dépit de son état de mouvement rela-
fois spatiale et temporelle. En pensant tif), on obtiendra par-la la relativité de
a un parcours unissant deux points de la simultanéité et les effets relativistes
l’espace-temps, nous devrons spécifier, de la « dilatation » du temps et de la
donc, combien d’espace en combien de « contraction » de l’espace pour obser-
temps nous permettra d’arriver au deu-

32 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 15-33
ISSN: 2317-9570
KANT EN TANT QUE PHILOSOPHE DE LA SCIENCE DE LA NATURE

Bibliographie
CASSIRER, Ernst. Substanzbegriff und Funktionsbegriff. Untersuchungen über die Grundfragen der Erkenntnistheorie. Ber-
lin, 1910. Substance et fonction. Éléments pour une théorie du concept. Paris : Les Éditions de Minuit, 1977.
_____. Zur Einsteinschen Relativitätstheorie. Erkenntnistheoretische Betrachtungen. Berlin: Bruno Cassirer Verlag,
1921. République en Zur modernen Physik. Darmstadt: W.B., 1994, pp. 1-125.
EINSTEIN, Albert. Die Grundlage der allgemein Relativitätstheorie" , Annalen der Physik 49, 1916, pp. 769-822.
FRIEDMAN, Michael. Dynamics of Reason. Standford: CSLI Publications, 2001.
REICHENBACH, Hans. Relativitätstheorie und Erkenntnis A Priori . Berlin: J. Springer, 1920.
_____. The Philosophical Significance of the Theory of Relativity. In Albert Einstein. Philosopher-Scientist. Third edition.
La Salle, Illinois: Open Court Publishing Company, 2000.
RYCKMAN, Thomas. The Reign of Relativity. Philosophy in Physics 1915-1925. Oxford: Oxford University Press, 2005.

Received / Recebido: 18/07/2020


Approved / Aprovado: 18/11/2020
Published / Publicado: 30/12/2020

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 15-33 33
ISSN: 2317-9570
DER SCHEMATISMUS REINER VERSTANDESBEGRIFFE BEI KANT, SEINE TRANSFORMATION IM
SÜDWESTDEUTSCHEN NEUKANTIANISMUS UND IN DER SPÄTEREN KANTIANISIERENDEN
TRANSZENDENTALPHILOSOPHIE: EINE PROBLEMGESCHICHTLICHE BETRACHTUNG

Die „transzendentale Zeitbestimmung“ Kant-Forschung ebenfalls eine Reve-


erfüllt nun die erforderliche Bedingung renz zu erweisen, kann es sich nicht
der Gleichartigkeit, ist sie doch einer- um eine Irrelevanz im Sinne der (sich
seits wie die Kategorie „allgemein“ und an Curtius (1914) orientierenden) Kri-
gegründet auf einer „Regel a priori“ tik von Kemp Smith handeln. Sinn-
sowie anderseits mit der Erscheinung liche Anschauungen und Kategorien
insofern gleichartig, als die „Zeit“ in je- seien entweder nicht völlig heterogen,
der empirischen Vorstellung des Man- da sonst Subsumtion unmöglich wäre,
nigfaltigen enthalten ist: die transzen- oder sie seien es, dann erweise sich
dentale Zeitbestimmung ist das Schema der Schematismus jedoch als überflüs-
der Kategorie (KrV B 177 f.). Mit ihr sig (Kemp Smith 1918, 318). Man hat
liegt konkrete Gegenstandserkenntnis Kemp Smiths Vorwurf nicht nur in die
vor; sie ist in einem reine Synthesis Nähe „Neukantianischer Interpretatio-
wie unmittelbare Gegenstandsreferenz: nen“ gerückt, sondern in Kemp Smiths
Kontingentes ist zur kategorial fundi- Kritik zugleich einen ontologisierenden
erten Einheit gebracht, die die kon- Aristotelischen hyletischen Sensualis-
krete Gegenstandsbestimmung ist. Die mus gewittert (Birrer 2017, 2 f. mit
Anwendung von Kategorien auf Ers- 17).Damit tun sich schon zwei wich-
cheinungen als Gegenstände der Er- tige, eng miteinander verbundene Ge-
kenntnis ist insoweit geklärt. sichtspunkte auf, die für eine Einschät-
Die These der gänzlichen Hetero- zung des Südwestdeutschen Umgangs
genität von Kategorie und Erschei- mit der Schematismusproblematik re-
nung, die zwecks konkreter Gegens- levant sind.
tandserkenntnis eines vermittelnden Zum einen nämlich qualifiziert
Schemas bedarf, reicht auch für die das Form-Inhalt-Verhältnis für die
im folgenden zu diskutierende Fests- Südwestdeutschen die Geltungsstruk-
tellung aus, daß ein solches Schema, je- tur der Erkenntnis. Insofern steht es
denfalls als grundlegendes Definitions- jenseits allen Ontizismus eines sinnli-
stück der Erkenntnis, in der kantiani- chen Stoffes, der durch das Denken un-
sierenden Transzendentalphilosophie sinnliche Formen erhalte, so daß ein
fehlt.6 Kants Schematismusproblem Kosmos, ein geformtes Gebilde ents-
betrifft hier allenfalls ein nachgeord- tehe. Das Verhältnis betrifft, Kantisch
netes, kein fundamentales Problem der gesprochen, zwei Arten von Vorstel-
Erkenntnislehre. Was sind die Gründe lungen zueinander: Anschauung als
für diese Transformation? Vorstellung von Einzelnem und Be-
Zunächst, um diesem Kalauer der griff als Vorstellung von Allgemeinem.

6 – ebenso wie in Hegels spekulativem Idealismus.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 35-77 39
ISSN: 2317-9570
CHRISTIAN KRIJNEN

unmittelbar, sondern rein im Ansatz.31 dlichen“, des „Gegenstandes des Den-


Seiner fundierenden Funktion gemäß kens“, dann ist es thematisch hinsi-
ist der Anfang allerdings zugleich An- chtlich seiner Gehaltlichkeit. Zum Be-
fang des Fortgangs: er enthält eben- griff dessen, was gedacht wird, wenn
falls die Grundbestimmtheit der Bes- etwas überhaupt theoretisch oder lo-
timmungssphäre. gisch gedacht wird, gehören Rickert zu-
In Rickerts „Modell eines the- folge Form und Inhalt. Dieser Inhalt ist
oretisch gedachten Gegenstandes kein besonderer (dieser, jener) Inhalt,
überhaupt“ ist der theoretische Ge- sondern „Inhalt überhaupt“; er muß
genstand überhaupt thematisch qua daher ebenfalls formal genannt wer-
Inbegriff logischer Fundamentalbe- den: Inhalt ist selbst Bestandteil des
dingungen alles wahrheitsreferenten Gegenstandmodells, gehört also zu den
Denkens und aller wahrheitsreferen- formalen Faktoren des theoretischen
ten Gedanken (Rickert 1924, 10; vgl. Gegenstandes überhaupt (1921, 52 f.;
1921, 50 ff.). Die Bestimmung desje- 1924, 11 ff.). Damit erhält ‚Inhalt‘ den
nigen Gedankens, der allen anderen Rang eines Prinzips; Inhalt ist selbst
logisch (‚begrifflich‘) vorausgeht und eine Form logischen Denkens: das Den-
insofern sachlicher Anfang des Den- ken setzt von sich aus das, worauf es
kens ist, entzündet sich bei Rickert an bezogen ist, involviert eine Selbstbezi-
der Frage: „Wie denken wir überhaupt ehung auf Inhalt. ‚Inhalt überhaupt‘
etwas so, daß es Gegenstand der Er- ist der ‚logische Ort für das Alogische‘
kenntnis wird? Oder: wie denken (Rickert 1921, 52; 1924, 12). Als logis-
wir theore¬tisch, und was ist ein the- cher Ort für das Alogische garantiert
oretisch gedachter Gegenstand?“ De- er die Inhaltsbezogenheit des Denkens
ren Beantwortung führt zum Begriff und ermöglicht dadurch eine Mannig-
des ‚rein Logischen‘ oder auch: des faltigkeit von Inhalten. Entsprechend
‚rein Theore¬tischen‘ als dem „rein lo- fungiert das Denken als Umgreifung-
gischen Gegenstand“, des „gedachten seinheit, innerhalb welcher die Glieder
Etwas überhaupt“ (1921, 50 f.; 1924, der Einheit selbst möglich sind: sie
8 f.), des „logischen Urphänomens“ haben ihren Sinn nicht als ein ‚Seins-
(1921, 61; 1924, 25). Ist das Denken verhältnis‘, als gäbe es zwei reale En-
philosophischer Gegenstand hinsich- titäten außerhalb der Erkenntnisrela-
tlich des von „vornherein Gegenstän- tion, die quasi nachträglich eine Er-

31 Rickerts ‚Etwas überhaupt‘ des Gegenstandsmodells darf noch nicht als ‚bestimmtes Sein‘ aufgefaßt werden, allenfalls als bes-
timmbares: es liegt der Sphäre von Bestimmtheit noch voraus. In der Terminologie der Logik des Prädikats gesprochen, enthält das
‚Etwas über¬haupt‘ noch keine ‚Erkenntnisformen‘, sondern nur ‚Denkformen‘: nur Formen des Subjektbegriffs, nicht des Prädi-
katbegriffs (Rickert 1930, 111 ff.). Es liegt somit allenfalls eine Setzungsleistung von zu Bestimmendem vor; als Subjekt möglicher
Prädikate ist das Etwas noch unbestimmt. In der Bestimmungssphäre rückt der logische Gegenstand des Ursprungs an die Stelle des
Subjektbegriffs im Urteil. Vgl. zur Thematik näher Krijnen (2008b, Kap. 2).

54 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 35-77
ISSN: 2317-9570
CHRISTIAN KRIJNEN

nen wir, wie der Neukantianer Ric- den Südwestdeutschen einen rein ‚se-
kert sagt, nur „‚erleben‘ oder ‚schauen‘ mantischen‘ (Zocher) oder ‚funktiona-
oder sonst irgendwie alogisch erfassen“ len‘ (Bauch, Cassirer) Sinn.
(1921, 53 f.; 1924, 13, 15). Gäbe es nur
Rezeptivität, es gäbe weder Erkennt-
nis noch Gegenstände der Erkenntnis:
wir kämen über den bloßen ‚Erlebniss- IV Die südwestdeutsche Alternative
trom‘ nicht hinaus. Primär-konstitutiv für Kants Schematismus: Methodolo-
gesehen, ermöglicht die Form ‚Inhalt gie
überhaupt‘, daß überhaupt Inhalt als
zu Objektivierendes in die theoretis- (1) Im Ergebnis ist bislang eine radi-
che Grundrelation eingeht, Inhalt also kale Heterogenität im Ursprung ab-
theoretisch different, theoretisches Pro- gewehrt und ein Verhältnis von au-
blem wird. feinander notwendigerweise bezoge-
Da jeder Inhalt geformter Inhalt und nen Gliedern etabliert. Kants Problem
jede Form inhaltserfüllte Form ist, gibt des Schematismus betrifft jedoch ni-
es in einer isolierten Betrachtung keine cht das allgemeine Verhältnis von Ans-
adäquate Bezeichnung für einen von chauung und Begriff bzw. Rezepti-
der Form ‚unberührten‘ Inhalt, der als vität und Verstand, sondern das viel
„‚rein‘ alogischer Inhalt“ aufträte: der- speziellere der ‚Anwendung der Kate-
gleichen wäre nicht mehr logisch oder gorien auf Gegenstände der Erkennt-
theoretisch qualifizierbar; die Rede da- nis‘, d. h., thematisch ist das Problem
von ist deshalb logisch gesehen un- konkreter Gegenstandsbestimmung. Das
verständlich und die vermeintliche Sa- Konkreszenzproblem der Erkenntnis
che theoretisch irrelevant.32 Das Ge- wird bei den Südwestdeutschen nicht
gebene kann nie vom Denken losgelöst in der Weise eines ‚vermittelnden Drit-
und verselbständigt werden; es ist im- ten‘ gelöst, sondern durch Explikation
mer nur dem Denken gegeben; nur in- der ursprünglichen Erkenntniseinheit,
nerhalb der theoretischen Sphäre, des aus dem ‚Begriff‘, der ‚Idee‘ der ‚Form‘
Denkens hat die Rede von einem ‚Gege- der Erkenntnis oder wie man sich sonst
benen‘ Sinn. Die völlige Isolation von auch ausdrücken mag. Es kommt so-
Form bzw. Denken und Inhalt ist ein mit zu einer Stufung von Prinzipien
Residuum der direkt-gegenständlichen gegenständlicher Bestimmtheit. Diese
Auffassung. Indes hat das Form-Inhalt- Stufung reicht vom Ursprung der Er-
Gefüge jenseits allen Ontizismus bei kenntnis bis hin zu seiner Vereinze-
lung in Konkreta. Allerdings sind an

32 Vgl. dazu: Rickert 1921, 53; 1924, 13. Vgl. etwa auch Rickerts Kritik intuitio¬nistischer Erkenntnislehren (siehe dazu die
Hinweise bei Krijnen (2001, Kap. 5.2.2.5)¬).

56 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 35-77
ISSN: 2317-9570
DER SCHEMATISMUS REINER VERSTANDESBEGRIFFE BEI KANT, SEINE TRANSFORMATION IM
SÜDWESTDEUTSCHEN NEUKANTIANISMUS UND IN DER SPÄTEREN KANTIANISIERENDEN
TRANSZENDENTALPHILOSOPHIE: EINE PROBLEMGESCHICHTLICHE BETRACHTUNG

diesem Vereinzelungs- oder Konkres- ben, sondern höchstens, wie angedeu-


zenzgedanken eine subjektiv-logische tet, Stufen relativer Ursprünglichkeit
Dimension der Aneignung des Gegens- innerhalb der theoretischen Sphäre.
tandes durch das erkennende Subjekt Freilich muß ein Inhalt ‚da‘ sein, der
und eine objektiv-logische Dimension erkannt wird, aber sogar ‚Inhalt‘ ent-
der Bestimmtheit des Gegenstandes zu puppte sich als Prinzip innerhalb der
unterscheiden. Dies wird exemplarisch Geltung. ‚Da‘ ist etwas nur durch
sichtbar durch eine nähere Betrachtung den Gedanken – die Geltungsstruk-
von Rickerts und Bauchs Erkenntnis- tur des Gedankens ist aller Erkenntnis
lehre. von Seiendem in seinem Dasein und
Gemäß der Heterologie hat die Er- Sosein logisch vorgängig. Die Stufen
kenntnistheorie an ihrem Anfang ni- relativer Ursprünglichkeit innerhalb
cht die Tatsache der Getrenntheit von der theoretischen Sphäre reichen bei
Form und Inhalt (Subjekt und Ob- Rickert von der Ursprungssynthesis
jekt o. ä.), sondern diese Getrenntheit des Denkens im Gegenstandsmodell
erweist sich als souveränes Werk objek- bis hin zur Konstitution des konkret-
tiven, gegenstandsbezogenen, erkennt- gegenständlichen Sinns durch metho-
nisinteressierten Denkens. Jedwedes dologische Erkenntnisformen. Dec-
denkbare Etwas besteht Rickert zu- ken die Stufen relativer Ursprüngli-
folge aus Form und Inhalt (1921, 120 chkeit das gesamte Bestimmungsspek-
f., 262):33 ontologisch gesehen die als trum der theoretischen Sphäre ab, dann
wahrnehmbar oder verstehbar gege- muß auch der Begriff der Wirklichkeit
bene Welt aus sinnlichen Gegenstän- und der des Gegebenen der Erkennt-
den, denen erkenntnistheoretisch ge- nis konstituiert werden. Nicht die
sehen sinnlicher Inhalt und unsinnliche Inhaltsbezogenheit des Denkens selbst
Form eignet, sowie unsinnlichen Ge- steht dann zur Debatte, sondern der
genständen (Sinngebilden), denen er- spezifische Sinn des als Material (etwa
kenntnistheoretisch gesehen unsinnli- der Einzelwissenschaften) Gegebenen –
cher Inhalt und unsinnliche Form zu- d. h. Gegebenes einer relativ späten
kommt (Rickert 1939a, 107 u.ö.; 1934; Fundierungsstufe. Die Erkenntnisbe-
1939b). Für eine Transzendentalphilo- ziehung wird somit prinzipientheore-
sophie auf der Reflexionsstufe Rickerts tisch konkretisiert: begrifflich verdichtet
kann es nichts Denkfremdes, nichts zu konkret-gegenständlichem Sinn.
Nicht-Geltungsartiges, nichts nicht aus Bezüglich Rickerts Philosophie gilt
der Geltung selbst Konstituiertes ge- es dabei sich der Eigentümlichkeit

33 Darin steckt freilich ebenfalls eine wichtige Differenz zu Kants transzendentaler Ästhetik der Kritik der reinen Vernunft, §§ 2 ff.,
denn Raum und Zeit können nicht als Primärformen des unmittelbar Gegebenen fungieren. Vgl. dazu Krijnen (2013).

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 35-77 57
ISSN: 2317-9570
CHRISTIAN KRIJNEN

zu vergegenwärtigen, daß Rickert das losgelöst vom erkennenden Subjekt ge-


Problem der Gegenstandskonstitution dacht ist, geht es, zum anderen, beim
in zweierlei Richtung ausgelotet hat: subjektiven Weg um die Erkenntnis qua
in eine subjektiv-logische und eine ‚Erkenntnis des Gegenstandes‘, um die
objektiv-logische Richtung.34 Rickerts Erkenntnis durch ein Subjekt: um die
erkenntnistheoretisches Hauptwerk Subjektivität der Erkenntnis. Diese be-
Der Gegenstand der Erkenntnis ist trifft die Geltung der Erkenntnis in ih-
subjektiv-logisch ausgerichtet; erst im rem logischen Vollzug. Entsprechend
Laufe mehrerer Überarbeitungen hat ist im Ganzen der Erkenntnis das ‚geda-
er es auch objektiv-logisch konturiert chte Etwas‘, das, was gedacht wird als
und entsprechend objektiv-logische As- objektives Gebilde, logisch zu unters-
pekte eingebaut.35 Da Rickert einen cheiden vom ‚Akt des Denkens‘, vom
logischen Primat des objektiven We- Wodurch des Denkens als subjektivem
ges vertritt, handelt es sich weniger Gebilde.
um zwei Wege der Erkenntnistheorie Diese zwei verschiedenen Aufga-
als vielmehr um die Erkundung zweier benstellungen der Erkenntnistheorie
(heterologisch vermittelter) Dimensio- führen nicht nur zu je unterschie-
nen oder Sphären der Erkenntnis, also dlichen Erkenntnisbestimmungen; sie
um zwei Reflexionsweisen der Erkennt- sind zudem mit zwei verschiedenen
nistheorie. Diese thematisiert als Lehre Ausgangspunkten der Geltungsreflexion
von der Geltungsbestimmtheit der Er- verbunden: Die Erkenntnistheorie geht
kenntnis immer den Einen ‚Gegenstand immer von einem ‚Faktum‘, einem Wir-
der Erkenntnis‘ qua Maßstab. Dies er- klichen aus (Rickert 1909, 174, 181,
folgt jedoch in zwei Hinsichten. Zum 189, 193; 1928, 251; 1930, 25). Ric-
einen geht es um die Erkenntnis qua kerts subjektiver, auch ‚transcenden-
‚Gegenstand der Erkenntnis‘, um das talpsychologisch‘ genannter Weg geht
‚gedachte Etwas‘, das, was gedacht wird vom Faktum des Erkennens aus: vom
als objektives Gebilde, als Objekt: um „wirklichen Erkenntnisakt“. Vom sub-
die Objektivität selbst der Erkenntnis. jektiven Akt ausgehend, bahnt sich
Diese betrifft die Geltung als Inbegriff die Erkenntnistheorie „allmählich“ ih-
von Prinzipien, welche die Objektivität ren Weg zum transzendenten Gegens-
jeweiliger Erkenntnisleistungen garan- tand als Grund aller Objektivität (1909,
tieren. Während auf objektivem Weg 174): sie dringt vom „Subjekt zum Ob-
der ‚Gegenstand‘ für sich und damit jekt“ vor (1928, 4). Der objektive, auch

34 Vgl. zu dieser Thematik Rickert (1909, 1912; 1928). Dazu vgl. Krijnen (2001, spez. Kap. 6; 2014a; 2014b).
35 Rickert (1928, X) bezeichnet die 3. Auflage von 1915 sogar in gewisser Hinsicht als ein „neues Buch“; er rät vom Gebrauch
der früheren Auflagen ab, da so gut wie kein Abschnitt wörtlich derselbe geblieben sei. Vor allem (jedoch nicht nur) hat er seine
Abhandlung über die „Zwei Wege der Erkenntnistheorie“ (Rickert 1909) eingearbeitet und damit den objektiven Weg.

58 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 35-77
ISSN: 2317-9570
DER SCHEMATISMUS REINER VERSTANDESBEGRIFFE BEI KANT, SEINE TRANSFORMATION IM
SÜDWESTDEUTSCHEN NEUKANTIANISMUS UND IN DER SPÄTEREN KANTIANISIERENDEN
TRANSZENDENTALPHILOSOPHIE: EINE PROBLEMGESCHICHTLICHE BETRACHTUNG

‚transcendentallogisch‘ genannte Weg kert 1928, 350): das Subjekt ist hin-
Rickerts behandelt „so schnell wie mö- sichtlich der Geltung seiner Leistun-
glich“ und „ohne Rücksicht auf den gen einer es normierenden Instanz un-
psychischen Akt des Erkennens“ den terworfen. Seiner Auffassung der Er-
transzendenten Gegenstand in sich: er kenntnistheorie als Formenlehre ents-
geht „‚rein‘ logisch“ vor (1909, 174). prechend, bezieht sich Rickerts Analyse
Anders als im subjektiven Verfahren auch im 5. Kapitel auf die „Form“
läßt das objektive die Frage nach der Er- (Rickert 1928, 361) der Erkenntnis
kenntnis des Gegenstandes zurücktre- und damit auf die Geltungsprinzipien,
ten. Daher fungiert als Ausgangspunkt die der Erkenntnis zugrunde liegen.
nicht das subjektiv-logische Faktum Näherhin handelt es sich im 5. Kapi-
des Erkennens, sondern das objektiv- tel um eine spezifische Form, die Rickert
logische der Erkenntnis: der „wahre als „Kategorie“ bezeichnet: durch sie
Satz“ (1928, 254 mit 251; 1930, 5 f.). wird „unser Erkennen gegenständlich“
Im 5. Kapitel seines Gegenstandsbu- (1928, 361, 366). Dieses Gegenstän-
ches bietet Rickert eine Auseinander- dlichwerden der Erkenntnis durch die
setzung mit dem sog. empirischen Re- Kategorie wird gemäß der Anlage des
alismus, in der er versucht zu zeigen, Gegenstandsbuches subjektiv-logisch
daß und wie der transzendentale Ide- und daher in der Perspektive des Ge-
alismus mit dem empirischen Realis- genständlichwerdens des Erkennens
mus (der Einzelwissenschaften) verträ- eruiert (1928, 362 ff.).
glich ist (vgl. Krijnen 2014b). Dies ist Es erweist sich als ein komplexer Sa-
insofern interessant, als hier systema- chverhalt, der aus einer Vielzahl mit
tisch gesehen das Konkrezenzproblem je spezifischer Erkenntnisfunktion für
der Erkenntnis, das Kant im Schematis- das Erfassen des Gegenstandes durch
muskapitel umtreibt, subjektiv-logisch den Erkenntnisakt ausgestatteten For-
thematisch ist.36 men besteht (Rickert 1928, 365 ff.).
Aus subjektiv-logischer Sicht sind Was in subjektiv-logischer Betrachtung
Stufen der Aneignung des Gegenstan- speziell die „Kategorie“ ausmacht, ist,
des durch das Subjekt thematisch. Der daß durch sie sozusagen der „Übergang
Geltungsgrund der Erkenntnis, der vom Sollen zum real Seienden“ vollzo-
‚Gegenstand‘ qua Maßstab der Erkennt- gen wird, d. h., Rickerts Kategorie ist
nis hat sich dabei als ein „Sollen“, nicht jenes Moment im Erkennen, das dem
als ein „real Seiendes“ erwiesen (Ric- Inhalt die ihm zugehörige Form „bei-

36 Rickerts Gegenstandsbuch liefert kein alle Prinzipienstufen der Erkenntnis umfassendes System der Erkenntnis, sondern ist auf
das erkenntnistheoretische Problem der Wirklichkeitserkenntnis abgestellt. Das Problem der ursprünglichen Synthesis der Erkennt-
nis wird hier nicht traktiert. Rickert diskutiert es im Kontext seiner ‚Heterologie‘. Dabei geht er jedoch objektiv-logisch vor und
nicht, wie im Gegenstandsbuch, subjektiv-logisch. Dadurch ergibt sich ein anderes, nämlich ein objektiv-logisches Stufenmodell.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 35-77 59
ISSN: 2317-9570
DER SCHEMATISMUS REINER VERSTANDESBEGRIFFE BEI KANT, SEINE TRANSFORMATION IM
SÜDWESTDEUTSCHEN NEUKANTIANISMUS UND IN DER SPÄTEREN KANTIANISIERENDEN
TRANSZENDENTALPHILOSOPHIE: EINE PROBLEMGESCHICHTLICHE BETRACHTUNG

Gerade wenn man die wissenschaftli- Gegenstand qua Maßstab des Erken-
che Erkenntnis als Paradigma nimmt, nens erweist sich sodann als ein sol-
läßt sich nicht übersehen, daß sie auf lensnotwendiges Zusammen von Form
„in sich zusammenhängende Erkennt- und Inhalt, während durch die Kate-
nis“ aus ist (Rickert 1928, 383). Di- gorie der vom erkennenden Subjekt als
eses Streben nach zusammenhängen- fertig vorausgesetzte Gegenstand erst
der Erkenntnis des Wirklichen hat logisch ‚produziert‘ wird (1928, 391).
ebenfalls ein subjektiv-logisches Fun- Dieser subjektiv-logische Sachverhalt ist
dament. Da jedwede Wissenschaft Er- das Entscheidende für Rickerts Behan-
kenntnismaterial bearbeitet, lassen sich dlung der sog. „Wirklichkeitsurteile“
am wissenschaftlichen Erkenntnisans- (1928, Kap. 5, § IV). Nicht auf den In-
pruch näherhin unterscheiden: 1. das begriff der Wirklichkeitsformen, son-
Material und 2. dessen Bearbeitung. dern auf die durch die Kategorie(n) ver-
Zunächst (§ IV) weist Rickert die Ve- mittelte Gegründetheit im Sollen als Ge-
reinbarkeit von transzendentalem Ide- genstand kommt es an. Immer bildet
alismus und empirischem Realismus die Kategorie den „Übergang vom Sol-
für das Material nach, anschließend (§ len zum wirklich Seienden“, hier: die
V) für die Bearbeitung. Dabei ist so Kategorien des Zusammenhangs (1928,
etwas wie „Material“ freilich schon ein 393).
recht weit konstituierter Gegenstand, Rickert führt seinen transzendental-
also eine Konkretion von Form-Inhalt- idealistischen Erkenntnisbegriff also
Verhältnissen. Und freilich gelten die immer weiter aus. Auch die ‚empirisch-
dargelegten Verhältnisse von Material realistische‘ Voraussetzung einer ob-
und Bearbeitung des Materials ganz all- jektiven Wirklichkeit erweist sich er-
gemein für die Erkenntnis, nicht bloß kenntnistheoretisch als Ergebnis kate-
für die wissenschaftliche. gorialer Anerkennung. Erkennen bleibt
Die Kompatibilität von Denken und durchgehend ein Anerkennen von Nor-
Wirklichkeit läuft in diesem Problem- men, die als Maßstab auch der Wir-
kontext auf den Nachweis hinaus, daß klichkeitserkenntnis fungieren (Rickert
auch das vom erkennenden Subjekt 1928, 394 f.). Näherhin handelt es
vorausgesetzte Material des Erken- sich um Anerkennungsformen des „er-
nens als zusammenhängende reale Welt kenntnistheoretischen Subjekts“: die-
transzendental-idealistisch gesehen ses bringt die objektive Wirklichkeit
„Formen“ des Zusammenhangs enthält subjektiv-logisch zustande, und damit
(Rickert 1928, 389 f.). Subjektiv-logisch das, was empirisch-realistisch gesehen
betrachtet ist Erkennen ein Subjekt- die für sich bestehende objektive Wir-
Objekt-Verhältnis, und es sind die Akte klichkeit ist (1928, 397 f.). Zugleich
des Subjekts, durch die es erkennt. Der wird verständlich, inwiefern es für das

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 35-77 61
ISSN: 2317-9570
CHRISTIAN KRIJNEN

reale, „erkennende Subjekt“ eine von dendes Auffassen“ der objektiven Wir-
ihm unabhängige objektive Wirklich- klichkeit durch das reale, erkennende
keit gibt; denn diesem erkennenden Sub- Subjekt, und damit durch in ihrer Gel-
jekt ist das erkenntnistheoretische Sub- tung von diesem Subjekt unabhän-
jekt die Norm oder das „Ideal“ (1928, gige „methodologische Formen“ (1928,
397 ff.). Gemäß Rickerts Idealismus 403 f.). Auch diese methodologischen
ist die objektive Wirklichkeit geradezu Formen behandelt Rickert als Aner-
bestimmt als von „aller wissenschaf- kennungsformen. Durch sie kommt
tlichen wie vorwissenschaftlichen Be- der Sinn von Aussagen über die Wir-
griffsbildung eines realen Subjekts freie klichkeit subjektiv-logisch zustande.
Wirklichkeit“ (1928, 414). Als solche Daher hängt auch die „Objektivität“
ist sie immer schon formbestimmt. der wissenschaftlichen Begriffsbildung
Damit ist aus subjektiv-logischer Si- subjektiv-logisch daran, „ob ihre For-
cht das Problem der objektiven Wir- men in gültigen Normen begründet
klichkeit jedenfalls programmatisch sind“ (1928, 431). Erneut entstammt
gelöst. In § V müssen entsprechend di- der Erkenntnisstoff gewissermaßen
ejenigen Formen bestimmt werden, die „empiristisch“ den inhaltlichen Bes-
die begri iche Bestimmung der objekti- timmungen des tatsächlich Gegebenen,
ven Wirklichkeit durch das erkennende während die Gegenständlichkeit ver-
Subjekt leiten. Sie machen, sofern es leihende Form „idealistisch“ auf ein
sich um wissenschaftliche Erkenntnis „Sollen“ gegründet ist: ein transzen-
handelt, den „Begriff der Wissenschaft dentes Sollen fungiert als „Grundlage“
vom realen Sein“ aus (Rickert 1928, einer jedweden Erkenntnis (1928, 431).
402): die sog. „methodologischen Er- Soweit die subjektiv-logische Re-
kenntnisformen“. Durch sie bestimmt flexion. Rickert ist, wie angedeutet,
das erkennende Subjekt die objektive auch den objektiven Weg in der Ob-
Wirklichkeit begri ich. Diese begrif- jektivitätsbestimmung gegangen (vgl.
fliche Bestimmung der objektiven Wir- 1921; 1930; 1939c). Gerade die Lo-
klichkeit ist subjektiv-logisch zu vers- gik des Prädikats (1930) ist ein Versuch,
tehen. im Ausgang nicht vom Erkennen, son-
Rickert bewerkstelligt die Kompati- dern vom Erkannten zu zeigen, wie
bilität auf der Konstitutionsstufe wir- das Gedachte sich aufbaut (jedenfalls
klichkeitswissenschaftlicher Begriffs- was die konstitutiven Momente betrifft,
bildung.37 Auch sie erweist sich als denn die methodologischen bleiben in
formbestimmt, näherhin als „umbil- dieser Schrift außen vor)38 . Die Lo-

37 Vgl. zum vorwissenschaftlichen Erkennen etwa Rickert (1929, Kap. 1.I).


38 Rickert hat sie eingehend thematisiert in den Grenzen (1929) und Kulturwissenschaft und Naturwissenschaft (1926).

62 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 35-77
ISSN: 2317-9570
DER SCHEMATISMUS REINER VERSTANDESBEGRIFFE BEI KANT, SEINE TRANSFORMATION IM
SÜDWESTDEUTSCHEN NEUKANTIANISMUS UND IN DER SPÄTEREN KANTIANISIERENDEN
TRANSZENDENTALPHILOSOPHIE: EINE PROBLEMGESCHICHTLICHE BETRACHTUNG

rend das Erkennen sich als Beziehen objektiv-gegenständlichen Sinn: Kate-


erweist, das sich in seiner Geltung oder gorien sind Prinzipien gegenständli-
Wahrheit nur nach Beziehungen rich- cher Bestimmtheit, nicht Formen des
ten kann – die somit Geltungs- oder Beziehens, sondern des Bezogenen. Sie
Wahrheitsbeziehungen sind –, erweist sind für alles Wirkliche vorausgesetzt.
sich auch der Gegenstand als eine Die Kategorie steht wiederum in einem
durch Wahrheitsbeziehungen fundierte Beziehungszusammenhang von Kate-
Beziehung. Die Wahrheitsbeziehungen, gorien, die den Gegenstand bestimmen
deren Inbegriff die Wahrheit ist, sind (Ding oder Eigenschaft, Ursache oder
also gegenstandslogische und damit Wirkung, Eines oder Vieles usw.). Di-
übersubjektive Beziehungen. Bauch eser gegenstandsbestimmende Zusam-
konzipiert sie als objektive Geltungs- menhang von Kategorien ist bei Bauch
funktionen. Der Gegenstand ist ihm ge- der Begri : das „objektive Bildungsge-
radezu ein Stehen-in-Beziehungen und setz des zu erkennenden Gegenstan-
das Erkennen als ein Sich-richten-nach- des“ (1982, 265).39 Im Begriff haben
Beziehungen. die Kategorien ihren Zusammenhang;
Näherhin erfolgt die Konstitution zugleich sind die Gegenstände selbst
des Gegenstandes der Erkenntnis und durch Begriffe und damit durch Ka-
die der Erkenntnis des Gegenstandes tegorien konstituiert. Der Zusamme-
durch drei zusammengehörende Ar- nhang der Begriffe wiederum ist die
ten von Wahrheits- oder Geltungsbezi- Grundlage des Zusammenhangs der
ehungen: durch die Kategorie, den Be- Erkenntnis der Gegenstände wie der
gri und die Idee. Gegenstände der Erkenntnis. Letz-
Was die Erkenntnis wirklicher Ge- tlich läuft diese Bauchsche Zusamme-
genstände betrifft, geht es zunächst nhangsphilosophie auf das Ganze des
um die gegenstandsgebende Ordnung Zusammenhangs hinaus, d. h. auf die
der Empfindungsinhalte. Um überhaupt Idee als das System der Begri e und da-
sein bzw. Empfindung sein zu kön- mit als diejenige objektive Geltungsbe-
nen, muß die Empfindung in einen ziehung, die als Ganzes von Bedingun-
Zusammenhang eingeordnet sein (Sein, gen der Gegenstände die Wirklichkeit
Identität, Verschiedenheit, Inhaltlich- ebenso konstituiert wie deren Erkennt-
keit u. dgl.). Dieser Zusammenhang nis.
ist der der Kategorie. Wie bei Kant, Geltungsbeziehungen sind Bedin-
aber anders als bei Rickert, hat bei gungen der Gegenständlichkeit der Ge-
Bauch die Kategorie einen dezidiert genstände, nicht selbst Gegenstände.

39 Bauch bezeichnet ihn auch als Funktion des Folgeverlaufs vom Allgemeinen zum Besonderen oder als Invarianz der Bedingungen
für die Varianz und Abwandlung der Besonderheiten (1923b, 283 ff.; 1926, 101 f., 131 ff., 188; 1982, 266).

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 35-77 65
ISSN: 2317-9570
CHRISTIAN KRIJNEN

Sie liegen allem Seienden logisch zu- verhalts einige allgemeine Andeutun-
grunde, und zwar von Anfang an und gen:
durchgehend. Bauch hat diesen Gedan- (1) Zunächst ist in bezug auf Wagner
ken, wie Rickert, freilich auch hinsich- und Flach wichtig, daß beide ihre Sys-
tlich der Methodik konkreter Gegens- tematik in der Weise einer Geltungs-
tandsbestimmung qua Wirklichkeitser- noematik entwickeln, die Geltungspro-
kenntnis verfolgt: zu den „fundamen- blematik also unter der Ägide des ‚ob-
talen Strukturformen der Wahrheit“ jektiven Weges‘ Rickerts bewältigen.
gehört ihm auch die „Methode“ als Damit verfolgen sie, systematisch ge-
der Weg der Wahrheit (1923b, 136, sehen, den Bauchschen Ansatz. Hin-
vgl. Teil II und Teil III). Kurzum: bei sichtlich des Kantischen Stämmedua-
Bauch eignet der Erkenntnis eine gel- lismus kommt es dabei unter Einfluß
tungsnoematische Struktur, die vom des Neukantianismus, Husserls und
Ursprung von Gegenständlichkeit bis Hönigswalds zu einer differenzierteren
in die Bestimmtheit der Konkreta rei- Einschätzung der Erkenntnisrelation,
cht und dabei als Erkenntnisbeziehung die sowohl geltungsnoematische als
durchgehend bei sich bleibt. auch geltungsnoetische Aspekte inte-
griert. So unter¬scheidet Wagner nun-
mehr „vier Fundamentalglieder eines
theoretischen Gebildes“: Subjekt – Ob-
V Zum Schematismus in der kantiani-
jekt – Erkenntnistätigkeit – Erkenntni-
sierenden Transzendentalphilosophie
sergebnis (Wagner 1980c, 1 ff.). Flach,
der Nachkriegszeit
der Wagner hier weitgehend folgt, zei-
Im Grunde liegen die Verhältnisse in chnet ein funktionales Modell des Wis-
der kantianisierenden Transzenden- sens, das ebenfalls aus vier Komponen-
talphilosophie von Hans Wagner und ten besteht: Intention – Aufgabe –Leis-
Werner Flach nicht anders.40 Auch hier tung – Gehalt (1994, 145 ff.). Obwohl
bedarf es zur Bewältigung des Konkres- sich auch bei Kant Ansätze finden, sub-
zenzproblems der Erkenntnis keines jektive (geltungsnoetische) und objek-
Kantischen Schemas. Die Schematis- tive (geltungsnoematische) Elemente in
muslehre Kants spielt also auch hier in das Modell der Erkenntnis zu integri-
puncto grundsätzlicher Fundierungs- eren, überarbeiten Wagner und Flach
verhältnisse keine Rolle. Nachdem der das zweigliedrige Modell gerade unter
diesbezügliche Grundgedanke anhand diesem Aspekt. Diese Überarbeitung
von Rickert und Bauch schon dargelegt erfolgt, wie angedeutet, im Einklang
wurde, reichen zur Klärung des Sach- mit Kant (Krijnen 2008a, 2014a), und

40 Vgl. vor allem Wagner (1980c) und Flach (1994). Siehe dazu etwa: Krijnen und Zeidler 2011; Krijnen und Zeidler 2017.

66 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 35-77
ISSN: 2317-9570
DER SCHEMATISMUS REINER VERSTANDESBEGRIFFE BEI KANT, SEINE TRANSFORMATION IM
SÜDWESTDEUTSCHEN NEUKANTIANISMUS UND IN DER SPÄTEREN KANTIANISIERENDEN
TRANSZENDENTALPHILOSOPHIE: EINE PROBLEMGESCHICHTLICHE BETRACHTUNG

zwar: unter der Regentschaft der gel- Einen Gegenstand erkennen heißt so-
tungsnoematischen Perspektive. Wie dann, daß ihm die ihm eigenen Bes-
bei Bauch rückt also die Gehaltsanalyse timmtheiten zugedacht werden, und
ins Zentrum. Von der Geltungsnoe- zwar, wie bei Kant, in der Weise des Ur-
matik aus wird sodann ebenfalls die teils (Wagner 1980c, § 12; 1992, 213 f.).
Vollzugs- und Konkreszenzproblema- Das Urteil ist eine Einheit von Subjekt-
tik der Erkenntnis aufgerollt. Was begriff und Prädikatbegriff: Der Sub-
die Konkreszenzproblematik, um die jektbegriff repräsentiert den zu bestim-
es Kant im Schematismuskapitel geht, menden, an ihm selbst bestimmten Ge-
entwickelt Wagner (1980c, § 23 f.; 1992, genstand; für die Erkenntnis ist der
§ 9) ein Modell gestufter Apriorität, Subjektbegriff der unbestimmte noch
das für die Konkreszenz der Erkenntnis zu bestimmende Begriff (Erkenntni-
spezifische Prinzipien hergibt, die zur saufgabe). Der Prädikatbegriff (bzw.
sog. regulativen und systematischen die Reihe der Prädikatbegriffe) indes
Apriorität gehören und als normieren- bestimmt den Subjektbegriff und denkt
der Bestand für das erkennende Subjekt damit, was der Erkenntnisgegenstand
gelten. Sie ergeben sich im Zuge der an Bestimmtheit hat. Wagner betont
geltungsnoematischen Reflexion als des also, daß es sich beim Urteil um eine
„einzig möglichen Fundaments einer noematische „Bestimmungsrelation“
allgemeinen Reflexionslehre“ (1980c, § handelt und nicht primär um „Subsum-
8), d. h. der prinzipientheoretischen tion“:42 um die Bestimmung des Sub-
Reflexion auf die Geltung des „Geda- jektbegriffs durch den Prädikatbegriff
chten“ (Noema), nicht darauf, „daß ich (1980c, 92 ff.; 1992, 214 ff.).
denke“ (1992, 208 f.).41 Darin liegt für die Erkenntnis, daß

41 Wagner hat diesen Gedanken eingehend in Philosophie und Reflexion thematisiert (1980c, §§ 4-7), vgl. aber auch seine Auseinan-
dersetzung mit Husserl (Wagner 1980b)) oder seinen Beitrag zur Diskussion über die Argumentationsstruktur der transzendentalen
Deduktion Kants (1980a).
42 In seinem Aufsatz über Kants Schematismus hebt auch Flach (2001, 38) hervor, daß Kants Rede von Subsumtion kein klassen-
logisches Verhältnis zum Ausdruck bringen soll, sondern „Heterogenes in ein Verhältnis bringt“; die Begründung der „vereinzelten,
bedingten Gegenstandsbestimmtheit durch die generelle, unbedingte Gegenstandsbestimmtheit bezieht Heterogenes aufeinander,
vermittelt es miteinander“. Birrer (2017, 248 f.) unterstreicht ebenfalls, daß der Subsumtionsbegriff des Schematismuskapitels ni-
cht ein begriffslogisches Verhältnis betrifft, sondern das Zusammenhalten von Anschauung (Einzelfall) und Begriff (Regel); damit
bringe Kant die „juristische Konnotation“ des Subsumtionsbegriffs in Anschlag. Indem Birrer dabei abstellt auf die Handlung des
„Entscheidens“, ob ein gegebener Gegenstand der Regel entspricht, geht der systematisch entscheidende Aspekt des Bestimmens
des Gegenstandes durch den Begriff und damit die Konkreszenzfunktion des Schemas jedoch unter. Der „argumentative Beitrag“
des Schematismuskapitels besteht für Birrer entsprechend darin, die Synthesisleistung des Verstandes bezüglich einer „berechtigten
Subsumtion“ zu „überprüfen“ (2017, 252). Dabei zitiert Birrer selbst Kants Aussage, daß die Schemata der reinen Verstandesbegriffe
es ermöglichen, „Erscheinungen allgemeinen Regeln zu unterwerfen und sie dadurch zur durchgängigen Verknüpfung in einer Er-
fahrung schicklich zu machen“ (2017, 253; vgl. KrV B 185). Überprüfung und Unterwerfung sind freilich zweierlei. Wenn ich recht
sehe, kommt es daher bei Birrer (2017, 264, vgl. 264 ff.) auch zur Unterscheidung einer „doppelten Perspektive“ auf den transzen-
dentalen Schematismus als „subsumtionsermöglichend“ und „erfahrungskonstituierend“. Bei Caimi (2015, 201 f.) heißt es lapidar,
es gehe beim Schematismus darum, die „Subsumtion von konkreten Gegenständen [. . . ] darzustellen. Es gilt also, die Kategorien
als Erkenntnisbegriffe anzuwenden, sie als Prädikate den konkreten, einzelnen Erscheinungen beizulegen.“ – Bekanntlich hat Kants
Präsentation des Schematismusproblems als das eines Subsumtionsverhältnisses, ob bei Bauch, Curtius oder Zschokke, Anlaß zu
kritischen Analysen gegeben.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 35-77 67
ISSN: 2317-9570
CHRISTIAN KRIJNEN

aus einer wechselseitigen Implikation ner Erkenntnislehre die womöglich


jeweiliger Beziehungsglieder (vgl. für schärfste Fortbildung des dargelegten
das Regulative 1980c, 194). Ents- Fundierungsgedankens geliefert hat,
prechend sind Wagner, wie er in be- ist es in der großen Linienführung (d.
zug auf Kant formuliert, „Sinnlichkeit i. der geltungsnoematischen Begrün-
und Verstand“ in transzendentaler Be- dung) nicht anders.44 Freilich geht
trachtung keine zwei für sich selbst schon aus Flachs früher Prinzipienlehre
stehende Vermögen oder Funktionen: der Anschauung hervor, daß die Proble-
beide stehen in einem Verhältnis wech- matik des Schematismus der Thematik
selseitiger Implikation (1980c, 192). 43 der Vereinzelung der Erkenntnis zu-
(2) Bei Werner Flach, der mit sei- gehörig ist. Flach (1963, 146 ff.) dis-

43 Bunte (2017, 79 ff.) versucht, Kant gegen Wagners Kritik am Ursprung der Kategorien aus den Urteilsformen zu verteidigen.
Dabei nimmt er jedoch Bezug auf ein Theorem, dem bei Wagner eben aufgrund des von Bunte selbst dargestellten Primats der
geltungsnoematischen Reflexion keine primär-fundierende Funktion zukommen kann: die Lehre von der „transzendentalen Apper-
zeption“. Bunte (2017, 79) spricht sogar von der Möglichkeit des Urteilens im Unterschied von der Einheit des Urteils; Wagner
jedoch rückt das Urteil, nicht das Urteilen in den Vordergrund: die noetische Dimension des Erkenntnisvollzugs durch Erkenntni-
sakte hat einen nachgeordneten Rang. Ein ‚Ich denke‘ und damit Kants apperzeptionstheoretische Pointierung der Objektivitäts-
begründung lehnt Wagner als höchsten Punkt der Transzendentalphilosophie ausdrücklich ab; die Erkenntnisbeziehung selbst als
Geltungsbeziehung ist ihm das Fundierende. Während Wagner den Übergang von der primären zur sekundären Konstitutivität
in Kants metaphysischer Deduktion und dem dort dargelegten Verhältnis von Urteilsformen und Kategorien sieht, soll laut Bunte
(2017, 83) Kants „transzendentales Schema“ den Übergang von der primären zur sekundären Apriorität leisten. Dies kann jedoch
schon deshalb nicht der Fall sein, weil im Zuge von Kants transzendentaler Deduktion sich ergibt: „alle sinnlichen Anschauungen
stehen unter den Kategorien“ (KrV B § 20). Der Übergang von der primären zur sekundären Apriorität ist also schon geleistet, und
zwar begrifflich schon lange, weil Wagners sekundäre Apriorität noch indifferent ist bezüglich der Art des Gegebenseins (sinnlich,
unsinnlich): es wird Gegenständlichkeit überhaupt (‚Sein des Seienden‘) konstituiert (an der von Bunte angeführten Stelle, daß die
Prinzipien der Gegenstandserkenntnis zugleich die der Erkenntnisgegenstände sein müssen (Wagner 1980c, 169), geht es nicht nur
um die Relativierung dieser Konvertibilität durch die primäre Apriorität, sondern Wagner hat zuvor die für Kant „wesentliche“ Res-
triktion der Erkenntnis auf „Erfahrung“ verworfen (1980c, 168 f.)). Die sekundäre Apriorität kann also noch gar nicht unmittelbar
die Dimension der „Selbstbestimmung des Denkens im Modus der Zeit“ (Bunte 2017, 84) betreffen. Überdies soll das Lehrstück
vom transzendentalen Schema bei Kant nicht mehr dartun, daß Kategorien Gegenständlichkeit bestimmen, sondern wie sie auf Ge-
genstände der Erkenntnis angewendet werden können (KrV B 177, 167). Wagner hat Kants Schematismuslehre denn auch nicht für
seine Bestimmung der sekundären Apriorität herangezogen, geschweige denn für den Übergang von der primären zur sekundären.
Im Grunde geht es Bunte um die ursprüngliche Vermittlung von Anschauung und Begriff. Der Schematismus kann dazu insofern
jedoch nichts beitragen, als er, jedenfalls in Kants Schematismuslehre der reinen Verstandesbegriffe, die Bezogenheit der Glieder,
also den primären Stämmedualismus von Sinnlichkeit und Verstand bzw. Anschauung und Begriff, schon voraussetzt und daher
allenfalls eine spätere Konstitutionsstufe ausmacht.
44 Im Detail gibt es gravierende, der erkenntnisfunktionalen Fortbildung des Konkreszenzgedankens verdankte Differenzen. Sie
sind systematisch höchst bedeutungsvoll. Es bleibt daher erstaunlich, daß, trotz der mittlerweile unüberschaubaren Anzahl an
Bänden über Kants Aktualität, Flachs Erkenntnislehre, die durchgehend bemüht ist, Kants Aktualität herauszustellen, so wenig Auf-
merksamkeit in der Kant-Forschung gefunden hat. Was nun die Differenzen zu Wagners Konzeption betrifft, ist es vor allem die
geltungsfunktionale Kontinuität des Denkens bis zur Vereinzelung, die Flach zur Geltung bringt. Einen Dualismus von gegenstands-
gebender Empfindung und gegenstandsbestimmender Kategorie gibt es insofern bei ihm nicht. Namentlich Wagners Unterscheidung
einer sekundär-konstitutiven Apriorität, die die Prinzipien des Seienden enthält, in Unterscheidung von einer regulativen und sys-
tematischen Apriorität, die den Gang der Forschung reguliert und insofern einen heuristischen Charakter trägt, führt dazu, die
sinnliche Gegebenheit als bloße Indikatorenfunktion der Konkretheit zu begreifen (heuristische Prinzipien haben strikte genommen
mit der sinnlichen Bedingung der Kantischen Schematismuslehre nichts zu tun). Für Flach liegt darin eine konstitutionstheoretische
ontologische Belastung der geltungsnoematischen Anlage der Kantischen Schematismuslehre, die sie geradezu um ihren Sinn bringt.
Flachs Konzeption zufolge gehört Kants Lehre vielmehr zur Regionalisierung des Wissens, genauer: zur Thematik der empirischen
Methodik. Konkretes Wissen, das empirisches Wissen ist, ist wie bei Kant Wissen von empirischer Gesetzlichkeit. Flach spezifiziert
dieses Wissen näherhin als Beobachtungs-, Beschreibungs- und Erklärungswissen. Er modelt damit die Wagnersche Indizierungs-
funktionalität des sinnlich Gegebenen zu einer Erprobungsfunktionalität. Kants Schematisierung wird entsprechend zur Flachschen
Erprobung (der Sachadäquanz einer Sachaussage).

70 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 35-77
ISSN: 2317-9570
DER SCHEMATISMUS REINER VERSTANDESBEGRIFFE BEI KANT, SEINE TRANSFORMATION IM
SÜDWESTDEUTSCHEN NEUKANTIANISMUS UND IN DER SPÄTEREN KANTIANISIERENDEN
TRANSZENDENTALPHILOSOPHIE: EINE PROBLEMGESCHICHTLICHE BETRACHTUNG

rie ist sie nicht nur durch Geltungsa- chaussage integriert: sie ist methodis-
podiktizität, sondern auch durch Gel- che Bedingung von Erfahrungserkennt-
tungskontingenz gekennzeichnet. Das nis, kein Habitus (mehr), sondern eine
Prinzip der Geltungskontingenz aber Erkenntnisfunktion (Flach 1994, 580
wird durch den Begriff der Anschau- f.).45 Die methodische Beugung (For-
ung verbürgt. Die Theoriebestimmtheit mierung) der Wahrnehmung gestaltet
besonderer Theorie ist also als anschau- sich hinsichtlich der Erprobung der Sa-
ungsdifferente Bestimmtheit zu disku- chadäquanz der Erfahrungserkenntnis
tieren (Flach 1994, 562). So kommt als einen Funktionsverlauf, der sich von
es in Flachs Methodologie zur Un- der minimalen zur maximalen metho-
terscheidung theoretischer Anschau- dischen Beugung erstreckt: von der Be-
ungsmodi, näherhin der reinen und obachtung zur Beschreibung und schli-
der empirischen Anschauung (1994, eßlich zur Erklärung (1994, 587 f.; Kap.
563, vgl. Kap 4.4.1 u. 4.4.2). Der 4.4.2.1 ff.). So wird die Sachadäquanz
Modus empirischer Anschauung spe- der Sachaussage gesichert und folglich
zifiziert dabei die von den universa- die Sache als Tatsache wissenschaftlich
len Methoden prinzipiierte Theoriebes- gefaßt. Wie angedeutet, Flach beruft
timmtheit überhaupt der Erkenntnis sich dabei systematisch durchaus auf
zur Bestimmtheit empirischer Theorie Kant, näherhin auf Kants Lehre vom
(1994, 577). Diese kennt nur Sachaus- Wahrnehmungsurteil,46 die im Zusam-
sagen, deren Sachadäquanz der Erpro- menhang mit der Aprioritätsproblema-
bung unterliegt; die Erprobung bildet tik den für Flach wichtigen Begriff der
für Flach den „methodischen Brenn- empirischen Signifikanz hergibt: die
punkt der Erfahrungserkenntnis“: em- Wahrnehmung erhält eine regulativ-
pirische Erkenntnis ist primär in der apriorische Prinzipienfunktion (1994,
Perspektive der Erprobung zu vers- 589). Durch die methodische Beugung
tehen (1994, 578). Flach führt im Ans- wird die Wahrnehmung zur Erkennt-
chluß an, aber auch in Abhebung von niskraft.
Kant (1994, 587 ff.) hier den Begriff Die anfängliche methodische Beu-
der Wahrnehmung als einer metho- gung der Wahrnehmung durch die Be-
dologischen Geltungsqualifikation ein obachtung wird von Flach als „Sche-
(1994, 579 ff.). Die Wahrnehmung ist matisierung“ der Kategorie der „Rea-
der methodischen Bestimmtheit der Sa- lität“ aufgefaßt: die Kategorie der Re-

45 Damit bindet Flach zugleich das erkennende Subjekt als sinnliches Vernunftwesen, d. i. als empirisches („tatsächliches“) Sub-
jekt, in die Erkenntnisbestimmung ein: es nutzt seine sinnliche Ausstattung für die Erkenntnis (1994, 581 ff.). Es ist für Flach so das
„regulative Gegenstück zu dem konstitutiven Derivat des Subjekts als Bewußtsein“ (1994, 582).
46 Gegenüber allen nachkantischen Bemühungen, des Problems der empirischen Signifikanz Herr zu werden, behalte sie eine „ins-
pirative Überlegenheit“ (Flach 1994, 596).

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 35-77 73
ISSN: 2317-9570
DOI: https://doi.org/10.26512/rfmc.v8i2.35848

Similar Ways of Creating Thirdness: Kant’s “Synthetic Judgments


a priori” and Frege’s “Thoughts” as Intermediate Cases*
[Modos Similares de Criação de Terceiridade: os “Juízos Sintéticos a priori” de Kant e os
“Pensamentos” de Frege enquanto Casos Intermediários]

Ingolf Max**

Abstract: It is well-known that Kant and Frege offer seemingly exclusive answers to
the (epistemo)logical status of equations. Expressions like “7 + 5 = 12” are synthetic
for Kant but analytic for Frege. Nevertheless, Kant and Frege have a shared interest:
Demonstrating the possibility of grasping a general realm by science. Kant’s question
is “How is metaphysics as science possible?” Frege answers the question “How is logic
as science possible?” Both thinkers are convinced that a precondition for answering
their questions consists in the creation of a third concept. But how? Traditionally given
mutually exclusive distinctions seem to let no room for such a different third concept.
The revolutionary idea is to create basic concepts as molecules (patterns, Gestalten) with a
characteristic inner structure opposed to atoms without any inner structure. Such molecu-
les – Kant’s “synthetic judgments a priori” and Frege’s “thoughts” – can be analyzed as
2-dimensionally structured intermediate cases.
Keywords: Kant. Frege. Logic. Third concept. Intermediate case.

Resumo: Sabe-se que Kant e Frege oferecem respostas aparentemente exclusivas ao sta-
tus logico(epistemológico) de equações. Expressões do tipo “7+5=12” são sintéticas para
Kant, mas analíticas para Frege. Contudo, Kant e Frege possuem um interesse comum:
demonstrar a possibilidade de captar um domínio geral pela ciência. A questão de Kant
é “Como a metafísica enquanto ciência é possível?” Frege responde à questão “Como a
lógica enquanto ciência é possível?” Ambos os pensadores estão convencidos de que uma
pré-condição para responder suas perguntas consiste na criação de um terceiro conceito.
Mas como? Distinções mutuamente exclusivas tradicionalmente dadas não parecem dar
espaço para um terceiro conceito tão diferente. A ideia revolucionária é criar conceitos
básicos como moléculas (padrões, formas) com uma estrutura interna característica, oposta
a átomos, sem nenhuma estrutura interna. Tais moléculas – os “juízos sintéticos a priori
de Kant e os “pensamentos de Frege – podem ser analisados como casos intermediários
estruturados em duas dimensões.
Palavras-chave: Kant. Frege. Lógica. Terceiro conceito. Caso intermediário.

* I would particularly like to thank Lucas Alessandro Duarte Amaral (PUC-SP) for translating my abstract into Brazilian Portu-
guese, Jens Lemanski (FernUniversität Hagen, Germany) and two of my PhD students, Raphael Borchers and Julia Franke, for helping
me to improve this text. Last but not least I would like to express my gratitude to Mario Ariel Gonzáles Porta (PUC-SP) who invited
me to give lectures in the 7º Encontro de Estudos das Origens da Filosofia Contemporânea in 2016 and in the 10º Encontro de Estudos
das Origens da Filosofia Contemporânea in 2019 (https://www.youtube.com/watch?v=sJ1cbQmC1cU).
** Doctor philosophiae habilitatus (Dr. phil. habil.). Leipzig University, Germany. Adjunct Professor of Logic and Theory of Science,
Leipzig University, Germany. E-mail: max@uni-leipzig.de. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5179-1090.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 79-118 79
ISSN: 2317-9570
INGOLF MAX

Introduction language of analysis to interpret selec-


ted text passages written by Kant and
Frege. We use this language to show
It is well-known that Kant and Frege that Kant’s “synthetic judgments a pri-
offer seemingly exclusive answers to ori” as well as Frege’s “thoughts” can be
the (epistemo)logical status of equa- reconstructed as 2-dimensionally struc-
tions. Expressions like “7 + 5 = 12” tured intermediate cases. But there
are synthetic for Kant but analytic for is an important difference. Kant has
Frege. Nevertheless, Kant and Frege to answer the question “How is me-
have a shared interest: Demonstra- taphysics as science possible?” But he
ting the possibility of grasping a ge- did not present his scientific metaphy-
neral realm by science. Kant’s ques- sics, his transcendental philosophy in
tion is “How is metaphysics as science an advanced theoretical form. Frege
possible?” Frege answers the ques- has to answer the question “How is lo-
tion “How is logic as science possible?” gic as science possible?” Unlike Kant
Both thinkers are convinced that a pre- Frege gives his own creative answer
condition for answering their questi- to the question “How does this logic
ons consists in the creation of a third look like?” as well. Frege does not
concept. But how? Traditionally given only show that logic is possible but he
mutually exclusive distinctions seem to also formulates his Begriffsschrift as a
let no room for such a different third full-blooded logical system which we
concept. The revolutionary idea is to call classical logic nowadays. We have
create basic concepts as molecules (pat- to consider thoughts in both respects:
terns, Gestalten) with a characteristic in- (Frege 1) thoughts between things of the
ner structure opposed to atoms without outer world and ideas (things of the in-
any inner structure. Such molecules – ner world without decisions) and (Frege
Kant’s “synthetic judgments a priori” 2) thoughts as sense of sentences com-
and Frege’s “thoughts” – can be crea- prising the true and the false as possible
ted as connecting/intermediate cases. meanings (bivalence). To do the latter
A byproduct consists in showing why we have to sketch a two-dimensional
both thinkers give opposite answers logic. Using this logic we can offer an
with respect to the status of equations alternative reading of Frege’s unary ne-
like ”7 + 5 = 12” as synthetic (Kant) and gation connective and make the dif-
analytic (Frege) on the one side. But ferences between negation and nega-
both agree that their status is a priori on tive judgments as well as Frege’s cri-
the other side. tique of Kant’s position explicit. Fi-
In a first step we explicate our con- nally, we try to convince our reader
cept 2-dimensionally structured interme- that the content stroke / the horizontal
diate case. It is the core concept of our

80 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 79-118
ISSN: 2317-9570
SIMILAR WAYS OF CREATING THIRDNESS: KANT’S “SYNTHETIC JUDGMENTS A PRIORI” AND FREGE’S
“THOUGHTS” AS INTERMEDIATE CASES

stroke in Frege’s Begriffsschrift can be ’seeing connexions’. Hence the


expressed by an operator which takes importance of finding and in-
1-dimensional atomic arguments p and venting intermediate cases.
yields# elementary thoughts of the form
" The concept of a perspicuous
p
, whereas the judgment stroke / representation is of fundamen-
¬p
tal significance for us. It ear-
the vertical stroke at the very begin-
marks the form of account we
ning of each axiom or provable formula
give, the way we look at things.
yields the opposite, the reduction " of a# (Is this a ’Weltanschauung’?)
A
logically 2-dimensional thought (WITTGENSTEIN 1986, p. 49:
¬A
" # PI 122)1
¬A
or its opposite thought to the
A
first dimension in question: A or ¬A,
Wittgenstein characterizes an interes-
respectively.
ting aspect of his own method of phi-
losophizing: finding and inventing in-
termediate cases. Finding intermediate
1. Creating third concepts by inven- cases seems to be related to observa-
ting (2-dimensionally) structured in- tion, empirical evidence. Inventing inter-
termediate cases mediate cases appears to point to crea-
ting theoretical concepts. But Wittgens-
There is an inspiring remark by Ludwig
tein is aware that both aspects are re-
Wittgenstein in his Philosophical Inves-
levant for his philosophical enterprise:
tigations:
By taking a closer look at the use of our
everyday language we can find practi-
A main source of our failure to ces where we observe cases which we
understand is that we do not can understand as intermediate cases.
command a clear view of the use Otherwise the philosopher can invent
of our words.—Our grammar other cases by creating new (fictional)
is lacking in this sort of pers- practices, new language games. The sur-
picuity. A perspicuous repre- prising fact is that Wittgenstein denies
sentation produces just that un- that creating something new that way
derstanding which consists in is a theoretical act. It is only giving / cre-

1 “Es ist eine Hauptquelle unseres Unverständnisses, daß wir den Gebrauch unserer Wörter nicht übersehen. – Unserer Grammatik
fehlt es an Übersichtlichkeit. – Die übersichtliche Darstellung vermittelt das Verständnis, welches eben darin besteht, daß wir die Zu-
sammenhänge sehen. Daher die Wichtigkeit des Findens und des Erfindens von Zwischengliedern.” Der Begriff der übersichtlichen
Darstellung ist für uns von grundlegender Bedeutung. Er bezeichnet unsere Darstellungsform, die Art, wie wir die Dinge sehen. (Ist
dies eine Weltanschauung?) (WITTGENSTEIN 1984, p. 302: PU 122). If the quotation in the text body is an English translation from
German we offer the corresponding original passage in the respective footnote in any case.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 79-118 81
ISSN: 2317-9570
INGOLF MAX

ating examples without any intention to for metaphysics as a science.


generalize them or to find an essence in Let me mention that from my point
them: of view developing 2-dimensionally
structured intermediate cases is not ex-
One gives examples and in-
cluded by Wittgenstein. He is not inte-
tends them to be taken in a par-
rested in this activity if it is not connec-
ticular way.—I do not, howe-
ted with philosophical problems. Ne-
ver, mean by this that he is sup-
vertheless, creating new basic concepts
posed to see in those examples
in a theoretical environment is at the
that common thing which I—
same moment a philosophical activity.
for some reason—was unable to
And creating 2-dimensionally structu-
express; but that he is now to
red intermediate cases in our language
employ those examples in a par-
of analysis provides a tool to interpret
ticular way. Here giving exam-
philosophical texts in an inspiring way.
ples is not an indirect means
of explaining—in default of a
better. For any general defini- Frame condition 1 (realms as sets of so-
tion can be misunderstood too. mething and their possible intermedi-
The point is that this is how ate cases): Let us start with two possibly
we play the game. (I mean the separated realms as sets of these struc-
   
language-game with the word  A1   B1 
 ..   .. 

  
 
"game".) (WITTGENSTEIN, PI tures:  and   assuming that
 
 .    . 
71).2 A 
  B 
 
n m
all pairs consisting of Ai (1 ≤ i ≤ n)
Starting with Wittgenstein we will go in
and Bj (1 ≤ j ≤ m) are totally different
another direction: We explain the struc-
from each other. Then we get a struc-
ture of 2-dimensional intermediate ca-
tured intermediate case if we construct
ses by stating a set of frame conditions for
third realms containing at least one but
them. If postulating such frame condi-
not all Ai ’s and  at least one but not all
tions is an act of creation, then this act  .
.. 
can be the first step, a precondition of

 

 
A

 

creating a formal theory – as in the case
 i 
 .. 

 
Bj ’s:  .  . The use of curly brac-

of Frege’s thoughts – or not – as in the 
 

case of Kant’s synthetic judgments a pri-


 Bj  

.
 
 .. 
 
ori as a core construction to create space
 

2 “Man gibt Beispiele und will, daß sie in einem gewissen Sinn verstanden werden. – Aber mit diesem Ausdruck meine ich nicht: er
solle nun in diesen Beispielen das Gemeinsame sehen, welches ich – aus irgend einem Grunde - nicht aussprechen konnte. Sondern:
er solle diese Beispiele nun in bestimmter Weise verwenden. Das Exemplifizieren ist hier nicht ein indirektes Mittel der Erklärung, –
in Ermanglung eines Bessern. Denn, mißverstanden kann auch jede allgemeine Erklärung werden. So spielen wir eben das Spiel (Ich
meine das Sprachspiel mit dem Wort »Spiel«.)” (WITTGENSTEIN 1984, p. 280 f.: PU 71).

82 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 79-118
ISSN: 2317-9570
SIMILAR WAYS OF CREATING THIRDNESS: KANT’S “SYNTHETIC JUDGMENTS A PRIORI” AND FREGE’S
“THOUGHTS” AS INTERMEDIATE CASES

kets indicates that the internal order are infinitely many such structured in-
does not matter yet. This intermediate termediate cases. ( This
) holds even for
case has at least something in common A
i = j = 1. E.g., is an intermedi-

 A 1

 B
 .. 
 
with 
 ate between A and B. It is important
 (= Ai ), something not in

. 


A   that the (ontological, linguistic etc.) sta-
n
  tus of the entries Ai and Bj is left open.
 A1 
 .. 

  They can stand for objects, individuals,
common with   (, Bj ), something

 .  features, properties, names, relations,

A  
n sentences, judgments, tones, intervals,
 
 B 1  chords, etc. The same holds for their lo-
 .. 

 
in common with   (= Bj ) and so-

 .  gical form. It can be atomic or complex

B 
with respect to formation rules.

n
 
 B1  Why is the third realm an intermedi-
 .. 

     
mething not in common with  A1  B1 

.   
 ..   .. 

  
  
 
B  ate case?  and   are com-
 
.  . 

n   
(, Ai ). The vertical dots in the interme- A 
  
B  
n m
diate case can represent new C’s which pletely different. But with respect to
are different from all the Ai ’s and Bj ’s the third realm we get the following mi-
in the first two realms. Of course, there nimal picture:

The third realm connects the first two realms. Instead of creating one inter-
completely different realms. It gets a mediate case we can construct a series.
central / middle position without indi- Take this simple example:
cating any order between the two other

( ) ( ) ( ) ( ) ( )
A1 A1 C1 B1 B1 3
− − − − .
A2 C1 C2 C2 B2

3 You cannot change the position of two sets in this series without getting unconnected pairs. But this is not necessarily so:

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 79-118 83
ISSN: 2317-9570
INGOLF MAX

( )
Frame condition 2 (the first two realms B1
as pairs): We can restrict the . Then there are exactly four pat-
( first
) two B2
A1 terns of intermediate cases:
realms to pairs of the forms and
A2

.. .. .. ..
       



 . 






 . 






 . 






 . 



A1 A1 A2 A2

 
 
 
 
 
 
 

       
.. .. .. ..

 
      
  
    
4
, , and .
    

 . 
 
 . 
 
 . 
 
 . 

       


 B1 




 B2 




 B1 




 B2 


.. .. .. ..

 
 
 
 
 
 
 

. . . .

 
  
  
 
 

Frame condition 3 (the third realm as The upper dimension (the dimension of
a pair): We can restrict the possible A1 and B1 , respectively) is named first
third realm to a pair of entries. Now dimension. The lower dimension (the
we can ask “What
( are ) the (
intermediate
) dimension of A2 and B2 , respectively) is
A1 B1 named second dimension. We can add
pairs between and ?” and
A2 B2 the condition that the form of our 2-
( ) ( )
A1 A1 dimensionally structured intermediate
we get four solutions: , , " #
B1 B2 C1
( ) ( ) case has an analogous form: .
A2 A2 C2
and .
B1 B2
Frame condition 5 (coincidence of di-
mensions): We can require that identity
Frame condition 4 (ordered pairs): Ins- and non-identity has to be realized by
tead of looking at unordered pairs we preserving the respective dimension. It
can
" look
# at" ordered
# pairs of the forms means that the index in the first dimen-
A1 B1 sion is always 1 and in the second di-
and . We call expressions of
A2 B2 mension always 2. Then we get exactly
these forms 2-dimensionally structured. two solutions:

( ) ( ) ( ) ( ) ( ) ( ) ( ) ( )
A1 A1 A1 B1 A1 A1 A1 B1
− − − and − − − .
A2 B1 B2 B2 A2 B2 B1 B2
Let us mention a musical example: The simplest and not very convincing way to look on chords is to analyze them simply as sets of
(atomic) tones. The following C-major-cadence is an illuminating example of a closed sequence: 3-tone-C-major-chord (root position)
— 3-tone-F-major-chord (second inversion)  — 4-tone-G-major-seventh-chord (first inversion) — back to 3-tone-C-major-chord (root

 g 



 a 




 g 



 g 



  
  
 f 
 
 
position):  e — f — — e .
       
d
 
 
 
 
 
 
 
 c 
   c 
  
 
  c 
 
h

 

4 If we consider tuples (ordered structures) we get eight patterns, because the pattern <. . . ,A ,. . . , B ,. . . > is different from the
1 1
pattern <. . . , B1 ,. . . , A1 , . . . > etc.

84 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 79-118
ISSN: 2317-9570
SIMILAR WAYS OF CREATING THIRDNESS: KANT’S “SYNTHETIC JUDGMENTS A PRIORI” AND FREGE’S
“THOUGHTS” AS INTERMEDIATE CASES

" # " # " # " # " # " #


A1 A1 B1 A1 B1 B1
— — and — —
A2 B2 B2 A2 A2 B2

or by showing (non-)identity explicitly

" # " # " # " # " # " #


A1 = A1 , B1 A1 , B1 = B1
and .
A2 , B2 = B2 A2 = A2 , B2

" # " #
A1 B1
In this structure we call and 2-dimensionally structured intermediate
B2 A2
cases. But what about

" # " # " # " # " # " #


A1 = A1 , B1 A1 = B1 , B1
and ?
B2 , A2 = A2 B2 , B2 = A2

From a purely formal point of view both given realms. Intermediate cases
there are no designated “outer” realms, allow to bridge different poles and lead
no designated points in the structure to a specific understanding of internal
and there is no reason to cancel one harmony. Frege expresses this hope in
of the two possible solutions. Crea- the following way:
ting concrete forms of this structure de-
pends on decisions which a user has to It is possible to view the signs of
make. If a thinker is able to differen- arithmetic, geometry, and che-
tiate between at least two independent mistry as realizations, for spe-
dimensions with respect to two appa- cific fields, of Leibniz’s idea.
rently mutually exclusive realms, he The ideography proposed here
establishes a way to create a third realm adds a new one to these fields,
simply by rearranging the known featu- indeed the central one, which
res in two or more dimensions. The nice borders on all the others. If we
property is that the new realm is not an take our departure from there,
independent thirdness but it is a com- we can with the greatest ex-
position out of the given. Furthermore, pectation of success proceed to
the new realm has something in com- fill the gaps in the existing for-
mon in one dimension and is different mula languages, connect their
in the other dimension with respect to hitherto separated fields into a

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 79-118 85
ISSN: 2317-9570
INGOLF MAX

single domain, and extend this plausible chance to make these conditi-
domain to include fields that ons (rules) explicit.
up to now have lacked such a
language. (FREGE 1970, p. 7:
Jena, 18 December 1878).5
2. Kant’s synthetic judgments a priori
as two-dimensionally structured in-
To state the concept (2-dimensionally) termediate cases
structured intermediate case precisely we
have to be aware of the above listed There are a lot of famous –ism-
frame conditions. With respect to Witt- dichotomies in philosophy:
genstein’s remark we can differentiate
• rationalism vs. empirism (empiri-
the following two types:
cism),
(1) If the relevant frame conditions are
• materialism vs. idealism,
already given, we call the specifica-
tion of solutions with respect to in- • realism (platonism) vs. nomina-
termediate cases finding intermedi- lism,
ate cases.
• monism vs. dualism,
(2) If a thinker has to create the frame
conditions by herself which enables • infinitism vs. finitism etc.
her (makes it possible at all) to find A lot of logical systems (classical lo-
solutions, we call this type inven- gic, many modal logics etc.) assume bi-
ting intermediate cases. valence, i.e., the dichotomy true (being
The second type can be highly theore- true, the true, t, 1, >) vs. false (being
tically motivated. Therefore, we have false, the false, f, 0, ⊥). We can
a theoretically oriented reading of in- understand well-known philosophical
termediate cases, which is different concepts as mutually exclusive pairs:
from but not excluded by Wittgens- • mind (soul) vs. body,
tein’s main use of the term. Wittgens-
tein’s use incorporates the philosophi- • analytic vs. synthetic,
cally interesting cases where we are not
• a priori vs. a posteriori
able to give appropriate frame condi-
tions, i.e., language games without a • discreteness vs. continuity etc.

5 „Man kann in den arithmetischen, geometrischen, chemischen Zeichen Verwirklichungen des Leibnizischen Gedankens für ein-
zelne Gebiete sehen. Die hier vorgeschlagene Begriffsschrift fügt diesen ein neues hinzu und zwar das in der Mitte gelegene, welches
allen andern benachbart ist. Von hier aus lässt sich daher mit der grössten Aussicht auf Erfolg eine Ausfüllung der Lücken der bes-
tehenden Formelsprachen, eine Verbindung ihrer bisher getrennten Gebiete zu dem Bereiche einer einzigen und eine Ausdehnung
auf Gebiete ins Werk setzen, die bisher einer solchen ermangelten.“ (FREGE 1879, p. VI: Jena, 18. Dezember 1878).

86 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 79-118
ISSN: 2317-9570
SIMILAR WAYS OF CREATING THIRDNESS: KANT’S “SYNTHETIC JUDGMENTS A PRIORI” AND FREGE’S
“THOUGHTS” AS INTERMEDIATE CASES

We assume a realm R, which can be sub- and B. R – consisting of A and B – can


divided into exactly two mutually ex- be represented by the following pic-
clusive and complementary sub-regions A ture:

A B

The relation between A and B can be negation not. Then the following pictu-
characterized by using an appropriate res would express the same situation:

A not A
or
not B B
or
not B not A

There are many, many philosophical • accepting a truth-value gap (for re-
and/or logical reasons resp. motivati- presenting category mistakes, va-
ons to give up this dichotomy: gueness) etc.
• preferring monism or holism, If we keep A and/or B as atoms without
any inner logical form and the linea-
• trying to find a separate third –ism,
rity of the picture (1-dimensional point
• postulating a third (truth) value (in- of view), there is only one possibility to
determinate, uncertain, vague, i, 21 , do that: We have to switch from a di-
etc.), chotomic to a trichotomic picture:

A B C

The order of A, B and C does not matter! E.g., there is no reason to put C between
A and B.
A C B

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 79-118 87
ISSN: 2317-9570
INGOLF MAX

To get C between A and B we seem to be • If the realm is fixed, then A together


forced to accept some qualitative (logi- with B has to be “smaller” than the
cal) order or a kind of quantitative scale complete realm. Usually we say
like in Aristotle’s Mesotes-approach. then that A and B are contraries: A
• Looking at 3-valued logics you can and B cannot be “true” together, but
have values “t” (true), “i” (indeter- A or B does not give you the com-
minate) and “f” (false) without any plete realm (A and B can be “false”
scale or you can use an arithmetic together).
style of naming values: “1” (true),
“ 21 ” (indeterminate) and “0” (false) • Another possibility would be sub-
with 1 > 12 > 0 that gives you an or- dividing one of our A, B, respecti-
der. vely:

A B1 B2
or
A1 A2 B

Kant and Frege were confronted with several well-known dichotomies:

Kant’s dichotomy 1 with respect to judgments:

analytic synthetic
[not synthetic] [not analytic]

Kant’s dichotomy 2 with respect to judgments:

a priori a posteriori
[not a posteriori] [not a priori]

Frege’s dichotomy 1 with respect to objects:

things of the outer world Ideas


“Dinge der Außenwelt” “Vorstellungen”
[not ideas] [not things of the outer world]

88 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 79-118
ISSN: 2317-9570
SIMILAR WAYS OF CREATING THIRDNESS: KANT’S “SYNTHETIC JUDGMENTS A PRIORI” AND FREGE’S
“THOUGHTS” AS INTERMEDIATE CASES

Frege’s dichotomy 2 with respect to objects:

can be percieved by the senses cannot be percieved by the senses


“können mit den Sinnen “können nicht mit den Sinnen
wahrgenommen werden” wahrgenommen werden”
objective [not subjective] subjective [not objective]

Kant was aware of the famous di- seem to be synthetic if and only if they
chotomy between truths of facts (“Tat- are a posteriori. Judgments which repre-
sachenwahrheiten”) and truths of re- sent truths of reason seem to be analytic
ason (“Vernunftwahrheiten”). Judg- if and only if they are a priori. Then we
ments which represent truths of facts get only 2 kinds of judgments:

analytic synthetic
a priori a posteriori

If we look at the realm of sciences, a possible picture can be

analytic synthetic
a priori a posteriori
formal sciences (mathematics, logic) empirical sciences (physics)

But what is the place of metaphysics as of a 2-dimensionally structured inter-


science in this realm? How can we create mediate case connecting formal and em-
a third area, a third kind of judgments? pirical sciences without establishing a
Is it possible to understand metaphysics separate thirdness?
as a linking/connecting piece in the form

analytic ??? synthetic


a priori a posteriori

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 79-118 89
ISSN: 2317-9570
INGOLF MAX

Kant begins his Prolegomena to Any Fu- mensions. (b) The fundamental idea
ture Metaphysics with the introduction is expressed by “or some if not all of
of his core concept synthetic judgments these things together”! Kant decided to
a priori: take into consideration only two res-
pects/dimensions: (D1) difference of
the object and (D2) difference of the
Whether this distinguishing fe- source and to put these two things to-
ature consists in a difference of gether! But how?
the object or the source of cogni- Kant characterizes D1 consisting
tion, or even of the type of cogni- of A1 analytic [not synthetic] and B1
tion, or some if not all of these synthetic [not analytic] as follows:
things together, the idea of the
possible science and its terri-
tory depends first of all upon Analytic judgments [A1 ]7 say
it.” (KANT 2004, p. 15: § 1).6 nothing in the predicate except
what was actually thought alre-
ady in the concept of the sub-
This formulation is ingenious and pro- ject, though not so clearly nor
grammatic in several respects: (a) Kant with the same consciousness. If
is searching for the “distinguishing fe- I say: All bodies are extended,
ature” of knowledge. But we have to then I have not in the least am-
differentiate between several dimen- plified my concept of body, but
sions (criteria): (D1) The feature can have merely resolved it, since
consist in “a difference of the object” extension, although not expli-
(Erkenntnisobjekt) – later explained as citly said of the former con-
the difference between analytic (A1 ) and cept prior to the judgment, ne-
synthetic (B1 ). (D2) It can consist in a vertheless was actually thought
difference of “the source” (Erkenntni- of it; the judgment is there-
sart) – later explicated as the difference fore analytic. By contrast, the
between a priori (A2 ) and a posteriori proposition: Some bodies are
(B2 ). (D3) But it can also consist in a heavy, contains something in
difference of “the type of cognition”. the predicate that is not ac-
This could be C1 and C2 . Kant states tually thought in the general
clearly that it is possible to characterize concept of body; it therefore
knowledge with respect to disparate di- augments my cognition, since

6 „Dieses Eigentümliche mag nun in dem Unterschiede des Objekts, oder der Erkenntnisquellen, oder auch der Erkenntnisart,
oder einiger, wo nicht aller dieser Stücke zusammen, bestehen, so beruht darauf zuerst die Idee der möglichen Wissenschaft und
ihres Territorium.“ (KANT 1913, p. 13: §1).
7 All additions in square brackets within quotations throughout the whole text are mine.

90 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 79-118
ISSN: 2317-9570
SIMILAR WAYS OF CREATING THIRDNESS: KANT’S “SYNTHETIC JUDGMENTS A PRIORI” AND FREGE’S
“THOUGHTS” AS INTERMEDIATE CASES

it adds something to my con- Each judgment is analytic or synthetic


cept, and must therefore be cal- but not both. I.e., analytic and synthetic
led a synthetic judgment [B1 ]. represent a true dichotomy in D1 repre-
(KANT 2004, p. 16: § 2a)8 sented by

Judg ments
analytic synthetic

Kant characterizes D2 consisting of pure reason. (KANT 2004, p.


A2 a priori [not a posteriori] and B2 a 15: § 1). 9
posteriori [not a priori] as follows:
There are synthetic [B1 ] judg-
ments a posteriori B2 whose ori-
Therefore it will be based upon gin [= source! I.M.] is empiri-
neither outer experience, which cal. (KANT 2004, p. 16: § 2a).10
constitutes the source of phy-
sics proper, nor inner, which
provides the foundation of em- Each judgment is a priori A2 or a poste-
pirical psychology. It is there- riori B2 but not both. I.e., a priori and
fore cognition a priori [A2 ], or a posteriori represent a true dichotomy
from pure understanding and in D2 illustrated by

Judg ments
a priori a posteriori

8 „Analytische Urteile [A ] sagen im Prädikate nichts, als das, was im Begriffe des Subjekts schon wirklich, obgleich nicht so klar
1
und mit gleichem Bewußtsein gedacht war. Wenn ich sage: alle Körper sind ausgedehnt, so habe ich meinen Begriff vom Körper ni-
cht im mindesten erweitert, sondern ihn nur aufgelöset, indem die Ausdehnung von jenem Begriffe schon vor dem Urteile, obgleich
nicht ausdrücklich gesagt, dennoch wirklich gedacht war; das Urteil ist also analytisch. Dagegen enthält der Satz: einige Körper sind
schwer, etwas im Prädikate, was in dem allgemeinen Begriffe vom Körper nicht wirklich gedacht wird, er vergrößert also meine
Erkenntnis, indem er zu meinem Begriffe etwas hinzutut, und muß daher ein synthetisches Urteil [B1 ] heißen.“ (KANT 1913, p. 14:
§ 2a).
9 „Also wird weder äußere Erfahrung, welche die Quelle der eigentlichen Physik, noch innere, welche die GrundJage der em-
pirischen Psychologie ausmacht, bei ihr zum Grunde liegen. Sie ist also Erkenntnis a priori, oder aus reinem Verstande und reiner
Vernunft.“ (KANT 1913, p. 13 f.: §1).
10 „Es gibt synthetische Urteile a posteriori, deren Ursprung empirisch ist . . . “ (KANT 1920, p. 15: § 2c).

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 79-118 91
ISSN: 2317-9570
INGOLF MAX

Kant’s great idea was giving up the as well as the identification of synthetic
identification of analytic with a priori with a posteriori!

Judg ments
analytic synthetic
a priori a posteriori

Judgments can be characterized in that (a) it has something in common


two distinct dimensions which he calls with both given concepts but with res-
“objects” (analytic vs. synthetic) and pect to different dimensions and (b) it
“source of cognition” (a priori vs. a is concurrently distinct from both given
posteriori). He is not looking for a concepts in the remaining dimensions
trichotomy, a third kind of judgments of the two given concepts.
which is totally distinct from analy- Let A1 and B1 be the characteriza-
tic/a priori judgments and synthetic/a tion of two concepts A and B in their
posteriori judgments. His approach first dimension, respectively. Let A2
keeps both dichotomies. Everything and B2 the characterization of these
which is needed is already given, but two concepts A and B in their se-
we have to rearrange it in a new man- cond dimension, respectively. This al-
ner. We have to give up the presup- ready opens the possibility of compo-
position that each (dichotomic, tricho- sing two different third concepts as 2-
tomic, n-tomic) distinction must have a dimensionally structured
" intermediate
#
linear order, a 1-dimensional structure. B1
cases. In Kant’s case is the form
We can switch to 2-dimensional (possi- A2
bly higher-dimensional) forms. of synthetic
" # judgments a priori (option
A third concept can be a rearran- A1
1). represents analytic judgments
gement/a composition out of two 2- B2
dimensional concepts in such a way a posteriori (option 2). The two options
have nothing in common.

" # " # " # " # " # " #


A1 , B1 = B1 analytic , synthetic = synthetic
1) :
A2 = A2 , B2 a priori = a priori , a posteriori
" #
B1
is created by Kant.
A2

92 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 79-118
ISSN: 2317-9570
SIMILAR WAYS OF CREATING THIRDNESS: KANT’S “SYNTHETIC JUDGMENTS A PRIORI” AND FREGE’S
“THOUGHTS” AS INTERMEDIATE CASES

" # " # " # " # " # " #


A1 = A1 , B1 analytic = analytic , synthetic
2) :
A2 , B2 = B2 a priori , a posteriori = a posteriori
" #
A1
is not accepted by Kant.
B2

Kant is very clear about choosing op- “analytic” in dimension 1 is sufficient


tion (1) and not allowing option (2)11 to get “analytic judgment a priori”. Na-
with the following consequences: ming a judgment “a posteriori” in di-
mension 2 is sufficient for “synthetic
1a) “All analytic judgments rest enti- judgment a posteriori”. But there is no
rely on the principle of contradic- shorter name for “synthetic judgment a
tion and are by their nature a priori priori”!
cognitions, whether the concepts
that serve for their material be em-
pirical or not.” (KANT 2004, p. 17:
§ 2b).12 3. Frege’s thoughts as two-
dimensional intermediate cases in the
I.e., for each judgment holds: If this style of Kant
judgment is analytic, then it is a priori.
The converse does not hold. In this res- If we look at the relation between Kant
pect Frege follows Kant (cf. footnote and Frege regarding equations as judg-
17)! ments/sentences in arithmetic, we get op-
1b) “Judgments of experience [a poste- posite answers. Kant says: “Mathemati-
riori, I.M.], as such, are all synthe- cal judgments are one and all synthetic.”
tic.” (KANT 1998, p. 142: IV, (KANT 2004, p. 18: § 2c2).14 Against
B11).13 this Frege says: “I hope I may claim in
the present work to have made it pro-
I.e., for each judgment holds: If this bable that the laws of arithmetic are
judgment is a posteriori, then it is analytic judgements and consequently
synthetic. The converse does not hold a priori.” (FREGE 1953, p. 99: V. Con-
either. This means: Naming a judgment clusion, § 87).15 But Frege has a similar

11 It is worth mentioning that KRIPKE in Naming and Necessity (1972) uses a similar pattern and fills this “gap” by postulating
necessary (taken for analytical) a posteriori truths. He uses both types of 2-dimensional intermediate cases.
12 “Alle analytischen Urteile beruhen gänzlich auf dem Satze des Widerspruchs, und sind ihrer Natur nach Erkenntnisse a priori,
die Begriffe, die ihnen zur Materie dienen, mögen empirisch sein, oder nicht.” (KANT 1920, p. 15: § 2b).
13 “Erfahrungsurteile, als solche, sind insgesamt synthetisch.” (KANT 1998, p. 59: Einleitung IV, B11).
14 „Mathematische Urteile sind insgesamt synthetisch.“ (KANT 2004, p. 16: § 2c2).
15 “Ich hoffe in dieser Schrift wahrscheinlich gemacht zu haben, daß die arithmetischen Gesetze analytische Urteile und folglich a
priori sind.” (FREGE 1884, p. 99: V. Schluss, § 87).

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 79-118 93
ISSN: 2317-9570
INGOLF MAX

project like Kant: How is logic as sci- . . . Even an unphilosophical


ence possible? What are the objects of person soon finds it necessary
logic? Like in the Kantian case there se- to recognize an inner world dis-
ems to be no room for a third realm. tinct from the outer world, a
world of sense-impressions, of
creations of his imagination,
A person who is still untouched
of sensations, of feelings and
by philosophy knows first of all
moods, a world of inclinations,
things which he can see and
wishes and decisions. For bre-
touch, in short, perceive with
vity I want to collect all these,
the senses, such as trees, stones
with the exception of decisi-
and houses, and he is convin-
ons, under the word “idea”. /
ced that another person equally
Now do thoughts belong to this
can see and touch the same tree
inner world? Are they ideas?
and the same stone which he
They are obviously not decisi-
himself sees and touches. Ob-
ons. (FREGE 1956, p. 298 f.).16
viously no thought belongs to
these things. Now can he, ne-
vertheless, stand in the same Frege’s dichotomy with respect to ob-
relation to a person as to a tree? jects

A : things of the outer world B : ideas


(everything of the inner world
without decisions)
[not ideas] [not things of the outer world]

In the next step Frege introduces his di- tasted, nor heard.”17 (FREGE 1956, p.
mensions. D1a: “First: Ideas cannot be 299). D1b “ideas are had”18 (ibid.)
seen or touched, cannot be smelled, nor

16 “Der von der Philosophie noch unberührte Mensch kennt zunächst Dinge, die er sehen, tasten, kurz, mit den Sinnen wahrneh-
men kann, wie Bäume, Steine, Häuser, und er ist überzeugt, daß ein anderer denselben Baum, denselben Stein, den er selbst sieht und
tastet, gleichfalls sehn und tasten kann. Zu diesen Dingen gehört ein Gedanke offenbar nicht. Kann er nun trotzdem den Menschen
als derselbe gegenüberstehn wie ein Baum . . . ? Auch der unphilosophische Mensch sieht sich bald genötigt, eine von der Außenwelt
verschiedene Innenwelt anzuerkennen, eine Welt der Sinneseindrücke, der Schöpfungen seiner Einbildungskraft, der Empfindungen,
der Gefühle und Stimmungen, eine Welt der Neigungen, Wünsche und Entschlüsse. Um einen kurzen Ausdruck zu haben, will ich
dies mit Ausnahme der Entschlüsse unter dem Worte ,Vorstellung‘ zusammenfassen. / Gehören nun die Gedanken dieser Innenwelt
an? Sind sie Vorstellungen? Entschlüsse sind sie offenbar nicht.“ (FREGE 1918/19a, p. 66.)
17 „Vorstellungen können nicht gesehen oder getastet, weder gerochen, noch geschmeckt, noch gehört werden.“ (FREGE 1918/19a,
p. 67).
18 „Vorstellungen werden gehabt.“ (ibid).

94 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 79-118
ISSN: 2317-9570
SIMILAR WAYS OF CREATING THIRDNESS: KANT’S “SYNTHETIC JUDGMENTS A PRIORI” AND FREGE’S
“THOUGHTS” AS INTERMEDIATE CASES

things of the outer world A1 ideas B1


A1 =¬B1 : can be percieved by the senses B1 =¬A1 : cannot be percieved
(We see, touch, smell etc. things.) by the senses (We have ideas.)

D2a: “ideas need a bearer. Things of D2b gives us objectivity and invariance
the outer world are however indepen- of things of the outer world as well as
dent”19 (ibid.). D2b “every idea has the opposite for ideas: their subjectivity
only one bearer; no two men have the and variance:
same idea”20 (ibid., p. 300). D2a and

things of the outer world A2 ideas B2


A2 =¬B2 : objective / invariant B2 =¬A2 :subjective / variant
[non-subjective & non variant] [non-objective & non invariant]

Neither things of the outer world nor belongs to this [any C as ele-
ideas can be the logical objects wan- ment], corresponds with ideas
ted by Frege. Maybe we are inclined [B], in that it [any C as element]
to say that logical objects are abstract cannot be perceived by the sen-
objects!? But what does that mean? ses [B1 =¬A1 ], but with things
Frege’s answer is: [A], in that it [any C as element]
needs no bearer to the contents
of whose consciousness to be-
So the result seems to be: long [A2 =¬B2 ]. (ibid., p 302)21
thoughts [C] are neither things
of the outer world [A] nor ideas
[B]. The first dimension D1 is the
A third realm [„set“ of 2- perceivableness-dimension: perceivable
dimensional intermediate cases by senses [A1 ] vs. not perceivable by
C] must be recognized. What senses [B1 ]. The second dimension D2

19 „Vorstellungen bedürfen eines Trägers. Die Dinge der Außenwelt sind im Vergleiche damit selbständig.“ (ibid).
20 „Jede Vorstellung hat nur einen Träger; nicht zwei Menschen haben dieselbe Vorstellung.“ (ibid, p. 68).
21 „So scheint das Ergebnis zu sein: Die Gedanken [C] sind weder Dinge der Außenwelt [A], noch Vorstellungen [B]. / Ein drittes
Reich [Gesamtheit der C] muß anerkannt werden. Was zu diesem gehört, stimmt mit den Vorstellungen [B] darin überein, daß es,
nicht mit den Sinnen wahrgenommen werden kann [B1 = ¬A1 ], mit den Dingen [A] aber darin, daß es keines Trägers bedarf, zu
dessen Bewußtseinsinhalte es gehört [A2 = ¬B2 ].“ (FREGE 1918/19a, p.69).

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 79-118 95
ISSN: 2317-9570
INGOLF MAX

" #
is the bearer-dimension: objective (needs A1
no bearer, invariant) [A2 ] vs. subjective This gives us A = and B =
A2
(needs a bearer) [B2 ]. A thing (of the
" #
not A1
outer world) A is perceivable by sen- . We will come back to this
not A2
ses in D1 and objective in D2. A thing point in the next section.
A can be " 2-dimensionally
# represented
A1 By establishing all these conditions
as A = . An idea B is the abso-
A2 Frege invented („created“ the room for
lute opposite: not perceivable by senses finding) an appropriate 2-dimensional
in D1 and subjective in D2. An idea B intermediate case to answer the ques-
can be" 2-dimensionally
# represented as tion regarding the general possibility
B1 of logic as a formal theory, i.e., the
B= . Frege seems to assume as
B2 question “What are the objects of lo-
a further frame condition bivalence for gic?” From a purely structural point
both dimensions: of view there are
" # " two # candidates
" # for
A1 B1 A1
a) Everything is exactly one of A1 per- C: and . yields
B2 A2 B2
ceivable by senses / B1 not percei- " #
perceivable by senses
vable by senses (D1). . There is no
subjective
b) Everything is exactly one of A2 ob- hint that Frege considered this case se-
jective (not-subjective) / B2 not- riously. Maybe introspection could be a
objective (subjective) (D2). case!?

" # " #
B1 not perceivable by senses
represents . That is exactly the form of Frege’s
A2 objective
thoughts. Each Element of Frege’s third realm has this form and is called the thought.
" #
B1
Each thought is a 2-dimensionally structured intermediate case of the form
A
" # " 2#
A1 B1
between things of the outer world of the form and ideas of the form .
A2 B2
" #
A1
Instead of a 1-dimensional reading things A – thoughts C – ideas B we get −
A2
" # " #
B1 B1
− or
A2 B2

96 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 79-118
ISSN: 2317-9570
SIMILAR WAYS OF CREATING THIRDNESS: KANT’S “SYNTHETIC JUDGMENTS A PRIORI” AND FREGE’S
“THOUGHTS” AS INTERMEDIATE CASES

= rein, daß es nicht mit den Sinnen wahr-


“ ” indicates the 2-dimensional rela- genommen werden kann”: B1 -identity)
,
tion between thoughts and ideas (C − B) and in the second case the identity in
what Frege calls “corresponds with” the second dimension (“mit den Dingen
, [A] aber darin, daß es keines Trägers be-
and “ ” the 2-dimensional relation
= darf, zu dessen Bewußtseinsinhalte es
between thoughts and things (C − A) ex- gehört”: A2 -identity).
pressed in English by “but with”. That
is not a good translation. In the German
version it is very clear that Frege speaks 4. Frege’s thoughts and their negation
about identity (“stimmt überein mit”). reconstructed in a 2-dimensional logic
Be careful! In the first case we have the
identity in the first dimension (“stimmt With respect to the bivalence principle
mit den Vorstellungen [B] darin übe- the schemes

" # " # " # " # " # " #


A1 = A1 , B1 A1 , B1 = B1
and
A2 , B2 = B2 A2 = A2 , B2

could be further reduced if we claim – index-independently – that B1 = ¬A1 and


B2 = ¬A2 :
" # " # " # " # " # " #
A1 = A1 , ¬A1 A1 , ¬A1 = ¬A1
and
A2 , ¬A2 = ¬A2 A2 = A2 , ¬A2

# "
" #
Please note that the use of our (classi- A1 ¬A1
cal) negation symbol “¬” inside square lation between and , we
¬A2 A2
brackets is part of our language of can try to characterize a reduction opera-
analysis. It is used inside 2- dimensi- tor # which is a syntactically unary con-
onal constructions which – as a whole – nective but takes 2-dimensional
" # argu-
represent possible reduced forms of 2- A1
ments of the form as input and
dimensionally structured intermediate ¬A2
cases. If we want to explicate the re-
" #
¬A1
yields output and vice versa:
A2

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 79-118 97
ISSN: 2317-9570
INGOLF MAX

" # " # " # " #


A1 ¬A1 ¬A1 A1
# = and # = .
¬A2 A2 A2 ¬A2

We can characterize our negation # by" the# reduction rule R# applicable to any 2-
A
dimensional construction of the form :
B

" # " #
A ¬A
# =⇒ .
B ¬B

The application of this reduction "rule# runs as follows: Let X be any formula in
A
which an expression of the form # has one or more occurrences. Then R# al-
B
" # " #
A ¬A
lows to replace any such occurrence of # by . Take the following exam-
B ¬B
ple:

“|= A” says that A is classically valid. In- reduction operator outside square brac-
side square brackets we can use the re- kets completely and reduces any more
placement of logically equivalent expres- complex structure
" # finally to a structure
sions without any restriction. The rule A
of the form . Here is the gene-
R# is called a reduction rule. In general, B
reduction rules allow the stepwise eli- ral form of reduction rules of unary
mination of all occurrences of any n-ary connectives applied to 2-dimensional

98 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 79-118
ISSN: 2317-9570
SIMILAR WAYS OF CREATING THIRDNESS: KANT’S “SYNTHETIC JUDGMENTS A PRIORI” AND FREGE’S
“THOUGHTS” AS INTERMEDIATE CASES

inputs “producing” 2-dimensional out- different – classical binary connectives.


puts: It is, by definition. that ¬A and ¬B in
" #
A
" 2
ϕ AB
# our reduction rule R# are expressible by
∗ =⇒ , an appropriate choice of ϕ 2 (ψ 2 ).
B ψ 2 AB
If we add the identification of both
dimensions (A1 = A2 ), we get
where ϕ 2 and ψ 2 are – not necessarily

" # " # " # " # " # " #


A(1) = A(1) , ¬A(1) A(1) , ¬A(1) = ¬A(1)
and .
A(1) , ¬A(1) = ¬A(1) A(1) = A(1) , ¬A(1)

" # " #
A ¬A
If we further assume = A and = ¬A, we get
A ¬A

" # " #
= A , , B =
A ¬A and ¬B B.
, ¬A = = ¬B ,

Finally, if we substitute, e.g., “>” (the true) for “A” and “⊥” (the false) for “¬A” we
get
" # " #
= > , , > =
> ⊥ and ⊥ >.
, ⊥ = = ⊥ ,

Now we are able to characterize the


" #
perceivable by senses
difference between Frege’s philosophi- sents . Frege’s
subjective
cal understanding and his theoretical ex- context was to motivate his undefina-
plication of thoughts. The general ble basic concept the thought in order
form of thoughts " in# his philosophical to answer the philosophical question:
B1 “How is logic as (formal) science pos-
context is only which symboli-
A2 sible?”. In this context thoughts are
" #
not perceivable by senses intermediate cases between things of
zes . There
objective the outer world and ideas. The op-
is no hint that he " considers
# the se- posite "cases (“anti-thoughts”) #– instan-
A1 perceivable by senses
cond possibility which repre- ces of (intros-
B2 subjective

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 79-118 99
ISSN: 2317-9570
INGOLF MAX

" # " #
pections) – are not relevant for Frege. p ∨ ¬p >
But Frege uses thoughts as logical ob- gical thoughts like , and
p ∧ ¬p ⊥
jects in his formalism as well. Now they
" # " #
p ∧ ¬p ⊥
have two possible their opposites like , on
" forms # with
" equal# lo- p ∨ ¬p >
A ¬A the other hand. The Begriffsschrift is
gical weight: and . We
¬A A Frege’s proof system of logical thoughts
can call both kinds " of
# thoughts
" #clas- which yields as a result of judgments
A ¬A – indicated by the vertical stroke – 1-
sical thoughts. and re-
¬A A dimensional classically valid formulas,
" #
A formulas which are logically equivalent
present opposites of each other:
¬A with >, formulas which denote the true.
" the# opposite
is " thought
# with respect to We can use the negation connective
¬A ¬A “#” to get the opposite thought out of a
and is the opposite thought
A A given thought. But in this "case#we "need#
" #
A A A
with respect to . Furthermore, we step 4 in our prove of ## =
¬A B B
have to differentiate
" # between empirical above. In our 2-dimensional reading of
p thoughts we have another choice: the
thoughts like and their opposi-
¬p negation connective l characterized by
" #
¬p the reduction rule Rl.
tes like on the one hand and lo-
p

It is clear the" # and


# l give
" #different results
" if# applied
" # to arbitrary 2-dimensional ex-
A A ¬A B
pressions: # ,l because of , . But if we apply both negation
B B ¬B A
" # " #
A A
connectives exclusively to thoughts we get coincidence: # =l because
¬A ¬A

100 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 79-118
ISSN: 2317-9570
SIMILAR WAYS OF CREATING THIRDNESS: KANT’S “SYNTHETIC JUDGMENTS A PRIORI” AND FREGE’S
“THOUGHTS” AS INTERMEDIATE CASES

" # " #
¬A ¬A
of = . We think that “l” is an interesting way of looking at Frege’s
¬¬A A
understanding of logical negation with respect to opposite thoughts in the context of
our 2-dimensional language of analysis!
" # " #
A ¬A
Thus for every thought [ or , respectively] there is a contradic-
¬A A
" #
¬A
tory [footnote: We could also say ’an opposite thought.’] thought [ or
A
" #
A
, respectively]; we acknowledge the falsity of a thought by admitting
¬A
the truth of its contradictory22 . The sentence that expresses the contra-
dictory thought is formed from "the expression
# " of# the original thought by
A ¬A
means of a negative word [l: l or l , respectively]. (FREGE
¬A A
1960, p. 131).23

Negation “l” is a reduction connec- sible to establish a 2-dimensional lo-


tive (representing the “negative word”) gic L2 which uses the negation con-
which takes an arbitrary thought and nective “l” and yields as its the-
yields the opposite thought simply by orems/tautologies
" # expressions of the
inverting the order within special 2- A1
form with |= A1 (` A1 ) together
dimensional expressions. A2
In MAX 2003 I showed that it is pos- with ?A2 (a A2 ):24

" # " #
A1 A1
|=10 =df |= A1 &?A2 (`10 =df ` A1 & a A2 ).
A2 A2

22 Let me mention that the translation of “widersprechender” by “contradictory” has possibly the misleading connotation that the
formal explication of “the negative word” can only be reached by “¬00 in the 1 − dimensional and “ #00 in the 2 − dimensiomal reading.
" # " #
23 “Zu jedem Gedanken [ A ¬A
bzw. ] gehört demnach ein ihm widersprechender [Fußnote: Man könnte auch sagen "ein
¬A A
" " #
¬A A
entgegengesetzter".] Gedanke [ ] bzw. ] derart, daß ein Gedanke dadurch als falsch erklärt wird, daß der ihm widers-
A ¬A
prechende als wahr anerkannt wird. Der den widersprechenden Gedanken " # ausdrückende
" #Satz wird mittels eines Verneinungswortes
A ¬A
[l] aus dem Ausdrucke des ursprünglichen Gedankens gebildet [ l bzw. l ].” (FREGE 1918/19b, p. 154).
¬A A
24 “ A” says that “A” is a classical contradiction, ` A that “A” is a classical theorem and a A that “A” is a classical anti-theorem.
|=

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 79-118 101
ISSN: 2317-9570
INGOLF MAX

2
Let X be an "arbitrary
# formula of L containing exclusively elementary expressions
pi
of the form . After a complete reduction of all the connectives occurring in
¬pi
" # " #
A ¬A
X we get a formula of the form or of the form :
¬A A

" # " #
A ¬A
|=10 iff |= A iff ?¬A. |=10 iff |= ¬A iff ?A
¬A A

Here is the general form of reduction rules of arbitrary binary connectives ~ ap-
plied to 2-dimensional inputs “producing” 2-dimensional outputs:

" # " # " 4 #


A1 B1 ϕ A1 A2 B1 B2
~ =⇒ .
A2 B2 ψ 4 A1 A2 B1 B2

It is possible to embed the language “0”) are atomic semantic signs.


of our familiar classical propositional
logic L1 into the language of this 2-
(2) The translation rules and the ru-
dimensional logic L2 .25 We call this su-
les characterizing reduction connecti-
blanguage L21 . The basic ideas are:
ves corresponding to classical junctors
(negation “¬”, conjunction “∧”, dis-
(1) Each propositional variable pi of junction “∨” etc.) are given in such
1 a way that the complete reduction of
" is #translated " into #an ordered pair
L
pi pi each expression of the sublanguage of
in L2 .26 is the syntactic
¬pi ¬pi L21 corresponding to the
" language
# " of L#
1

form of empirical elementary thoughts. A ¬A


has finally the form or ,
An alternative would be to put this “2- ¬A A
dimensionality” into expressions of the where “A” and “¬A” represent well-
pi pi formed formulas of classical propo-
form t or 1 , where “pi ” is an atomic sitional logic. All the entries within
f 0 square brackets are 1-dimensional clas-
sign of syntax and “t” and “f ” (“1” and sical ones. But the occurrences of clas-

25 Cf. MAX 2003.


" # " #
26 It does not matter whether we translate p of L1 into p ¬p
or into in L2 if we readjust the environment properly.
¬p p

102 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 79-118
ISSN: 2317-9570
SIMILAR WAYS OF CREATING THIRDNESS: KANT’S “SYNTHETIC JUDGMENTS A PRIORI” AND FREGE’S
“THOUGHTS” AS INTERMEDIATE CASES

sical operators ¬, ∧, ∨, ⊃ and ≡ within and the thought of any " contradiction
#
square brackets belong to our language ⊥
can be expressed by . Tautolo-
of analysis. In this context they repre- >
sent neither meaning nor sense if con- gies and contradictions
" # " # are opposite " #
sidered in isolation. Classical negation > ⊥ ⊥
thoughts: l = and l =
¬ is not identical with our negation ⊥ > >
" # l " #
A >
in front of square brackets. ¬ and . A 2-dimensional tautology is a
B ⊥
l A are not well-formed expressions. 2-dimensional expression – maybe the
final result of applying reduction rules
(3) The sense of each tautology
" # |=A – with a classical tautology in the first
A and a classical contradiction in the se-
or theorem ` A of L1 is with
¬A cond dimension. A 2-dimensional con-
|=A ≡ > and |=¬A ≡ ⊥ whereby > is tradiction is a 2-dimensional expres-
a propositional constant naming the sion with a classical contradiction in the
true and ⊥ a propositional constant na- first and a classical tautology in the se-
ming the false. The thought of" any# cond dimension.
> Here is the complete list of translati-
tautology can be expressed by
⊥ ons:

An example:

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 79-118 103
ISSN: 2317-9570
INGOLF MAX

5. Frege’s negation and his trouble We can declare that the logical form of
with Kant’s negative judgments the truth of “A” is simply A and that
the logical form of the falsity of “A”
We already know that in the sublan- is then ¬A. Of course, we could do
guage L21 really any expression – after that the other way around: A repre-
the complete application of reduction sents the falsity of “A” and ¬A the truth
rules – "reduces
# to" one # of these two of “A”. In general, 2-dimensional ex-
A ¬A pressions of L2 represent thoughts and
forms: or . Our nega-
¬A A 1-dimensional expressions of L2 repre-
tion “l” transforms each thought into sent meaning. What we need is the lo-
its opposite thought and vice versa. So gical form of a connective which takes
far any thought is represented by a 2- 2-dimenstional structures (thoughts) as
dimensional structure. We can associate inputs and yields 1-dimensional struc-
meanings27 (the true/the false) with 1- tures as output.
dimensional structures simply. But in Our reduction operator “l” applied
the sublanguage of L2 which corres- to 2-dimensional arguments is – in our
ponds to the language of L1 there is reconstruction – the syntactic counter-
no possibility to produce expressions part of Frege’s logical negation which
of the forms A or ¬A which would be GREIMANN (2018, p. 409-411, 413,
our candidates to represent meaning.

27 I use “meaning” as the translation of Frege’s “Bedeutung” despite the fact that it is very common to translate “Bedeutung” as
“reference”.
28 E.g., „Semantic negation consists in the application of the logical function denoted by ‘it is false that p’ to a thought . . . “ (Grei-
mann 2018, p. 410).

104 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 79-118
ISSN: 2317-9570
SIMILAR WAYS OF CREATING THIRDNESS: KANT’S “SYNTHETIC JUDGMENTS A PRIORI” AND FREGE’S
“THOUGHTS” AS INTERMEDIATE CASES

417 f., 424) calls with respect to FREGE aking: negative judgment. The metho-
1918/19b “semantic negation”.28 There dological problem behind the discus-
seems to be another logical negation, sion is the alleged symmetry between
called “pragmatic negation”: “pragma- negative and positive judgments and
tic negation in the act of asserting or the relation between negating and ne-
judging a thought as false”. (GREI- gatively judging. From our point of
MANN 2018, p. 410). Greimann uses a view we have already stated that to ne-
language of analysis which is different gate a thought amounts to postulating
from ours. Relevant parts of his inter- its opposite thought. To negate a 2-
pretation language are the use of “act” dimensional argument by l gives us
in the context of judging and the dis- another 2-dimensional expression. But
tinction between semantics and prag- judging in general has not to be unders-
matics. The main difference to our lan- tood as an act but formally as a connec-
guage of analysis is that we are interes- tive that reduces a 2-dimensional thought
ted in the explication of possible logi- to a 1-dimensional meaning. Whether
cal forms of thoughts, truth-values, ne- this meaning is the true or the false does
gation, judgment etc. These forms are not depend on this connective but on
presented in a syntactic fashion. the formal structure of the argument.
In this sense the speech of “pragmatic
negation” is misleading. Here negati-
Are there two different ways
vity is associated with negation and not
of judging, of which one is
with the inner structure of elementary
used for the affirmative, and the
classical thoughts. The effect of “prag-
other for the negative, answer
matic negation” does not come from the
to a question? Or is judging the
outside. It comes # from the inside. If
same act in both cases? Does
"
A
negating go along with jud- we look at l , we can observe that
¬A
ging? Or is negation part of the the reduction rule “l” of Rl is purely
thought that underlies the act positive. “l” “acts” like classical nega-
of judging? (FREGE 1960, p. tion if all of its arguments are classical
129).29 thoughts.
We interpret judging like negation
as something which is neither positive
We can associate Greimann’s way of
nor negative as such. But the diffe-
speaking about judging the false – prag-
rence with negation is that judging re-
matic negation – with Kant’s way of spe-

29 „Gibt es zwei verschiedene Weisen des Urteilens, von denen jene bei der bejahenden, diese bei der verneinenden Antwort auf eine
Frage gebraucht wird? Oder ist das Urteilen in beiden Fällen dasselbe? Gehört das Verneinen zum Urteilen? Oder ist die Verneinung
Teil des Gedankens, der dem Urteilen unterliegt¿‘ (FREGE 1918/19b, p. 153).

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 79-118 105
ISSN: 2317-9570
INGOLF MAX

duces dimensionality! It takes a 2- ment stroke), I use this sign for my


dimensional thought and yields a 1- unary reduction connective | characte-
dimensional meaning. Because Frege rized by the reduction rule R| in the fol-
uses “|” (the vertical stroke or the judg- lowing general form:

" #
A
| =⇒ A.
B

This rule may look very simple and unexpected. But look at the following applica-
tion to a thought:

" #
¬A
| = ¬A.
A

A judgment of such a thought gives you the syntactic representation of the truth
a 1-dimensional negative result. But the of p. Let "the “¬p”
# in the second dimen-
reason for that is not the reduction rule p
sion of “ ” be the syntactic repre-
R| but the entry “¬A” in the first dimen- ¬p
sion of the argument! sentation of the falsity of p. Our repre-
Do we need another connective with sentation of the so-called pragmatic ne-

respect to " the# second dimension, say gation can use “ ” as a unary reduction
  A  operator which " takes
# a 2-dimensional
“ ” with =⇒ B (R )? Do we need
B p
thought (e.g., ) as argument and
a"negative
# version of “|”, say “-” with ¬p
A picks out the second" dimension (in our
- =⇒ ¬A. Frege is clearly arguing p
#
B example “¬p”):

= ¬p.
against this. How can we reconstruct ¬p
his argumentation in our language of
analysis? Frege’s trouble with Kant’s position
regarding negative judgments is that
" #
p
Let “ ” be the syntactic repre- Kant does not notice "the difference
¬p # " #
sentation of the thought of p. p ¬p
" Let# the

between “l” and “ ”: l =
p ¬p p
“p” in the first dimension of “ ” be
" #
¬p  p
vs. = ¬p:
¬p

106 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 79-118
ISSN: 2317-9570
SIMILAR WAYS OF CREATING THIRDNESS: KANT’S “SYNTHETIC JUDGMENTS A PRIORI” AND FREGE’S
“THOUGHTS” AS INTERMEDIATE CASES

If we call such a transition, the consciousness of a thinker,


from a thought to its opposite whereas the thoughts that are
[l], negating the thought, then the termini a quo and ad quem
negating in this sense [l] is not of the transition were already
co-ordinate with [has not the in being before it occurred; so
same dimensionality like] jud- that this psychical event ma-
ging [|], and may not be regar- kes no difference to the make-
ded as the polar opposite [-?] of up and the mutual relations of
judging [|]; for what matters in the thoughts. (Frege 1960, p.
judging [|] is always the truth 128).30
[picking the first dimension as
true], whereas we may pass
from a thought to its opposite If we look at the (“positive”) counter-
[via l] without asking which is part “−” of our thought-negation “l”,
true. To exclude misunderstan- it does not have any effect on its argu-
ding, let it be further observed ment. I.e., its “reduction” rule R− is
that this transition occurs in simply

"# " #
A A
− =⇒
B B

"# # "
A A
and, therefore − = . We could think that negation “l” and position “−”
B B
" # " # " # " #
A A A A
have nothing in common because − ,l and also − ,l . But
B B ¬A ¬A
" # " # " # " #
A A A A
if we look at arguments of the form we get − =l . Of course,
A A A A
does not represent a thought. But it shows that to get different results in applying
the reduction rules R− and Rl we need logically different expressions in the two
dimensions of their arguments.

30 „Nennt man nun ein solches Übergehen von einem Gedanken zum entgegengesetzten Verneinen [l], so ist dieses Verneinen [l]
gar nicht gleichen Ranges mit dem Urteilen [|] und gar nicht als entgegengesetzter Pol [-?] zum Urteilen [|] aufzufassen; denn beim Ur-
teilen [|] handelt es sich immer um Wahrheit, wohingegen man von einem Gedanken zum entgegengesetzten übergehen kann, ohne
nach der Wahrheit zu fragen [via l]. Um Mißverständnis auszuschließen, sei noch bemerkt, daß dieses Übergehen in dem Bewußtsein
eines Denkenden geschieht, daß aber sowohl der Gedanke, von dem übergegangen wird, als auch der Gedanke, zu dem übergegangen
wird, bestanden haben, bevor dies geschieht, daß also durch diesen seelischen Vorgang an dem Bestande und an den Beziehungen
der Gedanken zueinander nichts geändert wird.“ (FREGE 1918/19b, p. 152).

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 79-118 107
ISSN: 2317-9570
INGOLF MAX

The reduction rule R− reminds us of Frege’s use of “`” as composed of “|” and “−“:
# " " #
A A
|− =| = A in general and
B B
" # " # " # " #
p p ¬p ¬p
|− =| = p and | − =| = ¬p for classical thoughts.31
¬p ¬p p p

Here “−” keeps 2-dimensionality like “l”, but “|” reduces dimensionality. 
The difference between “−” vs. “|” and" “l”# vs. “ ” can" also
# be observed with
> ⊥
respect to tautologies and contradictions: vs. > and vs. ⊥.
⊥ >

"# " # " # " # " # " #


> > > > ⊥ > 
− = vs. | =>l = vs. = ⊥.
⊥ ⊥ ⊥ ⊥ > ⊥

But with respect to tautologies and contradictions we can neglect the difference
between both dimensions in the following sense:

" # " # " #


> > >
is a tautology (|=10 ) iff | is a tautology iff |= >.
⊥ ⊥ ⊥

And in the full system L2 we have


" #
A
|=10 iff |=A.
B
" # # "
" #
⊥ > >
is a contradiction (|=10 − ) iff ? is a contradiction iff ?⊥.
> ⊥ ⊥


Do we really need “|”,“l” and “ ” as “Urbestandteile” (undefined basic elements) to
express all these things? Do we need two ways of judgments: positive and negative?
Frege says clearly “no”!

31 There is another aspect of “-”: It has to guarantee that the result of applying it to an arbitrary argument yields a thought. We will
come to this point in the last section.

108 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 79-118
ISSN: 2317-9570
SIMILAR WAYS OF CREATING THIRDNESS: KANT’S “SYNTHETIC JUDGMENTS A PRIORI” AND FREGE’S
“THOUGHTS” AS INTERMEDIATE CASES

Thus the assumption of two different ways of judging must be rejected. But
what hangs on this decision? It might perhaps be regarded as valueless, if
it did not effect an economy of logical primitives and their expressions in
language. On the assumption of two ways of judging we need:
" # " #
A p
1. affirmative assertion [| =⇒ A, | = p];
B ¬p
2. negative assertion, e.g. inseparably attached to the word ’false’
" # " #
A  p 
[ =⇒ B, = ¬p];
B ¬p

3. a negative word like ’not’ in sentences uttered non-assertively


" # " # " # " # " # " #
A B p ¬p ¬p p
[l =⇒ ,l = ,l = ].
B A ¬p p p ¬p

If on the other hand we assume only a single way of judging, we only need:

1. assertion [|];
2. a negative word [l]:

Such economy always shows that analysis has been pushed further, which
leads to a clearer insight. There hangs together with this an economy as
regards a principle of inference . . . (FREGE 1960, p. 130 f.)32

32 „So ist denn die Annahme von zwei verschiedenen Weisen des Urteilens zu verwerfen. Aber was hängt denn von dieser Ents-
cheidung ab? Vielleicht könnte man sie für wertlos halten, wenn dadurch nicht eine Ersparung an logischen Urbestandteilen und
an dem, was ihnen sprachlich entspricht, bewirkt würde. Bei der Annahme von zwei verschiedenen Weisen des Urteilens haben wir
nötig: " # " #
A p
1. die behauptende Kraft im Falle des Bejahens [ | =⇒ A, | = p ],
B ¬p
" #
 A
2. die behauptende Kraft im Falle des Verneinens, etwa in unlöslicher Verbindung mit dem Worte "falsch" [ =⇒ B,
B
" #
 p
= ¬p ],
¬p
" # " # " #
A B p
3. ein Verneinungswort wie "nicht" in Sätzen, die ohne behauptende Kraft ausgesprochen werden [ l =⇒ , l =
B A ¬p
" # " # " #
¬p ¬p p
, l = ].
p p ¬p
Nehmen wir dagegen nur eine einzige Weise des Urteilens an, haben wir dafür nur nötig
1. die behauptende Kraft [|],
2. ein Verneinungswort [l]
Eine solche Ersparung zeigt immer eine weitergetriebene Zerlegung an, und diese bewirkt eine klarere Einsicht. Damit hängt eine
Ersparung eines Schlußgesetzes zusammen.“ (FREGE 1918/19b, p. 154).

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 79-118 109
ISSN: 2317-9570
INGOLF MAX

“|” and “l” are primitives characterized by different patterns of reduction rules. “?”
can be defined and is, therefore, not primitive:
" # " #
A A

=df | l .
B B
" #
p
|l = ¬p
¬p

Let us come back to some of Frege’s (b) “Or is judging the same act in both
questions (FREGE 1960, p. 129): cases?” Yes! In the context of the Be-
griffsschrift “|” is indicating that the
(a) “Are there two different ways of jud- whole expression following it is a logi-
ging, of which one is used for the affir- cal thought, that Frege has a proof for it
mative, and the other for the negative, or it is itself already an axiom. Judging
answer to a question?” The answer is is simply judging. The final result of a
clearly “no!” There is only one way of proof can look “positive” like ` p ⊃ p
judging which is neutral with respect of or “negative” like ` ¬(p ∧ ¬p). Please
being positive or negative. The result of look back to the move from “affirmative
judging depends solely on the content assertion” to “assertion” without “affir-
of its argument. Judging (|) can only mative” in the quotation above (FREGE
applied to thoughts. Correspondingly, 1960, p. 130 f.).
“|A” is not well-formed. But we will see
in a moment how “| − A” can be well- (c) “Does negating go along with jud-
formed.33 ging?” No! Negating is the transition

33 Frege “considers the talk of negation in the sense of ‘negative judgement’ as logically misleading, because, in his view, any jud-
gement is per se an affirmative judgement.” (GREIMANN 2018, p. 414). We say – in accordance with Frege – that judgment is neutral
with respect to negation and affirmation. Frege’s formulation “we assume only a single way of judging” (1960, p. 130) does not mean
“a single positive way”. We can verify this by his move from “affirmative assertion” (“die behauptende Kraft im Falle des Bejahens”)
to simply “assertion” (“die behauptende Kraft”) (ibid. & FREGE 1918/19b, p. 154). Frege is not arguing that “negative judgments” are
misleading. We are on the wrong track if we think that “negative judgements” are expressible by a single connective. The definition
shows that “Verneinen” means applying neutral judging to the negation of a thought. The result itself can be true or false.

110 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 79-118
ISSN: 2317-9570
SIMILAR WAYS OF CREATING THIRDNESS: KANT’S “SYNTHETIC JUDGMENTS A PRIORI” AND FREGE’S
“THOUGHTS” AS INTERMEDIATE CASES

from a thought (a 2-dimensional ex- rent dimensions to characterize mathe-


pression) to its opposite thought (its matical judgments (Kant) or senten-
corresponding 2-dimensional expres- ces (Frege). They have to be not only
sion). Judging takes a thought (a 2- synthetic in one dimension but also a
dimensional expression) and yields a priori in the other dimension for Kant.
truth-value (a 1-dimensional expres- Frege’s program was to show that equa-
sion by selecting the first dimension in tions are provable thoughts which can-
our approach). not be perceived by senses in one di-
mension but they are nevertheless ob-
jective in the other dimension. Both
(d) “Or is negation part of the thought
thinkers agree that the creation of a 1-
that underlies the act of judging?” We
dimensional thirdness is not a solution
have to be precise here: “l” cannot" be#
A to answer the question “How is me-
part of expressions of the form taphysics/logic as science possible”. We
¬A
" # have shown that Kant’s synthetic judg-
¬A
or . “l A” is not well-formed. But ments a priori as well as Frege’s thoughts
A
can be reconstructed as 2-dimensionally
“l” is in the scope of “|”. This should
structured intermediate cases within our
not be confused with our use of classi-
language of analysis. From a methodo-
cal negation “¬” inside 2-dimensional
logical point of view Frege is a follower
expressions to represent the logical
of Kant without being Kantian in moti-
form of thoughts. “¬” has only argu-
vating his thoughts philosophically and
ments given by the language of L1 .34
explicating them logically. Frege’s way
of characterizing thoughts as bivalent
Our starting point were seemingly ex- logical objects enables him to interpret
clusive answers to the (epistemo)logical negation as a logical connective which
status of equations by Kant and Frege: takes an arbitrary thought and yields
Expressions like “7 + 5 = 12” are synthe- its opposite thought. We say that logical
tic for Kant but analytic for Frege. But negation keeps dimensionality. Judging
that’s a misleading shortening. Both is reducing a 2-dimensional thought
thinkers agree that we need two diffe-

34 Greimann writes: „. . . for Frege, to judge is to make a choice between opposite thoughts that contains both a positive and a
negative judgement“ (GREIMANN 2018, p. 411). This formulation is misleading in two respects: (a) “to judge is to make a choice
between opposite thoughts”: If we make a choice between two thoughts, then the result should be one of these two thoughts. But
Frege says: judgment is “the recognition of the truth" of a #thought” (FREGE 1956, p. 294). I think “the recognition " of
# the truth of a
¬p ¬p
thought” is not a thought. If a thought has the form , then the recognition of the truth of this thought (| ) is the truth of
p p
¬ p. The result is a truth-value (1-dimensional) and not a thought again (2-dimensional). (b) “thoughts that contains both a positive
and a negative judgement”. If this were true, then we could apply “|” inside thoughts?! Thoughts “contain” both truth-values at once
without any functional connection (bivalence). We realize that by taking ordered pairs consisting of A and ¬ A without using any
connective.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 79-118 111
ISSN: 2317-9570
INGOLF MAX

to a 1-dimensional truth-value. Nega- and negation. We are aware that the


tive judging is simply judging the nega- concepts “sense” and “thought” are not
tion of a thought. Frege criticizes Kant in the center of his interest.36 Our re-
for assuming that positive and negative marks are a first trial and open for cri-
judgments are two autonomous types. tical discussion.
Kant was not able to see that the logi-
cal form of negative judgments is not (a) The (left) vertical stroke (the judg-
primitive but a composition of judging ment stroke) & the horizontal stroke
with logical negation of thoughts in its (the content stroke):
scope. Frege is convinced that in his
Begriffsschrift a final reduction to one A judgment is always to be ex-
dimension – the true – is indispensa- pressed by means of the sign
ble. The judgment stroke indicates that
what follows it belongs to the Begriffss-
chrift.35 But a consequence within our This stands to the left of the
language of analysis using L2 is that sign or complex of signs in
tautologies remain 2-dimensional ex- which the content of the judg-
pressions which are |=10 -valid. Not the ment is given. If we omit the lit-
lack of the false is crucial but simply tle vertical stroke at the left end
the inner order of the true (>) and the of the horizontal stroke, then
false (⊥). the judgment is to be transfor-
med into a mere complex of ideas;
the author is not expressing his
6. An Outlook: Applying our appro- recognition or non-recognition
ach to Frege’s Begriffsschrift of the truth of this. Thus, let

In the last part we use our language of


analysis to try to connect it with Frege’s mean the judgment: ’unlike
earlier investigations in his Begriffssch- magnetic poles attract one
rift with respect to judgment, content another.’ In that case

35 Cf. Wittgenstein’s criticism in his Tractatus T 4.442: “(Frege’s ,Urteilstrich‘ ,`‘ ist logisch ganz bedeutungslos; er zeigt bei Frege
(und Russell) nur an, dass diese Autoren die so bezeichneten Sätze für wahr halten. ,`‘ gehört daher ebenso wenig zum Satzgefüge,
wie etwa die Nummer des Satzes. Ein Satz kann unmöglich von sich selbst aussagen, dass er wahr ist.)” (WITTGENSTEIN 1984, p.
42).
36 But we can find them: (a) “Accordingly, I divide all the symbols I use into those that can be taken to mean various things and those
that have a fully determinate sense.” (FREGE 1960, p. 1. “Alle Zeichen, die ich anwende, theile ich daher ein in solche, unter denen man
sich Verschiedenes vorstellen kann, und in solche die einen ganz bestimmten Sinn haben.” FREGE 1879, p. 1). “. . . even if a slight difference
of sense is discernible, the agreement in sense is preponderant (FREGE 1960, p. 3. “Wenn man nun auch eine geringe Verschiedenheit
des Sinnes erkennen kann, so ist doch die Uebereinstimmung überwiegend.” FREGE 1879, p. 3) etc. (b) With respect to :
“he may make inferences from this thought and test its correctness on the basis of these.” (FREGE 1960, p. 2. “etwa um Folgerungen
daraus zu ziehen und an diesen die Richtigkeit des Gedankens zu prüfen.” FREGE 1879, p. 2) etc.

112 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 79-118
ISSN: 2317-9570
SIMILAR WAYS OF CREATING THIRDNESS: KANT’S “SYNTHETIC JUDGMENTS A PRIORI” AND FREGE’S
“THOUGHTS” AS INTERMEDIATE CASES

contents that are, and contents


that are not, possible contents of
will not express this judgment judgment.
. . . (FREGE 1960, p. 1 f.).37 As a constituent of the sign the
horizontal stroke combines the
The structure “ ” represents “a symbols following it into a whole;
mere complex of ideas” which Frege assertion, which is expressed by
later reanalyzes as the thought of A. the vertical stroke at the left end
We can read “ . . . ” as “the cir- of the horizontal one, relates to
cumstance that . . . ” (“der Umstand, the whole thus formed. The ho-
dass”) or “the proposition that” (“der rizontal stroke I wish to call
Satz, dass”). We have already intro- the content-stroke, and the ver-
duced our reduction operator “−” cha- tical the judgment-stroke. The
racterized
" # by
" the# reduction rule R−: content-stroke is also to serve
A A the purpose of relating any sign
− =⇒ , i.e., that the applica-
B B whatsoever to the whole for-
tion of “−” is redundant if the argument med by the symbols following
is already a 2-dimensional structure, a the stroke. The content of what
mere complex of ideas (a thought). follows the content-stroke must
always be a possible content of
judgment. (ibid., p. 2).38
Not every content can be tur-
ned into a judgment by prefi-
xing to a symbol for the “ ” is a complex sign which con-
content; e.g. the idea ’house’ sists of the parts “ ” and “ ”. The
cannot. Hence we distinguish task of the horizontal stroke is to secure

37 „Ein Urtheil werde immer mit Hilfe des Zeichens

ausgedrückt, welches links von dem Zeichen oder der Zeichenverbindung steht, die den Inhalt des Urtheils angiebt. Wenn man den
kleinen senkrechten Strich am linken Ende des wagerechten fortlässt, so soll dies das Urtheil in eine blosse Vorstellungsverbindung
verwandeln, Vvon welcher der Schreibende nicht ausdrückt, ob er ihr Wahrheit zuerkenne oder nicht. Bedeute z. B.

das Urtheil: ,die ungleichnamigen Magnetpole ziehen sich an‘; dann wird

nicht dies Urtheil ausdrücken . . . (FREGE 1879, p. 1 f.)


38 „Nicht jeder Inhalt kann durch das vor sein Zeichen gesetzte ein Urtheil werden, z. B. nicht die Vorstellung ,Haus‘.
Wir unterscheiden daher beurtheilbare und unbeurtheilbare Inhalte.Der wagerechte Strich, aus dem das Zeichen gebildet
ist, verbindet die darauf folgenden Zeichen zu einen Ganzen, und auf dies Ganze bezieht sich die Bejahung, welche durch den
senkrechten Strich am linken Ende des wagerechten ausgedrückt wird. Es möge der wagerechte Strich Inhaltsstrich, der senkrechte
Urtheilsstrich heissen. Der Inhaltsstrich diene auch sonst dazu, irgendwelche Zeichen zu dem Ganzen der darauf folgenden Zeichen
in Beziehung zu setzen. Was auf den lnhaltsstrich folgt, muss immer einen beurtheilbaren Inhalt haben.“ (FREGE 1879, p. 2).

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 79-118 113
ISSN: 2317-9570
INGOLF MAX

that what follows is a “possible content stroke like this:


of judgment”, it “must always be a pos-
sible context of judgment”. From our
Greimann describes this situation in
point of view this means that the ap-
the following way:
plication of “−” to an expression which
is not already 2-dimensional should
be converted into a 2-dimensional one. Negation, so construed, is not a
E.g., Frege’s “ ” as well as our “−” mental act, but a mathematical
are context-dependent. If we have “A”, function that is a part of the se-
we do not know whether it is true or mantic content of the sentences
not. This situation can be explicated by in which the negation stroke oc-
rule R−∗ : curs. It is hence clear that that
" # the negation stroke expresses
A
−A =⇒ . the semantic type of negation,
B
which refers to the contents of
If “B” is different from “¬A”, we get a judgements. Frege’s notation
content which cannot become " a judg-
# makes this syntactically visible
A by placing the negation stroke
ment. If “B” is “¬A”, we get . It
¬A at the underside of the content
represents a content which can become stroke. (2018, p. 413).
a judgment. (cf. FREGE 1960, p. 2). In
the following we presuppose B = ¬A.39
“[P]lacing the negation stroke at the un-
The curious point is that “−” plays dif-
derside of the content stroke” is not the
ferent roles with respect to the struc-
whole story:
ture of its arguments, but nevertheless
we get
" # " # I call this small vertical stroke
A A the negation stroke. The part of
−−A = − = .
¬A ¬A the horizontal stroke occurring
(b) Negation is represented by adding to the right of the negation-
a small vertical stroke to the content stroke is the content-stroke of

39 Our proposal is an alternative to the interpretation in STELZNER (1995). He says: „Ist der Inhaltsstrich der Begriffsschrift
termbildender Operator, der aus einem Gebilde H mit beurteilbarem Inhalt den Terminus ,der Umstand, daß H‘, ,der Satz, daß H‘
bildet, so ist der ihm syntaktisch entsprechende Waagerechte der Grundgesetze zum Ausdruck einer Wahrheitsfunktion eingeführt,
die genau dann den Wert wahr annimmt, wenn ihr Argument der Wert wahr ist. Ist das Argument der Wert falsch oder ein Ge-
genstand, der kein Wahrheitswert ist, so ist der Wert der Funktion der Wert falsch, d.h. der Waagerechte wird als Prädikator zum
Ausdruck des Prädikats ,ist wahr‘ eingeführt.” (STELZNER 1995, p. 58 f.). Stelzner speaks about the syntactic correspondence („syn-
taktisch entsprechende“) between the content stroke of the Begriffsschrift and the horizontal in Frege’s Basic Laws of Arithmetic. He
associates the content stroke with a term-forming operator and the horizontal with a truth-function which assigns true to true, false
to false but also false to any third (non-propositional) object. My proposal is to look at the horizontal stroke as a kind of filter which
has to secure that all vertices in Frege-trees are thoughts. It has not only to secure bivalence but also the right complexity of all
vertices.

114 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 79-118
ISSN: 2317-9570
SIMILAR WAYS OF CREATING THIRDNESS: KANT’S “SYNTHETIC JUDGMENTS A PRIORI” AND FREGE’S
“THOUGHTS” AS INTERMEDIATE CASES

A; the part occurring to the without expressing whether


left of the negation-stroke is the this idea is true. (FREGE 1960,
content-stroke of the negation p. 7).40
of A. Here as elsewhere in our
symbolism, no judgment is per-
formed if the judgment-stroke By the small vertical stroke the content
is absent. stroke is divided into two parts which
differ in scope. But they can differ also
in the role they play with respect to
merely requires the formation A. Our representation of A is
of the idea that A is not the case, − l −A which yields

The result is still" a thought.


# If we look at A, the final corresponding application of
¬A
“|” yields ¬A: | = ¬A. According to our interpretation this means that A is
A
false. What about judging a double negation (+-- A)?

40 „Ich nenne diesen kleinen senkrechten Strich den Verneinungsstrich. Der rechts vom Verneinungsstriche befindliche Theil des
wagerechten Striches ist der Inhaltsstrich von A, der links vom Verneinungsstriche befindliche Theil dagegen ist der Inhaltsstrich der
Verneinung von A. Ohne den Urtheilsstrich wird hier so wenig wie anderswo in der Begriffsschrift ein Urtheil gefällt. Afordert nur
dazu auf, die Vorstellung zu bilden, dass A nicht stattfinde, ohne auszudrücken, ob diese Vorstellung wahr sei.“

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 79-118 115
ISSN: 2317-9570
INGOLF MAX

Finally, let us come back to a point my work. I would console my-


which we mentioned en passant. Frege self on this point with the rea-
characterizes thoughts as objects which lization that a development of
are not perceivable by senses as well method, too, furthers science.
as objective things. So we grasp (fas- Bacon, after all, thought it bet-
sen) thoughts. But is Frege’s own access ter to invent a means by which
to his well-designed concept thought a everything could easily be dis-
kind of grasping? Or did he find the covered than to discover parti-
concept thought? Or did he invent this cular truths, and all great steps
concept? Frege has a clear answer: of scientific progress in recent
times have had their origin in
an improvement of method.
This ideography, likewise, is a (FREGE 1970, p. 6) 41
device invented for certain sci-
entific purposes, and one must
not condemn it because it is not And
suited to others. If it answers to
these purposes in some degree, The mere invention of this ide-
one should not mind the fact ography has, it seems to me, ad-
that there are no new truths in vanced logic. I hope that logici-

41 „So ist diese Begriffsschrift ein für bestimmte wissenschaftliche Zwecke ersonnenes Hilfsmittel, das man nicht deshalb verurthei-
len darf, weil es für andere nichts taugt. Wenn sie diesen Zwecken einigermassen entspricht, so möge man immerhin neue Wahrheiten
in meiner Schrift vermissen. Ich würde mich darüber mit dem Bewusstsein trösten, dass auch eine Weiterbildung der Methode die
Wissenschaft fördert. Hält es doch Baco für vorzüglicher ein Mittel zu erfinden, durch welches Alles leicht gefunden werden kann,
als Einzelnes zu entdecken, und haben doch alle grossen wissenschaftlichen Fortschritte der neueren Zeit ihren Ursprung in einer
Verbesserung der Methode gehabt.“ (FREGE 1879, p. V).

116 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 79-118
ISSN: 2317-9570
SIMILAR WAYS OF CREATING THIRDNESS: KANT’S “SYNTHETIC JUDGMENTS A PRIORI” AND FREGE’S
“THOUGHTS” AS INTERMEDIATE CASES

ans, if they do not allow them- From my point of view the invention
selves to be frightened off by of an interesting language of analysis
an initial impression of strange- using logical tools – my 2-dimensional
ness, will not withhold their as- framework – is an offer to readers who
sent from the innovations that, “do not allow themselves to be frighte-
by a necessity inherent in the ned off by an initial impression of stran-
subject matter itself, I was dri- geness”. Further investigations have
ven to make. (ibid., p. 7).42 to demonstrate the fruitfulness and the
range of this method to interpret philo-
sophical as well as logical texts.

References
FREGE, Gottlob. Begriffsschrift, eine der arithmetischen nachgebildete Formelsprache des reinen Denkens. Verlag von Louis
Nebert: Halle/Saale, 1879. https://b-ok.cc/book/3517171/f28b88
https://gdz.sub.uni-goettingen.de/id/PPN538957069?tify={%22view%22:%22info%22}
______. Die Grundgesetze der Arithmetik. Eine logische-mathematische Untersuchung über den Begriff der Zahl. Breslau:
Verlag von Wilhelm Koebner 1884.
https://archive.org/details/diegrundlagende00freggoog/page/n7/mode/2up
______. Der Gedanke. Eine logische Untersuchung. Beiträge zur Philosophie des deutschen Idealismus 2, 1918-1919a, p.
58-77. http://www.gavaga i.de/HHP32.htm
______. Die Verneinung. Eine logische Untersuchung. Beiträge zur Philosophie des deutschen Idealismus, vol. 1. A.
Hoffman (Erfurt) & H. Engert (Dresden), Verlag der Keyserschen Buchhandlung: Erfurt 1918-1919b, p. 143–157.
http://sammelpunkt.philo.at/533/
______. The Foundations of Arithmetic. A logico-mathematical enquiry into the concept of number. Translated by John
Langshaw Austin. New York: Harper & Brothers, second revised edition 1953 (First Harper Torchbook edition
published 1960).
http://www.naturalthinker.net/trl/texts/Frege,Gottlob/Frege, Gottlob - The Foundations of Arithmetic (1953)
2Ed_ 7.0-2.5 LotB.pdf
______. The Thought: A Logical Inquiry. Translation of FREGE 1918/19a. Mind, New Series, Vol. 65, No. 259, 1956, p.
289-311.
http://inescrespo.altervista.org/nyu/Frege1918.pdf http://www.jstor.org/stable/2251513
______. Begriffsschrift, a formula language, modeled upon that of arithmetic, for pure thought. Complete translation by S.
Bauer-Mengelberg. In: HEIJENOORT, Jean van. Frege and Gödel: Two Fundamental Texts in Mathematical Logic.
Harvard University Press: Cambridge, Mass. 2 1970, p. 1-82.
https://www.informationphilosopher.com/solutions/philosophers/frege/Frege_Begriffsschrift.pdf
______. Begriffsschrift, a formula language, modeled upon that of arithmetic, for pure thought. Partial translation (§§1–12).
In: Translations from the Philosophical Writings of Gottlob Frege. Edited and translated by Peter GEACH & Max
BLACK.. Oxford: Basil Blackwell 1960a, p. 1–20.
______. Negation. Translation of FREGE 1918/19b. In: Translations from the Philosophical Writings of Gottlob Frege.
GEACH, Peter & Max BLACK (eds. and trans.). Oxford: Basil Blackwell 1960b, p. 117–135.
GREIMANN, Dirk. Frege on Negative Judgement and Assertion. In: Kriterion, Belo Horizonte, nº 140, Ago./2018, p.
409-428. http://www.scielo.br/pdf/kr/v59n140/0100-512X-kr-59-140-0409.pdf
KANT, Immanuel. Kritik der reinen Vernunft. Nach der ersten und zweiten Originalausgabe herausgegeben von Jens
Timmermann. Mit einer Bibliographie von Heiner Klemme. Hamburg: Felix Meiner Verlag 1998.
https://www.projekt-gutenberg.org/kant/krvb/krvb.html

42 „Schon das Erfinden dieser Begriffsschrift hat die Logik, wie mir scheint, gefördert. Ich hoffe, dass die Logiker, wenn sie sich
durch den ersten Eindruck des Fremdartigen nicht zurückschrecken lassen, den Neuerungen, zu denen ich durch eine der Sache
selbst innewohnende Nothwendigkeit getrieben wurde, ihre Zustimmung nicht verweigern werden.“ (FREGE 1879, p. VII).

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 79-118 117
ISSN: 2317-9570
INGOLF MAX

______. Prolegomena zu einer jeden künftigen Metaphysik die als Wissenschaft wird auftreten können. Riga: Johann Friedrich
Hartknoch. 1783. Fünfte Auflage mit Einleitung, Beilagen, Personen- und Sachregister herausgegeben von Karl
Vorländer. Leipzig: Verlag von Felix Meiner 1920.
https://archive.org/download/immanuelkantspr00kantuoft/immanuelkantspr00kantuoft.pdf
______. Critique of Pure Reason. Translated and edited by Paul GUYER (University of Pennsylvania) & Allen W. WOOD
(Yale University). The Cambridge edition of the works of Immanuel Kant. Cambridge: University Press, 1998.
https://cpb-us-w2.wpmucdn.com/u.osu.edu/dist/5/25851/files/2017/09/kant-first-critique-cambridge-1m89p-
rv.pdf
______. Prolegomena to Any Future Metaphysics. That Will Be Able to Come Forward as Science. Translated and edited by
Gary HATFIELD, University of Pennsylvania, Revised Edition, Cambridge: University Press, 2004.
https://b-ok.cc/dl/730730/08f613
KRIPKE, Saul. Naming and Necessity. In: Semantics of Natural Language. Synthese Library. Wien & New York: Springer
1972, p. 253-355.
MAX, Ingolf. Freges Gedanke und seine nichtklassischen Verwandten. In: Traditionelle und moderne Logik. Zum 65.
Geburtstag von Lothar Kreiser. Edited by Ingolf Max, Leipzig: Universitätsverlag 2003, 149-179.
STELZNER, Werner. Wahrheits- und Falschheitsfunktionen in der Begriffsschrift der Grundgesetze. In: Logik und Mathe-
matik: Frege-Kolloquium Jena 1993. Edited by Ingolf MAX & Werner STELZNER. Berlin & New York: Walter de
Gruyter, 1995, p. 58-67.
WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus logico-philosophicus, Tagebücher 1914–1916, Philosophische Untersuchungen [PU].
Werkausgabe Band 1. Frankfurt am Main: Suhrkamp 1984.
______. Philosophical Investigations [PI]. Edited and translated by Gertrude Elizabeth Margaret ANSCOMBE, 3rd ed.
Oxford: Basil Blackwell 1986.

Received / Recebido: 18/07/2020


Approved / Aprovado: 18/11/2020
Published / Publicado: 30/12/2020

118 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 79-118
ISSN: 2317-9570
DOI: https://doi.org/10.26512/rfmc.v8i2.35865

Intentionality and the Logico-Linguistic Commitment: A Critique


of Roderick Chisholm

[Intencionalidade e Compromisso Lógico-Linguístico: Uma crítica a Roderick Chisholm]

Luis Niel*

Abstract: The aim of this article is to analyze and criticize Roderick Chisholm’s con-
ception of intentionality, which has, historically, served as the point of departure for
most accounts of intentionality in analytic philosophy. My goal is to highlight the
problematic ’logico-linguistic commitment’ presupposed by Chisholm, according to
which mental concepts should be interpreted by means of semantic concepts. After
addressing Chisholm’s differentiation between the ontological thesis (the idea that the
intentional object might not exist) and the psychological thesis (the conception that only
mental phenomena are intentional), as well as his defining criteria for intentionality
(non-existential implication, independency of truth-value, and indirect reference), I fo-
cus on the manifold problems presented by his theory. First, the two initial criteria entail
a conceptual confusion between the semantic concept of ’intensionality’ and the mental
concept of ’intentionality’. Second, according to these criteria-and against Chisholm’s
explicit intention-perception and other cognitive activities should not be considered
intentional. Third, there are no grounds for the artificial conflation of intentionality
and the concept of ’propositional attitudes’-an equation which is an explicit tenet of the
logico-linguistic commitment. In general, I argue that an interpretation of intentionality
based on this commitment obscures the true meaning of the concept of intentionality, as
it is presented, for instance, by phenomenology.
Keywords: Chisholm. Intentionality. Intensionality. Propositional Attitudes. Logico-
linguistic Commitment.

* Ph.D., Universität zu Köln, Germany. Assistant Professor at Universidad Nacional del Litoral, Argentina, and researcher at the
Argentine Research Council (CONICET). E-mail: luisniel@yahoo.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0685-4045.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 119-138 119
ISSN: 2317-9570
LUIS NIEL

Resumo: O objetivo deste artigo é o de analisar e criticar a concepção de intencionalidade


de Roderick Chisholm que, historicamente, serviu como ponto de partida para muitas
consideraçoes da intencionalidade dentro da filosofia analítica. Minha meta é esclarecer
o problemático "compromisso lógico-linguístico" pressuposto por Chisholm, segundo
o qual conceitos mentais devem ser interpretados por meio de conceitos semânticos.
Depois de abordar a diferenciação de Chisholm entre a tese ontológica (a ideia de
que o objeto intencional pode não existir) e a tese psicológica (a concepção de que
somente fenômenos mentais são intencionais) bem como o seu critério de definição para
intencionalidade (implicação não-existencial, independencia ou valor de verdade e refe-
rencia indireta), me debrucei sobre os diversos problemas apresentados por sua teoria.
Primeiro, os dois critérios iniciais acarretam uma confusão conceitual entre o coneito
semântico de "intensionalidade" e o conceito mental de "intencionalidade". Segundo,
de acordo com esses critérios - e contra a intenção explícita de Chisholm - percepção
e outras atividades cognitivas nao devem ser consideradas intencionais. Terceiro, não
há fundamentos para a fusão artificial de intencionalidade e o conceito de "atitudes
proposicionais" - uma equação que é um princípio explícito do compromisso lógico-
linguístico. Em geral, sustento que uma interpretação da intencionalidade baseada nesse
compromisso obscurece o verdadeiro significado do conceito de intencionalidade como
apresentada, por exemplo, pela fenomenologia.
Palavras-chave: Chisholm. Intencionalidade. Intensionalidade. Atitudes proposicionais.
Compromisso lógico-linguístico.

Introduction of this article is to try to understand


why we are talking about the same con-
cept in such different languages and ap-
Everyone trained in the phenomeno- proaches, which might lead us to think
logical tradition has a strange feeling whether we are talking about the same
when starting to read analytic essays issue. In that sense, the analysis of the
on intentionality. The feeling usually concept of intentionality might shed
takes the form of questions such as: some light regarding the gap between
what’s going on here? How are these the phenomenological and the analyti-
analytic accounts of the concept of in- cal traditions.
tentionality related to what we know As is well known, the concept of in-
about Brentano and Husserl (just to tentionality has a long history that ori-
name the leading figures)? In this con- ginated in medieval times. But it was
text, one has the peculiar feeling that as indeed Franz Brentano who reintrodu-
regards the concept of intentionality-to ced it in contemporary philosophy in
use Michael Dummett’s metaphor-the the context of his descriptive psycho-
Rhine and the Danube are more sepa- logy as a first-person research into one’s
rated than we thought. La raison d’etre

120 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 119-138
ISSN: 2317-9570
INTENTIONALITY AND THE LOGICO-LINGUISTIC COMMITMENT: A CRITIQUE OF RODERICK CHISHOLM

own experiences.1 The aim of this article is to analyze


Intentionality is nowadays one of and criticize the analytic concept of in-
the most important concepts in mo- tentionality as it is presented by Rode-
dern analytic philosophy of mind. In- rick Chisholm. I have chosen Chisholm
dependent of various different positi- since he is considered the first to intro-
ons (functionalism, reductionism, etc.), duce the concept of intentionality in the
the reference to intentionality is almost Anglo-Saxon analytic world, which es-
an unavoidable field of research in or- tablished the basis of interpreting this
der to present a comprehensive analy- concept throughout the following deca-
sis of the mind.2 Indeed, it is difficult des.3
to find a single definition of this con- I first address Chisholm’s differentia-
cept that encompasses all the different tion between the ontological thesis (the
positions, and just within analytic phi- idea that the intentional object might
losophy. In a general sense, intentio- not exist), and the psychological the-
nality may be defined as the aboutness sis (the conception that only mental or
of the mind, i.e., the mind is consti- psychological phenomena are intentio-
tuted by (some) experiences (or states) nal and not physical phenomena). I do
which are about something, or, in other this as a point of departure, in order
words, the mind is directed towards so- to establish the conceptual background
mething. It might be said that this pro- upon which intentionality will be exa-
visional and classical definition can be mined. Second, I present a formula-
accepted by almost every philosopher. tion of intentional statements, as pre-
Nonetheless, the question posed by this sented by Chisholm. Third, I analyze
article is whether Chisholm (and, in ge- his defining criteria for intentionality:
neral, many of the analytic theories of non-existential implication, indepen-
intentionality) remains true to the con- dency of truth-value, and indirect refe-
ceptual framework of the ’original defi- rence. Fourth, I show that the first two
nition’, or rather moves far away from criteria harbor a conceptual confusion
it. between the semantic concept of ’inten-

1 For Brentano, Intentionality, as directedness (or aboutness) of the mind, is the mark of every mental phenomenon, i.e., it is not
necessarily restricted to linguistic phenomena. For him, there are three kinds of mental or psychological phenomena: presentations
(Vorstellungen), judgements and emotions. All mental phenomena are either presentations or have a presentation at their basis, i.e.,
presentations are the most basic and fundamental forms of mental life. This implies that a judgement necessarily presupposes a pre-
sentation, but, conversely, a presentation does not necessarily imply a judgement. The general characteristic of all mental phenomena
is that they are intentional, i.e., they are directed towards an object (or a state-of-affairs) (BRENTANO, 1874, p.68).
2 And, of course, this is only in the frame of analytic philosophy. It is needless to say how important this concept was and still is
for the continental-phenomenological tradition.
3 Similar remarks could be made about Elisabeth Anscombe and Peter Geach (among others). Nevertheless, I agree with Kim
when he says that “it was Chisholm’s seminal work in the 1950s and 1960s that introduced the Problematik of intentionality into
analytic philosophy, making it a central area of research in philosophy of mind and language (. . . ) Our current use of ‘intentional’
and ‘intentionality’ derives from, and is continuous with, Chisholm’s early work” (KIM, 2003, p.650).

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 119-138 121
ISSN: 2317-9570
LUIS NIEL

sionality’ and the mental concept of ’in- mits himself to this logico-linguistic
tentionality’. Fifth, I point out that-in conception of intentionality, perhaps
spite of Chisholm’s explicit intention- unaware of the manifold implications
perception and other cognitive activi- of this position. I highlight that this
ties should not be considered intenti- commitment also requires the reduc-
onal, due to the artificial character of tion of the mental concept of inten-
the third criterion. Sixth, I bring into tionality to a linguistic/semantic con-
account the relation between intentio- ception of intentionality, expressed by
nality and the concept of ’propositional the very idea of ’propositional atti-
attitudes’, in order to show the proble- tude’ that can be translated or forma-
matic and artificial conflation of both lized into analyzable language senten-
concepts-an equation which not only ces. This fact is best acknowledged
has no grounds, but which is also an by Chisholm’s explicit confession of a
explicit tenet of the ’logico-linguistic " linguistic version of Brentano’s thesis"
commitment’. In general, I argue that (CHISHOLM, 1956, p.147).5 That this
an interpretation of intentionality ba- commitment works as a sort of an un-
sed on this commitment obscures the derlying metaphysical assumption that
true meaning of the concept of intenti- conditions many of the analyses in the
onality, as it is presented, for instance, analytic philosophy of mind will not be
by phenomenology. argued, but rather presupposed. In this
Based on all these points, I claim context, I argue that this linguistic in-
that Chisholm’s and, in general, many terpretation not only does not depict
of the analytic accounts of intentiona- the very phenomenon of intentionality,
lity are based on problematic presup- but it also conceals its true meaning.
positions grounded on the assumption In order to show the hidden implica-
of the ’logico-linguistic commitment’, tions of such a position, i.e. the commit-
namely, the idea that mental concepts ment to a logico-linguistic approach to
must be interpreted by means of logico- intentionality and mental life, I pursue
linguistic or semantic concepts. In that the following argumentative strategy:
sense, I will argue that, in spite of in most cases, I do not focus on the
Chisholm’s explicit intention to avoid arguments and analyses explicitly ou-
philosophical commitments,4 he com- tlined by Chisholm, but rather on those

4 “Let us look for the simplest answer possible. By ‘the simplest answer’, I mean, not only the answer that is easiest to understand,
but also the one that involves the fewest philosophical commitments” (CHISHOLM 1981, p.13, emphasis added).
5 “The ‘thesis of intentionality’ would now become: the psychological, unlike the non-psychological, can be adequately described
only by using sentences that are intentional” (CHISHOLM 1964, p.269; emphasis added). “I shall set forth a procedure by means of
which we can investigate the ‘logic’ or ‘grammar’ of some of our intentional concepts and which will enable us to contrast them with
other modal concepts” (CHISHOLM, 1966, p.11; emphasis added). For an explicit defense of this linguistic version of intentionality,
cf. Harney (1984, p.25 ss).

122 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 119-138
ISSN: 2317-9570
INTENTIONALITY AND THE LOGICO-LINGUISTIC COMMITMENT: A CRITIQUE OF RODERICK CHISHOLM

aspects of his philosophy that implicitly ment had a massive influence over the
remain ’hidden’ in the conceptual back- analytic conceptions of intentionality.8
ground. In other words, I concentrate Indeed, based on the logico-linguistic
on the conceptual implications of some commitment inaugurated by Chisholm,
of his main explicit insights, in order to intentionality became a propositional
put into question the very possibility of attitude in which certain intentional
Chisholm’s (and of many analytic phi- verbs such as ’believe’, ’ascribe’ or ’de-
losopher’s) project, namely the transla- sire’ are related to a proposition. Either
tion of intentional experience into an for criticizing or for following it, this
intentional language. background conception of intentiona-
I should also note that my approach lity based on the logico-linguistic com-
is not intended to be a precise histori- mitment was shared by almost every
cal comparison between Chisholm and analytic philosopher since Quine (1960,
Brentano. In other words, I am not in- p. 220-221) up until more recent works
terested in proving whether Chisholm’s such as those of Fodor (1987, p. X),
interpretation of Brentano is accurate Dretske (1980, p. 354), Dennett (1987,
or not. In any case, the differen- p.17; p.46), and more recently Byrne
ces between both philosophers results (2006), among many others. Even Se-
as a corollary of the following argu- arle, whose work is an attempt to move
ments, which also shows in which sense away from the logico-linguistic com-
Chisholm’s thought is more related to mitment, has certain relapses into this
Russell’s and Frege’s6 positions than conception of intentionality (1983, p.7).
that of Brentano. It shall also note that In that sense, it might be said that
the article is not an attempt to recons- Chisholm not only ’started a debate that
truct the evolution of Chisholm’s con- continues to this day’ (BYRNE, 2006,
cept of intentionality from the 1950s to p.407), but he also established the con-
the 1980s either.7 ceptual background upon which many
As a second corollary of this article, I of the analytic conceptions of intentio-
shall suggest the idea that this commit- nality (naturalistic, functionalistic, etc.)

6 This is clear from the very outset, as it can be seen throughout Chisholm’s first article on intentionality (. CHISHOLM, 1952).
7 I will mainly concentrate on his early writings on intentionality from the 1950s and 1960s, because I consider them to be the
most influential for the following analytic conceptions of intentionality. As it is well known, Chisholm changed his position in several
aspects (KIM, 2003, p.650). In 1981 he claims that there is a primacy of the intentional over the linguistic (CHISHOLM, 1981, p.1)
and tries thoroughly to take distance from the ‘linguistic point of view’ in order to attain the ‘intentional point of view’ (CHISHOLM,
1997, p.3). In any case, I am convinced that his most basic ideas remain unchanged throughout his work, mainly regarding the
‘logico-linguistic commitment’.
8 “It was Chisholm who in his early works during the 1950s introduced the problem of intentionality into the mainstream of
Anglo-American philosophy” (KIM, 1997, p.361). After Chisholm works, “[f]rom 1970s onward, philosophic attention to intentio-
nality has only increased. There are efforts to explain how intentionality is possible, to naturalize it, to find its place in nature, and
to connect it with the causal order” (SANFORD, 1997, p.202), and we shall add: it was indeed Chisholm who inaugurated this new
trend.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 119-138 123
ISSN: 2317-9570
LUIS NIEL

have been developed up to today. Of psychological (mental) and the physi-


course, this historical philosophical is- cal, i.e., all and only mental phenomena
sue is just displayed as a corollary and are intentional, namely they refer to an
hence will not be addressed since it ex- object. Although both theses are sup-
ceeds the scope of the present article. posedly based on Brentano’s concep-
tion of ’intentional inexistence’9 , as we
shall see, Chisholm considerably chan-
1. The ontological and the psychologi- ges its meaning through the translation
cal thesis of intentionality of these psychological phenomena into
an intentional language.
In a famous article on the concept In another text, Chisholm says that
of intentionality written for the Mac- he considers the psychological thesis
millan Encyclopedia of Philosophy to be true, and the ontological thesis,
(CHISHOLM, 1967a), Chisholm pre- although problematic, not to be obvi-
sents his linguistic conception of inten- ously false (CHISHOLM, 1967b, p.6).
tionality. Despite the initial allusion Why is the ontological thesis problema-
to Brentano’s thesis and to Husserl’s tic?
phenomenology, these original refe- According to Chisholm, the ontologi-
rences gradually disappear as soon as cal thesis is rooted in the problem cau-
he starts with his own analysis of in- sed by Brentano’s concept of ’intentio-
tentionality. In that sense, it is fair nal inexistence’, which is indeed unde-
to say that he always speaks expli- niably problematic. But as we shall see,
citly about a reformulation of Bren- Chisholm suggestion goes in another
tano’s thesis (CHISHOLM, 1956, p.125; direction from the one taken by Bren-
CHISHOLM, 1957, p.172). tano: for Chisholm the problem arises
He begins by directly quoting with the question about " what is in-
Brentano’s well-known ’intentionality- volved in having thoughts, beliefs, de-
passage’ (BRENTANO, 1874, p.68), and sires, purposes or other intentional at-
arguing that he finds both ontological titudes, which are directed upon ob-
and psychological theses. The former jects that do not exist" (CHISHOLM,
is about the nature of certain objects of 1967a, p.201). I shall point out that
thought and of other psychological at- in the context of the ontological thesis,
titudes, i.e., it asserts that intentional Chisholm understands the concept of
objects do not imply existence. The lat- intentional inexistence in its literal me-
ter is about the distinction between the aning (i.e., the in-existence as negatio ,

9 In the ‘intentionality passage’ (and elsewhere), Brentano defines mental phenomena by their ‘intentional inexistence’ (he does
not usually use the noun ‘intentionality’). Most interpreters read this as meaning that the intentional objects of mental phenomena
‘exist in the mind’, i.e. they are immanent. We shall see this in what follows.

124 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 119-138
ISSN: 2317-9570
INTENTIONALITY AND THE LOGICO-LINGUISTIC COMMITMENT: A CRITIQUE OF RODERICK CHISHOLM

not as locativus), namely as that which not exist (ontological thesis), and ’John
we might call ’(possible) non-existence’. is riding a horse’ is not intentional, be-
Thus, ’intentional inexistence’ amounts cause it conveys a physical phenome-
to possible non-existence of the object, non and its object must therefore exist.
which means that it does not imply There is, however, one important con-
the existence of the object. For exam- ceptual mistake that appears at first
ple, ’John is thinking of a horse’ does sight with this conception: it equates
not imply at all that the horse exists: non-intentional languages (sentences
" When Brentano said that these atti- about material things, i.e., not men-
tudes ’intentionally contain an object tal) with physical phenomena, and this
in themselves’, he was referring to the is wrong. Brentano’s concept of phy-
fact that they can be truly said to ’have sical phenomena does not amount to
objects’ even though the objects which material things. Physical phenomena
they can be said to have do not in fact are above all phenomena, i.e., something
exist" (CHISHOLM, 1957, p.169). that appears to the mind, but without
The psychological thesis is related being intentional, i.e., without consti-
to this idea of intentional inexistence tuting the relation to an object. Bren-
as well, since the necessary relation tano’s examples10 clearly show that he
to an object that may not exist de- is referring to phenomena and not to
fines the character of mental pheno- material things. But we should leave
mena. Contrary to this, and according this issue aside in order to follow our
to Chisholm’s interpretation, physical argumentative thread.
phenomena do imply the existence of When Chisholm addresses the psy-
the object. After the translation into chological thesis of intentionality he
the intentional language, we have the begins by acknowledging that inten-
opposition between ’intentional sen- tionality is indeed a psychological or
tences’ (i.e., psychological) and ’non- mental concept related to mental phe-
intentional sentences’ (i.e., physical) nomena. Despite this characterization
that do imply an object. We might as mental or psychological, one can see
see this characterization by means of how the logico-linguistic commitment
a classical example: ’John is thinking is already at stake when he stresses the
of a horse’ is an intentional statement difference between mental and physi-
which depicts a mental phenomenon, cal phenomena: " Some [Chisholm does
since it contains an object in itself (psy- not specify whom he is referring here
chological thesis) and this object may to] now believe that the [psychological]

10 For Brentano, ‘physical phenomena’ are sensations (Empfindungen): colors, sounds, heat and cold, etc. (cf. BRENTANO, 1874,
p.61).

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 119-138 125
ISSN: 2317-9570
LUIS NIEL

thesis can be defended by reference to sentations or to other kinds of mental


the language we use in describing psy- experiences, but simply to sentences; in
chological phenomena" (CHISHOLM, Brentano’s terms, judgements. In this
1967a, p.203). Independently of what context, he proposes a criterion for for-
he says next, this quotation indicates mulating (or even rather formalizing)
the direction taken by Chisholm’s pro- intentional statements, such as ’John
ject, namely to describe psychological believes that there are men on Mars’.
phenomena by means of an analysis First, he eliminates the ’that’ that intro-
of the intentional language. In this duces the relative clause. Second, he
context, the reference to certain philo- puts this relative clause into parenthe-
sophers such as Rudolf Carnap, whose ses. Third, he formalizes the statement
work actually does not deal at all with as follows: M is the intentional sentence
the concept of intentionality (with-a-t), or the ’intentional prefix’ (’John beli-
is perhaps not fortuitous. eves’) and (p) the intentional content
As we shall see, there is more than (’there are men on Mars’) referred by
one problem with this conception and the relative clause (1967a, p.203):
this peculiar translation of Brentano’s
phenomena into Chisholm’s intentional
M(p)
language. But let us start by raising
(and answering) the following questi-
ons: How does this logic of intentional M defines the intentionality of the
linguistic statements work? What defi- whole sentence: since M is intentio-
nes intentionality as such? nal, the relative clause is logically con-
tingent and the existence of the object
referred by the clause is therefore not
necessarily implied by the intentional
2. The formulation of intentional sta- sentence. Thus, verbs such as ’beli-
tements eving’, ’desiring’ or ’questioning’ im-
ply intentional (possible non-existent)
For Chisholm, it is essential to address objects, because the semantic weight
the " logical characteristics peculiar to relies on M and not on (p). In other
intentional statements" (1967a, p.203). words, the existence of that which is re-
That is to say, he not only asserts that ferred to by (p) is irrelevant, what mat-
intentionality has indeed a logical and ters is the fact that John believes, de-
grammatical character (and with this he sires, etc. According to Chisholm, the
is moving far away from Brentano), but- psychological (intentional) can be dis-
as he explicitly asserts (1967a, p.203)- tinguished from the non-psychological
he also circumscribes intentionality to (non-intentional) by means of the in-
intentional statements, i.e., not to pre- tentional sentences or ’prefixes’, and

126 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 119-138
ISSN: 2317-9570
INTENTIONALITY AND THE LOGICO-LINGUISTIC COMMITMENT: A CRITIQUE OF RODERICK CHISHOLM

the intentional verbs define the inten- tentionally related’ to something which
tionality of the sentence. Now we shall does not exist" (CHISHOLM, 1957,
address some defining criteria for ’in- p.170).13 The second criteria defines
tentionality’ presented by Chisholm. that a sentence is intentional if neither
the sentence nor its contradictory im-
ply the truth or falseness of the rela-
tive clause; ’John believes that dragons
3. Defining criteria for intentionality
exist’ is not dependent on the truth-
In his landmark book from 1957, Per- value of the subordinate sentence, since
ceiving,11 Chisholm tries to find some John might believe that dragons exist,
criteria to differentiate intentional from even when it is false that dragons exist.
non-intentional sentences. We can sum- The third criterion defines a sentence
marize the criteria as follows: (1) fai- as intentional, if the truth-value of the
lure of existential generalization, i.e., the relative clause changes when the name
non-existential implication or existence (or description) referred by the relative
independence; (2) truth-value inde- clause is substituted by another name.
pendence; (3) failure of the substituiti- I shall concentrate on the two first cri-
vity of correferential terms, i.e., indi- teria and come back later to the third
rect reference or opacity of reference one.
(CHISHOLM, 1957, p.170-171).12 I As said in the Introduction, for the
shall formulate the criteria as follows: sake of our argumentative strategy,
the first one defines a sentence as in- I shall not focus on the analysis of
tentional if the content referred to by Chisholm’s explicit presentations of
the relative clause does not necessarily these criteria, but rather on their ’hid-
imply existence; e.g. ’John believes that den’ implications. In that sense, one
dragons exist’. Chisholm argues that must be careful even with the positi-
this is the explanation of the Brenta- ons he criticized, since his critical re-
nian idea of ’intentional inexistence’ of marks conceal much of his own convic-
the intentional object. The sentence is tions. Therefore, I concentrate on the
intentional independently of the exis- problems they imply. As we shall see,
tence of dragons. Thus, as Chisholm in what follows the first and the second
points out, intentionality is a ’peculiar criteria, namely, the failure of existen-
sort of relation’ since " one can be ’in- tial generalization and the failure of

11 This book on perception was indeed very influential in the analytic world, mainly for those interested in the concept of intentio-
nality. We cannot address here all the topics presented in this book and will therefore only focus on Chapter 11.
12 These criteria had already been presented by Chisholm in a former article (cf. Chisholm 1956, 125-129).
13 In a footnote to this passage, he correctly affirms that “the point of talking about ‘intentionality’ is not that there is a peculiar
type of ‘inexistent’ object; it is rather that there is a type of psychological phenomenon which is unlike anything purely physical”
(Chisholm 1957, 170, note 2; my emphasis).

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 119-138 127
ISSN: 2317-9570
LUIS NIEL

substituitivity salva veritate, coincide nal content referred to by the relative


with the usual criteria for defining the clause may be either true or false and
inten sionality (with-an-s) of senten- this does not change anything about the
ces, or rather for defining intensional believe-sentence. On the other hand,
contexts, and this conceals several pro- ’John is riding a horse’ is not intentio-
blems. nal, because it implies the existence of
the object (or state-of-affairs), and this
is either true or false.
But our question here will be not why
4. The convergence of intentionality Chisholm later considers these crite-
and intensionality ria to be unsatisfactory, but rather why
he takes these criteria for intentionality
Even though later on Chisholm con- into account at all. This might be speci-
siders the failure of existential genera- fied by two further questions: how are
lization (1967a, p.203) to be an unsa- these criteria related to the Brentanian
tisfactory criterion for intentionality, it conception of intentionality? Where
is important to understand why he ta- does all this come from?
kes this criterion into account at all. In The first question cannot be answe-
other words, our question will be direc- red directly from Brentano’s texts, since
ted towards that which remains concea- Brentano does not address these crite-
led in his theoretical background. This ria at all. The only possible connec-
criterion refers to the idea that certain tion is with a semantic interpretation
sentences fail to the proof of existen- of the idea of intentional inexistence.
tial generalization of its relative clause, The reasoning shall be developed as
i.e., if the object referred to in the re- follows: Brentano (at least before the
lative clause does not imply its exis- so called ’reistic turn’ of his work) po-
tence. As in the example mentioned sits the idea that the intentional object
above, the sentence ’John is thinking of mental phenomena is inexistent, and
about a horse’ is intentional, because this leads him to many conceptual pro-
it does not imply the existence of the blems. According to Chisholm’s the-
horse. Something similar happens to ory, the existence-independency (i.e.,
the second criterion: a sentence is in- the failure of the existential generali-
tentional, if the attribution of a truth zation) of the object meant by intenti-
value to its relative clause (i.e., its in- onal verbs such as ’thinking’ (it might
tentional content) fails. The sentence also be ’believing’, ’desiring’, etc.) of-
’John believes that unicorns are horses’ fers a perfect solution to the problem
is intentional, because the truth-value of inexistence. The question we shall
of the relative clause is not relevant raise again in this context is whether
to the believe-sentence. The intentio-

128 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 119-138
ISSN: 2317-9570
INTENTIONALITY AND THE LOGICO-LINGUISTIC COMMITMENT: A CRITIQUE OF RODERICK CHISHOLM

this has anything to do with Brentano’s theory of reference. Thus, his interests
position. Probably not, but, as already were neither in descriptive psychology
said, it is not the purpose of the present nor in mental phenomena. This leads
article to dig into a historical compa- us to the second question: considering
rison between Brentano and Chisholm. the fact that intentionality (with-a-t) is
In that sense, we might just say that a mental or psychological concept and
Chisholm finds a problem and presents intensionality (with-an-s) is a seman-
a solution to it, which is not contained tic one, are there any reasons to believe
within Brentano’s work. that both concepts are equivalent in any
The second question raised above sense at all?14 It is indeed very hard to
(about where all this comes from) al- find any kind of connection that does
lows a more encompassing understan- not imply a series of ad hoc artificial ar-
ding of the background of the problem. guments.
The very idea of ’failure of existen- The difference between intentionality
tial generalization’ is one of the crite- and intens ionality was first drawn by
ria usually used to define intensional James Cornman in 1962 (1962, p.47-
(with-an-s) contexts. This leads us back 49), who claims that ’the class of inten-
to the Carnapian distinction between tional sentences and the class of inten-
intensionality and extensionality. Two sional sentences are not co-extensive’
further questions shall be raised in this (1962, p.49). Yet, ever since then, the
context: Did Carnap mean intentiona- (unaware?) overlap of these concepts
lity (with-a-t) when he spoke about in- has been a common place in analytic
tensionality (with-an-s) or about inten- philosophy.15 Why is this conclusion
sional contexts? Are intentionality and so important? Because this shows, as
intens ionality somehow related? we have seen, that there is an ungroun-
The first question is more historical ded superposition of different concepts
and the answer is probably no: Car- from different traditions (i.e., a psy-
nap was interested in redefining certain chological one that comes from Bren-
Fregean concepts (those of ’sense’ and tano, and a logico-semantic one that
’reference’) by means of his concepts of stems from Frege, Russell and Car-
’intension’ and ’extension’ in the frame nap). Leaving aside all possible histo-
of a more complex semantic and modal rical considerations, it shall be pointed

14 Although the distinction between ‘intentionality-with-a-t’ and ‘intensionality-with-an-s’ had already been addressed by Corn-
man in the 1960s (CORNMAN, 1962), it was, perhaps, John Searle who made this distinction popular in his famous book on intenti-
onality. Despite his warnings regarding a big conceptual confusion between these different concepts, we shall focus on his diagnosis,
since for Searle it is “[o]ne of the most pervasive confusions in contemporary [we shall add: analytic] philosophy” (SEARLE, 1983,
p.24).
15 This can be seen in many important articles and books: see, for instance Kenny (1963, p.38; p.194), and Urmson / Cohen (1968).
And more recently: “Since Chisholm’s (1957) seminal analysis of these notions, intensionality (with an s) has been standardly taken
as the criterion for intentionality (with a t)” (KRIEGEL, 2011, p.125).

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 119-138 129
ISSN: 2317-9570
LUIS NIEL

out that intentionality and intensiona- 5. The problem of perceiving and


lity not only have different origins but other cognitive activities
they also have different conceptual me-
anings: 1) intentionality is opposed to According to the first and second crite-
physicalism (behaviourism), and both ria presented above, sentences such as
concepts refer to two different appro- ’John sees (or perceives) that the horse
aches to mental life; 2) intensionality is white’ are not intentional: cognitive
is opposed to the concept of extensi- verbs such as ’perceiving’, ’seeing’ or
onality, and extensionality and inten- ’knowing’ necessarily imply both the
sionality are semantic concepts which existence of their objects and a truth
imply different semantic contexts, one value. We can see this in the light of an
related to the reference, the other re- example: ’John knows that Ringo Starr
lated to the meaning. Although Corn- was the drummer of The Beatles’ is not
man addresses the difference between intentional according to the first cri-
intentionality and intensionality, he did terion, since the sentence implies the
not present the real significance of this existence of the object meant by the
difference, namely that they belong to cognitive verb. The same happens with
two quite different philosophical tradi- the second criterion: the cognitive verb
tions and they respond to quite diffe- introduces a truth-value relation of the
rent kinds of theoretical problems and relative clause that may be evaluated as
fields: so, in Chisholm’s works-without either true or false. This is indeed an
explicitly saying it-converged two dif- important issue we shall submit to exa-
ferent concepts (one psychological and mination, since it is not at all clear why
one semantic) into a single theory of in- cognitive activities such as ’perception’
tentionality based on the analysis of the should be understood as intentional,
intentional languages.16 according to Chisholm’s own account.
But leaving these problems aside, The problem is that, following Bren-
we might still raise in this context two tano, for whom a (direct) perception is
further critical questions: if we take the an intentional experience through and
first and the second criteria for granted, through, Chisholm did actually consi-
what happens with cognitive acts? Are der perception as intentional. Conse-
cognitive verbs (such as ’perceiving’, quently, the refusal of intentionality to
’knowing’, etc.) also intentional? cognitive sentences would fail to one

16 It might be said that this synthesis between psychology and semantics is a genial step towards an explanation of central men-
tal phenomena. For Maurita Harney, Chisholm’s linguistic reformulation allows to avoid two twin evils: (a) the introduction of a
Meinongian ontology, and (b) the postulation of intra-mental entities (HARNEY, 1984, p.30). In a similar manner, Mohanty conveys
that Chisholm’s thesis ‘brings out more clearly the ontological neutrality of the concept of intentionality’ (MOHANTY 1972, p.35).
Without any doubt, nobody can deny Chisholm’s originality. The question is rather whether he was right or not. I hope I can show
throughout this paper that he was not.

130 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 119-138
ISSN: 2317-9570
INTENTIONALITY AND THE LOGICO-LINGUISTIC COMMITMENT: A CRITIQUE OF RODERICK CHISHOLM

basic trait of the very idea of intentio- According to Chisholm, the third cri-
nality, namely the intentionality of per- terion is the defining reason for cogni-
ception. tive activities in order to be considered
If we go back to the original source intentional. Following our argumen-
of Chisholm’s interpretation, namely to tative strategy, I shall not address the
Perceiving CHISHOLM, 1957), we find plausibility of his argument, but rather
the explicit assertion of the intentio- the implications this criterion has. The
nality of perception. His strategy for main problem of this criterion is its ar-
asserting the intentionality of cognitive tificiality: there are no grounds upon
activities relies on the third criterion which we should consider this as a cri-
outlined above (cf. supra, § 3). The terion for intentionality, other than the
third criterion asserts the following: a decision to make it a criterion for in-
sentence is intentional if the name (or tentionality. So the question ’why’ is
description) contained in the relative just answered by a ’because it’s so’. Let
clause is replaced by an extensionally us see this in the light of our example:
equivalent name (or description) and ’Ringo Starr’ might be replaced with
the truth-value of the sentence chan- ’Richard Starkey’ and this changes the
ges. Chisholm relates this third crite- true value of the sentence, since John
rion to Frege’s concept of indirect refe- might not know that Ringo Starr and
rence.17 In that sense, ’John knows that Richard Starkey are one and the same
Ringo Starr was the drummer of The person. This criterion merely shows
Beatles’ has not the same truth-vale as that a sentence is intentional if: (a) it
the sentence ’John knows that Richard is formed by a cognitive verb (such as
Starkey was the drummer of The Bea- ’knowing’), that (b) refers to a certain
tles’. The point is that John might know propositional object18 by means of the
that the former sentence is true, but not relative clause ’that’, and when (c) the
the latter. By means of this peculiar name of the object referred to by the
criterion, Chisholm defines the intenti- propositional clause is substituted by
onality of cognitive verbs such as ’per- an extensionally equivalent name, (d)
ceiving’, ’knowing’, etc. But, why this this changes the truth value of the sen-
criterion is accepted as a criterion for tence. This might be correct, but what
intentionality is not clear at all. does this have to do with intentionality,

17 Indeed, Chisholm explicitly points out this connection between intentionality and Frege’s concept of ‘indirect reference’
(CHISHOLM, 1956, p.128). Maurita Harney acknowledges the fact that this third criterion stems from Frege and not from Bren-
tano (HARNEY, 1984, p.28). Moreover, she even asserts that “Frege is clearly a significant figure in the development of a linguistic
version of Brentano’s thesis of intentionality” (HARNEY, 1984, p.29). In this context, it shall be also raised the question in which
sense it might be said that any of the criteria actually derive from Brentano.
18 As we will see, it must refer to a propositional object in order to apply the third criterion, because otherwise the relative sentence
cannot be considered either true or false, since terms are neither true nor false.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 119-138 131
ISSN: 2317-9570
LUIS NIEL

i.e., with the aboutness of the mind? he either accepts (in a Brentanian vein)
The straightforwardness of the ques- that cognitive activities are intentional
tion shows the artificiality of the cri- by means of using an artificial argu-
terion. The criterion should hence be ment ad hoc (i.e., the third criterion),
abandoned, since it is not related to the or he simply rejects the possibility of
very idea of intentionality. In this re- accounting cognitive activities as inten-
gard, Cornman arrives at a similar con- tional.
clusion, namely, that " cognitive verbs As I have been arguing in this paper,
such as ’know’, ’perceive’, and ’remem- the main problem is the very idea of the
ber’ express mental activities (. . . ) [but] necessity of a translation of intentional
are not intentional" (CORNMAN, 1962, (i.e., mental or psychological) pheno-
p.51). So, his conclusion coincides with mena into an intentional language with
our previously anticipated idea that the complex logico-grammatical struc-
cognitive verbs cannot be considered, ture of M(p), namely, a sentence with
of course, according to Chisholm’s own many requirements: certain intentio-
criteria, intentional at all. nal verbs, relative clauses, propositio-
It seems that Chisholm, who inten- nal objects, etc. My point is not rela-
ded to be an actual follower of Bren- ted to the plausibility of these criteria
tano’s philosophy, finds himself in the considered in themselves, but rather
face of a dilemma. On the one hand, related to the very idea of the plausi-
he presents his philosophy by means of bility (and in general the possibility) of
a series of rigorous linguistic-semantic a translation into the so called ’intenti-
criteria that attempt to define the in- onal language’.
tentional field. This leads him to the The necessity of a translation leads
complicated position of justifying how, us to one further fundamental pro-
according to these criteria, cognitive blem we shall address, which lies at
activities can be considered intentio- the very heart of this account. It is
nal. Moreover, he formulates the third plain that Chisholm attempts to trans-
criterion, which brings no solution to late cognitive acts (such as ’perceiving’,
the problems, and this conclusion lea- ’knowing’, etc.) into intentional senten-
ves cognitive verbs out of the field of ces, because he wants to deal logico-
intentionality. On the other hand, as linguistically with cognitive acts in or-
the Brentanian he still believes he is, der to analyze them. This commitment
he is convinced that certain phenomena to a logico-linguistic translation leads
such as ’perception’ must be considered Chisholm to consider both the intenti-
intentional, because they make up the onal sentences and their relative clau-
very basis of intentional life (according ses as propositional objects, because if
to Brentano). The dilemma is such that they were not, it would not be possi-

132 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 119-138
ISSN: 2317-9570
INTENTIONALITY AND THE LOGICO-LINGUISTIC COMMITMENT: A CRITIQUE OF RODERICK CHISHOLM

ble to speak about their truth-value at sis of the intentional inexistence of the
all. Otherwise put, according to this mental. In spite of his attempt to pre-
peculiar translation, intentionality is sent Brentano’s thesis " more exactly"
reduced to a proposition or even a sen- (CHISHOLM, 1957, p.169), he starts by
tence (i.e. the attitude itself, which has defining the Brentanian idea of ’inten-
a linguistic structure), which is rela- tional inexistence’ by using the Rus-
ted to other propositions (the relative sellian concept of ’psychological at-
clauses): thus, not only the intentional titudes’, i.e., the attitudes which im-
object (or content) becomes a linguis- ply verbs such as ’desiring’, ’hoping’,
tic proposition, but also intentionality ’whishing’, ’believing’, etc., as we shall
itself, as it is presented as an ’inten- see in what follows.20 In his analy-
tional sentence’ in an approach that sis of Brentano’s conception of the in-
clearly reduces mental life to logico- tentional inexistence, Chisholm conti-
linguistic concepts.19 As we shall see nuously refers to the concept of ’atti-
in what follows, the reasons and argu- tude’ as if it were a Brentanian concept
ments for supporting this contention (CHISHOLM, 1967b, p. 4, 7, 11, 15, 20,
are not only problematic, but they also 22). To assert not only that the intentio-
show the logico-linguistic commitment nal content (or object) is propositional,
in its most pure form. but also that intentionality itself is a
proposition, introduces, as we shall see,
an important limitation to the scope of
the very concept of intentionality. But,
6. Is intentionality a propositional at- what is then a ’propositional attitude’?
titude? Where does this concept come from?
Bertrand Russell was, perhaps, the
When in Perceiving (and in many other first to introduce this concept in an ex-
papers) Chisholm addresses some con- plicit and systematic manner. In 1918
cepts related to the meaning of percep- he states the following:
tion, such as ’assuming’ or ’accepting’,
he refers explicitly to Brentano’s the-

19 Even Jaegwon Kim, a well-known follower of Chisholm’s philosophy, acknowledges this kind of reading: “Chisholm added the
crucial further claim that the notion of an ‘intentional sentence’ can be defined in terms of logico-linguistic concepts alone, without
recourse to any mentalistic or intentional, terms (. . . ) the notion of mentality is at bottom a logico-linguistic one (. . . ) Chisholm gave
it [i.e. intentionality] a form that was very much in tune with the philosophical temper of the times—a form that positively abetted
the application of the newly available philosophical tools of logic and linguistic analysis” (KIM 1997, p.361-362). Furthermore, Kim
explicitly accepts that Chisholm’s earlier theory of intentionality—which, incidentally, was by far the most overwhelming influen-
cing account of Chisholm’s philosophy in analytic philosophy—was based on a “purely logico-linguistic criterion of intentionality”,
which might perfectly have been taken as a successful attempt of a naturalistic “reduction of intentionality to logic and grammar”, by
concluding that “the attempt to find a purely logico-linguistic criterion of intentionality is essentially a reductionist project” (KIM,
1997, p.365-366).
20 In his Intellectual Autobiography, Chisholm explicitly acknowledges the fact that he started reading Brentano (and Meinong)
through Bertrand Russell’s The Analysis of Mind (CHISHOLM, 1997,p. 8, 13;) (SANFORD, 1997, p.201).

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 119-138 133
ISSN: 2317-9570
LUIS NIEL

What sort of names shall we What is then an ’intentional atti-


give to verbs like ’believe’ and tude’? It is (a) a sentence, (b) based on
’whish’ and so forth? I should certain ’intentional verbs’ such as ’thin-
be inclined to call them ’propo- king’, ’believing’, ’desiring’, etc., and (c)
sitional verbs’. This is merely has an intentional reference to a possi-
a suggested name for conve- ble non-existent object, which is also a
nience, because they are verbs propositional object, expressed by the
which have the form of rela- clause ’that’. For example, an intentio-
ting and object to a proposition. nal attitude might take the form: ’John
(. . . ) Of course, you might call believes that the cat is on the roof’.
them ’attitudes’, but I should (a) Intentionality, according to the
not like that because it is a psy- former characterization, implies a sen-
chological term, and although tence (or in Brentano’s terms a judge-
all the instances in our experi- ment), i.e., a sort of proposition ba-
ence are psychological, there is sed on certain special verbs (intentio-
no reason to suppose that all nal verbs). This characterization fails to
the verbs I am talking of are recognize other intentional modes that
psychological. (RUSSEL, 1918, might be considered pre-linguistic-or,
p.227, emphasis in original) eventually, if there were such pre-
linguistic modes, the logic of the ’inten-
tional attitudes’ proposed by Chisholm
As we may see, the reference is to would demand that they should be
certain verbs which are propositional translated into intentional judgements.
by virtue of their very own structure, (b) This judgement only applies for cer-
because they relate objects to propo- tain special verbs called ’intentional’
sitions. The verbs chosen by Russell such as ’believing’ or ’desiring’. The
are those usually considered as distinc- question is here: why only these verbs?
tive characters of intentional sentences, Because they are the ones that refer to
such as ’believe’ and ’whish’ (i.e., non- (c) relative clauses that do not imply
cognitive verbs). Faithfull to his logical- existence. In Chisholm’s words, they
analytical interest, Russell decides to refer to intentional objects or to ’ine-
avoid the term ’attitude’ due to the psy- xistent objects’. These intentional ob-
chological origin and connotation of the jects are themselves propositions, refer-
concept. If one considers Russell’s early red to by the subordinate clause. They
project, it is clear why he prefer not can refer to actual or real states of af-
to talk about psychology in this con- fairs (e.g. ’John believes that there are
text: he is interested in the analysis of elephants in Africa’), to possible ob-
thought, expressed by logico-linguistic jects (’John believes that there is life
structures.

134 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 119-138
ISSN: 2317-9570
INTENTIONALITY AND THE LOGICO-LINGUISTIC COMMITMENT: A CRITIQUE OF RODERICK CHISHOLM

in other planets’) and even to impos- Chisholm, from physical phenomena.


sible objects (’John believes that uni- Second, ’believing’ is a verb that by
corns inhabit our planet’). As we have its very nature is propositional, i.e.,
seen above, Chisholm’s interpretation by means of its relational character it
of Brentano’s concept of ’intentional introduces a relation with a proposi-
inexistence’ amounts to the idea that tional content.22 Third, and based on
existence is irrelevant for the content what has been said, intentionality, un-
referred to by intentional verbs. derstood through this propositional-
But the important question remains: attitude-structure logic and based on
In which sense can we speak of intenti- verbs such as ’believe’, makes possible
onality as a propositional attitude (or as a logico-linguistic analysis, by means
an intentional attitude)? As we already of which we exclude all the potential
pointed out, there are two underlying problems introduced by psychological
convictions at the background of this analyses (such as those present in Bren-
question (and, in general, of this ac- tano’s works). It might be said that
count): the idea that intentionality is a this last point is the motivational back-
linguistic attitude expressed by means ground for the transformation of the
of an intentional sentence, and the idea mental concept of intentionality into a
that the content or the object referred to semantic sentence.
by this attitude is also a propositional In short, Chisholm’s model for inten-
content. I shall show that both theses tionality is that of a propositional at-
are inaccurate for describing a pheno- titude that can be exemplified by the
menon such as intentionality. sentence: ’John believes that there are
Why is intentionality understood in elephants in Africa’, or in the form ad-
terms of ’propositional verbs’ or of dressed above M(p). If we compare
’propositional attitudes’? We might this scheme with Brentano’s definition,
find a possible answer in nuce in the not only we do realize that this is al-
passages of Bertrand Russell quoted most unrelated to his insights, but also
above. The reasoning (with its back- and foremost, we can clearly see that
ground’s supposition) is more or less Chisholm has taken a completely diffe-
the following. First, ’believing’ is the rent path than the one chosen by Bren-
’most mental’ thing we do, the ’most tano and phenomenology. For Bren-
remote from matter’21 or, according to tano, the most basic and elementary

21 As a matter of fact, for Russell ‘believing’ is “the most ‘mental’ thing we do, the thing most remote from what is done by mere
matter” 1921, p.139). Based on this statement, we might trace a parallel that would lead us to the opposition between mental
phenomena (believe) and physical phenomena (matter), which is precisely the direction taken by Chisholm, as seen above.
22 That at the bottom of this conception underlies a Carnapian interpretation of belief sentences is something I want to suggest
(CARNAP, 1947, § 13), though I cannot attempt an account of this immense topic here.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 119-138 135
ISSN: 2317-9570
LUIS NIEL

form of intentionality is that of a pre- truth behind this position, two things
sentation (Vorstellung), which underlies shall be taken into account. First, we
every form of judgement (Urtheil). Con- will have to explicitly admit the logico-
versely, for Chisholm, intentionality ba- linguistic commitment and its implica-
sically amounts to the propositional at- tions. Second, as I have tried to show,
titude with its judgemental structure we must be aware that this commitment
and propositional object. Besides, we implies that sometimes the medicine
might perfectly think (along with Bren- is worse than the disease. Otherwise
tano’s thought, but also independently said, sometimes it is too high a price
of his philosophy) that not every inten- to pay if, due to this commitment, we
tional object is propositional,23 and that lose touch with the very phenomena we
there are indeed many intentional atti- are trying to describe. In that sense,
tudes that do not involve any proposi- other possible answers to the previ-
tions (judgements) at all. Why should ous questions take into consideration,
my first-person experience be conside- along with Brentano and the phenome-
red ’propositional’? Or, in general, is nological tradition, that there are ba-
it possible to authentically depict my sic, pre-linguistic forms of intentiona-
first-person experience through these lity, such as the mere presentation of
complex propositional structures? something (intentionally) given, which
We must be careful with these ques- may be presented in a scheme in which
tions, since there are many possible logic and language are subordinated to
answers. Chisholm (and a large part the phenomena and not the other way
of the analytic tradition) assumes the around.
methodological (and even metaphysi-
cal) decision of committing themsel-
ves to a certain philosophical perspec-
tive that reduces reality to that which Final remarks
is analyzable in terms of a logical lan-
After a thorough reading of some of
guage. Of course, one might do that,
Chisholm’s main contributions on the
or, moreover, one might say that it is
issue of intentionality, it is undeniable
compulsory to do that, since we cannot
that he was more interested in presen-
address mental phenomena without a
ting his own philosophy than in depic-
proper account of its logico-linguistic
ting a faithful interpretation of Bren-
structures. Even when there is some
tano’s philosophy. In that sense, the

23 Indeed, it is not self-evident that the object referred by intentionality is (or must be) propositional. More recently, voices have
been raised within the analytic tradition against this tendency called ‘propositionalism’ (MONTAGUE, 2007); (CRANE, 2013, Chap.
5.2). The arguments presented by both Montague and Crane are strong and seem to be conclusive. In general, Time Crane presents
a conception of intentionality that seems to be completely removed from this linguistic burden.

136 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 119-138
ISSN: 2317-9570
INTENTIONALITY AND THE LOGICO-LINGUISTIC COMMITMENT: A CRITIQUE OF RODERICK CHISHOLM

main problem is not that of an accurate an extremely complex account of sen-


historical interpretation.24 tences based on the logic of propositio-
I hope I have successfully showed nal attitudes. This kind of procedures
that Chisholm’s account of intentio- not only takes us away from Brentano’s
nality introduced several criteria that precise psychological descriptions, but
blur the most authentic and original what is far more important, it takes us
meaning of this fundamental concept, away from the very reality we attempt
and inaugurated a tradition of inter- to describe, namely the aboutness of the
pretation which is based on the logico- mind. The case of Chisholm is perhaps
linguistic commitment. As said in the only an example of how the (sometimes
introduction, one of my main concerns ’unaware’) radicalization of a certain
is related to the problem that this com- philosophy of language-expressed here
mitment exercised an enormous influ- by the logico-linguistic commitment-
ence upon many analytic interpretati- might result into philosophical artifici-
ons of the concept of intentionality, as a ality. But this idea should not be mi-
general criterion for every possible in- sinterpreted: I do not want to deny
tentional analysis. Is this a problem? It the importance of a meticulous and
is, mainly when one evaluates the con- self-conscious philosophy of language
ceptual implications of such a genera- that might be (and indeed historically
lized view: for many analytic accounts, has been) philosophically very produc-
intentionality amounts to propositional tive.26 The problem arises when lan-
attitude, propositional verbs, intensio- guage stops being the unavoidable tool
nality, etc.25 or the fundamental medium for doing
From the bare descriptive analysis philosophy and reaching the ’things
of an immediate experience in a first- themselves’, and starts being an obsta-
person perspective, which is for ins- cle in order to get to the most constitu-
tance the pre-linguistic presentation of tive phenomena of our experience.
an object to the mind, we jump into

24 According to Marras, the main problems around the traditional (Brentanian) conception of intentionality “have been neglected
by contemporary analytic philosophers” (MARRAS, 1972, p.4), and the focus have been rather on “the logical features of the language
we use in talking about things of that kind” (5).
25 Of course, as said in the Introduction, I speak in general about a certain dominating tendency within analytic philosophy th-
roughout the last decades. There has been notable exceptions to this, such as, for instance, the case of John Searle that, despite
certain limitations that we cannot address here, presents a theory of intentionality that moves away of the logic implicit by the
logico-linguistic commitment. In more recent years, we shall specially mention the remarkable work of Tim Crane, whose excep-
tional account of intentionality and its objects brings analytic philosophy closer to phenomenology as perhaps never seen before.
Unfortunately, these issues exceed the scope of the present article.
26 Chisholm speaks in his first article on intentionality about “a linguistic criterion of intentionality [that] may be useful as an
instrument for revising language” (CHISHOLM, 1952, p.53, n. 4, emphasis added).

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 119-138 137
ISSN: 2317-9570
LUIS NIEL

References
BRENTANO, Franz. Psychology from an Empirical Standpoint, trans. Antos C.Rancurello, D.B.Terrell and Linda L. McA-
lister. London: Routledge, 2009.
BYRNE, Alex. " Intentionality", in S. Sarkar / J. Pfeifer (eds.), The Philosophy of Science. An Encyclopedia. New York /
London: Routledge, 2006.
CARNAP, Rudolf. Meaning and Necessity. A Study in Semantics and Modal Logic. Chicago: University of Chicago Press,
1956.
CHISHOLM, Roderick. Intentionality and the Theory of Signs, in Philosophical Studies 3, 1952.
______.Sentences About Believing in Meeting of the Aristotelian Society. London: 1956.
______.Perceiving. A Philosophical Study. Ithaca / London: Cornell University Press, 1957.
______.Believing and Intentionality: A Reply to Mr. Luce and Mr. Sleigh, in Philosophy and Phenomenological Research,
Vol. 25, No. 2, 1964.
______.On Some Psychological Concepts and the ’Logic’ of Intentionality in H.N. Castaneda (ed.), Intentionality, Minds
and Perception. Detroit: Wayne State University Press, 1966.
______. Intentionality, in P. Edwards (ed.), The Encyclopedia of Philosophy, Vol. 4 New York / London: Collier - MacMil-
lan, 1967a.
______.Brentano on Descriptive Psychology and the Intentional in E.N. Lee / M. Mandelbaum (eds.), Phenomenology
and Existentialism. Baltimore: John Hopkins Press, 1967b.
______.The First Person. An Essay on Reference and Intentionality. Brighton: The Harvester Press, 1981.
______. " My Philosophical Development" in Hahn, L. The Philosophy of Roderick M. Chisholm. Chicago / La Salle: Open
Court, 1997.
CORNMAN, James. Intentionality and Intensionality in Philosophical Quarterly 12, 1962.
CRANE, Tim. The Objects of Thought. Oxford: Oxford University Press, 2013.
DENNET, Daniel. The Intentional Stance. Cambridge / London: MIT Press, 1987.
DRETSKE, Fred. The Intentionality of Cognitive States, reprinted in D. Rosenthal (ed.), The Nature of Mind. New York
/ Oxford: Oxford University Press, 1991.
FODOR, Jerry. Psychosemantics. The Problems of Meaning in the Philosophy of Mind. Cambridge / London: MIT Press,
1987.
HAHN, Lewis E. (ed.). The Philosophy of Roderick M. Chisholm. Chicago / La Salle: Open Court, 1997.
HARNEY, Maurita. Intentionality, Sense and the Mind. Dordrecht: Springer, 1984.
KENNY, Anthony. Action, Emotion and Will. London / Henley: Routledge & Kegan Paul, 1963.
KIM, Jaegwon. Chisholm on Intentionality: De Se, De Re, and De Dicto", in Hahn, L. The Philosophy of Roderick M.
Chisholm. Chicago / La Salle: Open Court, 1997.
______2003. Chisholm’s Legacy on Intentionality in Metaphilosophy, Vol. 34, No. 5, 2003.
KRIEGEL, Uriah 2011, The Sources of Intentionality. (New York: Oxford University Press, 2011).
MARRAS, Ausonio. Intentionality, Mind and Language. Urbana / Chicago / London: University of Illinois Press, 1972.
MOHANTY, Jitendra N. The Concept of Intentionality. St. Louis: Warren H. Green, 1972.
MONTAGUE, Michelle. Against Propositionalism in Nous, 41:3, 2007.
QUINE, Willard O. Word and Object. Cambridge: The MIT Press, 1960.
RUSSELL, Bertrand. The Philosophy of Logical Atomism, reprinted in his Logic and Knowledge. Nottingham: Spokes-
man, 2007.
______.The Analysis of Mind. Mineola: Dover Publications Inc., 2005.
SANFORD, David H. Chisholm on Brentano’s Thesis, in, Hahn L.The Philosophy of Roderick M. Chisholm. Chicago / La
Salle: Open Court, 1997
SEARLE, John 1983, Intentionality. An Essay in the Philosophy of Mind. Cambridge: Cambridge University Press, 1983.
URMSON, James O. COHEN, Jonathan. Criteria of Intensionality in Proceedings of the Aristotelian Society, Supplemen-
tary Vol. 42, 1968.

Received / Recebido: 18/07/2020


Approved / Aprovado: 18/11/2020
Published / Publicado: 30/12/2020

138 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 119-138
ISSN: 2317-9570
DOI: https://doi.org/10.26512/rfmc.v8i2.35863

Harald Høffding and the Historical Roots of the Bohrian Concept


of Symbol
[Harald Høffding e as Raízes Históricas do Conceito Bohriano de Símbolo]

Hernán Pringe*

Abstract: In this paper we analyze the historical roots of the Bohrian concept of symbol.
More precisely, we argue that Bohr takes Kantian elements from Høffding´s philosophy
in order to develop his own concept of symbol. For this purpose, firstly, we focus on
the two different senses that Bohr gives to the concept of symbol. Then, we study how
each of these senses is related to different aspects of Høffding’s philosophy and we show
the connection between the Bohrian and the Kantian concept of symbol by means of
Høffding’s mediation.
Keywords: Analogy. Niels Bohr. Harald Høffding. Symbol.

Resumo: Neste artigo analizamos as raízes históricas do conceito bohriano de símbolo.


Mais precisamente, afirmamos que Bohr toma elementos kantianos da filosofia de
Høffding com a intenção de desenvolver seu próprio conceito de símbolo. Para esse
propósito, primeiramente, nos focamos nos dois sentidos diferentes que Bohr oferece ao
conceito de símbolo. Depois, estudamos como cada um desses sentidos está relacionado
a diferentes aspectos da filosofia de Høffding e mostramos a conexão entre o conceito
bohriano e o kantiano de símbolo por meio da mediação de Høffding.
Palavras-chave: Analogia. Niels Bohr. Harald Høffding. Símbolo.

Introduction Kantian framework that enables him


to cope with the epistemological pro-
The aim of this paper is to investigate blem posed by quantum theory. For
the historical connection between the this purpose, firstly, we will focus on
Bohrian and the Kantian use of the con- the two different senses that Bohr gi-
cept of symbol.1 More precisely, we ves to the concept of symbol (1.) Then,
will try to show how the philosophy we will study how each of these senses
of Harald Høffding, Bohr’s lifelong tea- is related to different aspects of Høff-
cher and friend, provides Bohr with the

* PhD (2006), Universität Dortmund, Germany. Researcher at CONICET, Institute of Philosophy, University of Buenos
Aires (Argentina) and Full Professor at the Institute of Philosophy, Universidad Diego Portales (Santiago, Chile). E-mail:
hernan.pringe@mail.udp.cl. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7005-4838.
1 This paper is a modified version of Pringe (2007), pp. 124 - 139.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 139-156 139
ISSN: 2317-9570
HERNÁN PRINGE

ding’s philosophy (2., 3.) and we will tum theory, taken as descriptions of na-
show the connection between the Boh- ture, are both caricatures.” (HONNER,
rian and the Kantian concept of symbol 1987, p. 158)
by means of Høffding’s mediation. In the second place, there is another
sense in which physics may be con-
sidered symbolic knowledge, but this
1. Bohr on Symbolic Knowledge meaning applies only to quantum and
not to classical physics. In this second
Two senses may be distinguished in sense, symbolic knowledge is the cogni-
which Bohr considers our knowledge tion of what cannot be directly exhibi-
to be symbolic. We will call them the ted in intuition. Since atomic objects
broad and the strict sense.2 In the first and processes cannot simultaneously
place, science in general and physics satisfy the demands of spatio-temporal
in particular provide us with symbolic coordination and the claim of causality,
knowledge because scientific concepts atomic objects and processes cannot be
do not portray or depict reality. Their directly exhibited in intuition and their
function is rather to bring about order knowledge is thus symbolic. Classical
among appearances, connecting them physics is not symbolic knowledge in
in a unified experience as extended and this restricted sense.
interconnected as possible.3 The pur- In this connection, an epistolary ex-
pose of science “is not to disclose the change between Bohr and Christian
real essence of the phenomena but only Møller is particularly relevant. Møller
to track down, so far as it is possible, re- asks Bohr explicitly about the meaning
lations between the manifold aspects of of the word “symbolic”:
experience.”(Bohr, 1934, p.18) This is
particularly the case of physics. Physics
does not study “something a priori gi- “The question at stake is what
ven,” since physics is just a method “for one really understands under
ordering and surveying human experi- the word ´symbolic´ -what
ence.”(BOHR, 1963, p.10) does it mean that, e.g., the re-
Quantum and classical physics are presentation of a free particle
symbolic in this broad sense. In fact, by means of de Broglie waves
Kramers recalls that “Bohr has expres- is only a symbolic representa-
sed himself in discussions somewhat as tion?” (STOLZENBURG, 1977,
follows: classical physics and the quan- p. 255)

2 A third sense of symbol may also be distinguished, according to which Bohr uses this word as a synonym of “emblem.” See
Honner (1987), p. 154-155. But this sense has no relevance for our investigation.
3 “The task of science is both to extend the range of our experience and to reduce it to order” Bohr (1934, p. 1).

140 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 139-156
ISSN: 2317-9570
HARALD HØFFDING AND THE HISTORICAL ROOTS OF THE BOHRIAN CONCEPT OF SYMBOL

But even more important to our dis- p. 245-246).4


cussion is that Møller, after acknowled-
ging that all the signs we use to describe
The quantum-mechanical formalism
nature are symbols, poses the crucial
is symbolic because its concepts can-
question:
not be represented directly in intui-
tion. This is so even in the case of
“What does it mean that some the wave formalism, where the intui-
[signs] are more symbolic than tive elements of the theory may hide
others [?]” (STOLZENBURG, the specific symbolic character that dis-
1977, p. 244) tinguishes it from any classical theory:

In other words, he demands for an “If one considers the wave


explanation of the specific symbolic cha- theory, its ´intuitiveness´ is,
racter of quantum theory, that distin- however, precisely its strength
guishes it from classical physics. and its trap at the same time
In his response, Bohr agrees that both and, by underlying the symbo-
classical and quantum physics make lic character of the approach, I
use of symbols. However, he maintains have tried to point out here the
that there is a difference between both great difference from the clas-
symbolisms and that this difference lies sical theories due to the quan-
in their relation to intuition: tum postulate, [a difference]
that is not always taken suffici-
ently into account” (STOLZEN-
“I have only tried to under-
BURG, 1977, p.245-246).
line the fact that in quantum
theory we extensively use the
same symbols as in classical In the case of matrix mechanics, to
theory, what nevertheless does the contrary, there is no doubt about
not allow us to overlook the big the strict symbolic character of the for-
difference between these theo- malism:
ries and makes necessary great
caution in the application of “Of course, it is not so easy
the forms of intuition to which to run into this danger in the
the classical symbols are lin- matrix formulation, where ru-
ked” (STOLZENBURG, 1977, les that differ so much from

4 Even though the "old quantum theory" should be distinguished from "quantum mechanics," Bohr still uses the expression "quan-
tum theory" after the establishment of quantum mechanics, as it is clear in this passage. For Bohr, wave and matrix mechanics are
just two different formulations of the same (quantum) theory.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 139-156 141
ISSN: 2317-9570
HERNÁN PRINGE

our usual algebra always make sical physics, where, of course, light
evident to us the peculiar es- and electrons are electromagnetic wa-
sence of quantum theory; to use ves and material corpuscles respecti-
the word ´symbolic´ for non- vely.”(BOHR, 1932, p.48) For this re-
commutative algebra is by the ason, “phrases such as ‘the corpuscu-
way a language usage that goes lar nature of light’ or ‘the wave nature
back much further than quan- of electrons’ are ambiguous.”(BOHR,
tum theory and it is incorpo- 1932, p.48) This means that we are the-
rated in the general mathema- reby not claiming that, e.g., electrons
tical terminology” (STOLZEN- are waves, but just that they behave as if
BURG, 1977, p.245-246). they were waves.7 We establish a certain
analogy between the behaviour of ato-
mic objects and classical objects, which
As a matter of fact, Bohr underli-
enables us to obtain an intuitive albeit
nes the peculiar symbolic character of
indirect representation of the atomic en-
quantum physics by putting quantum
tities.
symbols in opposition to classical con-
In order to thoroughly account for
cepts. The latter can be exhibited in
the empirical evidence it is necessary
spatio-temporal pictures, while the for-
to use incompatible classical images to
mer cannot.5
represent atomic objects. For example,
But to this sharp distinction between
electrons behave in some situations as if
classical and quantum physics, a posi-
they were waves, but in some others as
tive determination of their relationship
if they were corpuscles. These incom-
follows: classical concepts symbolize
patible images, each of which is indis-
atomic objects and processes. More
pensable for a complete account of the
concretely, it is by means of the con-
experiments, are called complementary
cepts of isolated particle and free ra-
representations. The extension and li-
diation that we exhibit quantum pro-
mits of their valid use is determined by
cesses indirectly in intuition.6 These
the uncertainty relations set up by Hei-
concepts are classical, since “such con-
senberg. Bohr considers these relations
cepts as corpuscle and wave are only
“as a direct expression of the absolute
well defined within the scope of clas-

5 This is particularly stressed by Chevalley (1994, p. 35 ff).


6 “Hitherto we have only regarded certain general features of the quantum problema. This situation implies, however, that the
main stress has to be laid on the formulation of the laws governing the interaction between the objects which we symbolize by the
abstractions of isolated particles and radiation.” (BOHR, 1934, p. 69).
7 “The extreme fertility of wave pictures in accounting for the behaviour of electrons must, however, not make us forget that there
is no question of a complete analogy with ordinary wave propagation in material media or with non-substantial energy transmission
in electromagnetic waves. Just as in the case of radiation quanta, often called ‘photons,’ we have here to do with symbols helpful in
the formulation of the probability laws governing the occurrence of the elementary processes which cannot be further analysed in
terms of classical physical ideas” (BOHR, 1932, p.48).

142 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 139-156
ISSN: 2317-9570
HARALD HØFFDING AND THE HISTORICAL ROOTS OF THE BOHRIAN CONCEPT OF SYMBOL

limitation of the applicability of visua- relations between co-ordinate


lizable conceptions in the description of and momentum of a particle. In
nature.”(BOHR, 1934, p.114) Their spe- the same manner one may de-
cific task “consists in assuring quantita- rive the limitations of the con-
tively the logical compatibility of appa- cept of a wave by comparison
rently contradictory laws which appear with the concept of a particle.”8
when we use two different experimen-
tal arrangements.”(BOHR, 1937, p.293)
Bohr Briefly, quantum and classical phy-
Heisenberg summarizes the situation sics provide us with symbolic kno-
as follows: wledge because none of them is meant
to copy an absolute reality. Their task
as scientific theories is rather, using a
“[F]or visualization [of atomic Kantian expression, to “spell out appe-
processes] [...] we must con- arances, so that they can be read as ex-
tent ourselves with two incom- perience.”9 But the way in which this
plete analogies –the wave pic- task is carried out by each of them is not
ture and the corpuscular pic- the same. In classical physics, it is pos-
ture. The simultaneous appli- sible to exhibit concepts directly in in-
cability of both pictures is thus tuition in order to gain a single and all-
a natural criterion to determine encompassing image of nature. To the
how far each analogy may be contrary, in quantum physics, such a
“pushed” and forms an obvi- single image cannot be obtained. Com-
ous starting-point for the criti- plementary images should be used so
que of the concepts which have that atomic objects and processes are
entered atomic theories in the indirectly exhibited in intuition. This is
course of their development, the specific symbolic character of quan-
for, obviously, uncritical deduc- tum physics Møller was asking about.
tion of consequences from both In the following, we will see how
will lead to contradictions. In each of the two senses of the Bohrian
this way one obtains the limita- concept of symbol is related to different
tions of the concept of a particle aspects of Høffding’s philosophy and
by considering the concept of a that the connection between the Boh-
wave. As N. Bohr has shown, rian and the Kantian concept of symbol
this is the basis of a very simple can therefore be established by means
derivation of the uncertainty of Høffding’s mediation.

8 See: Heisenberg (1949, p. 11)


9 Prol, AA 4: 312. Kant (2002, p.105 – 106).

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 139-156 143
ISSN: 2317-9570
HERNÁN PRINGE

2. Symbol in the Broad Sense is that between numerical and spatio-


temporal series. At this point, Høffding
In Høffding, the notion of symbol in its follows Maxwell, who asserts:
broad sense bears a close connection to
the notion of analogy.10 According to
“[A]ll the mathematical sci-
Høffding, an analogy is the similarity
ences are founded on relati-
of the relations between objects or parts
ons between physical laws and
of objects that may be very different in
laws of numbers, so that the
other respect.11
aim of exact science is to re-
Following Kant,12 Høffding distin-
duce the problems of nature
guishes between quantitative and qua-
to the determination of quan-
litative analogies. Quantitative analo-
tities by operation with num-
gies are called proportions. The relati-
bers.”(MAXWELL, 1890, p.
ons that take part in a proportion are
156)
not merely similar, but identical. In
this case, analogies are constructive, be-
cause one of the elements of the pro- If an analogy between the numerical
portion can always be found by me- and the spatio-temporal series is esta-
ans of the other. A typical example blished, it is possible through the for-
of this kind of analogy is the relation mer to determine a priori the place of
between two numbers being identical the elements of the latter, although not
to the relation between two other num- their existence.13
bers. (HØFFDING, 1905, p.202) However, such an analogy is in
On the contrary, qualitative analo- turn grounded by the analogy holding
gies enable us to establish a priori only between the reason-consequence and
the relation between the unknown and cause-effect relations. In this regard,
something given, by means of another gHøffding affirms that the greatest me-
known relation. Analogies of this sort rit of Kant’s discussion of the a pri-
do not possess a constructive character, ori principles of the analogies of expe-
because the members that take part in rience is to have rejected the dogma-
the analogy have different origins. The tic identification of reason and cause.
main example of qualitative analogies (HØFFDING, 1905, p.203; 1923, p.72)

10 On the influence of Høffding on Bohr’s thought, see especially Faye (1991) and Favrhold (1992).
11 “Vorläufig kann Analogie als Verhältnissähnlichkeit zwischen zwei Gegenständen definiert werden, eine Ähnlichkeit also, die
sich nicht auf einzelne Eigenschaften oder Teile dieser Gegenstände, sondern auf das gegenseitige Verhältnis zwischen Eigenschaften
oder Teilen gründet.” (Høffding, 1923, p.1). Høffding defines analogy as the similarity and not the identity of relations because he
considers identity in general as a certain degree or type of similarity: (1911, p. 193).
12 A 179-180/B 222.
13 Moreover, this analogy holds in the first place between different sciences, i.e., Mathematics and Physics, and it enables the
applicability of the former to the latter. (HØFFDING, 1905b, p.99ff)

144 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 139-156
ISSN: 2317-9570
HARALD HØFFDING AND THE HISTORICAL ROOTS OF THE BOHRIAN CONCEPT OF SYMBOL

Rather, the reason-consequence and p.204)


the cause-effect relations stand to each
other in a qualitative analogy. The for-
On the other hand, a naive empiri-
mer relation is a logical one between
cism, which may argue that our con-
thoughts, the series of which is a work
cepts resemble in some way the empi-
of our own spontaneity. To the con-
rical data, will also be untenable. Ac-
trary, the latter relation is a temporal
cording to Høffding, it is sufficient for
one between events, the series of which
the validity of thought that the relati-
is not produced by us but must be given
ons between the members of the series
to us. Although, according to Kant, one
of thoughts agree with the relations of
and the same function of synthesis esta-
the appearances. In this connection,
blishes the formal ground-consequence
Høffding adopts the ideas put forward
and the temporal cause-effect relations,
by Hertz in his Principles of Mechanics:16
the necessity of the schematism of the
categories for the formal relation to be
applied to events implies the impossibi- “We form for ourselves images
lity of a direct identification of them.14 or symbols of external objects;
This essential distinction between and the form which we give
both kinds of series has for Høffding them is such that the necessary
important consequences. On the one consequents of the images in
hand, only insofar as the series of empi- thought are always the images
rical data and the formal series are ana- of the necessary consequents in
logous and not identical may we evade nature of the things pictured.
the danger of absolute idealism:15 [...]
The images we here speak of are
“The laws of thought may ena- our conceptions of things. With
ble us to find our way th- the thingsthemselves they are
rough the world of experi- in conformity in one important
ence; but from this we have respect, namely in satisfying
no right to conclude that exis- the above-mentioned require-
tence is estimated or in its full- ment. For our purposes it is not
ness expressed in the laws of necessary that they should be
thought.”(HØFFDING, 1905, in conformity with the things

14 Høffding nevertheless critizes Kant for not seeing that the concept of experience, which is grounded by means of analogies
between formal and real series, is only an ideal that never looses its hypothetical character: (1923, p.76).
15 Hegel and the Neo-Kantians of the Marburg’s school are for Høffding examples of such idealism (HØFFDING, 1923, p.78 – 79).
16 For Høffding’s reading of Hertz, see Høffding (1905b, p.110ff). See also Christiansen (2006).
17 In turn, Hertz’s ideas are intimately connected with Helmholtz’s doctrine of symbols. We may here indicate that, according to
Helmholtz, “our sensations are indeed effects produced in our organs by external causes; and how such an effect expresses itself

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 139-156 145
ISSN: 2317-9570
HERNÁN PRINGE

in any other respect.”(HERTZ, blished. Moreover, as we have seen,


1956, p. 1-2)17 only such an analogy can in fact be es-
tablished, because we do not produce,
through our thought, the series of phe-
Høffding rejects the dogmatic con- nomena in its existence. In this way,
ception of truth, which supposes a gi- Høffding opposes the notion of sym-
ven, absolute essence of things that bolic knowledge, based on an analogy
is to be reproduced by thought. In between thought and phenomena, to
Høffding’s opinion, dogmatism leads to the notion of resembling knowledge,
scepticism, since the latter accepts this based on an identity between the cog-
definition of truth, but affirms that this nition and its object.18
notion remains illusory. To both dog- Thus, Bohr’s use of the concept of
matism and scepticism, Høffding oppo- symbol in the broad sense can already
ses the critical conception of truth, ac- be found in Høffding’s analysis of the
cording to which objective validity con- problem of knowledge, which in turn
sists in the lawful connection of phe- possesses a Kantian origin. By means of
nomena. The aim of thought is only to his notion of symbolic knowledge, Høff-
bring about order among phenomena, ding is defending the Kantian distinc-
and this can be done only if our re- tion between sensibility and unders-
presentations bear an inner connection tanding. Both absolute idealism and
such that the connection of the pheno- naive empiricism maintain the quali-
mena can be expressed and foretold by tative identity of these cognitive facul-
it. ties. Such identification would deny
For this purpose, no resemblance the different origins of the form and
between our representations and the matter of our cognitions, claiming an
phenomena is required. No identity, identity where there is only an analogy.
but only an analogy between thought Neither is our conceptual cognition a
and phenomena, needs to be esta-

naturally depends quite essentially upon the kind of apparatus upon which the effect is produced. Inasmuch as the quality of our
sensation gives us a report of what is peculiar to the external influence by which it is excited, it may count as a symbol of it, but not
as an image. For from an image one requires some kind of alikeness with the object of which it is an image [...] But a sign need not
have any kind of similarity at all with what it is the sign of. The relation between the two of them is restricted to the fact that like
objects exerting an influence under like circumstances evoke like signs, and that therefore unlike signs always correspond to unlike
influences.” (HELMHOLTZ, 1977, p.121 – 122). For an extended discussion see Ferrari (2000). See also D’Agostino (2004).
18 Moreover, analogies and symbols play for Høffding a central role in scientific investigation. In the first place, they enable us
to formulate hypothesis that guide our empirical research in realms where our knowledge is not developed yet. In new fields of
investigation we presuppose that objects bear relations which are similar to the already known. In this way, analogies ground a sci-
entific method: (HØFFDING, 1923, p.81). Secondly, by means of analogies we can unify different areas of knowledge. The particular
scientific disciplines achieve a unity grounded in the similarity of the relations that they establish, even though their objects may be
very different: (HØFFDING, 1923, p. 64ff.). The main influence on Høffding’s ideas about the role of analogy in science comes from
J.C. Maxwell and E. Mach. See Høffding (1923, p. 79). In Erkenntnis und Irrtum Mach assigns a whole chapter to the discussion of
the notion of analogy, which he defines as identity of relations. The power of analogy of both to extend and to unify our knowledge
is there explicitly considered by Mach, who put forward as paradigmatic the use that Maxwell makes of analogies. See Mach (1926).

146 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 139-156
ISSN: 2317-9570
HARALD HØFFDING AND THE HISTORICAL ROOTS OF THE BOHRIAN CONCEPT OF SYMBOL

faint reproduction of its sensible ob- derstanding’ (p. 33) – ‘inter-


ject (as in empiricism), nor is the sen- pret’ (p. 36) – ‘as the spec-
sible object a confused representation trum tell us and the atomic mo-
of an otherwise clear, conceptual cog- del renders understandable’ (p.
nition (as in idealism). Rather, we may 45).
only affirm that the relations between
My question is whether the ex-
our thoughts are identical to the rela-
pression analogy would not be
tions between the sensible objects of
the expression epitomizing the
our thoughts, i.e., in Høffding’s termi-
terms you apply at the crucial
nology, that our knowledge is symbolic.
points. All ‘understanding’ –
save pure logic – depends on
analogy, and science is a stric-
3. Symbol in the Strict Sense tly rational implementation of
analogies between different fi-
In 1922, as he was writing his book on elds of knowledge.”19
the concept of analogy (1923), Høffding
consulted Bohr about this issue:
At this point, Høffding is concerned
with that analogy involved in our kno-
“As I mentioned to you so- wledge when the latter is symbolic in
metime this summer, I should the broad sense. Our “physical and che-
like to ask you about one thing mical data” do not resemble the struc-
in connection with your tre- ture of atoms, as if this structure pos-
atise about ‘The Structure of sessed an essence independent of any
the Atom and the Physical and theory. Therefore, there is no relation
Chemical Properties of the Ele- of identity between them. Rather, sci-
ments.’ entific theories stand in a relation of
I have noticed that in most ca- analogy to reality, because by means
ses you use expressions indica- of our concepts we must only bring
ting a relation of analogy (not of about order in the phenomena, the re-
identity) between the constitu- lations between phenomena so esta-
tion of the atoms and the actu- blished being then identical to those
ally available physical and che- expressed by the theory.
mical data. Examples of such But Bohr has already realized that
expressions are ‘elucidation’ (p. such a view might not be suffici-
1), - ‘explanation or rather un- ent to account for the peculiarities of

19 Høffding to Bohr, 20.09.22, in BCW 10, p. 511.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 139-156 147
ISSN: 2317-9570
HERNÁN PRINGE

quantum physics. In this respect, he sally related objects and processes and,
answers: secondly, the mere possibility of obtai-
ning such representations is questioned
by quantum theory, a characterization
“Here [in the theory of the
of our atomic knowledge as symbolic
atom] we are in the peculiar
in the broad sense would just maintain
situation that we have fought
its negative meaning (in contradistinc-
our way to some information
tion to resembling knowledge), lacking
about the constitution of the
positive content. This would be achi-
atom, which must be conside-
eved only if we took into account the
red just as certain as any of the
limited range of validity of those ana-
facts of natural science. On the
logies which enable the representation
other hand, we meet difficulties
of spatio-temporal images of causally
of such a profound nature that
related objects and processes. But in
we have no idea of the way to
1922 the solution to this problem could
their solution; my personal opi-
not yet be seen. In fact, such a solution
nion is that these difficulties are
is reached only in 1927 by the intro-
of such a kind that they har-
duction of the point of view of comple-
dly allow us to hope, within
mentarity. By this, a positive characte-
the world of atoms, to imple-
rization of atomic knowledge is finally
ment a description in space
established, which is based on the no-
and time of the kind correspon-
tion of symbol in the strict sense. As we
ding to our usual sensory ima-
have seen, the necessity of the conside-
ges. Under these circumstan-
ration of symbolism in the strict sense
ces one must, of course, con-
arises when we must represent entities
tinually bear in mind that one
which do not satisfy the conditions of
is employing analogies and the
the possibility of the objects of experi-
discretion with which the areas
ence. In particular, the assumption of
of application of these analo-
the quantum postulate in quantum the-
gies are defined in every single
ory makes us face such a situation.
case is of decisive importance
Even though Høffding does not dis-
for making progress.”20
tinguish a strict from a broad sense of
Since, firstly, order is brought about symbol, as Bohr does, he does consider
in the phenomena by the representa- all the necessary elements for this dis-
tion of spatio-temporal images of cau- tinction, with the exception, of course,

20 Bohr to Høffding, 22.09.22, in BCW 10, pp. 513 – 514. Already in 1913 Bohr speaks of “the most beautiful analogi [sic] between
the old electrodynamics and the considerations used in my paper.” BCW 2, p. 584. In December of 1922 he turns to this issue in his
Nobel Lecture once again. See BCW 4, p. 482.

148 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 139-156
ISSN: 2317-9570
HARALD HØFFDING AND THE HISTORICAL ROOTS OF THE BOHRIAN CONCEPT OF SYMBOL

of the quantum postulate. “Kant hat an dieser merkwür-


To begin with, in his interpretation of digen Stelle seine ganze Er-
Kant’s theoretical philosophy, Høffding kenntnistheorie im Gesetze der
stresses the role of the law of continuity Kontinuität zusammengefasst.
in the Kantian system. In particular, Hätte er diesen Gesichtspunkt
he draws the attention to the following zu Grunde gelegt statt die logis-
passage of the Critique of Pure Reason che Systematik zu befolgen, de-
(1998): ren Konstruktion ihm zu seiner
Freude gelungen war, so würde
seinen Grundgedanken ihr Re-
“We could easily represent the cht mehr geworden sein.
order of these four propositions
(in mundo non datur hiatus, non [...]
datur saltus, non datur casus, Der zu Grunde liegende Ge-
non datur fatum) in accordance danke ist hier, dass das, was
with the order of the catego- wir im Verständnisse einer Ers-
ries, just like all the principles cheinung suchen, nicht deren
of transcendental origin, and rein äusseres Zusammenstel-
show each its position, but the len mit anderen Erscheinun-
already practiced reader will do gen ist, sondern eine so enge
this for himself or easily dis- und bestimmte Verbindung
cover the clue to it. Howe- derselben, dass diejenige Ers-
ver, they are all united sim- cheinung, welche wir zu vers-
ply in this, that they do not tehen suchen, als Fortsetzung
permit anything in the empi- der vorausgehende Erscheinun-
rical synthesis that could vio- gen dastehen und mit diesen
late or infringe the understan- eine kontinuierliche Reihe bil-
ding and the continuous con- den kann. Das Zusamme-
nection of all appearances, i.e., nhangslose und Isolierte ist uns
the unity of its concepts. For it unverständlich.”( HØFFDING,
is in this alone that the unity of 1894, p.190)
experience, in which all percep-
tions must have their place, is
possible.”21 In his History of Modern Philosophy,
Høffding presents the law of continuity
In this connection, Høffding states: as a condition of the possibility of ex-
perience:

21 A229/B282.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 139-156 149
ISSN: 2317-9570
HERNÁN PRINGE

tinuity is not assumed. Since in this si-


tuation the limits of the phenomena to
“The law of continuity (which which the word should be applied are
includes within it both the law not well determined, this application,
of continuity of space and de- i.e., the definition of the word, becomes
gree and the law of the causal ambiguous.24 Bohr faces this problem,
relations of all phenomena) is for example, when defining the energy
valid for all phenomena, be- difference between two stationary sta-
cause it formulates the general tes. In this case, the adiabatic principle
conditions under which we can provides us with the solution:
have real experience (as distin-
guished from imagination) [...]
Only as the condition of expe- “In this connection it may be
rience has the law of continuity pointed out that the principle
(including the causal law) vali- of mechanical transformability
dity.”(1900, p.57)22 of the stationary states allows
us to overcome a fundamental
difficulty which at first sight
But it is precisely the law of conti- would seem to be involved in
nuity of causality that is rejected by the definition of the energy dif-
the quantum postulate. In this regard, ference between two stationary
Bohr states that states which enters in relation
(1) [E’ – E” = hν]. In fact, we
“the definition of every word have assumed that the direct
essentially presupposes the transition between two such
continuity of phenomena and states cannot be described by
becomes ambiguous as soon as ordinary mechanics, while on
this presupposition no longer the other hand we possess no
applies.”23 means of defining an energy
difference between two states if
there exists no possibility for a
According to Bohr, the ambiguity continuous mechanical connec-
here at stake is the impossibility of es- tion between them. It is clear,
tablishing a strict distinction between however, that such a connec-
subject and object when the law of con- tion is just afforded by Ehren-

22 For the specific role of continuity in Høffding’s own philosophy see, for example, Høffding (1911, p. 170ff), and Høffding (1924,
p.196ff).
23 BCW 6, p. 462.
24 “[T]he distinction between subject and object [is] necessary for unambiguous description.”(BOHR, 1958, p. 101).

150 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 139-156
ISSN: 2317-9570
HARALD HØFFDING AND THE HISTORICAL ROOTS OF THE BOHRIAN CONCEPT OF SYMBOL

fest’s principle which allows us a necessary step in the development of


to transform mechanically the science.26 This would be a rationalist
stationary states of a given sys- position.
tem into those of another, be- On the contrary, from an empiricist
cause for the latter system we point of view, one may maintain that
may take one in which the for- the cognitive content of the theory is
ces which act on the particles grounded on the regularities which
are very small and where we constitute its empirical basis. But in
may assume that the values of this case, we should be satisfied if we
the energy in all stationary sta- can deal with these regularities, e.g.,
tes will tend to coincide.”25 by means of protocols of experimental
results, for which the use of images of
quantum objects and processes is not
Under the assumption of the quan- indispensable either.27
tum postulate, we must accept that we Thus, both rationalists and empiri-
cannot obtain causal and space-time cists may agree on the convenience of
images of quantum objects and proces- leaving images aside once the quantum
ses. In this situation, one may main- postulate is assumed. Bohr, however,
tain that the cognition of the law which does not share this view. In opposition
quantum objects and processes observe to the rationalists, Bohr demands an in-
is all that we need to affirm our kno- tuitive interpretation of the formalism,
wledge of the quantum realm. It does but, in contradistinction to the empiri-
not matter that we must give up using cists, he maintains that this interpreta-
intuitive representations, because the tion should be carried out by means of
whole cognitive value of the theory is images. More precisely, classical ima-
contained in its mathematical forma- ges should symbolically give intuitive
lism. Moreover, it may be argued that, content to the concepts of quantum ob-
precisely for that reason, the abandon- jects and processes.28
ment of the images must be considered

25 BCW 3, p. 75. On the limits of this solution and the further improvements carried out by Bohr see Darrigol (1992, p. 134ff).
26 This is, e.g., Cassirer’s view: “The more the conceptual determination progresses, the less it proves possible to fix its results
in simple particular visual images. We have to be satisfied with determination by means of laws and must forego any clarification
through models.” (CASSIRER, 1956, p.144).
27 The operationalism of Pauli may be considered an example of such an empiricist position: “I believe that the energy and momen-
tum values of the stationary states are something much more real than the ‘orbits’. The aim (not yet achieved) must be to deduce these
and all other physically real, observable properties of the stationary states from the (integral) quantum numbers and the quantum
theoretical laws. We must not, however, put the atoms in the shackles of our prejudices (of which in my opinion the assumption of
the existence of electron orbits in the sense of the ordinary kinematics is an example); on the contrary, we must adapt our concepts
to experience.” Pauli to Bohr, 12.12.24, BCW 5, p. 429.
28 The image of an object is only the direct exhibition in space and time of the corresponding concept. It is not necessary to assume
that the image resembles an independently existent object. In fact, neither Høffding nor Bohr makes such an assumption, since, as
we have seen, they both consider our knowledge symbolic in the broad sense.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 139-156 151
ISSN: 2317-9570
HERNÁN PRINGE

The necessity of the use of images these features, because they are thought
in the process of knowledge is a point connected to each other not in an arbi-
which Høffding explicitly emphasizes: trary but in a necessary way. Not any
synthesis of ‘animal,’ ‘mammal,’ ‘qua-
“We cannot think without ima- druped,’ etc., corresponds to our con-
ges. What we call thinking in cept ‘horse.’ Thus, the concept is not
a special and strict sense, [is] simply the consciousness of the set of
the activity by which the rela- a certain number of features but the
tion between different images is consciousness of the unity of a certain
pointed out as clearly and une- synthesis of them.
quivocally as possible. Every In the same sense, Høffding main-
thought, be it as abstract and tains:
sublime as it may be, supposes
images whose reciprocal relati- “The elements of the concept
ons it expresses.” (HØFFDING (e.g., colour, size and form
1905, p.200-201) as elements of the concept of
horse) vary in the different phe-
From a Kantian point of view, Høff- nomena to which it shall corres-
ding’s position is justified. In fact, to pond, and the concept is the-
cognize means, in its most general sense, refore only possible, if the re-
to subsume a particular (that which is lation of the qualities is alike,
cognized) under a universal (the cogni- though every one of them may
tion), i.e., to apply the universal to the be different. The brown co-
particular. For Kant, that corresponds lour has, e.g., the same rela-
to subsuming a sensible manifold un- tion to one horse as the red co-
der the concept of an object. Kant deals lour has to another horse. Hu-
with the issue of this subsumption in man qualities vary from man to
his doctrine of schematism. The pro- man, but there is a certain rela-
blem of schematism is precisely how tion between them and without
a given universal is applied. The uni- this a general concept would be
versal in question is the concept. Let here impossible.”(HØFFDING,
us take the concept ‘horse’ as example. 1905, p.202)
By representing to ourselves a horse we
think of an object that possesses cer- However, the representation of the
tain features (it is an animal, mammal, unity of a certain connection of featu-
quadruped, with a certain colour, size res does not provide us with the repre-
and form, etc.). However, the concept sentation of the particular that posses-
‘horse’ is not the mere juxtaposition of ses such features. The representation

152 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 139-156
ISSN: 2317-9570
HARALD HØFFDING AND THE HISTORICAL ROOTS OF THE BOHRIAN CONCEPT OF SYMBOL

of the concept ‘horse’ is not that of a (concept) and the result (image). The
horse. How can we then link the uni- schema is the representation of the
versal concept with the representation mere act of synthesis separated from
of the particular? To answer this ques- the thought of the unity that guides that
tion the notion of schema is introdu- synthesis and from its result. As long
ced. Kant defines schema as the “re- as the concept is the consciousness of
presentation of a general procedure of the unity of the rule that guides the
the imagination for providing a concept synthesis, the procedure thought in the
with its image.”29 We have just seen schema generates an image of that con-
that the concept is the consciousness of cept as a result.
the unity of a certain synthesis. Then So, to cognize, i.e., to subsume a
the representation of the synthesis in particular under a universal, means
question, as the representation of the for Kant to provide a concept with its
effective process of synthesizing, is the image, i.e., with an exhibition in intui-
schema of the concept. Of course, so tion. Therefore, if we do not just consi-
that this synthesis can be carried out, der our thinking in general, but in par-
a sensible material should be given. If ticular our thinking of objects, by me-
this is the case, the synthesis can be ans of which we cognize them, we must
done and the concept can be provided affirm that “we cannot think without
with a particular to which it is applied. images.”30
This particular is an image of the con- In the case of quantum objects, howe-
cept. In our example, certain sensible ver, this schematic use of the concepts
material should be given (colour, size cannot be carried out, due to the fact
and form, etc) so that the imagination that, as we have seen, the quantum
synthesizes it by means of a procedure postulate precludes the sensible mani-
guided by a rule whose unity is thought fold which should be subsumed under
in the concept ‘horse.’ the concept of the quantum object from
Briefly, in an act of synthesis we being given. But in that case, the de-
should distinguish the sensible material mand for images is fulfilled by the sym-
to be synthesized (sensible manifold), bolic use of classical images, which, in
the procedure by which the synthesis turn, are the result of the schematic ap-
is carried out (schema), the represen- plication of classical concepts.
tation of the unity of this procedure In summary, the necessity of the con-

29 A140 / B179 – 180. Our emphasis.


30 Kant explicitly describes our understanding as image-dependent in AA V, p. 408. Cassirer’s views on quantum theory are ba-
sed on the conception that symbolic knowledge does not require intuitive images. This is an important aspect of dissent between
Høffding and Bohr, on the one side, and Cassirer, on the other. See Pringe (2014). Gómez points out the necessary character that Bohr
assigns to the use of intuitive pictures in quantum theory in Gómez (1987, p. 20).

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 139-156 153
ISSN: 2317-9570
HERNÁN PRINGE

sideration of the strict symbolic charac- Conclusions


ter of quantum theory is grounded on
the assumptions, firstly, of the law of According to Bohr, atomic knowledge is
continuity as a condition of the possibi- symbolic in a twofold sense: a broad and
lity of experience and, secondly, of the a strict one. In the former sense, atomic
indispensable role which images play in knowledge is symbolic because it is not
the process of knowledge. Since the law in any way a copy of a transcendent re-
of continuity is rejected by the assump- ality. In the latter sense, it is symbolic
tion of the quantum postulate, quan- because we make use of classical con-
tum objects and processes are not ob- cepts and images in order to represent
jects of possible experience in the Kan- quantum objects and processes indirec-
tian sense, i.e., they cannot be repre- tly in intuition.
sented in a causal and spatio-temporal The broad sense of symbol is that em-
manner. However, the knowledge pro- ployed by Høffding. On the contrary,
vided by quantum theory must rest the strict sense is specifically introdu-
upon the representation of causal and ced by Bohr to cope with the new situa-
spatio-temporal objects and processes tion generated by the assumption of the
in order to possess empirical content. quantum postulate. However, the con-
Therefore classical images must be used ceptual elements on which the symbo-
to represent quantum objects indirectly lism in the strict sense is grounded are
in intuition. The knowledge of quan- already present in Høffding’s thought.
tum theory will be thus symbolic in the Even though only the strict sense cor-
strict sense. responds to what Kant would call sym-
The necessity for the possibility of bolic, both senses have a Kantian ori-
experience of both the law of continuity gin. In particular, the broad sense aims
and the direct exhibition in space and to express the rejection of the view that
time of our concepts plays a central role our concepts are to be referred to a re-
in Bohr’s account of the “epistemologi- ality in itself, in accordance with the
cal lesson” of quantum theory. These Kantian doctrine of the insurmountable
views have been explicitly considered distinction between sensibility and un-
by Høffding and are moreover basic ele- derstanding. 31
ments of Kant’s critique of knowledge.

31 The project leading to this paper has received funding from the European Union’s Horizon 2020 research and innovation
programme under the Marie Skłodowska-Curie grant agreement No 777786. The investigation is also part of the project CO-
NICYT/FONDECYT Regular Nº 1190965 and PR65/19-22446 (Comunidad de Madrid y Universidad Complutense de Madrid).

154 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 139-156
ISSN: 2317-9570
HARALD HØFFDING AND THE HISTORICAL ROOTS OF THE BOHRIAN CONCEPT OF SYMBOL

Bibliography
ROSENFELD, L., RUD NIELSEN, J.,RÜDINGER, E., AASERUD, F. (eds.) Bohr’s Collected Works (BCW). North-Holland,
Amsterdam; American Elsevier, New York, 1972.
BOHR, N. Chemistry and The Quantum Theory of Atomic Constitution in Causality and Complementarity. The Phi-
losophical Writings of Niels Bohr, vol. IV, Faye, J. and FolseFolse, H. (eds.), Ox Bow, Woodbridge, Connecticut,
1998
______. Atomic Theory and the Description of Nature. Cambridge University Press: Cambridge, 1934.
______. Atomic Physics and Human Knowledge, John Wiley & Sons: New York, 1958.
______ Causality and Complementarity. The Philosophical Writings of Niels Bohr, vol. IV, Faye, J. and Folse, H. (eds.), Ox
Bow, Woodbridge, Connecticut, 1998.
CASSIRER, E. Determinism and Indeterminism in Modern Physics, Benfey, T. (trans.), Yale University Press: New Haven
and London, 1956.
CHRISTIANSEN, F. Heinrich Hertz’s Neo-Kantian Philosophy of Science and its Development by Harald Høffding.
Journal for General Philosophy of Science, 37, pp. 1 -20, 2006.
D’AGOSTINO, S. The Bild Conception of Physical Theory: Helmholtz, Hertz, and Schrodinger. Physics in Perspective 6,
pp. 372–389, 2004
DARRIGOL, O. From C-numbers to Q-numbers. The Classical Analogy in the History of Quantum Theory. University of
California Press: Berkeley, 1992.
FAVRHOLDT, D. Niels’s Bohr Philosophical Background. Historisk-filosofiske Meddeleser, 63. The Royal Danish Academy
of Sciences and Letters, Copenhagen, 1992.
FAYE, J. Niels Bohr: His Heritage and Legacy.An Anti-Realist View of Quantum Mechanics. Kluwer, Dordrecht, 1991.
FERRAR,I M. Sources for the History of the Concept of Symbol from Leibniz to Cassirer in Symbol and Physical Kno-
wledge. Springer: Berlin, 2002.
FERRARI, M., STAMATESCU, I.-O. (eds.) Symbol and Physical Knowledge. Springer: Berlin, 2002.
GÓMEZ, R. Resonancias kantianas en el pensamiento de Bohr. Revista Latinoamericana de Filosofía, XIII, pp. 3 – 23,
1987.
HELMHOLTZ, H. Epistemological Writings. The Paul Hertz & Moritz Schlick Centenary Edition of 1921, with Notes and
Commentary by the Editors, Cohen, B. (ed.), Low, M. (trans.). Reidel, Dordrecht, 1977.
HERTZ, H. The Principles of Mechanics. Dover: New York, 1956
HEISENBERG, W. The physical principles of the quantum theory. Mineola: Dover, 1949
HØFFDING, H. Die Kontinuität in philosophischen Entwicklungsgange Kants. Archiv für Geschichte der Philosophie, VII,
pp. 173 – 192, 1984.
______. A History of Modern Philosophy. A Sketch of the History of Philosophy from the Close of the Renaissance to Our
Own Days, 2 vols., Macmillan, London, 1900.
______. On Analogy and its Philosophical Importance. Mind, 14, pp. 199 – 209, 1905.
______. Moderne Philosophen. Vorlesungen gehalten an der Universität in Kopenhagen im Herbst 1902, Reisland, Leipzig,
1905b.
______. Der Menschliche Gedanke, Reisland, Leipzig, 1911.
______. Der Begriff der Analogie. Reisland, Leipzig, 1923.
______. La relativité philosophique. Alcan, Paris, 1924.
HONNER, J. The Description of Nature. Niels Bohr and the Philosophy of Quantum Physics. Clarendon Press, Oxford,
1987.
KANT, I. Kants gesammelte Schriften (AA). Königlichen Preußischen (Deutschen) Akademie der Wissenschaften: Berlin.
1902 ff.
______. Critique of Pure Reason Cambridge University Press: Cambridge, 1998.
______. Theoretical Philosophy after 1781. Cambridge University Press: Cambridge, 2002.
MACH, E. Erkenntnis und Irrtum, Barth, Leipzig, 1926.
MAXWELL, J. C. The Scientific Papers. Niven, W. (ed.) (1965), Dover, New York, 1890.
PRINGE, H. Critique of the Quantum Power of Judgment. A Transcendental Foundation of Quantum Objectivity. de
Gruyter, Berlín, 2007.
______. Cassirer and Bohr on intuitive and symbolic knowledge in quantum physics. Theoria, 81, p. 417-429, 2014.
STOLZENBURG, K. Die Entwicklung des Bohrschen Komplementaritätsgedankes in den Jahren 1924 bis 1929, Ph.D. Thesis,
Universität Stuttgart (Technische Hochschule), Stuttgart, 1977.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 139-156 155
ISSN: 2317-9570
HERNÁN PRINGE

Received / Recebido: 18/07/2020


Approved / Aprovado: 18/11/2020
Published / Publicado: 30/12/2020

156 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 139-156
ISSN: 2317-9570
DOI: https://doi.org/10.26512/rfmc.v8i2.35867

’Epistemology Naturalized’ and the Vienna Circle


[’Epistemologia Naturalizada’ e o Círculo de Viena]

Thomas Uebel*

Abstract: This paper considers W.V.O. Quine’s inauguration of naturalistic epistemology


at the 14th International Congress of Philosophy in Vienna in 1969 and argues that,
contrary to his suggestions, naturalistic epistemology was practiced in the Vienna Circle
already back in the days when he visited them fresh out of graduate school.
Keywords: Naturalistic Epistemology. Logical Empiricism. Quine. Carnap. Neurath.

Resumo: Este artigo analisa o início da epistemologia naturalista de W.V.O. Quine,


no 14o Congresso Internacional de Filosofia em Viena, em 1969 e argumenta que, ao
contrário de suas sugestões, a epistemologia naturalista já era praticada no Círculo de
Viena no tempo em que ele o visitava, recém-saído da pós-graduação.
Palavras-chave: Epistemologia naturalista. Empirismo lógico. Quine. Carnap. Neurath.

1. Introduction Carnap’s, like the analytic/synthetic


distinction or the distinction between
W.V.O. Quine’s " Epistemology Natura- internal and external questions, that
lized" was presented as an invited ad- Quine focused on. Now, however, it
dress at the Fourteenth International was time to work on a larger canvass, to
Congress of Philosophy on 9th Septem- pull together different strands in a pro-
ber 1968 in Vienna, Austria. By an grammatic pronouncement that was to
author who knew how to mark an oc- set an entire branch of philosophy on
casion this paper did not disappoint. a new path. How better to stage such
More than once before the philosophers a departure than by invoking, now as
of the Vienna Circle whom Quine had genii loci, his " teacher and friend" of
visited fresh out of graduate school, old and his former colleagues in the Vi-
had served as foil for his own divergent enna Circle? So once more Quine set
ideas in his earlier publications. Mostly out to revisit the Aufbau, even the Cir-
it had been particular tenets of Rudolf cle’s protocol sentence debate, in order

* Professor Emeritus at University of Manchester. Research interests in Epistemology, General Philosophy of Science and
Philosophy of Social Science and in History of Analytic Philosophy and History of Philosophy of Science. E-mail: tho-
mas.uebel@manchester.ac.uk. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5414-235X.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 157-175 157
ISSN: 2317-9570
THOMAS UEBEL

to contrast his own radical reorienta- on what the later Carnap got up to and
tion of philosophy with theirs which, what his colleagues on the so-called left
he suggested, was still stuck, for all of wing of the Circle did.
its revolutionary flavor, in traditional When these questions are investiga-
ways. ted more closely, it can be seen that
The story Quine related that day by introducing naturalistic epistemo-
stuck pretty well and seemed to con- logy to the world in Vienna in 1968
firm the death of logical positivism or Quine was not exactly taking coals to
empiricism then already diagnosed in Newcastle-but he got pretty close. To
reference works.1 The few scholars be sure, the devastation that Austro-
who brought news from dusty archi- fascism and Nazism had wrought on
ves that matters weren’t quite as neat the academic landscape in Vienna en-
as all that were told to get out more sured that even locals were not aware
or simply ignored. Thus still today in of this. In fact, it was not until the 1982
even as normally reliable repositories Moritz Schlick and Otto Neurath Cen-
of philosophical learning as the Stan- tenarium conference, also in Vienna,
ford Encyclopedia one can read under that C. G. Hempel recalled Neurath as
" Naturalism in Epistemology" that " the a naturalistic philosopher (1982).3 Car-
logical empiricists approached episte- nap’s naturalism-or better: the natura-
mology, as other areas, as a matter of a listic potential of Carnap’s philosophy-
priori ’rational reconstruction’, in Car- took still longer to be uncovered, as we
nap’s famous phrase". With a brief refe- will see. I begin with what Quine told
rence to the Aufbau the case was closed. the 1968 Congress before surveying the
But is the Aufbau the only or even the lines of inquiry concerning Carnap that
most representative work of Carnap’s a full investigation would have to con-
and is Carnap the only philosopher of sult in depth. This includes a brief re-
note or relevance in the Vienna Circle view of the case for Neurath’s natura-
in the present context?2 Both of these lism in relation to which Carnap’s phi-
questions matter quite centrally for the losophy must be viewed to appreciate
issue of the relation between episte- its naturalistic potential.
mological naturalism and logical po-
sitivism/empiricism for it largely turns

1 See, e.g., Passmore (1967, p.52). I use “logical positivism” and “logical empiricism” interchangeably. As I understand it, the
difference the terms denoted at the time were but passing local rivalries; see Uebel (2011).
2 See Rysview (2016). Which in other respects is very informative—also refers to Reichenbach’s Experience and Prediction and his
take on the distinction of the contexts of inquiry—discovery v. justification—as unproblematically representative. It isn’t and it also
matters for the question of the nature of the naturalism championed in the Circle, if any; see Uebel (2000).
3 A few years later Dirk Koppelberg deepened the message: see his (1987) and (1990). On the state of Austrian philosophy in the
1950s see Haller (1983).

158 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 157-175
ISSN: 2317-9570
’EPISTEMOLOGY NATURALIZED’ AND THE VIENNA CIRCLE

2. Quine on Carnap, 1968 can be less than adequately informa-


tive, imagine Quine to be remembered
only as a radical nominalist who wan-
Whatever else must be said about it, let ted to do away with numbers.)
me start by saying that " Epistemology The next thing to note is that we must
Naturalized" is a magnificent paper: not read Quine as saying more than he
sufficiently broad in its historical sweep actually did. Thus the Stanford article
across the centuries to impress upon suggests that for Quine the Vienna Cir-
its audience the momentous occasion cle pursued the " Cartesian quest for
its proposals represent, yet detailed certainty [as] a remote motivation of
enough with its analogies to the abor- epistemology, both on its conceptual
tive reductive programmes of the past and its doctrinal side". This overlooks
to induce a conviction in the audience that Quine conceded that Carnap had
that the diagnosis presented is sound abandoned this " as a lost cause" and
enough and holds a deep moral for phi- was motivated instead " to elicit and
losophy if we ever want to escape the clarify the sensory evidence for science"
perennial doldrums. and so to " deepen our understanding
So how did Quine portray the logical of our discourse of the world" (QUINE,
positivists of the Vienna Circle here? 1969, p. 74-5). Relatedly Quine spoke
Well, he did not exactly misrepresent of Russell’s external world programme,
them-though he did make one egregi- when he likened Carnap’s Aufbau pro-
ous mistake-but he certainly did not ject to it, as aiming to " account for the
tell the whole story. That as in his pre- external world as a logical construct
vious writings his main focus was Car- of sense data" (CARNAP. 1969, p.74):
nap is not surprising since, for better or there is notable room for interpreta-
worse Carnap was logical positivism for tion in this formulation. With regard to
him; more to the point is that Quine’s Carnap then, perhaps even to Russell,
Carnap is not the whole of Carnap. Of Quine very carefully stopped short of
course, it was not Quine’s job to be com- attributing the traditional foundationa-
prehensive, but his selective focus does list project by stressing the elucidatory
point up a very general feature of the import of the reductive projects under-
common view of logical positivism-a taken (and in addition cleared Carnap
feature concerning which the rhetorical of infallibilist yearnings).
scene-settings of Quine’s papers (here Now the first we hear of and about
and in " Two Dogmas") are not wholly Carnap himself in " Epistemology Na-
innocent. That is that logical positivism turalized" is indeed as the author of
is remembered for its early theoretical the book that came " nearest" to reali-
starting points, not for the mature po- zing the Russellian external world pro-
sitions reached later. (To see that this

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 157-175 159
ISSN: 2317-9570
THOMAS UEBEL

gram (QUINE, 1969 p.74), Der logische reduction of physical object discourse
Aufbau der Welt (translated as The Lo- to talk of (constructed) sense data fai-
gical Structure of the World. Herafter: led: there was no one-to-one mapping
Aufbau, 1928). That’s fair enough in from the latter to the former. Yet this
a way, given the qualifications we just time Quine also pointed out what " Two
saw Quine slipping in. However, we Dogmas" did not-and what some rea-
must add that recent scholarship has ders of his address evidently missed-
conclusively established that there is namely that it was not doctrinal cer-
far more to the Aufbau than that. Even tainty but merely translational reduc-
if we discount its syncretist tendency to tion was Carnap’s point.5 To be sure,
merge a great variety of disparate phi- this still leaves entirely unaddressed
losophical tendencies and focus only on what one may wish to obtain transla-
its reductionist strategy of establishing tional reduction for and unwary rea-
a genealogy for all empirical concepts ders easily jump to the conclusion that
on the basis of that of remembered si- it was for foundationalist designs. (Car-
milarity alone, even then we must note nap’s structuralist program demanded
that its overarching ambition was the that a radical reductionism succeeded
attempt to prove that from such me- even more than a foundationalist one
ager starting points an intersubjective would.)
world could be constructed. The aim Whether intended or not, other as-
was to demonstrate that " even though pects of " Epistemology Naturalized"
the subjective origin of all knowledge subtly encourages readers in this. Not
lies in the contents of experiences and too much seems objectionable in the
their connections, it is still possible . . . description of the Aufbau just surveyed,
to advance to an intersubjective, objec- but what, for instance, raises eyebrows
tive world, which can be conceptually is that Quine interspersed it with his
comprehended and which is identical weighty remark that an epistemolo-
for all observers" (1928, §2, 7). To achi- gist’s " scruples against circularity have
eve this aim Carnap sought an exclu- little point once we have stopped dre-
sively structural characterization of all aming of deducing science from ob-
empirical concepts.4 servations" (QUINE, 1969, p.76)-as if
Still Quine was right to point out (as it had been the point of Carnap’s ra-
in " Two Dogmas") that and why the tional reconstructions to save science
Aufbau’s reductive aim, whatever its from skepticism. That, of course, is not
ambitions, was frustrated at §126. The something naturalistic epistemologists

4 This reading of the Aufbau was pioneered by Friedman (1987) and (1991) and Richardson (1998), admittedly many years after
Quine’s foundationalist reading become common coin.
5 Note also Quine’s later disavowal of Carnap’s concern with certainty at (1995, p.13).

160 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 157-175
ISSN: 2317-9570
’EPISTEMOLOGY NATURALIZED’ AND THE VIENNA CIRCLE

endeavor to do, so Carnap is excluded concerns ultimately not a single


from even applying for membership. hypothesis but the entire sys-
And " scruples against circularity" even tem of physics as a system of
suggest a foundationalist sensibility. hypotheses (Duhem, Poincaré).
A still stronger and even more con- (CARNAP, 1934/37, §82)
sequential sleight of hand was effected
when Quine opposed what he called
the Circle’s " verification theory of mea-
ning" to the holism of theory testing to
which, he said, the Vienna Circle " did In total disregard of this passage
not take . . . seriously enough" (QUINE, Quine reprinted unchanged his claim
1969, p.80). Of course, neither Carnap from " Two Dogmas" that " the dogma of
nor Neurath ever discussed the indeter- reductionism" lingers on even after Car-
minacy of translation and the ontolo- nap abandoned his Aufbau-project-the
gical relativity which Quine portrayed insinuation being that it so lingers on in
as the outcome of his anti-mentalist Carnap’s own later views. According to
attack on the conception of meaning, Quine, it " survives in the supposition
but this does not make them theorists that each statement, taken in isolation
who deny the holism of testing (never from its fellows, can admit of confir-
mind foundationalists). There is, to mation or information at all" (QUINE,
start with, Neurath’s antifoundationa- 1980, p.40-41). What is objectionable
list coherentism-as documented in his about this charge is that Carnap (and
simile of the sailors having to repair Neurath) had pronounced the holism of
their boat at sea-that is as legendary as testing not just for theoretical sentences
it is long-standing (more on this below). but also for observation or protocol sen-
But Carnap too embraced such holism tences. With this they actually showed
already very explicitly in Logical Syn- themselves to be considerably more ho-
tax: list than Quine himself who actually
exempted observation sentences from
the ravages of indeterminacy (QUINE,
Strictly speaking, there is no 969, p.81) and declared: " The observa-
refutation (falsification) of hy- tion sentence, situated at the sensory
potheses., for even if they periphery of the body scientific, is the
should prove L-incompatible minimal verifiable aggregate; it has an
with certain protocol sentences, empirical content all its own and wears
it remains possible in principle it on its sleeve." (QUINE, 1969, p.89)
to uphold the hypothesis and Contrary to what Quine suggested, on
to refuse to accept the protocol account of their holism alone Carnap
sentences. . . . Therefore testing (and Neurath) should qualify at least as

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 157-175 161
ISSN: 2317-9570
THOMAS UEBEL

honorary naturalists!6 tained until he found a way of accom-


Now it may be objected that the modating Neurath’s incessant criticism
emphasis of Quine’s contrast here with of it without giving in to what he fea-
Carnap and the logical positivists lies red as "psychologism".8 (In contempo-
on the indeterminacy of translation rary epistemology the standpoint Car-
and that the force of his contrast deri- nap abandoned is known as the thesis
ves from this. Now that doctrine can of the epistemic priority of experiential
indeed be usefully considered to be over physical knowledge; in its place
Quine’s final reply to Carnap in their he pursued a radically de-personalized
long debate about meaning and the accounts of propositional justification.)
adequacy of extensionalism generally, Aha, you may say, here is the smoking
a reply given after Carnap had delive- gun: Carnap’s Fregean inheritance-
red, in 1955, the behavioral criteria for surely anti-psychologism is incompa-
analyticity that Quine had long asked tible with naturalism! Well yes, on its
for.7 But however much the indetermi- own it certainly is, but what is of cru-
nacy of translation is part of Quine’s cial importance is the context or type
philosophy, one must question whether of inquiry that anti-psychologism is ap-
indeterminacy is part of the standard plied to. Carnap applied it to the logic
kit of epistemological naturalists. On of science so it becomes a central issue
this account, Quine seems to have made how this logic of science is located in
more of a de facto difference of view that unified science generally. (I will come
what it merited. back to this.)
The contrast Quine drew next Finally, there are Quine’s remarks on
between Carnap’s declaring " the ban- the Vienna Circle’s debate about so-
kruptcy of epistemology" and the na- called protocol sentences-scientific evi-
turalistic attitude that Neurath’s simile dence statements-over " what to count
expressed for Quine is also misleading. as observation sentences".
When Carnap officially dropped epis-
temology for the logic of science in the
One position was that they had
mid-1930s he did not abandon con-
the form of reports of sense im-
cern with evidence for scientific asser-
pressions. Another was that
tions, rather he abandoned for good the
they were statement of an ele-
standpoint of methodological solipsism
mentary sort about the exter-
he had adopted in the Aufbau and re-
nal world, e.g., ’A red cube is

6 Notable enough, Quine’s later “Two Dogmas Revisited” (1991) also failed to note that Carnap endorsed holism of testing.
7 Quine’s later “Two Dogmas Revisited” also failed to note that by (1955) Carnap had provided “empirical criteria for semantic
concepts” as demanded (2004, p.61).
8 See Carnap (1936a) and, for discussion, Richardson (1996) and Uebel (2018).

162 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 157-175
ISSN: 2317-9570
’EPISTEMOLOGY NATURALIZED’ AND THE VIENNA CIRCLE

standing on the table.’ Another, determined by the data we have form


Neurath’s, was that they had them. Pragmatic considerations helped
the form of reports of relations make up Carnap’s mind in late 1932 to
between percipients and exter- declare that observance of methodolo-
nal things: ’Otto now sees a red gically solipsist strictures was no lon-
cube on the table.’ The worst of ger mandatory but merely optional.11
it was that there seemed to be These reasons were firmed up on pu-
no objective way of settling the rely logical grounds when he settled
matter: no way of making real on his considered view of the matter in
sense of the question. (QUINE, "Testability and Meaning". There Car-
1969, p.85) nap stated explicitly that what he cal-
led the "phenomenological" language
"is a purely subjective one, suitable for
And Quine went on: " Let us now try
soliloquy only, while the intersubjec-
to view the matter unreservedly in the
tive thing-language is suitable for use
context of the external world." Never
among different subjects" (CARNAP,
mind that Quine telescoped many ye-
1936-37, p.10). While it was possible
ars of debate into two papers by Car-
to design so-called reduction senten-
nap and Neurath that were published
ces that relate expressions of the thing-
in the same issue of Erkenntnis in De-
language to expressions in the pheno-
cember 1932. What does he mean by
menal language, Carnap argued that it
" unreservedly in the context of the ex-
was impossible to construct the former
ternal world"? That is precisely how
on the basis of the latter or effect a " re-
Neurath viewed the matter (whose pre-
translation" of the former into the latter
ferred protocols were also far more
(CARNAP, 1936-37, p.464). For the re-
complicated than reported here).9
construction of the language of unified
Only for Carnap was there "no ob-
science, phenomenal languages were
jective way of settling the matter" be-
unsuitable. In consequence, the terms
cause on this, his first exercise avant
to be used in protocol sentences had
la lettre of his famed principle of logi-
to be both intersubjectively confirma-
cal tolerance10 - he rightly noted that
ble and intersubjectively observable.12
metatheoretical distinctions are under-

9 For a detailed analysis of the Vienna Circle’s protocol-sentence debate, see Uebel (2007). For Neurath’s own view of protocol
statements, see Neurath (1983) and Uebel (2009).
10 “The Principle of Tolerance: It is not our business to set up prohibitions, but to arrive at conventions. . . . In logic, there are no morals.
Everyone is at liberty to build up his own logic, i.e., his own form of language, as he wishes. All that is required of him is that, if
he wishes to discuss it, he must state his methods clearly, and give syntactical rules instead of philosophical arguments. ” Carnap
(1934a/1937, §17).
11 Carnap declared it a merely pragmatic question which of “two methods for constructing the language of science which are both
possible and justified” (1932c/1987, 457) are to be chosen: the one with a phenomenalist or the one with a physicalist basis.
12 On the latter point there obtained a disagreement with Neurath; for its resolution see Uebel (2015).

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 157-175 163
ISSN: 2317-9570
THOMAS UEBEL

Consider now what discipline Carnap is itself pre-naturalistic Quine and so


there assigned to the job of determining irrelevant, but the fluidity postulated
what the intersubjectively confirmable there between not only science and
"observable predicates" were that dis- common sense but especially scientific
tinguished the protocol sentences: psy- theorizing and ontology at least presa-
chology! Could naturalists do better? ges and contains in nuce his later natu-
Now, as I said, Quine’s founding pa- ralism.13 In any case, Quine’s portrayal
per for naturalistic epistemology does of Carnap there is highly significant
not misrepresent Carnap as a rabid for that is the unspoken background of
anti-naturalist. But just as it does not " Epistemology Naturalized".
let on that already for Neurath himself We already noted the neglect on
the boat simile was an emblem of na- Quine’s part of Carnap’s post- Aufbau
turalism, it also characterizes Carnap’s holism in the second part of " Two Dog-
position in ways that discourage anyone mas". The first part likewise invidi-
looking even only for traits of compati- ously moulds readers’ perceptions, now
bility with naturalism in his philosophy of Carnap’s conception of analyticity.
of science. That said, more recently To begin with there’s one of Quine’s
Quine again dropped previously made memorable bon mots. " Meaning is
qualifications and breezily asserted that what essence becomes when it is di-
" [v]arious epistemologists, from Des- vorced from the object of reference
cartes to Carnap, had sought a founda- and wedded to the word." (1951/1980,
tion for natural science in mental enti- p.22) However deflating of the anti-
ties, the flux of raw sense data" (2005, metaphysical ambitions of the neopo-
p.276), but I shall regard this as an aber- sitivists this may have been intended
ration. to be, what we must ask is whether it
captures how Carnap thought of mea-
ning: was he an essentialist about it?
Likewise consider Quine’s conclusion
3. Quine on Carnap, 1951
that drawing the analytic/synthetic dis-
tinction at all is " a metaphysical arti-
Once we bring in " Two Dogmas", where
cle of faith" (1951/1980, p.37): what’s
Carnap is still more sharply characteri-
so metaphysical about analyticity for
zed in oppositional terms, the prospect
Carnap? Quine’s answer presuma-
for recognizing any affinity of his-or
bly comes in his assertion that analy-
his Vienna Circle colleagues-with na-
tic statements " hold come what may"
turalism is further diminished. Now
(1951/1980, p.43).
it may be objected that " Two Dogmas"

13 On the development of Quine’s naturalistic outlook mainly in the 1950s, see Verhaegh (2018).

164 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 157-175
ISSN: 2317-9570
’EPISTEMOLOGY NATURALIZED’ AND THE VIENNA CIRCLE

But this is a far cry from Carnap’s national Encyclopedia of Unified Sci-
view who made very clear that analyti- ence and heartily approved of (it was
city " is not adequately characterized as first published as Number 2 of volume
’held true come what may’" (CARNAP, of II in 1962), but also that Carnap de-
1963, p.921). We must, he stated, care- signated the first change as " a transi-
fully distinguish tion from a Ln to a new language Ln+1 "
(1963, p.921).14 Even a single change of
meaning was not a merely local affair
between two kinds of read- but affected the whole language such
justment in the case of a con- that it would be incorrect to speak of
flict with experience, namely, the languages as being " the same" be-
between a change in the lan- fore and after. Moreover, for Carnap
guage and a mere change in or we are by no means condemned to stick
addition of a truth-value ascri- with analytic statements " come what
bed to an indeterminate state- may" for we may switch from a lan-
ment (i.e., a statement whose guage Ln where they possess that status
truth-value is not fixed by the to a new language Ln+1 where they no
rules of the language, say by longer possess it and may even be false.
the postulates of logic, mathe- In consequence, the only way in
matics and physics). A change which, according to Carnap, analy-
of the first kind constitutes a tic statements " hold come what may"
radical alteration, sometimes a is exceedingly Pickwickean. It is the
revolution, and it occurs only case, of course, that analytic sentences
at certain historically decisive constitute the logical and semantic fra-
points in the development of mework of a language and so cannot
science. On the other hand, be changed as part of that language,
changes of the second kind oc- but this does not mean that we cannot
cur every minute. (1963, p.921) change our language.15 Very misleadin-
gly, by failing to note this-never mind
that Carnap also happily entertained
Notable here is not only an antici-
the thought that changes in scientific
patory nod in the direction of Thomas
theorizing may leave us with incom-
Kuhn’s Structure of Scientific Revolutions
mensurable languages already in the
which Carnap was to read in manus-
mid-1930s16 – Quine allowed readers
cript as one of the editors of the Inter-

14 Carnap’s replies in the much-delayed Schilpp volume were written in the mid-1950. On Carnap’s reaction Kuhn’s Structure, see
Reisch (1991).
15 Compare Carnap’s own response in (1990,p. 431-432).
16 See Carnap (1936b), later translated as part of Carnap (1947).

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 157-175 165
ISSN: 2317-9570
THOMAS UEBEL

to continue to think of Carnap’s analy- Carnap never thought of analytic truths


ticities in the traditional fashion as eter- as eternal truths of reason.17 One can-
nal truths of reason when very clearly not help wondering why Quine never
they were not. They were highly spe- corrected this mischaracterization or
cific to the very language whose terms related ones, but what matters here for
they characterized. us is how Quine’s mischaracterization
Let me also stress that Carnap’s of Carnap’s conception of analyticity
answer in the Schilpp volume does not feeds into what concerns us. Inviola-
represent a new strategy that he hit ble truths of reason are precisely what
upon only at an advanced stage of his no naturalistic epistemologist can tole-
debate with Quine. Already the pas- rate. And as we can see, neither could
sage quoted earlier from Logical Syntax Carnap already in the first half of the
continues: 1930s.
Now it may also be wondered, of
course, whether naturalistic epistemo-
No determination of the physi-
logy can tolerate any form of the analy-
cal language is finally secured:
tic/synthetic distinction. It will cer-
all determinations are made
tainly be objected that Quine’s own
only with the proviso that one
version cannot, but it has been argued
can alter them in circumstan-
that Quine himself ended up admitting
ces in which this seems prac-
analyticity.18 Indeed, Quine himself re-
tical. This holds not only for
marked in 1990: "I recognize the notion
the P-determinations, but also
of analyticity in its obvious and useful
for the L-determinations inclu-
but epistemologically insignificant ap-
ding mathematics. . . . it can
plications" (1991/2005, 61). The signi-
happen, that on the occasion
ficance he still repudiated was precisely
of new protocol sentences the
the significance he continued to des-
language gets altered in such a
cribe as motivating Carnap: accounting
way that [a previously analy-
for mathematical truth. Thus Quine
tical sentence] S1 is no longer
ascribed to Carnap the concern to ac-
analytic. (1934/37, §82)
count for "certainty in logic and in all
of mathematics" (1963, p.386). But is
From the time when Quine first this fair again to attribute such founda-
came to know him-he visited in Prague tionalist ambitions?
when Logical Syntax was being written- Admittedly, Carnap’s talk at the Se-

17 While this late chapter of Logical Syntax may not have emerged from Ina’s typewriter yet while Quine was visiting, it is most
unlikely that then Carnap thought differently still.
18 See, e.g., Creath (2004).

166 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 157-175
ISSN: 2317-9570
’EPISTEMOLOGY NATURALIZED’ AND THE VIENNA CIRCLE

cond Conference for the Epistemo- they happen or even provides episte-
logy of the Exact Science in Königs- mological foundations. Needless to
berg in September 1930 discussed lo- say, putting matters this way-a dis-
gicism as program addressed to the tinction introduced for reconstructive
" insecurity" in the " safest of all sci- perspicuity-may not sound very promi-
ences" (1931/1964, p.41), but that is sing for naturalism at first. Neverthe-
not an endorsement of the foundatio- less, spelling out its implications is es-
nalist ambition, even though he discus- sential to disarming objections based
sed making logicism safe for nonpredi- on the supposed contrast between na-
cative definitions. Moreover, Carnap’s turalism and the analytic/synthetic dis-
paper was published before he had the tinction and to making good our claim
time to digest the full consequences of for Carnap’s philosophical endeavours
Kurt Gödel’s incompleteness result that being at least compatible with natura-
was first presented informally during lism.
the closing discussions at the end of Consider his response to the rheto-
that conference, a result is widely un- rical question whether he would be
derstood to have killed off any hope for prepared to abandon his defense of
demonstrably secure foundations even ethical non-cognitivism by means of
in mathematics. So holding this early the doctrine of pure " optatives" (sta-
passage against Carnap some twenty tements expressing desired states of af-
years later would be unfair-as is, it se- fairs that imply no factual statements
ems, Quine’s related charge.19 beyond this), if it were found by em-
pirical investigation that no humanly
known language does contain them.
4. Analyticity for Naturalists?
Would I, in view of these scien-
But why care for analyticities if not to tific results, abandon the the-
hope to employ them to ground our sis of pure optatives? I think
knowledge claims? I think we have I would not; just as I would
to take seriously Carnap’s own sug- not abandon the thesis of the
gestion that that the analytic/synthetic analytic character of the theo-
distinction-like indeed the fact/value rems of logic or of arithmetic
distinction-is an analytical one introdu- if a psychological investigation
ced for purposes of reconstructive pers- were to reveal that the majority
picuity, not one that straightforwar- of people interpret these theo-
dly describes cognitive processes as rems as containing certain fac-

19 I thank my colleague Fraser MacBride for reminding me of this passage.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 157-175 167
ISSN: 2317-9570
THOMAS UEBEL

tual components. A philosophi- empirical assertion. (CARNAP,


cal thesis on logic or language, 1963, p.1003, orig. emphasis)
in contrast to a psychological
or linguistic thesis, is not in-
tended to assert anything about Now on the face of it, Carnap
the speaking or thinking habits may only seem to complicate matters.
of the majority of people, but What are these "meanings" beyond the
rather something about possi- "haphazard features of natural lan-
ble kinds of meanings and the guage"? Importantly, they are not the
relations between these mea- Platonic entities disparaged by Quine
nings. In other words, a phi- but whatever is fixed by the deductive
losophical thesis does not talk logical relations that obtain between
about the haphazard features sentences.20 What Carnap is offering
of natural languages, but about are logical constructions of conceptual
meaning relations, which can networks by spelling out their semantic
best be represented with the entailments (admittedly using intensio-
help of a constructed language. nal tools that Quine would not approve
The thesis on arithmetic, men- of). But logical constructions for what
tioned above, says that it is pos- purpose?
sible to construct a system of Clearly, Carnap’s point was not to
arithmetic in such a way that its supply psychological explanations, but
theorems (which correspond to by putting forward his " philosophical
the customarily accepted theo- thesis" he also did not mean to provide
rems of arithmetic) are analytic appeals to essences or types of trans-
statements. Analogously, the cendentally argued for realities. In fact,
thesis of pure optatives is me- he did not put forward explanations at
ant as saying that it is possi- all, but merely laid out what must be
ble to construct a language in agreed upon between speakers, impli-
such a way that it contains pure citly or explicitly, so that they can re-
optatives. A discussion about ach rational agreement about the truth
a thesis of this kind seems to values of their assertions.21 Since this
me much more in accord with point bears expansion we may say that
the spirit of analytic philosophy what Carnap meant to provide logico-
than a discussion about a thesis linguistic framework for was concep-
interpreted as a psychological tual explorations. To put it slightly

20 As Carnap stated in this very context: "‘To have the same meaning’ is here always understood, not in the strong sense of sy-
nonymy, but in the weaker sense of logical or analytic equivalence.” (1963, p.1004)
21 See Ebbs (1997, Ch. 4) and (2001).

168 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 157-175
ISSN: 2317-9570
’EPISTEMOLOGY NATURALIZED’ AND THE VIENNA CIRCLE

anachronistically, the point of his lo- investigations.24 But quite apart from
gical constructions was to investigate the fact that Quine’s input-output in-
possibilities of alternative conceptuali- vestigations are on a much larger scale
zations of contested concepts.22 This than psychology could attempt, tracing
brings us to Carnap’s concern with the path from sensory input to entire
" explication", as he called it in later scientific theories, this charge is enti-
years.23 So our question becomes: is rely mistaken. True, Quine rejected
explication incompatible with natura- the construal of norms in epistemo-
listic epistemology? logy as categorical, but this did not stop
Before turning to answer this ques- him from recognizing them by viewing
tion, let me also note that once we take them as hypothetical and instrumental
this perspective of the ameliorative lan- instead. Thus he stated explicitly:
guage constructor on board, we can see
that, relatedly, the term " epistemology"
"For me, epistemology is a
has a different weight for Quine and
branch of engineering. It is the
Carnap. Quine as a naturalist wants
technology of truth-seeking, or,
psychologically real explanations whe-
in a more cautiously epistemo-
reas Carnap aims for reflective clarity
logical term, prediction. Like
that might, in the fullness of time, in-
any technology, it makes free
form one’s agency. The issue of the
use of whatever scientific fin-
compatibility of epistemological natu-
dings may suit its purpose. It
ralism with some non-essentialist form
draws on mathematics in com-
of the analytic/synthetic distinction
puting standard deviation and
requires reconsideration of precisely
probable error and in scou-
what kind of inquiries naturalism al-
ting the gambler’s fallacy. It
lows for. The naturalism that Carnap’s
draws on experimental psycho-
philosophy of science allows for may
logy in scouting wishful thin-
differ from Quine’s. It is important
king. It draws upon neurology
to note, however, that no irremediable
and physics, in a general way,
contrast obtains between them over the
in discounting testimony from
methodology of providing explications.
the occult or parapsychologi-
It is common for anti-naturalists to
cal sources. There is no ques-
charge Quine with abandoning episte-
tion here of ultimate value, as
mology for merely causal input-output
in morals; it is a matter of effi-

22 The allusion is to Gallie (1955-56), but for Carnap the concepts in question need not be contested “essentially” nor are they
mostly political or moral ones: quite typically he was interested in epistemological or metatheoretical concepts.
23 See Carnap (1950, Ch.1). For an extensive discussion of Carnap’s explicationism on a broad canvass, see Carus (2007, Ch. 11).
24 See, e.g., Kim (1988) and Putnam (1992).

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 157-175 169
ISSN: 2317-9570
THOMAS UEBEL

cacy for an ulterior end, truth Carnap, together with selected Vienna
or prediction. The normative Circle colleagues, offers a valuable con-
here, as elsewhere in enginee- tribution that has been overlooked for
ring, becomes descriptive when too long.
the terminal parameter is ex-
pressed." (QUINE, 1986, p.664-
5)25
5. Carnap in Context: The Bipartite
Metatheory Conception.
Quine was far from rejecting norma-
tive questions. And given that he did Suppose you followed me at least so far
not and instead viewed epistemology as to agree that " Epistemology Natu-
as a branch of engineering there is little ralized" and sundry other writings by
reason-indeed no reason whatsoever-to Quine obscure the very possibility that
think that Carnapian elucidations are among his neopositivist elders some
barred from naturalistic epistemology form of naturalistic epistemology was
in principle. Elucidations are instances not only thinkable, perhaps even was
of Carnapian conceptual engineering. practiced. Now this would only be
The question that does arise, rather, worth stressing if that possibility were
is just how we could and perhaps salient, even more so if it had been ac-
should conceptualize doing philosophy tualized. So am I foolhardy enough to
by starting, not from some supposedly claim, not only that the possibility of
indubitable fixed points of reason, but neopositivist naturalism is salient, but
from within our current state of kno- that it also was actualized?
wledge and ignorance, our current sci- Truth to tell, it would be hard for me
ence. The question that arises is just to do otherwise. I’ve long been in print
what form and aim naturalism in phi- as claiming the latter.27 So to round
losophy could and should take. That up let me briefly put my case for either
Quine, despite all his pioneering work, point. Note to begin with Quine’s own
does not possess a monopoly claim on characterization of naturalism: " the re-
this is widely acknowledged among cognition that it is within science itself,
contemporary practitioners of natura- and not in some prior philosophy, that
listic epistemology.26 What investigati- reality is to be identified and descri-
ons like the present one suggest is that bed" (1981, p.21). If we go easy on the

25 Consider also: “Insofar as theoretical epistemology gets naturalized into a chapter of theoretical science, so normative epistemo-
logy gets naturalized into a chapter of engineering: the technology of anticipating sensory stimulation.” (QUINE, 1990, p.19)
26 Comparison with contemporary versions already suggests that Quine’s holds no monopoly; see already Maffie (1990a) and
(1990b).
27 See Uebel (1991).

170 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 157-175
ISSN: 2317-9570
’EPISTEMOLOGY NATURALIZED’ AND THE VIENNA CIRCLE

term " reality" and bracket ontology, it a place within unified science.
is clear that our neopositivists are fully (1932a, 61 and 67)
on board. The rejection of First Philo-
sophy was definitive of just about all
philosophies that emerged from the Vi- I trust the difference of idiom does
enna Circle. But, of course, not every not detract from the naturalistic mes-
member of the Vienna Circle can plau- sage. Now you may wonder whether
sibly be claimed to be of a naturalistic Neurath’s naturalism would be news to
persuasion, however " scientistic" their Quine. After all, didn’t Quine make
overall outlook may be considered to Neurath’s simile of the boat having to
be. The relevant suspects are to be be repaired at sea the leading image of
found on the so-called " left wing" of the his naturalistic epistemology? He did,
Circle-comprising besides Carnap and but as he told me once, he did so for
Neurath also Hans Hahn and Philipp love of the simile, not for his knowledge
Frank-not among the " more conserva- of what Neurath was up to.29 (What
tive wing" around Schlick and Friedrich Quine said about the Circle’s protocol
Waismann.28 sentence debate bears this out, as we
So let’s first turn to Neurath for a saw.)
representative quotation of his natura- Now what about Carnap? Here mat-
lism. ters are a little bit more complicated,
but no less congenial to our concern.
With Neurath, the possibility of ne-
The possibility of science beco- opositivist epistemological naturalism
mes apparent in science itself. was actualized. With Carnap, the pos-
. . . Within a consistent physi- sibility of neopositivist naturalism be-
calism there can be no ’theory came salient. What I mean by this is
of knowledge’, at least not in the following. In and of itself Car-
the traditional form. It could nap’s more or less technical discussi-
only consist of defense acti- ons and implementations of language
ons against metaphysics, i.e. construction do not look like nor do
unmasking meaningless terms. they in themselves represent a natu-
Some problems of the theory ralistic form of epistemology. Its re-
of knowledge will perhaps be solutely anti-psychologistic and anti-
transformable into empirical sociologistic stance clearly sees to this.
questions so that they can find It is the wider context in which the logic

28 See Carnap (1963, p.57) for the first published use of these Neurathian locutions employed to distinguish a metaphilosophical
division between members that became apparent in the early 1930s.
29 For further points from that interview see Uebel (1991).

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 157-175 171
ISSN: 2317-9570
THOMAS UEBEL

of science was placed by Carnap that tive prescriptions (or recommendations


makes for its compatibility with natu- in the proposal mode) that traded on
ralistic epistemology. the instrumental value that following
Consider again the quote from Neu- the prescription or adopting the recom-
rath that I declared indicative of his na- mendation was supposed to bestow.
turalism. Two tasks were assigned there By discarding the residually founda-
to whatever was to be philosophy’s suc- tionalist ambitions of methodological
cessor discipline in unified science: un- solipsism in late 1932 and his subse-
masking meaningless terms and asking quent abandonment of traditional epis-
empirical questions about knowledge temology and embrace of the logic of
production. Both represent different science, Carnap’s position came into
aspects of what unified science contains agreement with this bipartite metathe-
alongside all of the first-order discipli- ory conception. What Carnap was able
nes: a scientific metatheory. There was, to add to Neurath’s " defensive" task for
on one side, what Carnap called " the the logic of science (unmasking mea-
logic of science" (1934a/1937, §§72- ningless terms) was his own conventio-
73) and, on the other, what Neurath nalist constructivism concerning alter-
called " the behavioristics of scholars" native linguistic frameworks. That this
(1936/1983, p.169) and what Philipp did not rule out of the court of scienti-
Frank later called the " pragmatics of fic metatheory all naturalistic concerns
science" (1957/2004, p.360). The for- is made clear by his remark that the
mer, the logic of science investigated logic of science is itself but part of a
scientific theories in typically axioma- still more comprehensive inquiry, the
tized form and considered their inter- " theory of science", which comprises
nal structure and their relation to their also " empirical investigation of scien-
evidential base in purely logical (de- tific activity", namely, " historical, soci-
ductive and inductive) terms. The lat- ological and, above all, psychological
ter, the pragmatics of science investiga- inquiries" (1934a/1937, §72). All three,
ted scientific practice by means of the Carnap, Neurath and Frank, recogni-
empirical sciences of science, the psy- zed the need for both logical and em-
chology and sociology as well as the pirical branches of scientific metathe-
history of science. So while the logic ory, but they pursued their own detai-
of science investigated abstract relati- led work in different branches. Carnap
ons of evidential support, the pragma- stuck with the logic of science, Neu-
tics of science investigated the concrete rath and Frank pursued a naturalistic
mechanisms of theory choice and the- epistemology of science with the help
ory change. Importantly, both of them of psychology, sociology and history of
were able to issue conditional norma- science.

172 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 157-175
ISSN: 2317-9570
’EPISTEMOLOGY NATURALIZED’ AND THE VIENNA CIRCLE

Their proposals concerning proto- last quotations. For Carnap, the lo-
cols reflect this. For Neurath, proto- gic of science was " an instrument
cols were complex statements contai- of unified science" (1934b/1987, 56).
ning embedded clauses meant to indi- Among its constructive tasks were
cate different sets of conditions which logico-linguistic proposals intended to
the acceptance of scientific observa- be " useful and productive in practice"
tion reports is subject to.30 By trea- for " particular point[s] of the language
ting protocol statements as testimony of science" (1934a/1937, 332). As Car-
whose acceptance is circumscribed in nap put it once, slipping back into the
particular ways, Neurath moved away old idiom, " the task of the philosophy
from any concern one might have for of science can be pursued only in a close
a " foundation of knowledge" in one’s cooperation between logicians and em-
own first-hand experience. First-person pirical investigators" (1934c/1967, 62).
authority was, if not wholly undermi-
ned, then radically subverted: in prin-
ciple, one’s own protocol carried no 6. Conclusion
more weight than another’s. Carnap
was even less concerned with perso- Even though his rhetoric got the bet-
nal beliefs but instead focused on kno- ter of him both in earlier and in later
wledge claims and their objective evi- years, in " Epistemology Naturalized"
dence. Where Neurath sought to ou- Quine, perhaps constrained by the ge-
tline canons of report acceptance, Car- nii loci reigning over the occasion, was
nap’s work concentrated on isolating quite careful to avoid gross caricatu-
the logical relations of deductive and res of Carnap and his colleagues-and
inductive support that protocols af- yet he still managed to project his own
forded to more theoretical statements. new naturalistic beginning as a radical
Concern with acceptance conditions lay turning away from their philosophical
wholly outside the remit of the logic of methodology. What I have argued here
science. So while not practicing natu- is that, contrary to its wide and largely
ralistic epistemology himself, Carnap’s uncritical reception, Quine’s projection
logic of science was compatible with, was mistaken. There was far more na-
indeed intended to be complementary turalism in the Vienna Circle than was
to it.31 ever dreamt of in Quine’s Viennese nar-
Let me stress this point with some rative.

30 See, again, Neurath (1932b/1983) and Uebel (2009).


31 For further discussion see, e.g., Uebel (2013b), (2015) and (2018).

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 157-175 173
ISSN: 2317-9570
THOMAS UEBEL

References
CARNAP, Rudolf. Der logische Aufbau der Welt. Berlin: Weltkreisverlag, 1928.
______ The Logical Structure of the World. Pseudoproblems in Philosophy, University of California Press, 1967.
______. Die logizistische Grundlegung der Mathematik, Erkenntnis 2: 91-105, 1931. (Trans. in P. Bernacerraf and H.
Putnam (eds.), The Philosophy of Mathematics. Selected Readings, Cambridge: Cambridge University Press, 1964,
pp. 31-41)
______. Über Protokollsätze, Erkenntnis 3: 215-228, 1932. (Trans. "On Protocol Sentences" in Nous 21: 457-470.)
______. Logische Syntax der Sprache. Vienna: Springer, 1934a. (Rev. ed. transl. The Logical Syntax of Language, London:
Kegan, Paul, Trench Teubner & Cie, 1937, repr. Chicago: Open Court, 2002.)
______. Die Aufgabe der Wissenschaftslogik , Vienna: Gerold, 1934a. (Transl. "The Task of the Logic of Science" in B.
McGuiness (ed.), 1987, Unified Science, Dordrecht: Reidel, 1987, pp. 46-66.)
______. On the Character of Philosophic Problems. Philosophy of Science 1: 5-19, 1934c. (Repr. in R. Rorty (ed.), The
Lingusitic Turn. Essays in Philosophical Method, Chicago: University of Chicago Press, 1967, pp. 54-62.)
______. Von der Erkenntnistheorie zur Wissenschaftslogik. Actes du Congress Internationale de Philosophie Scientifique,
Sorbonne, Paris 1935, Facs. I " Philosophie Scientifique et Empirisme Logique", Paris: Herman & Cie, pp. 36-41,
1936a.
______. Wahrheit und Bewährung. Actes du Congres Internationale de Philosophie Scientifique, Sorbonne, Paris 1935, Facs.
IV, " Induction et Probabilité", Paris: Hermann & Cie., pp. 18-23, 1936b.
______. Truth and Confirmation." In Readings in Philosophical Analysis, New York: Appleton-Century-Crofts, pp. 119-
227, 1949.
______. Logical Foundations of Probability. Chicago: University of Chicago Press, 1950.
______. Meaning and Synonomy in Natural Language. Philosophical Studies 6: 33-47, 1955. (Repr. in Carnap, Meaning
and Necessity, 2nd ed. with supplementary essays, Chicago: University of Chicago Press. 1956, pp. 233-247.)
______. Comments and Replies. In P.A. Schilpp (ed.), The Philosophy of Rudolf Carnap, LaSalle: Open Court., pp.
859-1016, 1963.
CARUS, André. Carnap and Twentieth Century Thought: Explication as Enlightenment. Cambridge: Cambridge University
Press, 2007.
CREATH, Richard. Quine on the Intelligibility and Relevance of the Analyticity. In R. Gibson (ed.) Cambridge Compa-
nion to Quine, Cambridge: University of Cambridge Press, pp. 47-64, 2004.
EBBS, Gary. Rule-Following and Realism. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1997.
______. Carnap’s Logical Syntax. In R. Gaskin (ed.), Grammar in Early Twentieth Century Philosophy, London: Routledge,
pp. 218-237, 2001. (Repr. in Ebbs, Carnap, Quine and Putnam on Methods of Inquiry, Cambridge: Cambridge
University Press, pp. 13-32.)
FRANK, Philipp. Philosophy of Science. The Bridge Between Philosophy and Science. Englewood Cliffs, NJ: Prentice-
Hall, 1957. (Repr. Minola: Dover, 2004.)
FRIEDMAN, Michael. Carnap’s Aufbau Reconsidered. Nous 21: 521-45, 1987. (Repr. in Friedman, Reconsidering
Logical Positivism. Cambridge: Cambridge University Press, pp. 89-113, 1999.
______. Epistemology in the Aufbau. Synthese 93: 15-57, 1992. (Repr. with postscript in Friedman, Reconsidering
Logical Positivism. Cambridge: Cambridge University Press, pp. 114-164, 1999)
GALLIE, W. B. Essentially Contested Concepts. Proceedings of the Aristotelian Society 56: 167-198, 1955-56. (Repr. in
Gallie, Philosophy and the Historical Understanding, London: Chatto & Windus, 1964.)
HALLER, Rudolf. Die philosophische Entwicklung im Österreich der Fünfzigerjahre, Manuskripte 23: 57-68, 1983.
(Repr. in Haller, Fragen zu Wittgenstein und Aufsätze zur Österreichischen Philosophie, Amsterdam: Rodopi, pp.
219-245, 1986.)
HEMPEL Carl Gustav. Schlick und Neurath: Fundierung vs. Kohärenz in der Wissenschaftlichen Erkenntnis. Grazer
Philosophische Studien 16-17: 1-18, 1982. (Trans. " Schlick and Neurath: Foundations and Coherence in Scientific
Knowledge", in Hempel, Selected Philosophical Essays (ed. by R. Jeffreys), Cambridge: Cambridge University Press,
pp. 181-198, 2000.)
KIM, Jaegwon. What is Naturalized Epistemology? Philosophical Perspectives 2: 381-405, 1988.
KOPPELBERG, Dirk. Die Aufhebung der Analytischen Philosophie . Frankfurt: Suhrkamp, 1987.
______. How and Why to Naturalize Epistemology. In Perspectives on Quine, Oxford: Blackwell, pp. 200-211, 1990.
MAFFIE, James. Recent Work on naturalistic Epistemology, American Philosophical Quarterly 27: 281-293, 1990a.
______. Naturalism and the Normativity of Epistemology, Philosophical Studies 59: 333-349, 1990b.
NEURATH, Otto, Soziologie im Physikalismus, Erkenntnis 2: 393-431, 1932a. (trans. " Sociology and Physicalism" in
A. J. Ayer (ed.), Logical Positivism, New York: Free Press, 1959, pp. 282-320, and " Sociology in the Framework of
Physicalism" in Neurath, Philosophical Papers 1913-1946 (ed. by R.S. Cohen and M. Neurath), Dordrecht: Reidel,
1983, pp. 58-90.)

174 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 157-175
ISSN: 2317-9570
’EPISTEMOLOGY NATURALIZED’ AND THE VIENNA CIRCLE

______. Protokollsätze. Erkenntnis 3: 204-14, 1932b. (Trans. "Protocol Sentences" in A. J. Ayer (ed.), Logical Positivism,
New York: Free Press, 1959, pp. 199-208, and "Protocol Statements" in Neurath, Philosophical Papers 1913-1946
(ed. by R.S. Cohen and M. Neurath), Dordrecht: Reidel, 1983, pp. 91-99.)
______. Physikalismus und Erkenntnisforschung. NI 2: 97-105 and 234-237, 1936. (Trans. "Physicalism and the
Investigation of Knowledge" in Neurath, Philosophical Papers 1913-1946 (ed. by R.S. Cohen and M. Neurath),
Dordrecht: Reidel, pp. 159-166 and 168-171, 1983.)
PASSMORE, John. Logical Positivism. In P. Edwards et al (eds.), Encyclopedia of Philosophy Vol. 5, New York: Macmillan
and The Free Press, pp. 52-57, 1967.
PUTNAM, Hilary. Why Reason Can’t Be Naturalized. Synthese 52: 3-24, 1982. (Repr. in Putnam, Philosophical Papers
Vol. 3, Cambridge: Cambridge University Press, pp. 229-47, 1983.
QUINE, W.V.O. Two Dogmas of Empiricism. Philosophical Review 60: 20-43, 1951. (Repr. in Quine, From a Logical Point
of View , Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1953, rev. ed. 1980, 20-46.)
______.Carnap and Logical Truth. In P.A. Schilpp (ed.), The Philosophy of Rudolf Carnap, LaSalle: Open Court. pp.
385-406, 1963.
______. Epistemology Naturalized. In Quine, Ontological Relativity and Other Essays, New York: Columbia University
Press, pp. 69-90, 1969.
______. Theories and Things. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1981.
______. Response to Morton G. White. In E. Hahn and P. Schilpp (eds.), The Philosohy of W.V.O. Quine, LaSalle, Ill.:
Open Court, pp. 662-666, 1986.
______. Naturalism; or, Living within one’s Means., Dialectica 49: 251-261, 1990a. (Repr. in Quine 2004, pp. 275-286.)
______. The Pursuit of Truth. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1990.
______. Two Dogmas in Retrospect. Canadian Journal of Philosophy 21: 265-74, 1991. (Repr. in Quine 2004, pp. 54-64.)
______. From Stimulus to Science. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1995.
_____. Quintessence (ed. by R. Gibson). Cambridge, Mass.: Harvard Univeristy Press, 2004.
REISCH, George. Did Kuhn Kill Logical Empiricism? Philosophy of Science 58: 264-277, 1991.
RICHARDSON, Alan. From Epistemology to the Logic of Science: Objectivity and Empiricism." In R. Giere and A.
Richardson (eds.), 1996, Origins of Logical Empiricism, Minneapolis: University of Minnesota Press, pp. 309-322,
1966.
______. Carnap’s Construction of the World. Cambridge: Cambridge University Press, 1988.
RYSIEW, Patrick. Naturalism in Epistemology, The Stanford Encyclopedia of Philosophy,2016. <https://plato.stanford.edu
/archives/fall2020/entries/epistemology-naturalized/>.
UEBEL Thomas. Neurath’s Programme for Naturalistic Epistemology. Studies in the History and Philosophy of Science 22:
623-46, 1991.
______. Logical Empiricism and Sociology of Knowledge: The Cse of Neurath and Frank, Philosophy of Science 67:
S138-S150.
______. Empiricism at the Crossroads. The Vienna Circle’s Protocol Sentence Debate. Chicago: Open Court, 2007.
______. Neurath’s Protocol Statements Revisited: Sketch of a Theory of Scientific Testimony. Studies in History and
Philosophy of Science 40: 4-13, 2009.
______. Logical Positivism-Logical Empiricism: What’s in a Name? Perspectives on Science 21: 58-99, 2013a.
______. Pragmatics in Carnap and Morris and the Bipartite Metatheory Conception. Erkenntnis 78: 523-546, 2013b
______. Three Challenges to the Complementarity of the Logic and the Pragmatics of Science. Studies in History and
Philosophy of Science 53: 23-32, 2015.
______. Carnap’s Transformation of Epistemology and the Development of his Metaphilosophy. The Monist 101: 367-
387, 2018.
VERHAEGH Sander. Working From Within. The Nature and Development of Quine’s Naturalism. Oxford: Oxford Univer-
sity Press, 2018.

Received / Recebido: 18/07/2020


Approved / Aprovado: 18/11/2020
Published / Publicado: 30/12/2020

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 157-175 175
ISSN: 2317-9570
DOI: https://doi.org/10.26512/rfmc.v8i2.35862

Logical and Analogical Thinking


[Pensamento Lógico e Analógico]

Gottfried Gabriel*

Abstract: The contrast between logical and analogical thinking is illustrated by the
representative views of Frege and Nietzsche. These ways of thinking turn out to be
expressions of different ways of conceiving the world. They stand for two opposing
traditions of contemporary philosophy: scientific-analytic philosophy and postmodern
deconstruction. Based on Wittgenstein’s philosophy of language, it is argued that neither
of the two perspectives is absolute, but that both should complement each other.
Keywords: Complementarity. Family. Resemblance. Logic. Metaphor. Rhetoric. Frege.
Nietzsche. Wittgenstein.

Resumo: O contraste entre o pensamento lógico e analógico é ilustrado pelas visoes


representativas de Frege e Nietzsche. Essas formas de pensar acabam sendo expressoes
de diferentes formas de conceber o mundo. Elas representam duas tradiçoes opostas
da filosofia contemporânea: filosofia científico-analítica e desconstruçao pós-moderna.
Com base na filosofia da linguagem de Wittgenstein, argumenta-se que nenhuma das
duas perspectivas é absoluta, mas que ambas devem se complementar.
Palavras-chave: Complementaridade. Semelhança de família.Lógica. Metáfora. Retó-
rica. Frege. Nietzsche. Wittgenstein.

I should like to begin with a provisional ons," manages to keep the conceptual
elucidation of the concepts in the title boundaries pervious. So defined, logi-
of my paper. The term "logical thin- cal thinking compels the differentiation
king" means here a kind of thinking of that which is similar, while analogi-
which argumentatively conducts itself cal thinking seeks similarities in dispa-
on the basis of precise distinctions, i.e., rity. The basis of analogical thinking is
by means of "sharply delimited con- the vagueness of concepts.
cepts" (FREGE, 1903, § 56). In con- My paper will treat analogical thin-
trast, the term "analogical thinking" is king in philosophy, but I want to stress
supposed to designate a kind of thin- the point that vagueness is the rea-
king which, availing itself of "transiti- son for analogical thinking in jurispru-

* Professor emeritus of Friedrich-Schiller-Universität, Jena, Germany. PhD (1972). Habilitation (1976).


E-mail: gottfried.gabriel@uni-jena.de.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 177-190 177
ISSN: 2317-9570
GOTTFRIED GABRIEL

dence as well. If the rules of justice (die of rhetoric, which, since A.G. Baum-
Rechtssätze) have gaps it might not be garten, has been called "aesthetics,"
clear whether a special case is subsu- where they may "compensatorily" in-
mable under a special law or not. That dulge their non-propositional manner
is, the logical law of the excluded mid- of thinking. This development un-
dle is not applicable. And this hap- derlies the opposition of the scienti-
pens because general laws cannot an- fic and aesthetic comprehensions of the
ticipate all possible particular cases to world. Naturally, I should not like to
be judged. Such cases nead interpre- assert that rhetoric and aesthetics coin-
tation by analogy. Though in criminal cide (already Aristotle wrote a separate
law - following the principle " nullum "Poetics" along with a "Rhetoric"), nor
crimen sine lege, nulla poena sine lege" that poetry and eloquence are taken up
- conclusions by analogy are controver- without remainder in analogical thin-
sial, in fact they are unavoidable. Here king. The fact is, however, that the con-
I refer to the continental civil law. In temporary return of rhetoric into phi-
the Anglo-Saxon common law it is quite losophy - under the catch-word "me-
clear that the regard of precedents ( taphor" - accompanies an uprising of
Präzedenzfälle) in case law requires ana- analogical thinking against its logical
logical thinking in judging the simila- counterpart.
rity and comparability of the cases. More narrowly seen, the goal of this
The opposition between logical and rhetorical turn consists in levelling the
analogical thinking should bring into generic difference between philosophy
view the central point of a conflict and literature as well as their pecu-
which has essentially shaped the self- liar forms of cognition. More broa-
understanding of Western philosophy, dly conceived, this attempt gains its
namely, the conflict between logic and practical-philosophical significance th-
rhetoric. Logic excludes rhetoric from rough its accompanying critique of the
its disciplinary realm. This is so be- Western concept of rationality. Behind
cause cognition is fixed to the con- the epistemological question about the
cept of truth, truth conceived as the relation of logical and analogical thin-
truth of propositions. This concep- king stands the anthropological ques-
tion secures cognition to the form of tion about the appropriate relation of
propositionality. Therewith, it expels man to world - the conflict between
from logic all elements which make the logical-scientific and the analogical-
no contribution to the truth-valuative, aesthetic comprehensions of the world.
propositional content of thinking and One solution for overcoming this an-
language. These elements are ba- tagonism consists in compensating for
nished to another realm: the "ghetto" the so-called deficits of analytical sci-

178 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 177-190
ISSN: 2317-9570
LOGICAL AND ANALOGICAL THINKING

ence through rhetorical art (cf. MAR- as a logical thinker and Wittgenstein as
QUARD, 2003, pp. 173-177). To me, an analogical thinker employ the con-
however, this solution appears not only cept of perspicuity. A glance at the
to be unjust towards science, but also historical background of both forms of
to give art itself much too little credit. "perspicuous representation" (übersich-
Compensation degenerates only too ea- tliche Darstellung1 ) in the traditions of
sily into mere surrogacy. More appro- logical "sagacity" (acumen) and aesthe-
priate may be the stronger thesis which tic "wit" (ingenium) supports the thesis
holds that science and art complement that the antagonism of logic and rhe-
one another as equally entitled modes toric exists only superficially. Its roots
of disclosing the world (GOODMAN, lie in excessively one-sided orientations
1976), although without allowing the which fail to do justice to an anthropo-
difference between them to disappear. logically grounded complementarity of
The following reflections are intended these forms of cognition.
to help support this view by showing
that it is justified and does not repre-
Frege and Logical Thinking
sent merely a flight from the surging
tide of post-modernism. I shall not occupy myself in the fol-
I shall now proceed by sketching out, lowing too extensively with a descrip-
first, logical thinking with reference to tion of logical thinking. I should like
its proponent Frege and, then, in so- only to mention the reasons which un-
mewhat more detail, the critique of lo- derlie the demand for the sharp deli-
gical thinking with reference to its op- mitation of concepts, especially as it
ponent Nietzsche. I shall examine this has been placed by the father of mo-
critique in order to develop from it, in dern logic, Gottlob Frege. The demand
contrast to Nietzsche’s own exaggerated for this sharp delimitation follows from
claims, the justified aim of analogical the bivalence of classic logic. Vague
thinking. Starting from an analysis and concepts, for which one cannot deter-
a new assessment of the Wittgenstei- mine whether a given object falls un-
nian concept of "family resemblance," I der them or not, prevent one from de-
shall then attempt to place logical and termining the truth or falsity of those
analogical thinking in an appropriate propositions which assert such a sub-
relation, one which may be provisio- sumption. Already in his "Begriffssch-
nally described as the complementarity rift" (1879), Frege established that con-
of two contrary forms of presentation. tents in which such concepts occur in-
What is surprising is that both Frege validate themselves as "judgable" and

1 The new translation „surveyable representation“ is much better. Wittgenstein means „Übersicht“, not „Durchsicht“.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 177-190 179
ISSN: 2317-9570
GOTTFRIED GABRIEL

therewith as contents capable of posses- analogical thinking speak as if to one


sing truth-values. (FREGE, 1879, p. 64) another. This "dialogue" eases for us
It is worth noting that as an example of the task of examining and comparing
a concept which should be so excluded, the arguments of Nietzsche and his suc-
Frege explicitly names the concept of cessors.
a "heap," therewith addressing the so-
called sorites, which, since antiquity,
has been brought into play by rheto- Nietzsche and the Critique of Thin-
ric as a logical paradox and, moreover, king in Terms of Identity
as an argument for analogical thinking
in transitions.2 Frege does not, howe- In the more recent critique of logic
ver, exclude vague concepts in general. which may be traced back to Nietzs-
He only emphasizes that logic - in the che and the rhetorical tradition, Frege’s
sense of classic bivalent logic - cannot thinking in terms of "sharply delimi-
work with them. The logic of vague ted concepts" means thinking in terms
concepts, especially so-called "fuzzy lo- of "identity." Those who in one way or
gic," is only a later development. It may another have allied themselves with Ni-
be viewed as an attempted logical reha- etzsche’s view, such as Th. W. Adorno,
bilitation of certain forms of analogi- J. Derrida and J.-F. Lyotard, among
cal thinking. In the following reflecti- others, pass themselves off as "advoca-
ons, however, we wish to restrict our- tes of the non-identical."3 Usually, ad-
selves to that particular thought which vocates are counsels for the defense.
Frege brings to light, namely, that lo- These advocates, however, are instead
gic must select or prepare the concepts prosecutors, and Adorno renders their
with which it wants to work. This complaints even more acute by intenti-
thought poses the question whether onally placing the logical order of con-
such a preparation involves a counter- cepts in one and the same context with
feiting or falsification ( Fälschung) of re- the dominant structures of the political
ality. This is exactly the objection which order.
F. Nietzsche - without knowing Frege’s
work, of course, although contempora-
"The universality of thoughts,
neously with him - advances. The clas-
as discursive logic deve-
sic author of modern logical thinking
lops it, mastery in the
and the classic author of post-modern
sphere of the concept, exalts

2 On the basis of vague concepts such as "heap" and "bald," hence, concepts which are not at all sharply delimited, rhetoricians
attempted to argue that the opposites coincide because one cannot additively or subtractively decide, as the case may be, when a
heap of grain begins or a healthy head of hair ends.
3 I employ here a formulation from WELLMER (1985). Cf. particularly the expositions on pp. 85 f., 145 f., 148 f.

180 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 177-190
ISSN: 2317-9570
LOGICAL AND ANALOGICAL THINKING

itself upon the founda- the process of assimilation must


tion of mastery in reality." already have occurred [...]."
(ADORNO/HORKHEIMER, (NIETZSCHE, 1966, p. 476)
1969, p. 20)
On the basis of this conception of
Already Nietzsche indicates that lo- assimilation, Nietzsche develops the
gic arises not from the will to truth, more principal objection of his broader
but rather from the will to power. This assertion that such identification is a
objection is grounded in the fact that "counterfeiting" or "falsification" (Fäls-
the formation of its concepts presup- chung):
poses the thinking of identity, that is,
the comprehension of the disparate as
in a certain regard the same. By dis- "Logic is bound to the condi-
regarding the peculiarities of individu- tion: posited, there are identical
als, this process of abstraction leads di- cases. In fact, in order that
rectly to the "universality of thoughts" one can think and conclude
which Adorno addresses. Nietzsche ar- logically at all, this condition
gues: must first be feigned as ha-
ving been fulfilled. This means:
the will to logical truth can
"The judgment - this is the be-
only carry itself out after ha-
lief: ’this and this is so.’ The-
ving presupposed a fundamen-
refore, there lies in the judg-
tal counterfeiting of everything
ment the avowal to have en-
which occurs. As a result, there
countered an ’identical case’:
reigns here a drive which is ca-
therefore, it presupposes com-
pable of both means, first, of
parison, with the help of me-
counterfeiting and, then, of car-
mory. The judgment does not
rying out its point of view: logic
bring it about that there seems
does not stem from the will to
to be an identical case. Ins-
truth." (NIETZSCHE, 1966, p.
tead, it believes itself to per-
476)
ceive such; it works under the
presupposition that there are
identical cases at all. What The connection between the delimi-
is that function called which ting formation of concepts and thinking
must be at work much longer, in terms of identity results from the
earlier, which in itself equali- fact that "identical cases" are to be un-
zes and assimilates unequal ca- derstood as cases of the same universal
ses? [...]. Before one can judge, regardless of the individual differen-

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 177-190 181
ISSN: 2317-9570
GOTTFRIED GABRIEL

ces. The formulation "this and this is Thus, the objection against logical thin-
so" (in the first quotation from Nietzs- king defines itself not simply through
che) says that in view of the univer- the fact that here the subsuming power
sal "so," various individual "thises" are of judgment is at work, but rather first
the same . The term "judgment" me- and foremost through the additional
ans the predicative proposition; and, in demand that for its subsumptions the
fact, it presupposes that the same pre- principles of the excluded third and
dicate can apply to various subjects. In the excluded contradiction commonly
this sense, Nietzsche’s formulation re- hold. Therewith, the subsumptions fol-
fers to an enumeration of elementary low the logic of the exclusive "or," of
propositions in which the same pre- "either-or."
dicate is attributed to various objects. In fact, both analogical and logical
In their common predicate, one igno- thinking proceed comparatively; but
res the differences between these ob- they have different goals. Logical com-
jects. Now, one might wish to name just parison is generalizing, for it disregards
such a procedure analogical, because it the peculiarities of the individual ca-
equalizes that which is disparate. This ses by levelling off their differences.
procedure would then not at all stand Analogical comparison is differentia-
in opposition to logical thinking, but ting, for it stresses the peculiarities by
instead would simply form what Ni- nuancing them. If analogical thinking
etzsche calls its "presupposition." In or- is described here as "differentiating,"
der to obviate any possible terminolo- these differences are naturally not me-
gical misunderstandings here, it must ant in the sense of the sharp distincti-
be emphasized that not every compa- ons which characterize logical thinking,
rison amounts to analogical thinking, but rather in the sense of those shadings
but instead only such which maintains which make possible gradual transiti-
a thinking in transitions. The "process ons. Thus, two concepts of difference
of assimilation" - of the becoming simi- are to be distinguished: the logical con-
lar of that which is in itself disparate cept of exact distinctions (in the realm
- which Nietzsche addresses excludes of the universal) and an analogical con-
such transitions because it amounts to cept of fine nuances (in the realm of the
an appropriation of individual cases, in particular).4 Wittgenstein’s concept of
the sense of a classification which, for family resemblance shall give us occa-
the sake of clear-cut distinctions from sion to elucidate this difference further.
other concepts (classes), suppresses the This context makes suitable a further
peculiarities of the individual cases. preventive remark apropos the unders-

4 The tradition differentiates here between "distinct" and "confused" concepts.

182 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 177-190
ISSN: 2317-9570
LOGICAL AND ANALOGICAL THINKING

tanding of the principle of identity. In tensions may have the same extension.
traditional logic, the proposition "A = Nietzsche reproves logical thinking
A" stands first and foremost for the for counterfeiting reality in its com-
identity of concepts, not objects. These plexity and manifoldness by attemp-
two cases were often not distinguished, ting to apprehend it in distinct con-
since one ordinarily considered objects cepts. In order adequately to evalu-
to be individual concepts. Modern lo- ate this reproof, we must distinguish
gic (since Frege) is here more precise. two aspects, namely, first, the question
Nonetheless, if one comprehends iden- whether Nietzsche accurately describes
tity first and foremost as the identity of logical procedure; and, second, the al-
objects, any talk of "thinking in terms of lied further question whether his va-
identity" ( identifizierendes Denken) can luation of this procedure is adequate.
be easily misunderstood against this In view of what we have said about lo-
background. Hence, let it be empha- gical thinking, we may unequivocally
sized once more: "identical cases" are answer the first question with "yes." The
for Nietzsche not the same case, but answer to the second question depends
rather disparate cases of the same con- upon the extent to which the claims of
cept. Thus, the "advocates of the non- logical thinking reach. If these were to
identical" are authors who resist thin- go so far - and in some cases perhaps
king in sharply delimited concepts. Of they do - as to pretend that only a thin-
course, one can only make this qua- king which employs sharply delimited
lification with regard to the aforesaid concepts can lay claim to cognitive va-
authors and not on systematic grounds. lue, then one could argue against such
If, quite generally, we define the ques- a presumption in favor of analogical
tion of the possibility (or impossibi- thinking. In any event, however, one
lity) of the identity of the disparate as should do so not in the exaggerated
our fundamental question, the one with manner of Nietzsche, who contests the
respect to which the logical and the rhe- cognitive value of logical thinking by
torical traditions have dissented, then referring to the metaphorical character
this question bears import not merely of language in general, but instead by
for concepts, but also for objects. In the positively contraposing to it the inde-
end, modern logic and semantics (in al- pendent cognitive value of analogical
liance with Frege’s distinction between thinking itself.5
"sense" and "reference") have uniformly The question how to valuate the
replied in both cases that disparate in- metaphorical character of language

5 For Nietzsche, a metaphorical construction seems to lie already at the basis of simple predication, given the presupposition that
the predicator of one object can be "transferred" to another. Accordingly, there could be no non-metaphorical conceptual formations
(generalizations) at all. This would mean that for Nietzsche every generalization would amount as such to a "counterfeiting."

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 177-190 183
ISSN: 2317-9570
GOTTFRIED GABRIEL

is of decisive significance for the de- one discovers that it cannot be had in
termination of the relation of logical its "metaphysical" form.
and analogical thinking. Does this Now, it may well be the case that we
character occasion a negative critique are so "entangled" in metaphors that we
of every possibility of cognition or a cannot escape them. The only ques-
positive extension of the possibility of tion is how we react to this situation:
cognition beyond the sciences? When whether it plunges us into an epistemo-
Frege considers it the task of philo- logical depression ("nothing doing") or
sophy "to break the mastery of the word a rhetorical euphoria ("anything goes")
over the human mind," (FREGE, 1879, or, finally, leads us to reflect upon the
p. VI) he means to do justice to this balanced relation of logic and rhetoric.
task by eliminating the "multivalence," We must learn to deal critically with
(FREGE, 1882, p. 52) i.e., the ambi- our metaphors just as much as with our
guity, of signs, and the "restless flow," distinctions. What we need is an analy-
(FREGE, 1882, p. 53) i.e., the vague- tic hermeneutics of language which cri-
ness, of a thinking which employs tran- tically thematizes both our metaphori-
sitions. Frege views both of these as- cal use of language and our sharp dis-
pects in close connection to the "fi- tinctions.
gurative," i.e., metaphorical, character We must admit a need for advoca-
of language. Cognition essentially de- tes of the non-identical when logic sets
mands, indeed, presupposes the over- about raising a universal demand. With
coming of this character through se- regard to this demand, it is worthwhile
curing fixed conceptual delimitations. to keep in mind the truth of the dic-
The contrary counterposition, as it has tum "omnis determinatio est negatio,"
been represented especially by Fritz since every determination, due to its
Mauthner in alliance with Nietzsche, exclusion of peculiarities, is bound to a
proceeds on the basis of the same fin- loss (insofar as one thinks in concepts
ding, but in contesting the claim that of totality). The situation looks very
the metaphorical character of language different, however, when one unders-
can be overcome, it succumbs to a ra- tands identifying or classifying not as a
dical skepticism. In Mauthner, an in- general measure, but rather as one un-
timation already apparent in Nietzsche dertaken as a means to a specific end,
becomes especially clear, namely, that e.g., a scientific one.
skepticism is merely the reverse of dog- We also want to admit that boun-
matism (I. Kant). If, initially, one de- daries which are drawn through defi-
fines knowledge objectivistically as ac- nitions are not boundaries in reality.
cess to the things themselves, one com- For this very reason, however, we do
pletely surrenders all claims to it when not need to be told that such concep-

184 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 177-190
ISSN: 2317-9570
LOGICAL AND ANALOGICAL THINKING

tual formations involve a fundamen- cal thinking retains its place (limited to
tal falsification or counterfeiting. It the sciences), but also analogical thin-
would only make sense to speak of "fal- king itself comes into critical view.
sification" if there were some access The early Wittgenstein dedicated
to reality in itself - which is precisely himself to bivalent logical thinking in
what Nietzsche contests - by means of the tradition of Frege, with his demand
which the falsification could be expo- for sharply delimited concepts. La-
sed as falsification. In this context, it ter, however, Wittgenstein contradicted
is somewhat suspicious that Nietzsche Frege with his own program of "perspi-
speaks of cases which are "in them- cuous representation," the leading con-
selves" unlike. It is important here to cept of which is that of "family resem-
establish a symmetry by maintaining blance." This concept is especially fit-
that both: the making of distinctions ted for underpinning analogical thin-
and the stressing of similarities, are not king. Its tenor is not exhausted in des-
compelled by things in themselves, but cribing the vagueness of our everyday
rather are a matter of the perspective concepts. What is more essential is that
which we take over against them (de- the relation of family resemblance, lo-
pending upon certain aims). Already gically considered, is a transitive rela-
with the admission of this point, our tion. If the relation of family resem-
question about the adequate relation blance holds for a and b and also for b
of logical and analogical thinking finds and c, then it holds as well for a and c.
an answer which we may now develop At first glance, this transitivity is sur-
further on the basis of certain reflecti- prising, since family resemblance initi-
ons of Wittgenstein. ally requires less than ordinary simila-
rity (in the sense that its terms share
at least one characteristic), thus see-
ming to compose the "weaker" relation.
Wittgenstein, "Perspicuous Represen-
How can the relation of family resem-
tation" and "Family Resemblance"
blance be transitive, although this does
Despite the currently common ten- not hold for the "stronger" relation of
dency to adduce Wittgenstein as an ally ordinary similarity?6 The transitivity is
of Nietzsche and Adorno or even to de- due to the fact that a common line of
clare him to be a post-modern thinker, development of the different instances
his later philosophy can be conceived as forms the background of the relation.
an outline of an analogical comprehen- Against such a background, the rela-
sion of the world in which not only logi- tion of family resemblance can hold for

6 Example: a: red ball, b: red cube, c: green cube. Both a and b and b and c are similar, not, however, a and c.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 177-190 185
ISSN: 2317-9570
GOTTFRIED GABRIEL

two things without their having a single portance of finding and of in-
characteristic in common. This simila- venting intermediate links. The
rity is what is meant in R. Musil’s novel concept of perspicuous repre-
Der Mann ohne Eigenschaften, when sentation is of fundamental
it is said of "dinner forks, pitchforks, significance for us. It desig-
musket-forks, forks of trees, forks in nates our form of representa-
the road and other forks" that: tion, the way in which we see
things. (Is this a ’Weltans-
chauung’?)" (WITTGENSTEIN,
"They do not even need to be
2001, p. 814, § 122).7
all similar to one another [i.e.,
they need have no characteris-
tic in common, G.G.], for it al- The Weltanschauung about which
ready suffices when one yields the final sentence of this quota-
the other, when one moves from tion queries may be defined as
one to the other, when merely an analogical Weltanschauung or
neighboring links are similar to an analogical comprehension of the wor-
one another: more distant ones ld. Wittgenstein’s emphasis ("funda-
are then similar through their mental significance") derives from his
mediation." (MUSIL, 1970, p. awareness that a "major source of our
1289) lack of understanding," from which
philosophical confusion accrues, con-
sists in the fact "that we do not com-
With his concept of family resem-
mand a clear view of the use of our
blance, Wittgenstein introduced a con-
words. - Our grammar lacks ’perspi-
cept of similarity which makes it pos-
cuity.’" (WITTGENSTEIN, 2001, p. 814,
sible to posit in relation to one another
§ 122)8
even more distant things which are not
Now, how far does Wittgenstein go
similar to one another, thus conveying a
in his analogical thinking? The impor-
"perspicuous representation" of the ma-
tant qualification here is that family
nifold of appearance:
resemblance is a similarity internal to
a certain region. It subsists between
"A perspicuous representation the members of a certain family. Even
mediates just that understan- when the family is not "sharply deli-
ding which consists in ’seeing mited" and it remains open which of
connections.’ Hence, the im- the so-called "more distant relations"

7 Translation modified here and elsewhere.


8 Thus the introductory sentences to the previous quotation.

186 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 177-190
ISSN: 2317-9570
LOGICAL AND ANALOGICAL THINKING

may be reckoned among the family, ally disparate regions, e.g., the trans-
the talk is not of a regionally overlap- fer of the spatial talk about inside and
ping family resemblance in the sense outside to the relation of the I and the
that everything coheres with everything world, which is then literally unders-
else. tood. The critical tendency of Witt-
As a result, Wittgenstein in no way genstein’s investigation towards me-
relinquishes the process of making dis- taphysics, which he himself names a
tinctions: "We shall again and again "grammatical" one, consists precisely
underline distinctions which our ordi- in discovering and removing the cate-
nary forms of language easily make us gorial "misunderstandings" which have
overlook." (WITTGENSTEIN, 2001, p. been evoked, among other reasons, "by
816, § 132) This procedure is especi- certain analogies between the forms of
ally necessary when one is concerned expression in disparate regions of our
with drawing comparisons between ca- language." (WITTGENSTEIN, 2001, p.
tegorially disparate regions, with cate- 802, § 90)9
gorial metaphors, for here lurk the dan- This danger does not exist when
gers of analogical thinking. Wittgens- we move within a categorially well-
tein gives expression to this ambiva- defined, unitary region. Wittgenstein’s
lence by emphasizing on one hand that comparison of his own thinking with
a "good simile" refreshes the understan- that of Hegel (independently of the
ding and, moreover, describing his own question whether this comparison is ac-
thinking as an inventing "of new simi- curate) is especially informative here:
les," (WITTGENSTEIN, 1977, pp. 11,
43) while on the other hand warning
us that similes can effect a "false sem- "Hegel seems to me to be always
blance" (falscher Schein) which holds us wanting to say that things
"captive." (WITTGENSTEIN, 2001, p. which look different are really
811, § 112; p. 811, § 115) (One can dis- the same. Whereas my interest
tinguish in this way between the elu- is in showing that things which
cidating function of comparison and look the same are really diffe-
the metaphysical application of analo- rent. I was thinking of using as
gies.) Wittgenstein’s method consists a motto for my book a quota-
in playing new similes off against old tion from King Lear: ’I’ll teach
ones. Using analogical methods, he you differences.’" (WITTGENS-
contests the analogization of categori- TEIN, 1984, p. 157)10

9 Emphasis G.G.
10 I read the adverb "really" not ontologically, but rather as an emphasis of Wittgenstein’s own view of things over against that of
Hegel.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 177-190 187
ISSN: 2317-9570
GOTTFRIED GABRIEL

tion," but in his case for logical forma-


lism. (FREGE, 1882, p. 55)11 When
If this is supposed to be a profession
he correctly emphasizes that his two-
of a thinking in terms of differences, it
dimensional "Begriffsschrift" satisfies
is so in the sense not of making sharp
this demand better than (hitherto cus-
delimitations, but rather of describing
tomary) one-dimensional logical nota-
fine nuances in the way outlined above.
tions, the standard which he invokes
Wittgenstein’s analogical thinking con-
is one of optical distinctness, in which
sists not in making disparate appearan-
complicated logical relations, with the
ces similar (or equivalent) by denying
help of spatial delimitations, are repre-
their differences, but rather in further
sented in such a manner that they can
refining these, so that the sharp delimi-
be surveyed synoptically, "all at once":
tations are effaced. The method is pre-
"In this way, the individual contents are
cisely one in which a nuancing differen-
distinctly separated from one another
tiation draws together, as it were, that
and yet are easily perspicuous in their
which lies apart, so that the differen-
logical relations." (FREGE, 1882/1883,
ces present themselves as an continu-
p. 8)12 (It suffices here merely to men-
ous sequence of transitions, like those
tion the advantage provided by the
between the colors of the spectrum. The
bracket-free presentation of logical for-
tenor of the concept of family resem-
mulae.) The idea of synopsis is for
blance is, seemingly paradoxically for-
Wittgenstein likewise of fundamental
mulated, such as to promote coherence
import, although here this idea stands
through difference.
in Schopenhauer’s tradition of aesthe-
tic contemplation. (GABRIEL, 1991,
pp. 47-51) Correspondingly, the crite-
Logical and Aesthetic "Perspicuity" ria are of an aesthetic rather than a logi-
cal kind. For the synopsis of familially
The course of our reflections so far resemblant relations in the analogical
finds its confirmation in the fact that comprehension of the world, the multi-
even our talk about perspicuous re- plicity of cases and growth in comple-
presentation can be understood in two xity increase rather than decrease the
ways. In consideration thereof, I should perspicuity. This is aesthetic perspi-
like to bring into view the relation of cuity in the sense of "complete" clarity .
the scientific and the aesthetic com- In contrast, Frege’s perspicuity is of a
prehensions of the world. Frege, too, logical kind, in the sense of a delimi-
demands "perspicuity of representa-

11 Cf. FREGE, 1882/1883, pp. 7 f.


12 Emphasis G.G.

188 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 177-190
ISSN: 2317-9570
LOGICAL AND ANALOGICAL THINKING

ting distinctness. Conceptual thinking we can remove both of these from


in the mode of transitions is "aesthetic their ontologically bedded explanation
theory," that is, theory which itself de- and understand them epistemologi-
serves the name "aesthetic" and media- cally. This would mean that we can see
tes an aesthetic view of things. Adorno - view - things as disparate and as si-
demanded it, but only Wittgenstein re- milar, in accordance with the way in
alized it. which we structure the world. We ac-
centuate the differences or the similari-
ties; we, i.e., the interested subjects, see
the world in light of differences or simi-
Result larities. To play them both off against
each other does not make any sense.
The analogical comprehension of the Instead, we have to free ourselves from
world is nothing but a comprehension our fixation upon a single mode of cog-
of the world. We are concerned with nition and recognize disparate facul-
a form of the representation of things. ties and forms of cognition as comple-
This means that it is a matter of our mentary. That philosophy not only has
way of seeing which is not compelled to do with analogical thinking, but li-
by the things themselves. We could kewise requires thinking in terms of
also see things otherwise. Wittgenstein distinctions, we have seen in the prece-
further emphasizes this freedom of vi- ding reflections. A wholly analogical,
sion by maintaining that the relations aesthetic comprehension of the world
of family resemblance which manifest would be one-sided. As an exclusive
the "coherences" are attained not only alternative, however, a logical, scienti-
by a "finding," but also by an "inven- fic comprehension of the world would
ting" of connecting links, so that the- be none the less one-sided.
reby a productive roll accrues to the To hold fast to distinctions between
imagination. Thus, he explicitly warns things that appear to be similar by
us against holding the "mode of repre- drawing conceptual boundaries and to
sentation" or the "form" to be a determi- manifest similarities between things
nation of the essence of things themsel- that appear to be disparate by ope-
ves.13 ning up the conceptual boundaries -
If, generalizing, we transfer the these are diametrically opposed mo-
thought of the mode or form of repre- vements of thinking which in each
sentation as a way of seeing to the con- individual case can be dialectically, but
cepts of similarity and disparity, then

13 Cf. WITTGENSTEIN (2001, pp. 777f., § 50; p. 811, § 114). Cf.: "One predicates of the thing that which lies in the mode of
representation." (WITTGENSTEIN, 2001, p. 807, § 104)

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 177-190 189
ISSN: 2317-9570
GOTTFRIED GABRIEL

never fundamentally, played off against psychology (psychologia empirica) of


one another. In order for this play to re- his predecessors since Christian Wolff.
tain its balance, it is important to mas- These thinkers discriminated between
ter both forms. Only in this way can one wit (ingenium), as the faculty of ana-
succeed in bringing both the logical and logy, and sagacity (acumen), as the fa-
the aesthetic conceptions of the world culty of distinction. The tradition quite
into an adequately complementary re- self-evidently proceeded upon the as-
lation to one another. sumption that there is something lac-
The balanced relation of logical king in a man or woman who has the fa-
and analogical thinking is a demand culty of thinking only logically or only
which Kant raised on anthropological analogically. If the exaggeration of lo-
grounds. In his "Anthropologie in prag- gical thinking leads to empty distincti-
matischer Hinsicht," he treats this ques- ons, the exaggeration of analogical thin-
tion in the framework of the theory king ends in a blind frenzy of ideas,
of the cognitive faculties. Kant conti- in the chaos of free association, indeed,
nues here the tradition of the empirical even in madness.

References
ADORNO, Theodor W., HORKHEIMER, Max. Dialektik der Aufklärung, Frankfurt a.M. 1969.
FREGE, Gottlob.Begriffsschrift, eine der arithmetischen nachgebildete Formelsprache des reinen Denkens, Halle/Saale
1879.
https://b-ok.cc/book/3517171/f28b88
https://gdz.sub.uni-goettingen.de/id/PPN538957069?tify={%22view%22:%22info%22}
FREGE, Gottlob. Über die wissenschaftliche Berechtigung einer Begriffsschrift. Zeitschrift für Philosophie und philosophis-
che Kritik, 81 (1882), pp. 48-56.
FREGE, Gottlob. Über den Zweck der Begriffsschrift Jenaische Zeitschrift für Naturwissenschaft, 16/Supplement (1883),
pp. 1-10.
FREGE, Gottlob. Grundgesetze der Arithmetik, vol. II, Jena 1903.
GABRIEL, Gottfried. Zwischen Logik und Literatur. Erkenntnisformen von Dichtung, Philosophie und Wissenschaft, Stutt-
gart 1991.
MARQUARD, Odo. Zukunft braucht Herkunft. Philosophische Essays, Stuttgart 2003
GOODMAN, Nelson. Languages of Art. An Approach to a Theory of Symbols, Indianapolis, second edition 1976.
NIETZSCHE, Friedrich. Werke, vol. 3. Ed. K. Schlechta, München 1966.
MUSIL, Robert. Der Mann ohne Eigenschaften, Hamburg 1970,
WELLMER, Albrecht. Zur Dialektik von Moderne und Postmoderne. Vernunftkritik nach Adorno, Frankfurt a.M. 1985.
WITTGENSTEIN, Ludwig. Vermischte Bemerkungen, Herausgegeben von Georg Henrik von Wright, Frankfurt 1977.
WITTGENSTEIN, Ludwig. Recollections of Wittgenstein, Rush Rhees (ed.), Oxford/New York 1984.
WITTGENSTEIN, Ludwig. Philosophische Untersuchungen. Kritisch-genetische Edition. Herausgegeben von Joachim
Schulte, Frankfurt 2001.

Received / Recebido: 18/07/2020


Approved / Aprovado: 18/11/2020
Published / Publicado: 30/12/2020

190 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 177-190
ISSN: 2317-9570
DOI: https://doi.org/10.26512/rfmc.v8i2.35852

Frege Encore une Fois? Construction de l’Intelligible et Figures


Savoir
[Frege novamente? Construção do Inteligível e Figuras Saber]

Claude Imbert*

Resumé: On propose ici quelques éléments d’un travail en cours, la formulation en est
provisoire. On s’en est tenu aux prémisses. Pourquoi ce titre, Frege, encore une fois? Par-
tant d’une communication au colloque sur les Origines de la modernité tenu à Sao Paulo
à l’automne 2019, on trace l’intrication historique des supports et langages propres aux
constructions contemporaines de l’intelligible, les demandes auxquelles ils répondirent
telles qu’elles se sont révélées au tournant du XIXème-XXème siècle; Il s’agit d’une
histoire lente, le propos va tout à l’inverse de ce que l’on appela crise des sciences. Si
crise il y a - encore que ce terme, venu de la médecine hippocratique, ait beaucoup perdu
de sa prégnance - elle serait aussi et surtout ailleurs. C’est la notion même de modernité
en philosophie qui est en cause, toujours marquée par une opposition polymorphe entre
les Anciens et des Modernes, qui se perpétue sous tant de rhétoriques et de retours.
L’argument eut son heure de justesse. Encore faudrait-il se demander quels Anciens,
comment ils furent modernes en leur temps, et comment ‘ l’âge classique’ qui s’en
est recommandé s’est perpétué dans les figures d’un criticisme canonique- sur lequel
s’est fixé le débat. Aujourd’hui, besoin est d’identifier les chemins détournés d’une
modernité où la philosophie jouera sa mise et ses chances. On l’a tenté ailleurs, à propos
de Merleau-Ponty, de Lévi-Strauss, ou de Foucault. Eux- mêmes travaillaient à partir
d’un héritage criticiste qu’ils quittèrent élégamment, sans amertume ni déconstruction,
car l’essentiel était déjà d’identifier de nouveaux langages déposant l’intelligible sur
d’autres dimensions et, dans les décades d’après-guerre, d’ habiliter des dimensions
graphiques. Notre malaise y prend ses prémisses: il est dans la multiplication des voies
empruntées par un rationalisme distribué sur des langages complémentaires, qui ne
recouvrent pas le spectre entier de nos demandes, frayant des chemins argumentés ou
prétendus tels, inventifs ou récessifs, confondus dans une notion opaque, approximative,
d’information, déposeé sur un continuum de numérique et de communication. L’épisode
dont Frege fut l’épicentre, est aussi une affaire de graphisme, c’est à dire de syntaxe et
de diversification. S’y dessine ce qui sépare aujourd’hui les langues dites naturelles des
langages strictement graphiques ayant leurs dimensions propres. Tout en ayant toujours
coexisté quelque peu, les unes et les autres ont acquis un tout autre statut, et engagé un
conflit de performances. Etaient en cause l’alexandrinisme de la pensée philosophique
et la fin du galilélisme philosophique. Un pavé avait été jeté dans la mare, les remous en
viennent jusqu’à nous.
Mots-clés: Frege. Begriffsschrift. Langage. Graphisme.

* Professeure émérite à l’École Normale Supérieure (Paris), où elle enseigne l’histoire de la philosophie, l’histoire de la logique
et l’esthétique. Ses diverses publications portent sur les invariants des logiques grecques, Port-Royal, Kant, Wittgenstein et Frege.
E-mail: claude.imbert@ens.fr.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 191-208 191
ISSN: 2317-9570
CLAUDE IMBERT

Resumo: Propomos, aqui, alguns elementos de um trabalho em andamento; sua for-


mulação é provisória. Detivemo-nos em suas premissas. Por que esse título “Frege
novamente” ? Partindo de uma comunicação no X Encontro de estudos das origens da
filosofia contemporânea, realizado em São Paulo no outono de 2019, traça-se o intrin-
camento histórico dos suportes e linguagens próprios às construções contemporâneas
do inteligível, as perguntas às quais respondem tais eles como se revelaram na virada
do século XIX para o XX. Trata-se de uma história lenta, o argumento se encaminha
no sentido totalmente inverso daquele que se chamou crise das ciências. Se há crise
– ainda que esse termo, vindo da medicina hipocrática, tenha perdido muito de sua
pregnância – ela estaria também e sobretudo alhures. É a própria noção de modernidade
em filosofia que é posta em causa, sempre marcada por uma oposição polimorfa entre
Antigos e Modernos, que se perpetua sob inúmeros retornos e retóricas. O argumento
teve seu instante de precisão. Seria preciso ainda se perguntar quais Antigos, como
eles foram modernos em seu tempo e como “a era clássica”, que neles se amparou,
perpetuou-se nas figuras de um criticismo canônico – sobre o qual se fixou o debate.
Hoje, é necessário identificar os caminhos sinuosos de uma modernidade em que a
filosofia fará sua aposta e sua sorte. Nós o tentamos noutro momento, a propósito de
Merleau-Ponty, de Lévi-Strauss ou de Foucault. Eles próprios trabalhavam a partir de
uma herança criticista que igualmente abandonaram, sem amargor nem desconstrução,
pois o essencial era, já naquele momento, identificar novas linguagens que dispunham o
inteligível em outras dimensões e, nas décadas pós-guerra, habilitar dimensões gráficas.
Nisso, nosso incômodo toma suas premissas: há na multiplicação das vias emprestadas
por um racionalismo distribuído sobre linguagens complementares, que não recobrem
inteiramente o espectro e nossas perguntas, desbravando caminhos argumentados ou
pretensamente argumentados, inventivos ou recessivos, confundidos numa noção opaca,
aproximativa, de informação, disposta num continuum de numérico e de comunicação. O
episódio de que Frege foi o epicentro é também um assunto de grafismo, isto é, de sintaxe
e de diversificação. Desenha-se aí aquilo que, hoje, separa as línguas ditas naturais das
linguagens estritamente gráficas que têm suas próprias dimensões. Tendo coexistido
até certo ponto continuadamente, umas e outras adquiriram um estatuto inteiramente
diverso e motivaram um conflito de performances. Estavam implicados o alexandrismo
do pensamento filosófico e o fim do galileísmo filosófico. Uma rocha fora lançada ao mar,
suas vagas vêm até nós.
Palavras-chave: Frege. Conceitografia. Linguagem. Grafismo.

192 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 191-208
ISSN: 2317-9570
FREGE ENCORE UNE FOIS? CONSTRUCTION DE L’INTELLIGIBLE ET FIGURES SAVOIR

De Frege n’a-t-on déja tout dit, apres losophique, jusqu’au tournant du XI-
que Russell l’ait convaincu d’une an- Xeme siecle; elle s’était reportée sur
tinomie? Pourquoi revenir sur cette une catégorisation prédicative, puis sur
fin du XIXeme siecle, évoquer une his- un jugement calibré sur un paradigme
toire toute locale, qui s’est jouée aux mathématique. A l’âge classique, elle
frontieres de la mathématique et de avait alimenté l’utopie d’un langage al-
la logique, qui n’avait suscité rien de liant l’exactitude d’une caractéristique
plus que l’ironie de Poincaré, a la- et la certitude d’un calcul - sedeamus
quelle la grande majorité des mathé- ad abacos et calculemus. Le criticisme
maticiens ne s’était pas meme intéres- avait soutenu un réalisme transcendan-
sée? Dans l’immédiat, une contradic- tal par les formules de l’expérience et
tion qui avait proliféré en différentes conclu que la Critique de la raison pure
versions, avait pourtant inquiété Dede- serait plus tard comprise comme l’ apo-
kind. Il retarda une seconde édition de logie de Leibniz. le moment est venu
son traité sur la continuité. Mais en- d’accorder a Kant cette intention et la
core: pourquoi revenir sur une contra- lucidité de ses moyens, leur opportu-
diction évitée dans les premieres décen- nité mais aussi leur statut de dernier re-
nies du XXeme siecle par des procédu- cours.
res axiomatiques? L’affaire serait clas- Une autre arithmétique, engagée par
sée - si elle ne s’était également jouée Gauss et développée par l’école de Göt-
ailleurs, et a plus longue échéance. Elle tingen, un savoir arithmétique et une
a reflué sur le langage, notion philo- méthode algébrique qui s’étaient per-
sophique absolue, définitionnelle, pro- fectionnés dans toute l’ Europe sur tout
priété d’essence de l’humanité, et socle un siecle, avaient transformé la notion
de l’attitude philosophique depuis Pla- de calcul. Simultanément ces mathé-
ton. Etait mise en cause l’unité d’une matiques, développées au tournant du
notion de si vaste envergure, la coin- XXeme siecle et que l’on a dit moder-
cidence des articulations linguistiques nes, engageaient a leurs propres frais
et logiques, et la synonymie induite de- un langage hétérogene, y déposaient
puis plus de vingt siecles par l’adjectif une syntaxe qui n’épousait pas les syn-
logikos- liant, depuis le Phédon, la con- taxes implémentées sur les articulati-
dition discursive ou langagiere des so- ons des langues parlées. Leur singula-
ciétés humaines, la vocation rationnelle rité outrepassait les timides inventions
de l’homme, et un langage induit par symboliques des mathématiques classi-
la cosmologie et confirmé par ses mé- ques qui prorogeaient l’usage du latin,
diations analogiques. Cette négociation serait-il comme celui de Péano un la-
érigée en principe ne fut pas remise en tino sine flexione. Elle secrétait discre-
cause, prolongée par le galiléisme phi- tement une modernité reprise dans la

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 191-208 193
ISSN: 2317-9570
CLAUDE IMBERT

plupart des domaines scientifiques. De le recul du temps, deux faits portent


par son lieu et sa nature, elle échappait a l’attention autre chose que l’épisode
aux ’temps modernes’ des historiens, ou curieux d’un déboire, et incitent a ne
la philosophie s’était réservé une place pas s’en tenir la. D’une part comment
confortable. La conséquence la plus comprendre l’ estime qu’il suscita, mal-
claire, néanmoins la plus disputée et la gré une tentative inachevée, marquée
plus tardive, fut de renvoyer le rationa- au fer rouge d’une contradiction? Apres
lisme philosophique a ses propres res- l’épisode d’une antinomie (dite et stig-
sources, ajoutant une nouvelle incerti- matisée, notons-le, dans le vocabulaire
tude a celle qu’avait instillée, a la ra- kantien) pourquoi, outre l’honneteté et
cine du dire, les travaux des psycholo- la grandeur d’âme tôt relevées par Rus-
gues, sociologues, linguistes, anthropo- sell, une sorte de reconnaissance fut-
logues et aujourd’hui cognitivistes, tan- elle accordée a Frege, comme s’il s’était
dis que les mathématiques expérimen- trouvé révéler et affronter ce qui me-
taient, par le biais d’écritures a l’essai naçait l’économie philosophique classi-
et de graphes associés, une zone de sa- que, une modernité conclue sur le cri-
voir tenue jusqu’alors pour immune.1 ticisme dont il dévoilait, sans doute a
Elles aussi furent mises en demeure son corps défendant, le caractere pro-
d’habiliter leur syntaxe et de s’en jus- visoire? Il ne suffit pas de jeter la cou-
tifier par une logique. verture sur l’ivresse de Noë.L’usage des
Il faut y revenir dans la mesure ou philosophes, voués a l’expérience, c’est a
cette histoire met a nu tout un réseau dire a l’ambition de proposer une ma-
de communication, d’information, et de niere féconde et canonique de transfor-
langages, également divers degrés de li- mer le cours des choses vécues en dire,
berté, d’incertitude, de pertinence, im- également le projet des Lumieres, étai-
manents a la complexité du dire. Il ent en cause. Comprendra-t-on que cer-
s’est agi non d’une crise, dont on gué- taines innovations de Frege, qui visai-
rirait comme d’une coqueluche mais ou ent une écriture convenant aux preuves
bien, en empruntant le terme a Cavail- contemporaines et a l’arithmétisation
les, d’un enrichissement ou bien de son des mathématiques engagée par Gauss,
refus - c’est a dire le déni d’une le- touchaient aussi a l’usage de la lan-
çon philosophique insupportable a be- gue? Frege y reconnaissait et crédi-
aucoup, et trop retardée. tait un tour épistémologique, donc une
Il reste a situer le cour de l’opération maniere d’ inscrire l’intelligible qu’elle
engagée par Frege et qui fut aussi son procure sur la communication dont cet
point névralgique. Outre ce qu’apporte usage releve. Ainsi la distinction en-

1 Voir la correspondance Dedekind Cantor, éditée par Emily Nöther et Jean Cavaillès, 1936.

194 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 191-208
ISSN: 2317-9570
FREGE ENCORE UNE FOIS? CONSTRUCTION DE L’INTELLIGIBLE ET FIGURES SAVOIR

tre le sens et la dénotation d’une ex- schrift était un langage supposé a la


pression, ou l’affinité proposée entre mesure de ses opérations; Frege l’avait
une fonction et un concept furent re- poursuivi jusqu’a se heurter a quelque
tenues par les linguistes ( Benveniste chose comme son extravagance: une in-
pour la premiere, Chomsky pour la se- commensurabilité entre son ambition
conde). Elles furent aussi, et pour long- et ses moyens. L’épisode leibnizien
temps, l’introduction obligée aux divers était définitivement clos, et Kant ne se-
rameaux de la philosophie dite analy- rait pas épargné. Les philosophes étai-
tique. De ce fait, les opérations men- ent renvoyés a leur maniere de dire,
tales les plus prestigieuses avouaient leurs paradigmes grammaticaux, con-
leurs dépendances discursives et celles ceptuels et catégoriaux, s’avéraient trai-
- ci affectaient le commerce des mathé- treusement analogiques. La discursi-
matiques et de la philosophie.Un con- vité, c’est a dire l’ordre proposition-
cordat, aussi ancien que les Eléments nel, s’était imposée en meme temps
d’Euclide, confirmé par le galiléisme qu’elle dévoilait l’antinomie. Frege
philosophique des classiques, portant avait frayé un chemin jamais essayé, et
la promesse d’une intelligibilité uni- si l’ambition avait échoué, paradoxale-
verselle, était rompu. Outre cette sé- ment les moyens engagés développerai-
cession, les langages ou chacune d’elle ent leurs bifurcations et de nouveaux
déployait sa compétence, se révélaient contrats mettant en jeu leur capacité
développer des dimensions d’écriture a porter l’intelligible, et leur fiabilité.
et de preuve qui n’étaient pas celles, Carnap et Scholem furent ses étudiants,
supposées, de leur objet. On s’ est Wittgenstein prit son conseil et lui en-
alors inquiété des Principes (Grundla- voya le manuscrit du Tractatus.
gen ou Grundzüge) et des axiomatiques La seconde raison vient d’un retour-
comme jamais: Frege lui-meme mais nement de situation, digne de la dra-
aussi Péano, Hilbert, Dedekind ou Can- maturgie classique. Apres le constat de
tor. Frege se trouvait etre celui qui avait cette contradiction, mais un bon demi-
mis a l’épreuve un programme, certes siecle plus tard, la meme écriture qui
porté par les Lumieres, lié a la mani- avait déconcerté ses lecteurs fut, mieux
ere dont Kant avait intégré le projet que réhabilitée, identifiée. Une antho-
d’une caractéristique qui se voulait etre logie dédiée a l’histoire de la logique
également calcul, mais renouvelé par mathématique fut publiée a Harvard en
l’arithmétique de l’infini. A son tour, 1967, a commencer par la Begriffsschrift
il tentait d’unifier le traitement du con- ( 1ére version 1879), et conclue par Gö-
tenu de savoir et son habilitation dans del ( 1931). Le texte de Frege venait en
une théorie de la preuve. La Begriffs- ouverture, pour etre

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 191-208 195
ISSN: 2317-9570
CLAUDE IMBERT

’peut-etre l’opuscule le plus important de toute l’histoire de la logique’.

J.van Heijenoort, From Frege to Gödel, a source book in mathematical Logic, 1967.

Une seconde édition accentuait l’effet un theme kantien, elle était cette fois
souhaité en l’associant au seul texte restreinte dans son sens et démontrée
ou K. Gödel établissait l’incomplétude dans les termes de la syntaxe du sys-
de la quantification du premier or- teme. Gödel rappelait la quantifica-
dre des que l’on inclut les axiomes de tion du premier ordre a l’effectivité de
Péano ou un équivalent. Entre les deux, ses moyens. Il n’était en rien question
une certaine modernité s’était consti- d’une antinomie, pour deux raisons.
tuée et déployait sa mise. Le théoreme D’abord, il fallut un complément de
d’incomplétude venait apres que Gö- symboles et de regles, apporté dans
del ait démontré - ce qui fut sa these une deuxieme version, celle ou furent
de mathématiques- la complétude et la écrites les Grundgesetze der Arithmetik
fiabilité de la quantification du premier (1893 et 1903), pour que l’antinomie
ordre. Certes, Gödel visait les Principia ait pu advenir. Ce que Frege prit soin
mathematica (1916). Dans les années de montrer, parcourant avec une force
1960, il était temps de reconnaître que d’âme que releva Russell, toutes les
Frege avait proposé dans la Begriffssch- étapes de cette implacable conclusion.
rift, un langage inédit avec ses regles de Il constatait aussi que personne alors
formation et de transformation, repris n’avait fait mieux, pas meme Russell,
par Russell et Whitehead dans les Prin- au moment ou il stigmatisa l’antinomie
cipia Mathematica sous une formulation ( 1903). Solatium miseris, socios ha-
équivalente. La Begriffsschrift, était ar- buisse malorum, concluait-il en sou-
rachée a son propre contexte, inscrite lignant dans une note que Dedekind
dans une autre histoire, celle précisé- n’était pas épargné2 . A vrai dire, ce
ment qu’elle avait ouverte, ou elle pou- fut une maigre consolation que de par-
vait etre identifiée et appréciée en vertu tager une infortune dont il avait écrit
de la juridiction immanente de sa syn- si soigneusement la clinique, mais non
taxe. Elle était définitivement séparée l’étiologie.
des motifs divers, dont elle s’était ré- Mais si les Principia de Russell et
clamée -au point de dériver vers une Whitehead évitaient la contradiction
seconde version calamiteuse. Si la dé- par des procédés bientôt évincés par
monstration de complétude, question l’axiomatique de Zermelo- Fraenkel, ils
ouverte et traitée par Gödel, variait n’échappaient pas a la sanction syntaxi-

2 Voir, Grundgestze der Arithmetik, Tome II, Nachwort, p.253, reproduction photomecanique, Olms, 1966.

196 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 191-208
ISSN: 2317-9570
FREGE ENCORE UNE FOIS? CONSTRUCTION DE L’INTELLIGIBLE ET FIGURES SAVOIR

que. L’affaire avait perdu de son intéret stigmatiser une contradiction qui avait
apres que Gödel ait désenchanté toute été l’épisode le plus frappant d’une
l’entreprise. histoire récente, mais honorer une
Ensuite, ne pas oublier que pour un preuve ’aux dimensions’ qui barrait
mathématicien un résultat négatif est un programme philosophique déme-
une nouvelle vérité, éminemment pro- suré et indiquait les voies par lesquel-
ductive. La découverte de l’irrationalité les l’arithmétique pourrait se dévelop-
de la diagonale du carré a plus que per et n’y manqua pas. La difficulté
favorisé le développement d’une géo- affectant la tentative frégéenne tenait
métrie euclidienne, elle en a imposé a l’ambition de développer toutes les
l’alternative. La reprise par Gödel preuves et formules de l’arithmétique
de la quantification du premier ordre en empruntant les couloirs transforma-
dans les termes stricts de sa syntaxe tionnels et graphiques ouverts par la
écartait, de facto une adjonction qui Begriffsschrift. Certes, l’invention fut
n’était qu’un barbarisme d’un nouveau capitale et son opportunité incontestée,
genre. Ses deux théoremes qui cou- mais le lien de cette syntaxe (mécon-
paient court au principe d’un fonde- nue comme telle) avec les usages im-
ment de l’arithmétique signalaient, en plémentés sur une langue parlée s’était
l’excluant, une syntaxe fautive, plom- immédiatement avéré problématique et
bée par les ajouts de la deuxieme ver- avait conduit Frege a multiplier les con-
sion de la Begriffsschrift. L’arithmétique férences et articles qui maintiendraient
affirmait son indépendance sous ré- un lien entre l’usage et les singularités
serve du développement de ses opéra- de l’écriture, au risque d’adjoindre a la
tions et de ses théoremes, et d’un lan- premiere version des compléments dé-
gage convenant,elle saurait associer a sastreux. Le programme d’une logique
ses formules et a ses preuves un déve- mathématique était désormais un savoir
loppement graphique inédit et meme appelé par la mathématique elle-meme
troublant - ainsi le raisonnement dia- et une matiere proprement mathéma-
gonal, un procédé graphique et synta- tique gérant ses axiomes, ses regles
xique que Gödel avait repris de Cantor. d’écriture et de réécriture, et ses preu-
Il fut d’emblée reconnu par la commu- ves. La logique dite classique (ce sen-
nauté des mathématiciens, coutumiers sus communis logicus de Kant) était ren-
depuis l’invention des coordonnées car- voyée a son propre domaine, ses manie-
tésiennes, du traité pascalien du trian- res de dire, d’écrire, et de lire ce qui était
gle arithmétique, et des espaces de re- écrit phonétiquement. C’était au reste
présentations, meublés de graphes et le sens littéral, aristotélicien, du terme
de nombres, et non d’objets. de critique dont Kant fit son principe.
On changeait de critere: non plus Mais la hiérarchie de ses articulations,

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 191-208 197
ISSN: 2317-9570
CLAUDE IMBERT

complétée et close par l’instance du ju- Alors, l’antinomie n’était pas une er-
gement et ses modalités en avait épuisé reur due a un individu. Elle était la-
les ressources. tente, portée par un systeme que les
Sa prétention d’universalité était philosophes, pour la plupart tacite-
frappée d’obsolescence. Le référentiel ment kantiens, parlaient quotidienne-
qui lui était associé s’était appauvri ment. De facto, les symboles et infé-
au cours du XIXeme siecle, et centré rences devenues parasitaires dans la se-
sur la relation sujet/objet, menacée de conde version de la Begriffsschrift, as-
n’etre qu’une fiction transcendantale3 . signant l’objet de l’expérience, y étai-
Le point douloureux serait d’admettre ent de bon aloi. Ils ne relevaient en
la séparation des langages, leur légiti- rien des ’reves de la métaphysique’.
mité, et de comprendre que l’exercice Tout a l’inverse,ils contresignaient dans
de la pensée en dépendait. La diffé- l’économie logique et conceptuelle du
rence de production de l’intelligible im- criticisme la compatibilité du mathé-
posait une prise de distance d’avec les matique et du discursif, intégrée dans
langues parlées et l’écriture alphabéti- la définition de l’existence et de la phé-
sée. Elle était induite par une approche noménologie de l’expérience. Cette di-
indirecte du réel, comme l’est une phy- vision inquiéta jusqu’aux preuves de
sique mathématisée, dépendante de ses l’existence de Dieu. Frege y consacra
instruments de mesure, du choix de ses un dialogue avec le théologien Punjer,
unités, et de sa mathématique, nulle- et Gödel les dernieres années de sa vie4 .
ment concernée par la configuration du Le livre publié a Harvard n’ouvrait
monde proche en objets.. Les embarras pas une réhabilitation de Frege mais
de Frege y trouverent un sérieux phi- un déchiffrement, un changement
losophique inattendu. On s’engageait d’identité et de perspective quant a une
vers le scandale d’ une alternative des écriture appréciée pour sa générativité
savoirs. Une logique prédicative prend transformationnelle, et pour sa réussite
son paradigme de la perception et de locale, qu’avait été, en 1879, la défini-
son fidéisme vital,une logique fonction- tion constructive de l’ordre. Mesuré a
nelle prend le sien de l’expression des sa performance, ce résultat était défi-
fonctions non comme une trajectoire nitif. Dans un article ultérieur dédié
(ce que furent les premieres fonctions a la logique de Russell, Gödel a loué
galiléennes ) mais comme le graphe la précision de la syntaxe frégéenne
d’une relation reportée sur un plan de bien supérieure a celle des Principia,
représentation. pour avoir distingué entre variables li-

3 Sur le démontage empiriste de cette fiction, voir Lorraine Daston et Peter Galisson, Objectivity ( 2007).
4 Cf. Frege, Nachgelassene Schriften, Dialog mit Punjer über Existenz, (daté avant 1884).

198 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 191-208
ISSN: 2317-9570
FREGE ENCORE UNE FOIS? CONSTRUCTION DE L’INTELLIGIBLE ET FIGURES SAVOIR

bres, variables liées et variables syn- Begriffsschrift, 1879:


taxiques5 . Cette syntaxe dite par Gö-
del systeme du premier ordre, puis par
Revenons brièvement à l’opuscule
Chomsky Frege- Russell type system, dé-
initial. Frege avait renoncé à un pre-
chirait le contrat du galiléisme philo-
mier manuscrit, pensé et construit sur
sophique. On veut dire l’hypothese que
une économie de concepts emboîtés et
le monde physique serait écrit en signes
le type de preuve syllogistique qu’il in-
mathématiques et néanmoins exprima-
duit.
ble en concepts. Ce contrat garantissait
Son étrangeté saute aux yeux: un
le privilege de la langue philosophique-
texte illisible sous un titre a vrai dire
sous réserve d’une équivalence cog-
intraduisible en quelque notion avé-
nitivement souhaitée et syntaxique-
rée, telle qu’idéographie. Quand Ram-
ment tolérable, entre fonction et con-
sey s’y intéressa, Frege consentit, pour
cept. Cette condition avait également
une présentation au public anglais,
été l’enjeu du contrat cartésien, tel
a un titre évoquant assez malencon-
qu’établi dans les Méditations Métaphy-
treusement Leibniz et son intéret pour
siques. Alors fondé fondé sur la véra-
l’écriture chinoise. Ce fut une solution
cité divine il compétait la Méthode as-
de fortune pour ce qui n’avait pas en-
surant la liaison des idées claires et dis-
core d’identité, et n’en aurait pas de
tinctes. Comme l’avait noté Cavailles:
si tôt. Aujourd’hui il est toujours cité
le lien entre deux idées claires et dis-
en allemand ou traduit littéralement
tinctes est encore une idée claire et dis-
(écriture conceptuelle)6 . Frege s’en était
tincte.Toutes bénéficient de cette évi-
expliqué par un sous titre: un langage
dence mathématique que garantit un
formulaire de la pensée pure inspiré de
Dieu non trompeur. L’ajustement des
l’arithmétique, et une breve introduc-
fonctions et des concepts fut aussi et
tion. Celle-ci propose d’éliminer de
plus explicitement le fil conducteur et
ce qui nuit au projet d’une expression
la singularité revendiquée du tribunal
adéquate au savoir qu’elle véhicule;
criticiste, fut-ce au prix de la révolution
l’expression de la pensée pure est con-
copernicienne.
fiée a l’écriture des concepts et celle-ci
assignée a l’exercice de la preuve. Ce
serait une expression libérée des arti-
culations de la parole et des modalités
de l’expérience. Néanmoins ce double

5 Cf. Russell‘s Logic, dans The Library of living philosophers, Schilpp (1944). Ce texte traduit par G.Miller et J.C.Milner (Cahiers

pour l’analyse ), est disponible sur Internet.


6 Ce qui n’éclare guère le lecteur, sinon pour signaler une écriture indépendante des articulations de la langue vernaculaire et
simple indication du problème que Frege souhaitait résoudre et crut pouvoir le faire.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 191-208 199
ISSN: 2317-9570
CLAUDE IMBERT

évitement préservait le profil d’un lan- mais inversement d’une représentation


gage, ’imité de l’arithmétique.’ Le point conceptuelle, tant des procédures de
neuf était bien de reconnaître la matu- l’arithmétique que de l’enchaînement
rité d’un savoir arithmétique qui avait de ses propositions. Double difficulté:
acquis une forme discursive, constituée d’abord concilier sous un meme chef
comme une suite de propositions sus- une équation, l’expression d’un con-
ceptibles de porter et développer un cept, et la relation entre propositions,
contenu conceptuel comme une suite ensuite expliciter ce régime conceptuel
d’inférences et d’équations. Frege se hors de la routine prédicative par une
gardait d’y introduire les opérations de écriture qui le justifierait de facto. Ce
calcul telles que proposées par Boole. que Frege avait effectué dans le détail
Ce qui était cohérant avec le projet de de ses écritures, précisant que les regles
traiter les opérations comme des fonc- de transformation découlaient des re-
tions, et celles-ci comme des concepts gles de formation; mais il ne l’avait pas
et par la les tirer de leurs abaques. Et thématisé. De la un premier systeme
bien que Frege esquisse une comparai- restreint,minutieusement exposbia une
son précautionneuse - et quelque peu écriture quantificationnelle, sans re-
propitiatoire - avec le programme leib- cours a une synthese temporelle. On
nizien d’une caractéristique, l’intention y reconnaît la signature gaussienne, et
ne fut pas une description d’objets ou l’intention de résoudre le différent qui
de pensées- en quoi Leibniz ne fut ja- opposa Gauss a Kant quant a la nature
mais clair et la monadologie destinée du jugement mathématique. Kant y im-
a les identifier - mais le suivi d’une pliquait une intuition a priori et le sché-
preuve a la mesure de son contenu et matisme temporel, Gauss une opéra-
de ses procédures récentes. tion proprement arithmétique liée a la
L’étrangeté du graphisme, développé nature récursive( et non syllogistique)
en unités requérant les deux dimensi- des opérations arithmétiques élémen-
ons de la page, dissimula a beaucoup taires, a commencer par la plus simple:
l’intéret du projet quand ce ne fut pas la somme. Il avait en effet donné une
l’occasion de quolibets. Tout surpre- démonstration de la somme des n pre-
nait, on n’y trouvait aucun des signes de miers nombres en utilisant une récur-
l’arithmétique qui étaient utilisés par rence sur leur écriture et une formule
Boole, pas plus que ses cercles et leurs avec fonctions et variables, ou le ton
interférences favorisant une interpréta- était donné:
tion dite extensionnelle des figures du
syllogisme. Il ne s’agissait pas d’une
S (n)= n(n-1)/2.
représentation géométrique ou arith-
métique de la logique des prédicats,

200 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 191-208
ISSN: 2317-9570
FREGE ENCORE UNE FOIS? CONSTRUCTION DE L’INTELLIGIBLE ET FIGURES SAVOIR

Suivirent divers articles, qui devai- du concept a son extension et une in-
ent préparer la seconde version de la férence légitime. Ce fut voulu, préparé
Begriffsschrift, mais aussi en généraliser par quelques conférences de Frege, pu-
l’application hors de sa premiere des- bliées dans des revues savantes, et dé-
tination arithmétique, démontrer son positaire d’une conciliation copernici-
usage, soutenir une lecture sous la- enne poursuivie a contre - temps. Rap-
quelle elle entrait dans le commerce in- pelons qu’elle avait justifié l’analogie
tellectuel et le référentiel des Lumieres de la synthese catégoriale et la synthese
et thématiser l’entreprise sous l’égide des équations de la mécanique newto-
d’une conceptualité élargie. C’était nienne pour l’expression de laquelle le
aussi créer un brouillage syntaxique, temps était, depuis Galilée, une varia-
un carambolage mental, confondant ble indépendante, et pour Kant assurée
ce qui lie une fonction a son domaine par l’intuition du temps, schématisme
de substitutions potentielles, son ré- de l’expérience. Quand une variable
gime de récurrences définies sur une de l’arithmétique gaussienne ou post-
suite cardinale, et le rapport d’un con- gaussienne n’avait pas a justifier son as-
cept a ses objets, représentés par des signation éventuelle sur un référentiel
noms ou pronoms dans une propo- de temps et par la un lien avec l’usage
sition dont l’embrayage temporel, ou des horloges et notre commune expéri-
la modalité, maintenaient le spectre ence du temps vécu.
d’une épistémologie prédicative. Kant Frege y mit quelques précautions,
l’avait souhaité et obtenu par le truche- comme l’éviction des deictiques, de
ment de la révolution copernicienne, et l’embrayage verbal et du symbole de
l’habilitation philosophique d’un lan- jugement. Il compara cette élimina-
gage vernaculaire. Il y eut un recouvre- tion au passage du discours direct au
ment de deux schémas cognitifs, l’un discours indirect7 . Précaution judici-
proprement lié a l’usage d’une arith- euse mais insuffisante, le cour du pro-
métique post gaussienne et lié a des bleme étant dans la permanence d’une
graphes de fonction, l’autre ouvrant sur épistémologie de l’objet, qui associait
un référentiel d’objets, confirmant un une interprétation existentielle ( et non
usage canonique pour les langues eu- simplement substitutionnelle)aux vari-
ropéennes dans leur état classique, et ables impliquées dans la quantification.
privilégié d’une maniere ou d’une autre l’extension de concept comme un objet
par l’usage. Pour y parvenir une équa- alors qu’il s’agit de mettre en corres-
tion parasitaire fut introduite comme pondance deux domaines potentiels de
un axiome supposé régler le passage valeur, selon une correspondance injec-

7 Voir l’article. Frege y revint avec insistance dans la Préface au premier volume des Grundgesetze, (1893).

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 191-208 201
ISSN: 2317-9570
CLAUDE IMBERT

tive, bijective, biunivoque ou vide. Les cas, il s’est agi de proposer un prisme
articles qui devaient munir la Begriffss- diagrammatique procurant une intelli-
chrift de nouvelles ressources, dont une gence inédite des relations de parenté,
pleine analogie entre fonction et con- tout en récusant la perspective réga-
cept, trahissaient la permanence d’une lienne de l’ego lecteur et un usage de
épistémologie du concept et de l’objet, patronymes hérités sous une acception
portée par le transcendantalisme et le prédicative. Laissons ici cette analo-
souci d’en étendre ou meme lever les gie, encore que dans les deux cas une
limites. L’exercice identifiait les con- organisation cognitive centrée sur une
ditions d’expérience et une formula- qualification prédicative a cédé non pas
tion arithmétique aux dimensions; il simplement a la relation, comme on dit
spéculait tacitement sur l’extension de souvent, mais a un régime d’échange
sens qui avait, au cours du XIXeme explicité par l’usage de variables. Dans
siecle, substitué sous l’ambigüité de les deux cas, d’autres inférences, trans-
l’observation la mesure au constat, une formations et substitutions, devenaient
mesure obtenue par un dispositif de ré- possibles - cela que l’on a dit globale-
ception des données, de dimensions, et ment ’structuralisme’, dans les deux do-
d’unités propres qui avait transformé, maines).
redéfini, divisé l’expérience kantienne et Alors: pourquoi cet attachement sans
en traitait pour une part arithmétique- faille a une pratique conceptuelle et
ment. De nouvelles fonctions s’en char- a l’assimilation du concept et de la
geraient, prenant distance des fonctions fonction? Par quels biais la confusion
galiléennes ou cartésiennes, délestées fut -elle inscrite dans la seconde ver-
de leur analogie de trajectoire. sion de la Begriffsschrift dans une équa-
Frege lui-meme eut ses doutes, mul- tion outrepassant sa pertinence syn-
tiplia les interrogations sur son entre- taxique, instituant l’extension de con-
prise, comme en témoignent ses iné- cept comme un objet réinvesti dans
dits. Il faut citer ce qu’il disait a son fils l’expérience sous des caracteres pré-
adoptif en lui léguant ses textes, pu- dicatifs, réclamant une détermination
bliés et non publiés: ’ tout n’est pas exacte. L’énoncé de l’antinomie, telle
d’or, mais il y a de l’or dedans’. que Russell l’a si clairement énoncée
(Dit en passant: serait-ce que la subs- et ciblée, via le terme appartenir ou
titution d’un diagramme articulé en ré- ne pas appartenir, melait dans l’usage
seau aux arbres de subordination /sub- ou se retrouvaient mathématiciens et
somption a eu un rôle comparable a la philosophes le rapport d’un ensem-
substitution de la relation d’alliance a ble a ses éléments (réglé en 1908 par
l’arbre généalogique en anthropologie? l’axiomatique de Zermelo Fraenckel)
Il suffit de noter que, dans les deux et le rapport d’un concept a ses ob-

202 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 191-208
ISSN: 2317-9570
FREGE ENCORE UNE FOIS? CONSTRUCTION DE L’INTELLIGIBLE ET FIGURES SAVOIR

jets et choses du monde, une notion cifiés, au début du XXeme siecle, tant a
qui emprunte quelque chose a la gre- Marburg que dans quelques autres uni-
nouille qui veut se faire aussi grosse versités prestigieuses, le haut lieu du
que le bouf, et prétend a une ontolo- criticisme. Il y fut pour longtemps le
gie souveraine. Ce faisant le terme dis- plus sérieusement étudié, discuté dans
qualifiait par l’absurde la rémanence ses intentions prioritaires, testé dans
d’une logique conceptuelle médiatrice ses limites, sollicité en vue de son ex-
entre le monde de la perception, de tension.
l’observation, et le monde physique Le défi kantien, le point de dé-
des intensités, des mouvements ondu- part du criticisme, avait été de pren-
latoires, de la géodésie et d’une opti- dre la succession de l’alexandrinisme
que non géométrique qui avait écarté tel qu’énoncée dans le programme du
l’ambiguité de ’expérience comme Er- cours pour l’année 1763. Il avait été
fahrung? Le régime de l’appartenance, affiché par Kant avec la meme déter-
du concept et de ses objets, son voca- mination et la meme profondeur que
bulaire familier, la représentation bo- Luther affichant ses theses a Wittem-
oléenne, insinuaient au seuil d’ une berg, Cette ambition fut aussi cultivée a
arithmétique cardinale tout un régime Iéna, qui la revendiquait a partir d’une
de recognition qui identifiait les quali- tradition venue du Moyen âge. Tout
tés et les mesures, les identités de cho- en s’appropriant et bousculant autant
ses et les équivalences équationnelles, qu’il le faudrait l’héritage kantien, on
traitait l’équation algébrique comme disait: ’d’Athenes a Iéna, le chemin est di-
un pas épistémique qui relevait en fait rect’. Iéna fut sans aucun doute un des
d’un autre régime de savoir. La somme hauts lieux intellectuels de l’Europe, re-
2+3 = 5 est indépendante du monde levé par la rencontre de Napoléon et
que nous vivons et institue son pro- de Goethe, et l’écho que donna He-
pre référentiel numérique, l’identité de gel a ce moment dans l’ Introduction a
l’étoile du soir et de l’étoile du matin, la Phénoménologie de l’esprit, un mo-
exemple favori de Frege, étend un ré- ment ou on put croire a une Europe uni-
gime perceptif. Quand bien meme elle fiée dans l’esprit des Lumieres- c’est-a-
le tirait de sa naiveté, elle ne le change- dire une rationalité universelle et a sa
ait pas. pédagogie de ’notions’ véhiculant dans
la langue d’usage l’essentiel,. de ce qui
ne pouvait pas y etre dit et la curio-
Iéna kantien et post kantien sité des lecteurs. Goethe, ministre de
la principauté de Thuringe, soutint l’
Université d’ Iéna, toute proche de Wei-
Iéna avait été, avant la redistribution mar et confiait a son secrétaire que Kant
académique des post - kantismes spé- avait fixé un nouveau sens commun:

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 191-208 203
ISSN: 2317-9570
CLAUDE IMBERT

Il a aussi agi sur vous, sans que vous l’ayez lu. Maintenant vous n’avez plus besoin
de le lire; car ce qu’il pouvait vous donner, vous le possédez déja.

Conversations avec Eckermann, 11 avril 18278 .

Goethe ajoutait que la Critique du ju- que donnait au systeme critique, en


gement échappait a cette assimilation était la menace la plus sérieuse et la
d’un kantisme anonyme et demandait plus sérieuse lecture. N’y dérogeait pas
cette relecture a laquelle il avait contri- la recherche d’une écriture qui saurait
bué. L’ambition de poursuivre Kant au unir les deux fonctions de condensa-
dela de ses formules d’expérience fut tion et de poétique - association portée
servie par une exceptionnelle activité par le double sens du verbe dichten,
littéraire, de l’Athenaum a Goethe, quel- que Frege s’est plu a souligner. Alors
les qu’aient été les divergences quant l’écriture n’aurait pas achevé son des-
a la conduite de cette histoire poéti- tin avec l’alphabétisation, elle pouvait
que9 . La plaidoirie des Romantiques, investir une diagrammatique bidimen-
comme les options de Fichte, reven- sionnelle, quittant la servitude du son
diquaient une extension du kantisme, et la linéarité, proposer un tout autre
Kleist vantait le style de chancelier de usage des lettres utilisées comme varia-
Kant, Schelling misait sur l’esthétique, bles et dépouillées de toute valeur pho-
Hegel proposait une autre Encyclopé- nématique (anglais:dummy letters). Une
die conceptuelle. Son propre rapport extension des écritures pourrait con-
a Kant relevait de sa méthode dialecti- tourner le kantisme et le compléter.Le
que en associant négation et sursomp- nombre et son arithmétique la plus ré-
tion (Aufhebung). La tragédie grec- cente, la maniere de Gauss, quelques
que eut son actualité d’apres le Trau- notes qu’il avait confiées a son jour-
erspiel et d’apres les Lumieres. Kleist nal promettaient beaucoup. Le roman-
écrivit Penthésilée et vécut lui meme tisme avait eu ses défis, l’arithmétique
jusqu’au suicide un tragique que Kant eut les siens: celle d’un usage univer-
avait écarté et dont Hegel proposa une sel, donc bon candidat pour rénover les
résolution dialectique. Sur plusieurs formules de l’expérience. Les mots de
décennies, Iéna rechercha, littéraire- Gauss: O theos arithmétidzei, confirmait
ment et philosophiquement une ma- son galiléisme; ils furent repris par De-
niere qui, touchant a la ’clé de voute’ dekind: Aei o anthropos arithmetidzetai,
du systeme que le jugement esthéti- l’arithmétique est une pratique divine,

8 Conversations de Goethe avec Eckermann, Paris, Gallimard, 1988, p. 341.


9 Voir L’absolu littéraire, où J. L. Nancy et P. Lacoue-Labarthe ont republié les textes majeurs de l’Athenaum.

204 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 191-208
ISSN: 2317-9570
FREGE ENCORE UNE FOIS? CONSTRUCTION DE L’INTELLIGIBLE ET FIGURES SAVOIR

que l’homme n’abandonnera jamais. La ons de points et l’extension du concept


promesse fut confirmée anthropologi- de nombre telle que débattue entre De-
quement par Frege dans les Fondements dekind et Cantor. Elle était servie par
de l’arithmétique: la pratique du dé- des opérations nouvelles telles, que la
nombrement est universelle, meme en chaîne ou la limite10 . L’écriture d’une
l’absence d’un régime de numération langue formulaire serait régie par les
effectif, par confrontation de deux sé- lois de transformation immanentes a
ries, telle l’appréciation comparative de leur usage, induites par les regles de
deux troupeaux, ou l’appariement des formation et de transformation de ses
doigts des deux mains. C’était prati- formules initiales. Un langage se déve-
quer une correspondance biunivoque loppant par formules et transformati-
sans le terme, ou la cardinalité est pre- ons n’est pas un formalisme puisque,
miere, et ou l’équinuméricité précede par définition, un formalisme ne se
l’assignation d’un nombre. Maniere de transforme pas. . . .
penser- ’pensée sauvage’ si l’on veut- A qui Frege s’adressait-il- dans ces
que ne peut ignorer le projet d’un lan- textes décisifs qui ont suivi la publi-
gage de la pensée pure -sous titre de la cation de 1879 - a commencer par lui-
Begriffsschrift - de ce fait candidat de -meme11 ? Les précisions apportées, im-
plein droit a la conceptualité selon une médiatement apres la publication de
équivalence proposée par Frege et non la Begriffsschrift et le peu d’écho, par-
remise en cause. Ce qui avait été his- fois injurieux, qu’elle avait reçu, avai-
toriquement et culturellement consti- ent un double but: d’une part, habili-
tué comme langue vernaculaire et noté ter cette écriture au regard du public
par une écriture alphabétique, se trou- scientifique, d’autre part préparer le
vait non pas contesté mais complété, ou projet d’expliciter dans cette écriture
devait accepter de l’etre, par cette ad- les lois fondamentales de l’arithmétique.
jonction. Le concept était libéré de sa Frege, homme affable, excellent con-
mobilisation leibnizienne - praedicatum férencier participait aux activités in-
inest subjecto et d’une regle impérieuse, tellectuelles d’une ville soucieuse de
Knt ici avait donné l’exemple en habili- joindre l’expérience a l’industrie et de
tant un ’jugement synthétique a priori’. s’en donner les transitions mathéma-
L’analyse, si on gardait le terme dans tiques.Les conférences prononcées par
un usage mathématique,indiquait un Frege devant des sociétés savantes, pu-
développement polynomial, des foncti- bliées dans des revues de profession

10 Voir R. Dedekind Stetigkeit und Irrationale Zahlen (1872) et Was sind und was sollen die Zahlen? “(1888) aux méthodes desquels
Frege, qui avait soutenu ses thèses à Göttingen, se réfère,. Comme l’arithmétique modulo, elles illustraient le traitement extensionnel,
cardinal et ensemblisre de l’arithmétique.
11 Ils ont été pour l‘essentiel réunis et traduits en diverses langes sous le titre d’ Ecrits logiques et philosophiques.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 191-208 205
ISSN: 2317-9570
CLAUDE IMBERT

kantienne, comblerait un vide. Il au- de ses cours de géométrie étaient répu-


rait justifier un usage scientifique gé- tées; la Begriffsschrift prenait la suite.
néralisé dans l’expression des fonctions (Il est temps de rappeler que cette écri-
nouvelles impliquées dans la mathéma- ture diagrammatique, qui revendiquait
tisation de la physique, mais a partir la rigueur euclidienne de ’la regle et du
d’une expérience universelle, la prati- compas’, traçait en fait un réseau dit
que du dénombrement. Les articles les algébrique, aujourd’hui fondamental en
plus connus - Sens et dénotation, Fonc- informatique).
tion et concept, Concept et objet, associent Frege avait été envoyé a Göttin-
une théorie de l’équation comme un ju- gen sur une bourse obtenue par
gement de recognition, posant un objet l’intermédiaire sur la recommanda-
au point de rencontre de deux signifi- tion de Otto Abbe, dans le souci de
cations et comme instrument des trans- promouvoir a Iéna cette mathémati-
formations admises dans une preuve que contemporaine venue de Gauss.
arithmétique. C’était joindre une inter- Abbe, lui-meme mathématicien colla-
prétation existentielle des variables re- borait avec F.Zeiss dans le projet de
quises pour l’expression de la quantifi- créer a Iéna une optique de haute pré-
cation dans le monde copernicien d’une cision. Un épisode ou Iéna, Gauss, Otto
expérience kantienne, et l’usage subs- Abbe, Carl Zeiss, et le développement
titutionnel des variables dans un ré- de l’optique mathématique furent im-
gime d’équations usant un référentiel pliqués a été relevé et analysé par My-
de nombres réels et imaginaires, pour les Jackson13 . Fraunhofern, artisan de
traiter des équations des sciences phy- tres haute qualité avait mis au point
siques,de la géodésie a l’optique non des lentilles achromatiques appréciées
géométrique. Un tel espace de repré- et recherchées dans l’Europe entiere,
sentation et de traitement avait été la lançant un défi a l’optique de préci-
matiere de ses theses12 . Frege insistait sion ou triomphait alors l’Angleterre
sur l’usage d’un plan bidimensionnel, et la France, grâce aux travaux et ap-
tout comme la Begriffsschrift devait tirer ports mathématiques de Fresnel. Gauss
un principe de cohérence de son tracé avait équipé l’observatoire de Göttin-
aussi rigoureux qu’un tracé euclidien gen de lentilles acquises directement
avec la regle et le compas - ou il ex- de Fraunhofer. Celui-ci n’avait pas livré
cellait. Les performances graphiques son secret de fabrication, il fut devint

12 Uber eine geometrische Darstellung der imaginären Gebilde in der Ebene (1873) et Rechnungsmethoden, die sich auf eine Erweiterung
des Grössen begriffes gründen (1874).
13 (Spectrum of belief, Josef von Fraunhofern and the craft of precision optics) MIT press, 2000. Miles Jackson, historien des scien-

ces s’est particulièrement attaché à ce chaînon essentiel où les déterminations physiques sont converties en dimensions propres et
mesures- c’est-à-dire en domaines spécifiques.

206 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 191-208
ISSN: 2317-9570
FREGE ENCORE UNE FOIS? CONSTRUCTION DE L’INTELLIGIBLE ET FIGURES SAVOIR

l’objet hautement et politiquement sou- recherches arithmétiques, et leur écri-


tenu d’un culte consacrant l’artisanat ture.
de précision allemand. Une cérémo- Etendre les formules de l’expérience
nie, a laquelle participerent les plus a un savoir physique récent, selon
éminents savants en ce domaine, Fr. une matrice conceptuelle, était un but
Zeiss, Abbe, Humboldt clôturait cette partagé et incontesté. Cette mani-
consécration des médiateurs optiques ere de les perpétuer en investissant
et de l’artisanat qualifié en la personne un langage, releve encore - qu’on le
de Fraunhofer.Ils firent valoir en haut veuille ou non - d’une phénoménolo-
lieu que l’unification politique de l’ Al- gie de l’esprit,fut-ce en déjouant par
lemagne appelait une industrie natio- l’effectivité d’opérations arithmétiques
nale, soutenue par l’état et furent en- inédites et écrites la simplification idéa-
tendus. L’éloge fermait une période liste. Il revenait encore a un héritage
et en ouvrait une autre, il soulignait kantien de gérer la conceptualité, et
tacitement que la théorie post newto- simultanément ces langages qui ajus-
nienne de la lumiere et des milieux taient les concepts et l’expérience. L’
traversés, attendait sa mathématique ambition d’une releve syntaxique de
pour permettre une industrie optique la conceptualité une autre maniere de
répondant aux demandes contempo- configurer le réel, en l’espece par des
raines. Fresnel en avait traité, défen- mesures et des dénombrements - se
dant la théorie ondulatoire de la lumi- substituerait aux catégorisations. Ce
ere et perfectionnement considérable- serait aussi l’extension des Lumieres,
ment la puissance des phares par un c’est a dire la conversion réciproque de
montage de lentilles universellement notions scientifiques en concepts ins-
adopté. Mathématicien, il eut recours criptibles dans une langue vernacu-
aux nombre imaginaires. Le projet de laire et, a l’inverse, engager certains
Zeiss devait associer au façonnage de tropes et concepts de la langue verna-
lentilles achromatiques et a la produc- culaire, ou d’un savoir artisanal, d’une
tion d’un verre de tres haute qualité, science en passe da mathématisation,
au contrôle de différents indices de ré- pour accéder a un monde qui échap-
fraction et a l’élimination des aberra- pait a l’observation empirique, et néan-
tions, la mathématique d’une optique moins se disait, bien ou mal, ou de-
non géométrique. Il fut soutenu par mandait a se dire. Frege fut au cour
le gouvernement impérial. Otto Abbe de cette opération, de l’extension d’un
recruta Frege pour la Fondation Zeiss sas conceptuel entre le protocole kan-
des qu’elle fut créée au début des an- tien, le régime des mesures, et les ter-
nées 1890, il le libéra de ses taches ritoires étendus du savoir. S’y trou-
d’enseignement dispersées, hormis ses vaient impliqués les instruments qui

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 191-208 207
ISSN: 2317-9570
CLAUDE IMBERT

convertiraient l’aspect en nombre, et le construisit un héliotrope. Ces opéra-


comportement physique en fonction Ce teurs transitionnels, ces convertisseurs
qui était pratiqué ici ou la, éminem- d’expérience que sont les instruments
ment par Gauss qui, ’princeps mathe- de mesure et la mathématique conve-
maticorum’, dirigea un service géodési- nant a leurs données alimenterent une
que puis l’Observatoire de Göttingen, meme urgence.

Références
DASTON, L.; GALISSON, P. Objectivity. New York: Zone Books, 2007.
DEDEKIND, R. Stetigkeit und Irrationale Zahlen. Braunschweig, 1872.
_______. Was sind und was sollen die Zahlen? Braunschweig, 1888.
FREGE, G. «Dialog mit Punjer über Existenz», in Nachgelassene Schriften. Hamburg: F. Meiner, 1969
[revised edition 1983].
_______. Begriffsschrift, eine der Arithmetischen nachgebildete Formelsprache des reinen Denkens. Halle:
Louis Nebert, 1879.
_______. Grundgesetze der Arithmetik. Hildesheim: Olms, 1966.
_______. Rechnungsmethoden, die sich auf eine Erweiterung des Grössen begriffes gründen, 1874.
_______. Über eine geometrische Darstellung der imaginären Gebilde in der Ebene, 1873.
GOETHE, J. W. von. Conversations de Goethe avec Eckermann. Trad. Par Jean Chuzeville. Paris,
Gallimard, 1988, p. 341.
HEIJENOORT, J. van. From Frege to Gödel: A source book in mathematical Logic, 1879-1931. Cam-
bridge: Harvard University Press, 1967.
JACKSON, M. W. Spectrum of belief: Joseph von Fraunhofer and the Craft of Precision Optics. Cam-
bridge: MIT Press, 2000.
NANCY, J. L. ; LACOUE-LABARTHE, P. L’absolu littéraire: Theorie de la litterature du romantisme
allemand. Pari : Seuil, 1978.
NOETHER, E.; CAVAILLES, J. (Hrsg.). Briefwechsel Cantor-Dedekind. Paris: Hermann C. Éditeurs,
1937.
SCHILPP, P. A. The philosophy of Bertrand Russell. New York: Tudor Publishing Company, 1944.
(The Library of Living Philosophers)

Reçu / Recebido: 18/07/2020


Approuvé / Aprovado: 18/11/2020
Publié / Publicado: 30/12/2020

208 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 191-208
ISSN: 2317-9570
DOI: https://doi.org/10.26512/rfmc.v8i2.31962

A Religião Redimida pela Razão: a Ilustração segundo Gotthold E.


Lessing
[Religion Redeemed by Reason: Enlightenment according to Gotthold E. Lessing]

Saulo Krieger*

Resumo: O artigo pretende fazer ver até que ponto um certo Esclarecimento não é
necessariamente um movimento de combate à religião estabelecida. Pode se revestir
mesmo de um impulso para salvá-la, por mais que seu projeto não seja religioso, e sim
humanista. Mais precisamente, o texto se propõe a mostrar de que modo salvar a religião
de si mesma para emancipar a humanidade pela racionalidade e pela educação seria
bem o projeto de Lessing, notadamente em Natã, o sábio. Para tanto, contextualiza-se
o cenário intelectual alemão cotidiano à época do autor, cenário este pautado por
escritos teológicos, não iluministas, passa-se pelas várias teologias existentes à época na
Alemanha e também pelo modo como o próprio Esclarecimento assumia ali dimensão
teológica, com Christian Wolff. A maioridade iluminista de Lessing é visitada mediante
sua vocação plural, seu gosto pelas querelas e sua argumentação sem posições fixas ou
demarcadas, assim como pelas noções de educação e de humanidade.
Palavras-chave: Esclarecimento. Teologia. Querelas. Argumentação. Humanidade.

Abstract: The paper intends to highlight how much a certain Enlightenment is not
necessarily a fight against established religion. It may be even an impulse to save it,
although it is not a religious project, but an humanistic one. More precisely, the text
proposes to underline that saving religion of itself to emancipate humanity by reason
and education would be the very project of Lessing, notably in Nathan the Wise. For this
purpose, the paper will contextualize the German intellectual daily scene of Lessing´s
time, scene guided by theological texts, not by enlightened ones; it will approach the
various theologies existing then in Germany; it will also approach the very Enlighten-
ment assuming a theological dimension, with Christian Wolff. The enlightened majority
of Lessing will be visited by means of his plural vocation, of his taste for controversies,
emphasizing also the peculiarity of his argumentation without fixed or demarcated
positions; and yet, by the notions of education and humanity.
Keywords: Enlightenment. Theology. Controversies. Argumentation. Humanities.

* Professor do Departamento de Filosofia da Unicentro (Universidade Estadual do Centro-Oeste do Paraná), em Guarapuava.


Doutor pela Unifesp (Universidade Federal de São Paulo). E-mail: saulokrieger@hotmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-
0251-645X.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 209-232 209
ISSN: 2317-9570
SAULO KRIEGER

I. Aguçando o olhar para Lessing ciação. Nuanças de uma Ilustração em


sua versão alemã – a Aufklärung no que
Ao se falar em Esclarecimento ou Ilus- diz respeito sobretudo à religião. O que
tração, é muito possível que, não obs- aqui se pretende fazer ver é que o Es-
tante o efeito irradiador de um nome clarecimento não é necessariamente um
como Kant, de pronto nos venha à movimento de combate à religião esta-
mente o século das Luzes (siécle des Lu- belecida. Ele pode se revestir mesmo
mières) em sua vertente francesa. Curi- de um impulso para salvá-la, ainda que
osa, voluntariosa e altiva, a razão se fa- seu projeto não seja religioso, e sim hu-
zia protagonista de uma atitude crítica, manista. Justamente, entendemos que
perscrutando campos até então devi- salvar a religião de si mesma com vistas
damente resguardados. Se esse é um a emancipar a humanidade pela razão
traço comum aos Esclarecimentos – e e pela educação seria uma boa divisa
o plural é aqui justo e apropriado –, para o projeto de Lessing. Quanto a
para além desse núcleo duro a Ilustra- Natã, o sábio, obra que irradiou espec-
ção viveu sutilezas e encetou verten- tros dramatúrgicos, poéticos, filosóficos
tes. A vertente francesa – sua face mais ou teológicos em seu tempo e para além
visível – não raro é de viés materia- dele, é o ponto alto desse projeto.
lista,1 radicalmente anticlerical e, ainda As nuanças do pensamento de Les-
que deísta,2 combativamente anticristã. sing, que resultaram na gestação do
Isso faz com que nossa primeira e pro- Natã, podem ser contempladas à luz
vável associação não esteja equivocada, das posições que, em seu tempo e lugar,
até muito pelo contrário. No entanto, travavam intenso debate. Por mais que
a obra do alemão Gotthold Ephraim associemos o século XVIII aos influen-
Lessing (1729-1781), sobretudo em se tes textos dos pensadores iluministas,
tratando de Natã, o sábio, demanda sobretudo os franceses, na Alemanha a
que agucemos nosso olhar. Como se cena intelectual cotidiana assumia bem
verá, o percurso intelectual de Lessing outra feição: escritos teológicos faziam-
identifica-se à filosofia das luzes em seu se altamente presentes, sendo produ-
estado mais puro, mas ainda assim traz zidos, lidos e debatidos com avidez.
uma série de nuanças à primeira asso-

1 Entre os materialistas destacam-se o pioneiro La Mettrie (1709-1751), com seu conceito mecanicista do ser humano (extensí-
vel à alma), o hedonista Helvetius (1715-1771), a esposar um sensualismo materialista, além do ateísmo materialista de Holbach
(1723-1789) e, obviamente, do ceticismo ateu do enciclopedista Diderot (1713-1784).
2 O deísmo foi uma doutrina prevalecente entre os iluministas franceses, alemães e italianos, que postulava uma religião natural
ou racional fundada não na revelação histórica – que caracterizava a religião revelada –, mas na manifestação natural e direta da
divindade à razão humana. A religião, nessa medida, não contém e não pode conter nada que seja irracional, e, dando-se a revelação
pela via racional, a revelação histórica se faz dispensável. Desse modo, se ao Esclarecimento é correto associar uma atitude crítica
à religião cristã, não o é associar-lhe um ateísmo, visto que mesmo Voltaire designava-se “teísta” – e o teísmo, variante do deísmo,
negava a revelação, atribuindo a Deus tão-somente as características passíveis de lhe ser imputadas pela razão. Entretanto, o grau de
proximidade, porosidade e diálogo ou não diálogo com a teologia é que distinguirá o Esclarecimento alemão do francês.

210 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 209-232
ISSN: 2317-9570
A RELIGIÃO REDIMIDA PELA RAZÃO: A ILUSTRAÇÃO SEGUNDO GOTTHOLD E. LESSING

A Alemanha trazia a peculiaridade de losóficas,4 estava mais em restaurar o


existir como nação, mas não como Es- que entendiam ser a forma original e
tado: com seu sistema territorial e ad- pura da religião cristã. Na verdade, tal
ministrativo baseado no princípio cuius como os filósofos deístas, os neólogos
regio, eius religio – “de quem [é] a re- corroboravam o conceito de religião na-
gião, dele [se siga] a religião” –, os sú- tural, sendo esta uma religião universal
ditos deveriam seguir a religião do rei, dos primórdios do gênero humano, e
do príncipe, duque, enfim, de quem de- o seu impulso original teria suscitado
tivesse o poder. Assim, os escritos teo- as religiões monoteístas e abraâmicas.
lógicos inevitavelmente se investiam de Se ela admite a revelação, não a con-
um lastro político, detinham interesse cebe como estando acima da razão hu-
político, que lhes conferia vigor adicio- mana, e entenda-se: comprometidos
nal, enquanto uma autoridade política com o acordo entre razão e revelação
detinha a prerrogativa de censurar po- e em sobrepujar a oposição entre o na-
sições que lhe divergiam mesmo na re- tural e o sobrenatural, tanto os deístas
ligião. da religião natural quanto os teólogos
É nessa medida que ao falar de polí- ilustrados consideravam Deus, a alma
tica falava-se também de religião e, por e os espíritos como parte da natureza.
extensão, de teologia. Mas se quiser- Nessa medida, o conflito dos teólogos
mos falar na teologia que se produzia ilustrados com a teologia ortodoxa ver-
na Alemanha de então, impregnando sava em grande parte sobre interpreta-
do teólogo ao homem comum, não é o ções da Bíblia e passava pela recusa de
caso de conceber um bloco único, pro- dogmas, como o do pecado original, o
vido de coesão. Grosso modo, havia a da expiação para a redenção da culpa e
teologia ortodoxa e outra, ilustrada ou o da Santíssima Trindade – estes, além
racionalista, também chamada “neolo- de carentes de atestação bíblica, seriam
gia”3 . Apesar de o nome dar a entender dispensáveis para a vida prática do cris-
o “conhecimento de algo novo”, o pro- tão.
pósito dos neólogos, que eram teólogos A tentativa de “naturalizar” a reli-
luteranos afeitos a certas influências fi- gião pelos próprios teólogos mostrava-

3 Neologia é o termo empregado para designar um grupo de teólogos protestantes em atividade em meados do século XVIII. Sua
marca esteve em adotar as ideias da Ilustração ao tempo mesmo em que se mantinham fiéis aos ditames da Igreja, procurando puri-
ficar a teologia e, com isso defender o cristianismo – nesse sentido, seu intento e o do próprio Lessing iam na mesma direção. Assim,
se o prefixo “neo” denota se tratar o movimento de uma nova concepção, em contraste com a ortodoxia teológica que então grassava,
os neólogos não pretendiam um ensinamento novo, o seu ímpeto sendo restaurador: intentavam restaurar o que entendiam ser o
cristianismo em sua forma original e pura. De interesse religioso e pastoral, os neólogos eram reformadores seletivamente porosos à
influência de filósofos como G. W. Leibniz, Christian Wolff e de deístas ingleses como John Toland, Mathew Tindal, Anthony Collins
e Anthony Shaftesbury.
4 Entre os teólogos protestantes alemães estavam Johann Friedrich Wilhelm Jerusalem (1709-1789), Friedrich Samuel Gottfried
Sack (1738-1817) e Johann Joachim Spalding (1714-1804). Johann Salomo Semler (1725-1791), considerado “pai do racionalismo
alemão”, é também por vezes incluído entre os neólogos.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 209-232 211
ISSN: 2317-9570
SAULO KRIEGER

se em plena afinidade com os avanços O debate só não seria mais acalo-


da razão, sendo algo de bem inerente rado porque, em sua principal ver-
ao século das luzes. Os teólogos ortodo- tente alemã, a própria Ilustração assu-
xos, entretanto, procuravam se manter mia uma dimensão teológica,5 sobre-
à parte dos desafios, quando não dos tudo em razão da filosofia do influ-
ataques que a filosofia das luzes então ente Christian Wolff (1679-1754). Fa-
representava ou que desferia à religião lar de Wolff, porém demanda que antes
estabelecida. Sua teologia apegava-se a se fale de Leibniz, de quem foi discí-
dogmas inquestionáveis e a uma fé cal- pulo e amplificou a influência. Leib-
cada na revelação direta e inequívoca niz foi o primeiro filósofo alemão de
das Escrituras, de cuja verdade se fa- estatura universal, inserido na tradição
zia estreitamente dependente. Se em racionalista inaugurada por Descartes
outro momento essa seria uma posi- e, de modo muito peculiar, continuada
ção cômoda e prestigiosa – tanto mais por Espinosa. Gottfried Willhelm Leib-
sendo atrelada ao poder político vi- niz (1646-1716) distinguiu-se do quase
gente, como na Alemanha –, no século contemporâneo Descartes entre outros
XVIII ela se via ameaçada: à luz de uma pontos por não rechaçar a filosofia esco-
razão que se emancipava de anteparos lástica – e para tal ele se valia da lógica,
como fé e verdade revelada, os dogmas da dialética e, por certo, do pano de
perdiam sentido porque se mostravam fundo do aristotelismo. No debate cru-
inconsistentes ou, sobretudo em se tra- cial do século XVII sobre as substâncias
tando dos Evangelhos, contradiziam-se. – sobre o que existe necessariamente e
Não obstante, num desesperado afã de por si, sem o concurso de outra coisa
se autoimunizar, os teólogos ortodoxos –, Leibniz concebe uma noção próxima
tanto mais se refugiavam em sua fé lite- da noção escolástica e, não por acaso,
ral na Bíblia; aos avanços da razão ilu- eminentemente cristã.6 Na condição de
minista, respondiam com tantas mais precursor da teologia racionalista ence-
citações das Escrituras, no que se con- tada por Wolff, a ampla arquitetura de
figurava um debate de posições estan- seu pensamento acomodava de maneira
ques. notável os dogmas cristãos, tanto mais

5 Até porque na Alemanha a Ilustração se deu em grande parte nos campos da filosofia e da teologia, é preciso não confundir a Ilus-
tração, que em certa medida era teológica, encabeçada por Wolff, com a teologia ilustrada, ou neologia, proposta não exatamente por
filósofos, mas por teólogos protestantes (cf. nota 3). Os neólogos da teologia ilustrada tinham preocupação mais religiosa e pastoral
do que filosófica. Podiam se apropriar de algo das filosofias de Leibniz, de Wolff e de deístas ingleses como Edward Herbert e Shaftes-
bury (o terceiro conde de Shaftesbury, e não o primeiro, próximo de John Locke), mas seu esforço se dá mais no sentido de imunizar
a fé cristã, ante os ataques da razão iluminista, do que em aderir a essa razão (YASUKATA, 2002, p. 8 e BECKER-CANTARINO, 2005,
p. 13).
6 Segundo formulação em seu Discurso de metafísica, “a natureza de uma substância individual ou de um ser completo consiste em
ter uma noção tão perfeita que seja suficiente para compreender e fazer deduzir de si todos os predicados do sujeito a que se atribui
esta noção” (LEIBNIZ, 2004, p. 16-17).

212 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 209-232
ISSN: 2317-9570
A RELIGIÃO REDIMIDA PELA RAZÃO: A ILUSTRAÇÃO SEGUNDO GOTTHOLD E. LESSING

por fazê-lo pela metafísica otimista de de Lessing – será o desenvolvimento do


seus Ensaios de teodiceia. Nesta obra, ser humano como um todo, tendo em
os mistérios a envolver Deus, homem vista sua abrangente perfeição que, por
e mundo – sobretudo o mal a despeito progressão dinâmica, abarcaria corpo,
da bondade de Deus – passavam por alma, chegando ao limiar da transcen-
uma releitura que, mesmo que filosó- dência. Sua influência, quando que fi-
fica e racionalista, não renunciava à nalmente arrefece entre os filósofos e
fundamentação cristã: o dogma da San- teólogos protestantes, com o ponto de
tíssima Trindade era substituído pelo inflexão personificado por Kant, mi-
conceito de um ser perfeitíssimo, con- grará para as universidades católicas
vertido em “a mais elevada razão”, a de Alemanha e Áustria, que o adotam
governar o mundo estando fora dele. O mesmo sob a forma de manuais, graças
mundo seria máquina do mundo, Deus, ao seu rigoroso método, o método wolf-
seu artífice e, como se pode depreender, fiano.
Leibniz o advogado de Deus: advogado É por tal disseminada influência que
eficiente a ponto de converter o pessi- a obra de Wolff, num primeiro mo-
mismo antropológico-conceitual do pe- mento – ao menos até Kant –, vem
cado original no “melhor dos mundos se confundir com a Aufklärung alemã.
possíveis”, onde o mal, se não podia Nesse amplo contexto pautado por fi-
deixar de existir, justificava-se como o losofia e teologia, a figura de Lessing
mal menor. assumirá um caráter muito particular.
Da mesma forma que Leibniz, Wolff A uma visão posterior e retrospectiva,
não rechaçou a escolástica, e sua in- um lugar muito próprio pareceu-lhe es-
tenção esteve longe da radicalidade de tar reservado, e estaria marcado por um
submeter a razão ao escrutínio dela certo entrecruzamento de razão e re-
própria, como fará Kant. Dono de ligião como não se viu na Alemanha
um prodigioso racionalismo sistemá- oitocentista, de tantos embates teoló-
tico, propunha-se a disseminar as Lu- gicos. Se para além do viés teológico
zes e promover uma síntese entre o e filosófico houve ali uma Ilustração
cabedal escolástico e as contribuições caudalosa, com nomes expressivos em
de Leibniz e do empirista inglês John diversas áreas, como Goethe e Schil-
Locke. Seu objetivo mais amplo – do ler na literatura e na poesia, com as
qual veremos os ecos na religiosidade ideias de Herder para a linguística e

7 Moses Mendelssohn (1729-1786), filósofo judeu e proeminente representante do círculo berlinense da filosofia das Luzes, sua
paradoxal conciliação entre compromisso religioso e lucidez filosófica, bem como a amizade com Lessing, teria inspirado neste o
protagonista de Natã, o sábio e o escrito de juventude Die Juden (Os judeus). E Mendelssohn efetivamente personificou o Natã ficcional
ao aliar fidelidade à tradição – no caso, judaica – à clarividência da religião natural e racional, ao propor uma conciliação e tolerância
que não implicasse desconsideração das diferentes posições e condições, nisto a personificar uma ideia de humanidade para além
da condição de judeu e de sua profissão de fé. Em colaboração com o amigo Lessing, Mendelssohn escreveu Pope ein Methaphisiker!

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 209-232 213
ISSN: 2317-9570
SAULO KRIEGER

para a poesia, com o filósofo Moses minista. Um olhar atento, como o que
Mendelssohn7 , para não falar no pró- se pretende aqui, revelará que esse juízo
prio Wolff e sobretudo em Kant, foi não estará muito apartado de outro, de
justamente Lessing que o filósofo Wi- autoria do poeta Heinrich Heine (1797-
lhelm Dilthey (1833-1911) veio a pin- 1856), que exalta a atuação de Lessing
çar como o primeiro alemão dos tempos no campo religioso:
modernos a “chegar ao estado de mai-
oridade”.8 Ora, com essa afirmação
Eu diria que Lessing sucedeu
e com a ideia de “maioridade” (“ganz
[Martin] Luther. Após Luther
mündige Mensch”) referia-se ele à clás-
nos ter emancipado do jugo da
sica definição de Esclarecimento pelo
tradição e elevado a Bíblia à
filósofo de Königsberg: em ensaio con-
condição de única autoridade
cebido em resposta à pergunta “o que
da Igreja, surgiu uma obstinada
é Esclarecimento [Aufklärung]?”, Kant
bibliolatria... e a letra da Bíblia
definiu a filosofia das luzes como “a
se fez governante tão tirânico
saída do homem de sua menoridade,
quanto a antiga tradição. Por
menoridade esta que é a incapacidade
ter nos emancipado desse tirâ-
de fazer uso de seu entendimento sem
nico reinado da letra, Lessing
a direção de outro indivíduo” (KANT,
prestou-nos um grande serviço
1923, p. 35). E como não se trata de
(HEINE, 1992, p. 469).
aderir a crenças pré-estabelecidas ou ao
entendimento de outrem, “o culpado
dessa menoridade é o próprio indiví- Assim, em âmbitos distintos, por
duo” (KANT, 1923, p. 35). No que veio mais que permeáveis como foram a
a se transformar em lema do Esclareci- Ilustração alemã e seu protestantismo,
mento, Kant enuncia em seguida: “Sa- a figura de Lessing é a de um emancipa-
pere aude! Tem coragem de fazer uso dor. Emancipador por saber reconhecer
de teu próprio entendimento” (KANT, o âmbito de aplicação de seu próprio
1923, p. 35). entendimento. E um emancipador que
Lessing teria sido assim o primeiro reconhece a sua religiosidade como um
alemão a protagonizar autonomia e traço indelével, sem dela abrir mão. Se
emancipação – a vivenciar o lema ilu- acima dissemos ser Natã, o sábio obra

(Pope, um metafísico!), sobre o poeta inglês Alexander Pope (1688-1744). Após a morte de Lessing, em 1781, esboça a intenção de
escrever a biografia do amigo, no que é demovido em conversa particular com o filósofo e homem de letras Friedrich Heinrich Jacobi
(1743-1819), para quem Lessing teria admitido uma estreita afinidade com o espinosismo – à época uma maldição, como se verá aqui,
por implicar panteísmo, ou seja, trazer Deus ao mundo. Essa intervenção de Jacobi, interlocutor privilegiado de toda a intelectuali-
dade germânica de seu tempo, resultou justamente na “querela do panteísmo”, cujo teor e consequências serão explicitados em nota
subsequente. Sobre Lessing e Espinosa ou “a querela do panteísmo”, YASUKATA, 2002, p. 118-139.
8 Em outra passagem, o mesmo Wilhelm Dilthey destaca a eminência de três figuras, em seu diferente caráter, a pontuar a Aufklä-
rung: o rei Frederico II, déspota esclarecido da Prússia, Immanuel Kant e o próprio Lessing (DILTHEY, 1921, p. 65).

214 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 209-232
ISSN: 2317-9570
A RELIGIÃO REDIMIDA PELA RAZÃO: A ILUSTRAÇÃO SEGUNDO GOTTHOLD E. LESSING

cimeira de seu projeto humanista, po- sofia, da filologia, da arqueologia e, por


demos dizer agora se tratar de um efeito fim, da medicina. O próprio Dilthey,
oriundo de tal emancipação e de tal re- acima citado, situa a sua obra e legado
ligiosidade. Afinal, a intimamente li- em algum ponto entre a teologia, a fi-
gar um aspecto e outro, tem-se o seu losofia e a filologia (DILTHEY, 1921,
ideal de humanidade. Considerando p. 86). E o próprio Lessing, enfim, fa-
essas três noções centrais, para bem zia questão de deixar bem claro: “Sou
apreender o sentido e a importância do um diletante no campo da teologia, não
poema dramático em questão havemos um teólogo. Jamais prestei juramento a
por providencial analisar, afinal, o que nenhum sistema em particular” (LES-
no percurso intelectual de Lessing te- SING, 1993, p. 57).9 É de maneira a um
ria suscitado as afirmações de Dilthey só tempo humilde e sugestiva que ele se
e Heine. Assim, veremos de que modo compara a Íon, herói da tragédia grega
ele teria sido o primeiro alemão a che- de Eurípedes, que trabalhava como ser-
gar à maioridade mesmo sem uma avi- vente no templo de Apolo: “Também
dez em esposar posições iluministas ou eu não trabalho no templo, apenas pró-
quaisquer posições. Veremos também ximo a ele. Também eu apenas tiro o pó
de que modo teria feito jus ao elogio de do interior do templo. Também eu me
Heine, de libertar os alemães do jugo orgulho deste trabalho banal, pois me-
da letra bíblica, mas não por uma verve lhor fico sabendo em honra de quem
anticristã nos moldes de Voltaire. As- faço o que faço” (LESSING, 2001, p.
sim, que se ressalte ainda uma vez: o 172).
exercício da razão iluminista não ne- E se não foi teólogo, teria sido Lessing
cessariamente precisa atacar a religião reconhecidamente um filósofo, para tão
estabelecida, seja ela católica ou pro- bem encarnar o espírito iluminista, se-
testante. Pode se propor muito mais a gundo a invocação de Dilthey? Até se
salvá-la. pode dizer que sim, considerando que,
diferentemente do que se tinha no sé-
culo XVII, o filósofo já não se expressa
de modo preponderante por meio de
II. Lessing e a vocação plural do ho- tratados, de estritos rigor e ordena-
mem oitocentista mento formal. Dissolvendo-se as de-
limitações estritas entre a filosofia e a
Lessing não foi teólogo. Como estu- literatura, ele se expressa numa diver-
dante de teologia na Universidade de sidade de gêneros (MATTOS, 2001, p.
Leipzig, ele a deixou em favor da filo-

9 As traduções de escritos de Lessing, bem como dos de Kant, de Dilthey, Heine e Hanna Arendt, e também os dos comentadores
estrangeiros, são de nossa autoria (livre tradução).

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 209-232 215
ISSN: 2317-9570
SAULO KRIEGER

97), como foi o caso de Diderot – que se pode dizer de seu distanciamento em
além do ensaio elegeu o teatro e a crí- relação a posições vigentes no próprio
tica –, de Voltaire – que era também ro- debate filosófico-teológico da época. Se
mancista, contista, historiador e drama- a teologia ortodoxa estava fora de ques-
turgo – e Rousseau, que chegou a com- tão, o Esclarecimento teológico de um
por uma ópera. Mas muito embora em Wolff e de seus muitos seguidores não o
alguns momentos, como em A educação convencia: Lessing mantinha-se crítico
do gênero humano, a obra de Lessing de a essa contemporização entre fé e ra-
fato adquira magnitude filosófica, esta zão,11 o mesmo valendo para a sua con-
não chega a se traduzir em conceitos traface teológica, da neologia. Para ele,
que lhe imputem uma reconhecida con- tais modos de fundir razão e religião
dição de filósofo. Da peculiaridade de não raro incorriam em tergiversações
sua condição dão testemunho os pró- superficiais, e sua tentativa de raciona-
prios dicionários e manuais de filosofia: lizar a religião exalava ares de irracio-
tanto não seria filósofo, que não cos- nalidade (ARENDT, 1968, p. 15). Para
tuma ali constar como verbete, embora o autor do Natã, desse modo, tanto os
apareça, até como figura crucial, em vá- filósofos de propensão teológica quanto
rios outros verbetes – de modo póstumo os teólogos ilustrados procederiam em
é considerado pivô da “querela de Espi- prejuízo da razão e também da religião.
nosa”, logo transformada em “querela Para resguardar a religião e revigorar
do panteísmo” (Pantheismusstreit)10 . Tal a razão, Lessing, de sua parte, abraça
querela sacudiu o mundo intelectual no um procedimento eminentemente ne-
século XVIII na Alemanha e em muito gativo, no qual a positividade pouco se
contribuiu para o surgimento do idea- dá ou se revela. Seus “não posiciona-
lismo alemão de Fichte, Hegel, Schel- mentos”, mais do que uma constante,
ling, entre outros. são uma tônica. Para o teólogo católico
Lessing, por fim, certamente foi es- Hans Küng, “Lessing frequentes vezes
critor, crítico e ensaísta, além de poeta, foi compreendido como estando a falar
de modo que, se isoladas, tais designa- dogmátikôs (em princípio) quando, ao
ções revelam-se insuficientes. O mesmo envolver-se em acirradas polêmicas, fa-

10 A referida querela foi, a bem dizer, concebida ou “armada” por Jacobi (cf. nota 7 supra) que, em constante interlocução com Moses
Mendelssohn, amigo e admirador de Lessing, teria invocado uma crítica deste último, recém falecido, tanto à filosofia da Aufkärung
quanto a seu teísmo moral e racional. E complementou que Lessing lhe confidenciara um “espinosismo”, que o próprio Jacobi já
lhe entrevera na obra derradeira, A educação do gênero humano (Die Erziehung des Menschengeschlechts, 1780), acrescentando que o
autor, Lessing, teria adotado como palavra de ordem o hei ka pan, “tudo em um”. A intenção de Jacobi era inviabilizar as tentativas
de um discurso racional sobre Deus, e isto incluía o espinosismo, pois tal discurso conduzia a um determinismo e a um fatalismo
que acabariam por fundamentar a moral e a religião, que desse modo já não seriam hauridas da liberdade humana. A “querela de
Espinosa”, logo transformada em “querela do panteísmo” chegou a eclipsar o aparecimento da Crítica da Razão Pura (1781), de Kant,
e estendeu-se pelo século XIX, fazendo de Lessing, também por esta via, um elo crucial entre a Aufklärung e o idealismo alemão.
11 Lessing tem sua própria concepção a dar conta de “irracionalidades bíblicas” como os milagres de Cristo – cf. notas 18 e 19.

216 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 209-232
ISSN: 2317-9570
A RELIGIÃO REDIMIDA PELA RAZÃO: A ILUSTRAÇÃO SEGUNDO GOTTHOLD E. LESSING

lava meramente em gymnastikôs (isto é, pujado por sua própria tática e por seu
de maneira tática, pelo próprio exercí- método.
cio)” (JENS KÜNG, 1991, p. 76), como O pano de fundo histórico-cultural
se sua lógica rigorosa e sua genuína di- da Alemanha de então, em que reli-
alética tudo quisessem fazer transpare- gião e política implicavam-se profun-
cer, a nada permitindo se ater. Se então damente, de fato nos autoriza a pen-
não chegaria a uma explícita formula- sar com Hannah Arendt: o método de
ção de conceitos, muito menos proce- Lessing seria um exercício de extrema
deria a erigir sistemas, mostrando-se liberdade de pensamento num ambi-
afeito a posições táticas, fugidias e pro- ente em que outras liberdades, como a
visórias. Isso significa que, num de- de expressão e a de ação, deparavam
bate, a posição que assumia era não com sérias restrições. Por esse quadro,
propriamente a sua, mas o posiciona- o que se tem é um Lessing eminente-
mento oposto ao do proponente que se mente crítico e nada propositivo; um
mostrasse mais aferrado e, consequen- Lessing, ao que parece, quase que de
temente, mais intolerante e mais irascí- uma dialética estéril, sem compromisso
vel. em esposar essa ou aquela posição. Essa
Para Hanna Arendt, o que se mos- feição negativa de seu exercício intelec-
tra como não aderência a uma posição tual, se não é tudo o que se tem a dizer
e como não reivindicação da verdade a seu respeito, por si só daria conta do
estaria associado a um impulso de com- juízo que dele fez o filósofo Dilthey: por
pensação: a mobilidade do pensar viria certo teve a coragem de se valer de seu
como compensação às amarras que fa- próprio entendimento ao desafiar posi-
ziam a realidade política e intelectual ções então dominantes e também opres-
da Alemanha. Para a filósofa, Lessing soras – e o fez antes mesmo de Kant e
“sabia muito bem que vivia no país me- sua formulação lapidar sobre a Ilustra-
nos livre da Europa” (ARENDT, 1968, ção. Ocorre que esse feito para nós não
p. 9). Já observamos que na Alemanha se esboçaria de todo sem que se apre-
de pequenos Estados, ou luteranos ou sentasse um Lessing propositivo, ainda
católicos, a censura prévia em assuntos que não abertamente propositivo. Afi-
religiosos se fazia sentir bem mais do nal de contas, valer-se de seu próprio
que em outras partes da Europa. Mas entendimento não necessariamente sig-
Arendt bem observa que a censura, se nifica ser cético ou sempre contrapo-
tende a incidir diretamente sobre um sitivo. E Lessing tanto não era cético,
pensamento expositivo e propositivo, que desde sempre acalentou religiosi-
não chega a inibir o exercício do pensar. dade profunda, com a qual, como afir-
Nessa medida, um ideário que Lessing mou Heine, teria libertado a Alemanha
viesse a esposar facilmente seria sobre- do jugo das Escrituras. Compreender o

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 209-232 217
ISSN: 2317-9570
SAULO KRIEGER

modo como o fez, e como se expressou de fato, obra da própria ausência de li-
de forma poética e cifrada com Natã, o berdade, que, evento factual, culminou
sábio, demanda conhecer as circunstân- na censura prévia de qualquer escrito
cias em que a obra foi gerada. de Lessing sobre religião. Com isso já
estamos falando do embate que ficou
conhecido como a “querela de Goeze”.
III. Lessing ao longo de controvérsias Para entender o que foram as quere-
las de Lessing com os teólogos lutera-
A concepção de Natã, o sábio é obra de nos de seu tempo, as quais justamente
uma Ilustração crítica à religião cristã cumularam com a “querela de Goeze”,
tal como se encontrava instituída, mas é preciso passar da visão de sobrevoo
de modo algum crítica à fé. Justamente, de seu método argumentativo para um
é obra da religião que se pode ter ao fio, por assim dizer, biobliográfico –
que a razão, de maneira sábia, depara entenda-se, a sua relação com a teologia
com seus próprios limites. É obra de ortodoxa. Contra esta, Lessing prota-
uma razão que abraça um Deus, do gonizava de fato uma razão iluminista.
qual a concepção racional é admitida, Uma razão que, já não idealizando cam-
dispensando-se a revelada. É obra de pos privilegiados de aplicação, como no
um papel subalterno imputado às Es- século XVII,12 avançava até mesmo so-
crituras e a tudo quanto não deve ser bre o terreno religioso. Neste, ele de-
compreendido como cerne da religião, parava uma fé que tinha pés de barro.
mas como adereço vindo dessa ou da- Se o Natã é oriundo dessa compreensão
quela condição histórica. É obra do sendo obra da maturidade, foi desde
exercício dialético entre posições a que muito cedo que Lessing manifestou res-
um entendimento, porque saído da con- trições a uma fé calcada nas Escrituras.
dição da menoridade, recusa-se a aderir Tal se pode depreender de uma carta
sem escrutínio – por tal escrutínio jus- que, aos vinte anos, o poeta endereçou
tamente pode rechaçar todas elas. E no ao pai:
mais, como se verá, conceber o Natã foi,

12 O caso de Espinosa, no século XVII e no tocante a esse aspecto, já é muito particular. É provável que, uma vez oriundo de um
meio judeu ortodoxo, justamente o contraste entre a cultura bíblica não cristã de sua origem e a cultura bíblica predominantemente
cristã de seu entorno mais amplo tenham lhe franqueado um olhar frio e crítico a campos que para Descartes e Leibniz ficaram
resguardados. Nutrido pelo rigor do cartesianismo mas, mesmo antes disso, por sólidos estudos talmúdicos, logo enriquecidos por
uma formação humanista e latina, Espinosa representou uma perspectiva original, desprendida e acerbamente crítica. Com essa
perspectiva, aplicou seus rigorosos encadeamentos more geometrico aos âmbitos político, ético e religioso em plena Europa monar-
quista, eivada de regimes autoritários e superstições cristãs. O seu Tractatus theologico-politicus, publicado de forma anônima em
1670, é obra que inaugura a crítica bíblica racional, ao tempo mesmo em que introduz a revolucionária teoria de um Deus imanen-
tista. Nem propriamente ao Deus judeu nem ao Deus cristão, a crítica presente ali é de concepção e efeito abrangentes em relação
aos monoteísmos dualistas e à sua moral. Excomungado por ateísmo pela comunidade judaica de Amsterdã, em pleno século XVII
Espinosa configurou ampla ameaça à fé cristã e à judaica, à moral tributária de uma e de outra, ao poder aristocrático e à própria
monarquia. Sua originalidade, coragem e poderio crítico renderam a ele, em seu próprio século e no de Lessing, mais admiradores
do que seguidores, e à sua filosofia, uma aura de que participam a atração e o anátema. A esse respeito, cf. YASUKATA, 2002, p. 60.

218 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 209-232
ISSN: 2317-9570
A RELIGIÃO REDIMIDA PELA RAZÃO: A ILUSTRAÇÃO SEGUNDO GOTTHOLD E. LESSING

O tempo vai dizer se é melhor qual seja, a ideia da tolerância. À tole-


cristão aquele que tem os prin- rância foram dedicados seus primeiros
cípios dos ensinamentos cris- escritos, de um período de formação,
tãos memorizados e na ponta como O livre-pensador (Der Freidenker,
da língua, não raro sem os com- 1748), que denunciava a intolerância e
preender, que vai à igreja e se- a hipocrisia dos livre-pensadores,13 e o
gue todos os costumes a que se Pensamentos sobre os morávios (Gedan-
habituou, ou se melhor cristão ken über die Herrnhuter, 1750), em favor
será o que nutre sérias dúvi- de uma seita herética protestante. Se o
das e, após examiná-las, chega primeiro é um fragmento, e o segundo,
a uma convicção, ou ao menos um ensaio não publicado, sua impor-
ainda busca chegar a ela (LES- tância está em deixar entrever direção
SING, 1987, p. 26). e sentido que o pensamento de Lessing
começava a encetar: a ideia de tolerân-
cia permeará Natã, o sábio como nega-
Em suma, “quem é melhor cristão?”. tivo da ideia que ali positivamente se
O conteúdo deixa transparecer inqui- põe – a de humanidade.
etação com a divergência entre a dou- Nos anos seguintes, o percurso inte-
trina cristã e o modo de vida de mui- lectual de Lessing continuará a indicar
tos dos que se passavam por cristãos e inflexões futuras. Como fruto de um es-
assim eram considerados, ou seja, im- tudo histórico-teológico sobre o pensa-
plícito está aí o modo de exercer, de mento religioso no período da Reforma,
vivenciar a sua fé. O modo do qual Les- Lessing publicou suas quatro Reabilita-
sing discordava era o do apego a prá- ções (Rettungen, 1754), cujo foco eram
ticas cristalizadas, apego este que aca- quatro pensadores – um literato e três
bava por ignorar uma série de preceitos teólogos. Em comum, traziam um traço
básicos da cristandade. Mostrava-se es- biográfico-intelectual que bem revela a
pecialmente sensível a um deles – “amai estratégia que então pautava sua pro-
aos inimigos” (LESSING, 1987, p. 26). dução: as ideias e escritos desses pen-
Esse amor que, em se tratando da espé- sadores tinham sido injustamente igno-
cie humana, desconhece objeto especí- rados ou deturpados, por ignorância ou
fico, remete-nos a uma ideia mais am- por má fé. Nessa mesma direção, no pe-
pla, a transcender o horizonte cristão,

13 Os livre-pensadores (freethinker) eram filósofos e, de modo mais amplo, pensadores que, no âmbito do Esclarecimento – inicial-
mente em suas vertentes inglesa e francesa – assumiam uma postura de vida autônoma e independente, e isto significa, buscavam as
evidências que pautariam seu pensar não em uma autoridade, mas na razão como crítica e guia de todas as experiências humanas.
Nesse sentido, declinavam da fé religiosa, sobretudo dos dogmas da Igreja, compreendendo-se como ateístas, agnósticos, céticos e
humanistas seculares. Em sua tradução e versão alemã (Freidenker), que contou com a adesão de Gottfried Wilhelm Leibniz, a con-
ceituação do termo se fez mais difusa, e segundo ela os livre-pensadores incluíam os deístas, que propunham uma religião natural,
fundada na manifestação natural da divindade à razão do homem.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 209-232 219
ISSN: 2317-9570
SAULO KRIEGER

ríodo em que esteve à frente da biblio- damento já não na letra das Sagradas
teca de Wolfenbüttel, Lessing produziu Escrituras, de cuja estrita veracidade
um tratado sobre um teólogo francês dependeria a fé, mas sim o contrário:
do século XI, Berengar de Tours (Beren- a teologia encontraria seu fundamento
garius Turonesius, 1770). Produziu essa na fé e, a partir desse fundamento apa-
obra a partir de manuscritos que encon- rentemente mais tênue, mas por certo
trara na célebre biblioteca – originais mais seguro, as Escrituras teriam re-
que, negados pela ortodoxia luterana e desenhado seu papel e sua relevância.
também pela católica, inocentavam Be- Para tanto, porém, o dramaturgo ansi-
rengar das acusações de heresia contra ava por um meio que efetivamente fosse
a doutrina da Transubstanciação. O in- capaz de demover as posições mais an-
tento de Lessing teve reconhecimento quilosadas. Estando a teologia ortodoxa
e boa acolhida, que bem poderiam lhe fechada ao diálogo, esse meio era a po-
bastar se o seu intuito fosse apenas o de lêmica.
reabilitar autores renegados.14 A polêmica tão ansiada acabou
Entretanto, a intenção do poeta ia por se dar no período 1774-1778,
além de reabilitar autores assim repu- celebrizando-se com o nome de “que-
diados, de cujas ideias e interpretações, rela dos fragmentos” (Fragmentstreit) –
aliás, quase sempre discordava. Na ver- a mais significativa dentre as muitas
dade, o autor do Natã queria demo- discussões teológicas do século XVIII
ver posições que, firmemente manti- alemão. Ainda que não de maneira
das pela teologia de seu tempo, já não imediata, o intento foi conseguido me-
se sustentavam ante uma razão ávida diante a publicação dos escritos de
por exercer seu escrutínio crítico, que um certo Hermann Samuel Reimarus
já não se demovia ante terreno algum. (1694-1768), que em vida fora profes-
Para Lessing, as inconsistências da orto- sor de línguas orientais no Gymnasium
doxia deveriam ser desveladas por um de Hamburgo – e diga-se, ele próprio
questionamento que partisse sempre de seguidor do célebre Christian Wolff.
uma posição contrária – não necessari- Alheio a qualquer polêmica quando
amente a sua própria. Era preciso que vivo, suas críticas à religião cristã eram
a ortodoxia se rendesse e, com isso, no então desconhecidas, contidas que es-
melhor estilo dialético, que a teologia tavam em volumosos escritos não pu-
assumisse outro patamar. Nesse novo blicados. Nestes, Reimarus revelava-se
patamar, a teologia encontraria seu fun- um deísta radicalmente racionalista; se

14 Em sua cruzada pelo livre pensar e contra a intolerância religiosa, Lessing reabilitaria ainda outra personagem amaldiçoada pela
ortodoxia, com o escrito Alguns autênticos detalhes sobre Adam Neuser (Von Adam Neusern, einige authentische Nachrichten), publicado
em 1774. Adam Neuser fora um pastor e teólogo protestante de Heidelberg do século XVI, que propunha uma visão antitrinitária de
Deus, o que equivalia a negar a divindade a Jesus Cristo.

220 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 209-232
ISSN: 2317-9570
A RELIGIÃO REDIMIDA PELA RAZÃO: A ILUSTRAÇÃO SEGUNDO GOTTHOLD E. LESSING

podia ser visto como ardoroso defen- Catarina, em Hamburgo, a polêmica ga-
sor da religião cristã, ao mesmo tempo nhou contornos bastante acentuados –
exercia uma crítica que, do ponto de tanto pela posição do contendor quanto
vista histórico, voltava-se de modo im- pelo teor das réplicas, que deixaram a
placável contra as narrativas bíblicas. mera corroboração da ortodoxia lute-
Ora, Lessing decide publicar parte dos rana para se converter em virulentas
manuscritos de Reimarus em seguidas acusações (YASUKATA, 2002, p. 44). A
edições, com o cuidado de tratá-lo por estas Lessing respondia com suas Anti-
“autor anônimo”, a fim de preservar Goeze, ao todo onze. Nos panfletos que
os filhos do próprio Reimarus. Para a se sucediam de parte a parte, o autor do
segunda edição, selecionou e publicou Natã procurava associar a fé a uma “ver-
fragmentos que, versando em especial dade interior” (innere Wahrheit); entre
sobre as diferenças entre os Evangelhos, esta e os relatos bíblicos haveria es-
atingiam o coração da doutrina da res- trita separação. Já para Goeze, tal “ver-
sureição. Por ocasião dessa publica- dade interior” de modo algum poderia
ção, num apêndice de autoria do pró- deixar de se identificar com uma fun-
prio Lessing, ele revela não uma plena damentação objetiva, que seria encon-
anuência às teses do autor anônimo, trada, evidentemente, na tradição das
mas um posicionamento teológico pró- Sagradas Escrituras – caso contrário, se-
prio e equidistante. E diga-se, ao menos gundo ele, obedecer-se-ia a anseios ar-
em parte o ensejo para a publicação foi bitrários, incorrendo-se em palavreado
a necessidade de compartilhar o incô- vazio (YASUKATA, 2002, p. 45-46). A
modo gerado pelo falecido professor de controvérsia terminou sob o signo de
Hamburgo.15 De fato, as teses seriam um aspecto aqui já contemplado, a sa-
perturbadoras, e foi precisamente a sua ber, a falta de liberdade de expressão
visão sobre a ressurreição de Cristo que na Alemanha da época. Se nos Esta-
veio suscitar as reações e o debate na dos alemães, questões religiosas eram
magnitude pretendida. questões políticas, Goeze recorreu ao
A controvérsia se iniciou morna e ali- duque de Brunswick, que em julho de
mentada por contendores de menor ex- 1778 submeteu as publicações de Les-
pressão.16 Mas com Johann Melchior sing à censura prévia – sempre que o
Goeze, pastor primaz da Igreja de Santa tema, como era frequente, fosse a re-

15 “Revelei-o ao mundo porque já não conseguia conviver sozinho sob o mesmo texto que ele. A todo tempo ele me importunava;
e confesso que nem sempre fui capaz de resistir a seus sussurros como desejava. De modo que pensei que alguém outro nos deveria
aproximar de vez, ou nos separar, e esse alguém só poderia ser o público” (LESSING, 1989, p. 600).
16 Os “contendores de menor expressão” foram Johann Daniel Schumann, diretor de um liceu em Hannover, Johann Heinrich Hess,
arquidiácono e superintendente em Wolfenbüttel, além de Friedrich Wilhelm Maschio e Georg Christoph Silberschlag. A esses con-
tendores, Lessing procurava não refutar em público, por julgá-los pouco significativos. Mesmo assim não os evitava, como comprova
o escrito polêmico Gegen Friedrich Wilhelm Maschio (Uma refutação a Friedrich Wilhelm Maschio). Sobre tais contendores, cf. LESSING,
1989, p. 353-471, 473-586, p. 587-601 e 603-610.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 209-232 221
ISSN: 2317-9570
SAULO KRIEGER

ligião (YASUKATA, 2002, p. 20, 42). do ano 1192, sob pleno vigor das Cru-
Coagido, então, a retornar ao “seu ve- zadas, as três religiões abraâmicas –
lho púlpito, o teatro” (LESSING, 1994, judaísmo, cristianismo e islamismo –
p. 193), Lessing de pronto passou a ges- entrecruzam-se de modo flagrante. Je-
tar Natã, o sábio.17 O contendor Johann rusalém é então governada pelo sul-
Melchior Goeze ali estaria retratado, na tão Saladino e assediada pelos cruzados
personagem do Patriarca cristão de Je- cristãos. Nela habita Natã, rico merca-
rusalém. dor judeu, com a filha adotiva, Recha, e
uma criada fervorosamente cristã, Daja.
O transcorrer do texto é pontuado pe-
las relações entabuladas por Natã com
IV. Qual é a religião verdadeira? Natã os demais personagens, que professam
e os níveis de argumentação outras confissões religiosas. De fato,
são encontros pontuados ora por tra-
Se Lessing recusava posições estanques ços levemente cômicos – como com
e previamente dadas, a escolha de gê- Al-Hafi, de dervixe abnegado a tesou-
nero para o Natã – nem tragédia, nem reiro do sultão, e com as superstições de
comédia, mas poema dramático (ein Daja –, ora pelo elemento trágico, como
dramatisches Gedicht) – faz-se relevante quando Natã rememora o assassinato
manifestação desse traço. O Natã se en- de esposa e filhos pelos cristãos. Po-
contraria em algum ponto além da dra- rém nem trágico, nem cômico, um dos
maturgia e da poesia, além da tragédia e encontros de Natã pode ser visto como
da comédia, assimilando elementos de célula conceitual da trama. Trata-se de
uma e de outra. Passando-se daí ao con- sua convocação pelo sultão Saladino.
teúdo, também aqui não há que esperar Este lhe propõe uma questão que, so-
alinhamento a posições dadas de ante- bretudo à época e em plena Jerusalém,
mão. Com notável originalidade, vão só poderia se mostrar candente: qual
permear o Natã os traços pelos quais o das três religiões estaria mais afinada
poeta concebe Deus, religião, a huma- com Deus, qual delas seria a correta, na
nidade e, estreitamente atrelada a essa visão de Natã, a quem chamam de sá-
tríade, uma educação da humanidade. bio? Se na condição de sábio Natã seria
Mediante elementos do próprio poema racional como nenhum outro, a questão
dramático passaremos em revista essas de Saladino invoca uma escolha racio-
concepções, para então, finalmente, dar nal baseada no caráter mais ou menos
a palavra ao próprio autor. convincente das manifestações exterio-
Numa trama situada na Jerusalém

17 De tal maneira a obra foi suscitada pelo debate acalorado e pela subsequente censura, que chegou a ser apelidada de “12a Anti-
Goeze”, levando-se em conta aí as 11 primeiras intervenções de Lessing contra o pastor de Hamburgo.

222 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 209-232
ISSN: 2317-9570
A RELIGIÃO REDIMIDA PELA RAZÃO: A ILUSTRAÇÃO SEGUNDO GOTTHOLD E. LESSING

res de cada religião. se todos em níveis distintos. Se Sala-


Em vez de uma resposta unilateral dino traveste a sua real intenção, o sá-
e inequívoca, Natã propõe um exercí- bio promove a passagem de um nível
cio de interpretação do questionamento a outro, tal como se tem no argumen-
de Saladino: uma parábola, e estamos tar do Lessing polemista. Por não se
falando na célebre “parábola dos três aferrar a posições previamente dadas,
anéis”. É o momento em que o protago- Natã não se deixa embaraçar por elas;
nista melhor encarna a visão de Lessing ao reconhecer nelas uma evidente obs-
sobre a fé religiosa, e tem-se aí o núcleo trução, confere-lhes dimensão mais am-
a partir do qual a peça foi concebida.18 pla. Mais simplesmente se pode dizer
Sob a forma de uma parábola cujo ar- que, ao reconhecer equivocada e desvir-
gumento é originário da Idade Média, tuadora a fala do interlocutor, retifica-a,
esse núcleo recebeu de Boccacio, em apontando trilhas novas e mais apropri-
seu Decameron, uma das versões mais adas.
consagradas. Mas não apenas quanto De fato, por mais que a questão sobre
a seu conteúdo, é de modo muito pe- uma “verdade” das três religiões pu-
culiar que a parábola traz à obra algo desse ser sulfurosa, a intenção de Sa-
do próprio Lessing – e referimo-nos ao ladino é menos a de extrair de Natã
seu modo de argumentar, de não pura uma verdade racional e última sobre
e simplesmente aceitar as posições de sua condição de judeu, e mais a de ex-
um debate ou uma questão nos termos torquir o rico mercador. “Por que ju-
em que é posta. Isto significa que o mo- deu, e não muçulmano ou cristão?” – na
mento a ensejar a parábola espelha o verdade, uma resposta pretensamente
modo de proceder do autor também racional à questão de cunho religioso
com relação a seu desdobramento for- acabaria por acarretar um ônus finan-
mal, ou seja, a maneira como, atraves- ceiro. Como observamos acima, a per-
sando camadas de intenção dos perso- gunta de Saladino atravessa diversos ní-
nagens, a parábola se insere na trama. veis: (1) o de sua penúria financeira,
O que se observa é que as intenções para que o faz convocar Natã e inquiri-lo;
o questionamento de Saladino, o pró- (2) o de uma confissão religiosa, que
prio questionamento – entre enigma, está no cerne da questão; (3) o das es-
armadilha e chantagem – e a não aceita- colhas racionais. Assim, do alto de seu
ção de seus termos por Natã encontram- poder e de suas ocultas razões (1), Sa-

18 Na carta de Lessing a seu irmão Karl, datada de 11 de agosto de 1878 – ou seja, do mês subsequente à censura – a substituição
dos fragmentos por seu “poema dramático” atesta-se expressamente: “Não quero que o verdadeiro conteúdo de minha peça seja co-
nhecido cedo demais; mas se você ou Moses [o filósofo Moses Mendelssohn] o quiserem conhecer, basta ler o Decameron, de Boccacio
(Gionernata 1, Novella 3): O judeu Melquisedeque”. E acrescenta, “creio ter inventado para ela [referindo-se à parábola] um episódio
muito interessante, de modo que o todo resultará numa boa leitura, que por certo irritará os teólogos tanto mais do que outros dez
fragmentos” (LESSING, 1994b, p. 186).

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 209-232 223
ISSN: 2317-9570
SAULO KRIEGER

ladino inquire Natã sobre as “razões” sultão, se lembrarmos a divisa de Kant,


(3) que o teriam feito “escolher” a reli- “tende a coragem de fazer uso de teu
gião judaica (2). Note-se que o sultão próprio entendimento”, diríamos que
ardilosamente procura abstrair da con- Natã ali o encarna à perfeição, à me-
dição do outro, de judeu – não obstante dida que, tal como Lessing em sua argu-
a questão tratar de religião – e sem mais mentação e em suas querelas, de modo
o insere na condição de sábio – “um ho- algum aderiu de maneira acrítica aos
mem como tu”. termos perfilados. Por vezes, como era
A resposta de Natã, por sua vez, o caso, valer-se de seu próprio enten-
igualmente envolve a transposição de dimento implica recusar uma questão
níveis de argumentação: fazendo jus nos termos em que é posta, por reco-
à condição de sábio, ele não aceita a nhecer seu caráter antinômico. E assim
questão nos termos em que é posta, re- como a pergunta é recusada em sua for-
conhecendo um descompasso entre o mulação, à imputada condição de sábio
problema de fundo – as diferentes con- – “um homem como tu” –, Natã con-
fissões religiosas – e o modo como ela trapõe os limites de bem outra condi-
se transmuta num ardil. No âmbito de ção: “Sultão, eu sou um judeu” (itálico
tal cilada, se Natã invocasse razões que, nosso). Ao que um desafiador Saladino
por seu privilegiado entendimento, o lhe interpela:
teriam feito permanecer na fé judaica,
o sultão poderia, alegando ofensa à sua E eu sou um muçulmano. O
fé, exigir uma reparação – algo como Cristo está entre nós. Des-
um sequestro de bens. Por outro lado, sas três religiões somente uma
para contemporizar com Saladino, Natã pode ser a verdadeira. – Um
poderia propor ser o islamismo a me- homem como tu não há de ficar
lhor religião. Nesse caso, já não estaria onde o acaso o lançou no nasci-
fazendo valer seu entendimento, exer- mento, ou, se ficar, fica por en-
cendo sua confissão de modo irracional. tendimento, por motivos, pela
E o sultão poderia lhe exigir uma con- escolha do melhor. Então, va-
versão. Mas Natã transpõe o nível do mos! Divide comigo o teu en-
questionamento, fazendo-o passar do tendimento (LESSING, 1779, p.
nível do entendimento e das escolhas 53).
racionais – que, de fato é uma das di-
mensões da humanidade, como se verá
– para o do determinismo – como tam- Ora, valer-se de seu entendimento
bém se verá, é outra das dimensões de não implica aplicá-lo indiscriminada-
humanidade para Lessing. mente, mas sim ter o controle sobre as
Assim, com o ensejo da armadilha do coordenadas de sua aplicação, saber em
que exato momento, de moto próprio

224 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 209-232
ISSN: 2317-9570
A RELIGIÃO REDIMIDA PELA RAZÃO: A ILUSTRAÇÃO SEGUNDO GOTTHOLD E. LESSING

e juiz de si, ele deve se abster. Nessa tange o teor das próprias querelas em
medida, a parábola dos três anéis as- que se envolveu Lessing, que acabaram
sume a função de fazer a sabedoria se por suscitar o Natã. Em outras pala-
ratificar mesmo ao reconhecer seus li- vras, o autor tem seus próprios motivos
mites. Na parábola, evidencia-se a im- para trazer à tona, e ao escrutínio do
possibilidade de se demonstrar racio- protagonista, a questão: o que faz a ver-
nalmente qual dos três filhos deteria o dade de uma religião e a legitimidade
anel verdadeiro. O pai encomendara de uma fé? De modo alegórico, sub-
dois anéis idênticos ao original, justa- mete essa questão a um entendimento
mente pelo igual amor que nutria pelos que, vivenciado como divisa iluminista,
três. Após sua morte, cada filho invoca incidiria entre o apego à crença numa
razões aparentes para ser o detentor do revelação e a emancipação pela razão.
anel original. Levam o caso a juiz, que Não à toa, Lessing chega a invocar a
por acaso se revela sábio, porém, acima imagem de um amplo e desagradável
de tudo, modesto. Como sábio, ele reco- fosso (der garstige breite Graben), alu-
nhece que entre as razões invocadas e o dido pelo juiz da parábola, entre reve-
verdadeiro anel abre-se um abismo in- lação e razão ou, por outro viés, entre
transponível. Modesto que é, reconhece fé e história. Ele bem sabia que as ver-
não ser capaz de, por seu juízo, trans- dades acidentais da história, ou seja,
por esse abismo. Abstém-se, tal qual o as conformações assumidas por esta ou
próprio Natã, delegando a função a um aquela religião, jamais se fariam prova
juiz futuro, mais sábio do que ele. para as necessárias verdades da razão.
Ainda que sábia, a resposta tinha ares Se os milagres, por exemplo, são verda-
de subterfúgio, e o sultão mostra impa- des históricas que não se pode demons-
ciência: “Os anéis! – Não brinca co- trar, neles se deve crer com a mesma
migo! – Eu pensava que as religiões força com que se crê nas verdades de
a que eu me referia pudessem ser dis- razão, que são demonstráveis. E se Les-
tinguidas. Até pelo que se veste, pelo sing aceita os milagres de Cristo, sua
que se come e pelo que se bebe!”. E aceitação não se dá pela via racional, e
precisamente aqui, o poema dramático sim pela fé (DE PAULA, 2002, p. 81).19

19 Deve-se ressaltar que tais concepções se assinalam sobre o pano de fundo da carta de Lessing intitulada “Sobre a demonstração
em espírito e força” (Über den Beweis des Geistes und der Kraft), pela qual o autor responde a uma contestação feita por Johann Daniel
Schumann a outra de suas cartas, Papéis de um anônimo referentes à revelação. Lessing está a contestar Schumann precisamente por
este defender que a única revelação passível de ser provada a todos é a revelação judaico-cristã, já que ela se ampararia em milagres
e profecias (DE PAULA, 2002, p. 75).
20 Justamente, para caracterizar o hiato que separa os domínios do conhecimento revelado e da razão, Lessing concebeu a imagem
alegórica de um “imenso e desagradável fosso” (der garstige breite Graben). Com ela, retomando a distinção de Leibniz entre “verdades
de razão” e “verdades de fato”, pretendia fazer ver que as verdades acidentais da história jamais poderiam ser arroladas como provas
do que seriam verdades necessárias, independentes de fatos e circunstâncias. Mas uma vez que Lessing não se limita a recorrer à
solução leibniziana – originalmente concebida ante o confronto entre inatistas e empiristas –, o poeta reelabora as “verdades necessá-

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 209-232 225
ISSN: 2317-9570
SAULO KRIEGER

Daí o fosso entre fé e razão, e não será a seguir seriam variáveis segundo coor-
razão em seu sentido tradicional que o denadas geográficas, subsumidos pelo
poderá transpor.20 Sobre tal fosso, Les- tempo histórico e condicionados pelas
sing proporá um salto a se dar por uma diferentes religiões.
razão entre estratos, transposicional. E
é desse salto, dessa mudança de esfe-
ras que trata o diálogo entre Saladino e V. Entre verdades, a humanidade: Les-
Natã, com suas várias transposições de sing e o otimismo oitocentista
intenção e argumentação.
Expressa pelas intenções tortas do Por certo não será a essas verdades que
sultão, de modo mais amplo a questão Lessing pretende vincular o exercício
de Lessing vem a ser: de que modo uma de sua razão. Tal exercício pauta-se
pessoa de seu tempo, em plena posse justamente pela autonomia em rela-
de seu entendimento, poderia se apro- ção a tais condições, as quais só fariam
priar da mensagem cristã? Apropriar-se embotá-lo. Emancipada, a razão ilu-
dessa mensagem incluiria os aspectos minista não deve se escorar em verda-
que, ao menos à primeira vista, pare- des bíblicas, no que demandaria uma
ceriam atentar contra a razão humana vinculação heterônoma à sua própria
– como é o caso dos milagres de Cristo condição. Fazendo jus ao ideal ilumi-
(LESSING, 1989, p. 433-445 e p. 476). nista, tal razão deve ser autônoma. E
A esse respeito, Lessing pondera sobre deve manter sua autonomia mesmo ao
o quanto, no tempo de Cristo, seus en- se apropriar da mensagem cristã. Essa
sinamentos teriam parecido estranhos, exigência faz Lessing conceber a já refe-
dado o seu caráter inovador e transgres- rida “verdade interna” à religião:
sor. Por isso, só mesmo os milagres te-
riam o dom de arrebatar as multidões
– bem ao contrário do que se teria no a religião [cristã] não é verda-
século XVIII. Desse modo, os milagres deira porque os evangelistas e
pertenceriam à esfera das verdades aci- apóstolos a ensinaram. Eles a
dentais da história – assim como os dog- ensinaram porque ela é verda-
mas, os relatos dos livros sagrados, os deira. As tradições escritas de-
rituais, a indumentária e os preceitos a vem ser interpretadas por sua
verdade interna, e nenhuma

rias de razão”, assimilando-as às suas concepções de uma divindade imanente ao mundo (mas não a ele identificada), de humanidade
e de uma evolução dessa humanidade. Nesse mesmo sentido, por “verdades de história” ele terá as roupagens circunstancialmente
assumidas pelas verdades necessárias, como os relatos das Escrituras, os mandamentos, preceitos e rituais assumidos pelas religiões.
Desse modo, recorre-se a uma distinção própria ao racionalismo fundacionista do século XVII, o uso que dela faz sendo bem o da
razão iluminista do XVIII: à medida que tal razão não é afeita a propriamente fundar, mas a submeter campos diversos a escrutínio
crítico, a categoria “verdades de fato”, que ele tem por “verdades acidentais da história”, abarca, por exemplo, aspectos do Evangelho
até então transmitidos à revelia da razão, como os milagres de Cristo e sua ressurreição.

226 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 209-232
ISSN: 2317-9570
A RELIGIÃO REDIMIDA PELA RAZÃO: A ILUSTRAÇÃO SEGUNDO GOTTHOLD E. LESSING

tradição escrita pode dar à reli- outra face da “verdade interna” será a
gião uma verdade interna se ela própria face de Deus. Do mesmo ca-
não tiver nenhuma (LESSING, ráter não propositivo – e diga-se, raci-
1993, p. 77). onalmente cauteloso –, Lessing se va-
leu para pensar uma noção de Deus
que não redundasse em alinhamento
A noção de uma “verdade interna”, irrefletido às concepções teológicas e
a transcender a fundamentação histó- filosóficas previamente dadas. Entre
rica desta ou daquela religião, não foi elas, em comum à teologia ortodoxa e
proposta por Lessing sem muita polê- ao deísmo iluminista, imperava a con-
mica. O pastor Goeze, “o inquisidor de cepção de um Deus transcendente; ar-
Hamburgo”, questionou-a com virulên- gumentações e negatividade à parte, o
cia, comparando-a a um “nariz de cera” olhar de Lessing desde o início apon-
(wächserne Nase) que cada qual pudesse tava para um Deus de algum modo ima-
moldar ao rosto a seu bel prazer. Ocorre nente. Porém, ainda uma vez sem ade-
que essa verdade nem é de caráter me- rir a posições pré-existentes, conceber
ramente subjetivo, como temia Goeze, um Deus imanente ao mundo não re-
nem tampouco, por ser interior e por dundaria num Lessing panteísta, nem
ser verdade, teria o caráter de uma ver- puramente espinosista.
dade matemática – pois se matemática, Ocorre que, no século XVIII, e
seria passível de demonstração. A “ver- mesmo depois dele, pensar um Deus
dade interna” à religião se manteria in- imanente era aproximar-se de Espinosa.
vulnerável a condicionamentos histó- No século das Luzes e do próprio Les-
ricos e às críticas que eles suscitariam. sing, na filosofia da natureza de Go-
Seria alimentada e conduzida pela ra- ethe, avançando para o romantismo do
zão, e tanto mais se mostraria afeita aos século XIX, o filósofo judeu suscitava
avanços do conhecimento. Por seu ca- um misto de encanto e forte atração,
ráter inefável, ante ela se esgotam os por um lado, e anátema, por outro.
argumentos. E aqui de novo deparamos Atraía por negar a separação estrita en-
com um Lessing eminentemente nega- tre corpo e espírito, por identificar Deus
tivo. Tal como se teve com seu modo de e mundo, e com isso trazer sublimidade
questionar e argumentar, pode-se, sim, ao terreal e à natureza. Imanentista e
sentir a falta de um teor, de algo propo- panteísta, na identificação entre espí-
sitivo. rito e corpo, entre Deus e mundo, em
O caso é que, sendo noção por de- Espinosa se passou a vislumbrar uma
mais abstrata, a verdade interna de- filosofia do futuro, na qual viria desa-
manda ser complementada. Como já guar o racionalismo da Ilustração.
vimos com a ideia de tolerância, a se Já quanto ao anátema, Espinosa foi
complementar pela de humanidade, a

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 209-232 227
ISSN: 2317-9570
SAULO KRIEGER

amaldiçoado praticamente pelas mes- divindade já não são para mim. Não os
mas razões, tomadas de outro ponto posso suportar” (YASUKATA, 2002, p.
de vista. Seu Deus sive natura – “Deus, 135).21 Invocando esse encontro com
ou seja, a natureza” – era interpretado Lessing, Jacobi teria a intenção de mos-
como materialismo – à medida que não trar ao círculo iluminista de Berlim, do
existem várias realidades, mas apenas eminente Moses Mendelssohn, que a es-
uma –, e também como determinismo – peculação filosófica fatalmente condu-
à medida que seu Deus ou a natureza age ziria ao espinosismo e ao determinismo:
e existe com a mesma necessidade. Com se Deus é o mundo, sendo nele substân-
seu racionalismo absoluto, o “filósofo cia e os modos pelos quais se apresen-
intoxicado de Deus” invadia uma seara tam, obviamente não haveria um Deus
que até então competia unicamente à pessoal, extramundano e acessível tão-
fé. Entre o encanto e a maldição, estu- somente pela fé, como propunha Jacobi,
diosos da obra de Lessing apontam a ní- tampouco a liberdade de agir ou não se-
tida influência do Tratado teológico polí- gundo seus desígnios.
tico, de Espinosa, n’A educação do gênero Entre Lessing e Jacobi, algo que pode
humano (Die Erziehung des Menschen- ter se passado é o primeiro, conhecendo
geschlechts), escrito teológico publicado a indisposição do segundo para com Es-
no ano seguinte ao Natã. Revelando a pinosa e com o que este representava,
crença num aperfeiçoamento contínuo reforçar posições espinosanas para ins-
da espécie humana, para o qual con- tigar o posicionamento contrário – ao
correriam a revelação, a razão e a edu- modo do exercício dialético que lhe foi
cação, suas posições ali já nada têm de uma constante durante toda a vida. En-
experimentação com hipóteses que não tretanto, além do próprio testemunho
seriam as suas. O aperfeiçoamento con- que se tem em A educação do gênero hu-
tínuo, bem entendido, dar-se-ia na es- mano, há evidentes pontos de contato,
fera terrena, como se estivesse a supor como com relação a Deus, concebido
a presença de Deus neste mundo. como imanente ao mundo, e a repulsa
Além desse eloquente testemunho, a um antropomorfismo, que imporia à
na literatura especializada não se põe divindade uma imagem humana. São
em questão a veracidade da confissão essas diretrizes que fazem Lessing con-
“espinosista” de Lessing ao filósofo Ja- ceber Deus como uma “força mais ele-
cobi. Quando este lhe mostrou o po- vada”22 a se manifestar na humanidade.
ema Prometeu, de Goethe, Lessing teria Expressa-se nela de modo mais pre-
observado: “os conceitos ortodoxos da sente do que faria um Deus transcen-

21 O relato encontra-se nas Briefe über die Lehre Spinozas, 1785, de F. H. Jacobi (1743-1819) (YASUKATA, 2002, p. 122).
22 Encontra-se em Die Hauptschriften zum Pantheismusstreit zwischen Jacobi und Mendelssohn, de F. H. Jacobi (YASUKATA, 2002, p.
135).

228 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 209-232
ISSN: 2317-9570
A RELIGIÃO REDIMIDA PELA RAZÃO: A ILUSTRAÇÃO SEGUNDO GOTTHOLD E. LESSING

dente, que, de fora do mundo, seria mo- dade no Natã identificar-se a seu ideal
vido por desejos e intenções, pensado à de humanidade. Em A educação do gê-
imagem do homem. Mais presente, por nero humano entrecruzam-se as noções
certo, porém não pleno, e muito me- de Deus, humanidade e educação da
nos acabado: para o poeta, a divindade humanidade. O Deus no mundo, não
não se identifica a uma plenitude, tanto identificado às coisas, mas imanente à
que se manifesta de modo histórico e condição humana, atuante no tempo e
condicionado, expressando-se nas dife- na história, impõe a essa condição um
rentes escrituras sagradas, nas diferen- duplo estatuto, regido por duas dimen-
tes religiões e em seus diferentes cultos. sões fundamentais, aqui já menciona-
Deus não seria presença a todo tempo das: a predestinação e a evolução. Em
desperta nem a todo tempo dormente. Natã, o sábio, essas dimensões estão pre-
Assemelha-se, isto sim, à natureza e a sentes de modo mais ou menos cifrado:
uma vida pulsante, que por vezes se re- a dimensão da predestinação evidencia-
conhece e se expande – como quando se no próprio diálogo de Natã com Sa-
é encontrada por Natã, ao relembrar ladino, precisamente na referência do
sua saída do desespero: “Mas pouco a primeiro aos laços filiais que determi-
pouco a razão recobrou-se./ Vinha fa- nam uma confissão religiosa: “Como eu
lar com voz suave: ‘no entanto Deus acreditaria em meu pai/ Menos do que
existe!/ No entanto ali também esteve no teu? Ou o contrário: –/ Posso exi-
o decreto de Deus!’” (LESSING, 1779, gir de ti que acuses teus ancestrais/ De
p. 85). Nesse caso, precisamente, a di- mentiras para não contradizer os meus?
vindade se manifestaria quando o ódio Ou o contrário?/ O mesmo vale para os
e o desconsolo dão lugar à razão. Como cristãos. Ou não?” (Terceiro ato, Sétima
quando o Sábio sai do estarrecimento cena) (LESSING, 1779, p. 56).
para reconhecer-se na vontade de Deus: É justamente o caráter pré-
“– Eu levantei! E gritei a Deus: ‘Eu determinado e relativo dessa dimensão
quero! / Se tão-somente quereis que que possibilita ao Sábio desembaraçar-
eu o queira!’” (Quarto ato, Sétima cena) se da armadilha de Saladino. Entre-
(LESSING, 1779, p. 85). tanto, a predestinação faz-se presente
O encontro com Deus nessa deci- também na condição de todos os demais
são é a ação de alguém que desperta personagens, marcando o modo como
de uma dormência, que se alça de sua pensam ou como interagem, com o pre-
estatura circunstancial e momentânea domínio ou mesmo a exclusividade do
para encontrar a humanidade numa cri- condicionamento por uma fé religiosa.
ança vulnerável – e cristã –, de alguém Ocorre que em seu condicionamento
que se enche de otimismo em meio à eles se mostram mais ou menos abertos
barbárie. São traços a fazer a divin- à outra dimensão que aqui entrevemos

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 209-232 229
ISSN: 2317-9570
SAULO KRIEGER

– a da evolução. A dimensão da evolu- mias – como faz Natã ante o questio-


ção já requer maior esforço de abstra- namento de Saladino. Por outro lado,
ção, tanto dos personagens como, atu- no entanto, a razão reconhece seu po-
ando em outro registro, do leitor. Ela tencial ao não tomar uma condição his-
faz com que eles se mostrem em contato tórica como algo acabado e encerrado
com uma condição já bem mais liberta- em si mesmo, mas como passo provi-
dora e ampla do que professar uma fé sório, manifestação de Deus no homem
cristã, judaica ou muçulmana: a pos- visando à evolução da humanidade. Ao
sibilidade de evolução fá-los abstrair afinar-se à condição humana, a razão
do que lhes é circunstancial, franqueia- reconhece-se detentora de princípios
lhes a presença de sua própria condição universais e de condições de possibili-
humana ou, se não tanto, confere-lhes dade para a expressão dessa ou daquela
abertura para ela. É no entrejogo desse fé. Não por acaso, ao mesmo tempo em
duplo aspecto, ou seja, aferrar-se à con- que Lessing concebia seu Natã, Kant
dição mais imediata ou transcender à se ocupava de sua Crítica da razão pura
outra, humana e universal, que se pode (1781). Nessa obra, o filósofo de Kö-
reconhecer o moto por excelência do nigsberg concebe a razão como facul-
poema de Lessing. dade que, longe de se ater a um ob-
Se o constante acenar a essa transi- jeto dado e condicionado, pelo entendi-
ção há de ser o mote de Natã, o sábio, mento essa razão busca para o condicio-
a ideia de humanidade será seu norte. nado a totalidade de suas condições, ou
Mas deve-se observar que em Lessing seja, o incondicionado. Pois no limite
a identificação do outro e de si mesmo poder-se-ia dizer que em Natã, o sábio a
como humanidade não é algo a depen- visão esquemática de Kant é antecipada
der primordialmente de amor ao pró- pela concepção de uma razão que não
ximo e de tolerância. Se tais sentimen- se atém ao condicionado desta ou da-
tos por certo vão estar presentes, não quela religião, oriundo de determina-
serão determinantes. Determinante é o ções históricas. Emancipadora, para as
reconhecimento do potencial da razão, condições “judeu”, “cristão”, “muçul-
que, se se mostra capaz de atuar por mano” ela busca a totalidade de condi-
sobre condições históricas, deve tam- ções, encontrando no incondicionado a
bém se mostrar sábia na contenção: por humanidade e sua evolução.
um lado, há de reconhecer seus limi- Ora, essa ideia de razão o protago-
tes, ao saber discernir o que é campo de nista Natã vai incorporar como nin-
aplicação do que é determinação histó- guém. O aqui já referido protótipo do
rica, e, diante desta, deve se abster ou, homem iluminista, que Dilthey impu-
pelo menos, acautelar-se e reconhecer tara a Lessing, bem caberia ao persona-
que alguns raciocínios levam a antino- gem: como sábio e como judeu, não se

230 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 209-232
ISSN: 2317-9570
A RELIGIÃO REDIMIDA PELA RAZÃO: A ILUSTRAÇÃO SEGUNDO GOTTHOLD E. LESSING

aferra a uma condição nem à outra, até antes de homens são cristãos e judeus?
por conhecer seus domínios estanques Ah, quisera eu em vós encontrar um
e seus limites. Faz uso de seu entendi- homem a quem bastasse ser chamado
mento ao mover-se em interação com os homem!” (Segundo ato, Quinta cena)
demais personagens, ao procurar dis- (LESSING, 1779, p. 38).
solver seus anteparos limitados, deslo- Uma vez que do condicionado se alça
cando suas falas, crenças e perspectivas à possibilidade das condições, no incon-
para os horizontes da razão. Não pro- dicionado Natã encontra a humanidade
priamente os corrige ou admoesta, mas a condicionar judeu, cristão ou muçul-
sim, de modo vivaz e desembaraçado, mano. E porque sua sabedoria não vai
procura encaminhá-los para vias huma- de encontro à fé, nem com ela rivaliza,
namente promissoras. Pelo seu enten- mas a orienta, e por fazer ver para além
dimento, antevê vias antinômicas, não das roupagens, a sabedoria de Natã ex-
por incidir em erros, mas por deparar pressa à perfeição a Ilustração de Les-
com limites; estes servem menos para sing e segundo Lessing. Ele não rechaça
estancar e mais para retificar pontos de a religião cristã, tampouco lhe abona
vista estanques ou limitados. sem mais, mas com ela dialoga, aclara,
Se Natã é o homem liberto de sua mi- relativiza seus apegos. Autor e persona-
noridade, ele se relaciona com cada ou- gem fazem-se um e outro monumentos
tro personagem não pelo abrigo de sua de uma Aufklärung que menos teoriza e
confissão religiosa, nem por escrituras mais se vivencia por força do exame crí-
ou dogmas situados no tempo e no es- tico. Se naquele momento a razão não
paço, mas pela razão. Uma razão escassa é o que funda, nem o que adere, nem o
e cativa o faria se apegar ao aparente, que descrê, mas o que examina, se não
às diferenças que acenam ao primeiro é o ilimitado, mas o que enxerga seus
contato com um personagem cristão ou limites, ela identifica a religião precisa-
muçulmano. Uma razão ilimitada, se mente ao que a inspira e a enforma. A
houvesse, se fosse possível, encontraria razão que examina esclarece a religião
fundamentação última, e de caráter ra- que lhe dá sentido – por mais que lhe
cional, para as dissensões confessionais seja apartada. No âmbito das posições e
entre os personagens – e a diferença do disputas teológicas, Lessing, enfim, tra-
outro converter-se-ia em sua desrazão, duziu religião em humanidade, a uma e
atraindo motivos para o ódio. Justa- outra conferindo sentido mais liberto,
mente por reconhecer limites, a razão elevado e espiritual, acima das con-
de Natã o faz, antes de ser judeu, pro- venções e dissensões humanas. Feito
tagonizar a humanidade por excelência nada pequeno, chega a justificar o elo-
– o que implica pôr em questão a no- gio de Heine, que o comparava a Martin
ção de povo: “Acaso o cristão e o judeu Luther. E pela autonomia que imputa à

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 209-232 231
ISSN: 2317-9570
SAULO KRIEGER

razão, pela emancipação com que a vi- tantos contornos, esse otimismo assume
vencia, o autor do Natã pode mesmo ainda mais um: os bons augúrios de se
ter sido o primeiro a chegar à maio- conceber um Deus próximo, presente
ridade na Alemanha iluminista, como no mundo e em sua evolução, a fazer-se
afirma Dilthey. Em um caso como no desperto em suas revelações e na boa
outro, Lessing conferiu sua marca ao obra humana.
otimismo oitocentista. E assim, entre

Referências
ARENDT, H. “On Humanity in Dark Times” (trad. Clara e Richard Winston). In: Men in dark times. New York: A
Harvest Book, 1968.
BECKER-CANTARINO, B. (org.) German Literature in the Era of Enlightenment and Sensibility. Rochester, NY: Camden
House, 2005.
BURNS, E. Science in the Enlightenment. An Enciclopedia. Santa Barbara: ABC CLIO, 2003.
DE PAULA, M. G. Subjetividade e objetividade no debate entre socratismo e cristianismo em Kierkegaard: Uma análise a
partir do Post-Scriptum. Dissertação de mestrado apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em 2002.
DILTHEY, W. Das Erlebnis und die Dichtung: Lessing-Goethe-Novalis-Hörderlin. Leipzig: B G Teubner, 1921.
HEINE, H. Sämtliche Werke, vol. 3, Schriften zur Literatur und Politik 1. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft,
1992.
JENS, W. KÜNG, W. Literature Religion: Pascal, Gryphius, Lessing, Hölderlin, Novalis, Kierkegaard, Dostoyevsky, Kafka.
New York: Paragon House, 1991.
KANT, I. Beantwortung der Frage: Was ist Aufklärung? In: Kants Gesammelte Schriften, vol. 8. Berlin: Walter de Gruyter,
1923.
LEIBNIZ, G. W. Discurso de metafísica. Trad. Marilena Chauí e Alexandre da Cruz Bonilha. São Paulo: Martins Fontes,
2004.
LESSING G. E. Über den Beweis des Geistes und der Kraft, in: Werke und Briefe, vol. 8. SCHILSON A. (org.) Deutsche
Klassiker Verlag, 1989.
_____________. “Axiomata”. In: Werke und Briefe, vol. 9. BOHNEN K. SCHILSON, A. (org.). Frankfurt a.M.: Deutscher
Klassiker Verlag, 1993.
_____________.“Bibliolatrie” (1779). In: Werke 1778-1781, vol. 10. SCHILSON A. SCHMITT A. (org.). Frankfurt a.M.:
Deutscher Klassiker Verlag, 2001.
_____________. “Brief an Johann Gottfried Lessing, von 30. Mai 1749”, n. 21. In: Werke und Briefe, vol. 11, KIEWEL
H., BRAUNGART G. FISCHER K. (org.) Franfkurt a.M.: Deutscher Klassiker Verlag, 1987.
______________. “Brief an Elise Reimarus, von 6. September 1778”, n. 1398. In: Werke und Briefe, vol. 12. In: KIESEL,
H. et al. (org.). Deutscher Klassiker Verlag: Frankfurt a.M., 1994a.
_______________. “Brief an Karl Lessing, von 11. Oktober 1778”, n. 1389. In: KIESEL, H. et al. (org.). Deutscher
Klassiker Verlag: Frankfurt a.M., 1994b.
_______________. Nathan der Weise. In: file:///C:/Users/saulo/Downloads/Gotthold%20Ephraim%20Lessing%20-
%20Nathan%20der%20Weise%20(2).pdf (1779).
___________ NISBET, H. B. Lessing: Philosophical and Theological Writings. Trad. H. B. Nisbet. Cambridge: Cambridge
University Press, 2005.
MATTOS, F. O filósofo e o comediante. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001.
YASUKATA, T. Lessing´s Philosophy of Religion and the German Enlightenment. Lessing on Christianity and Reason. Ox-
ford/New York: Oxford University Press, 2002.

Recebido: 08/06/2020
Aprovado: 21/09/2020
Publicado: 30/12/2020

232 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 209-232
ISSN: 2317-9570
DOI: https://doi.org/10.26512/rfmc.v8i2.29355

Estoicismo, Ceticismo e Consciência Infeliz: Uma Alegoria


Hegeliana da Modernidade
[Stoicism, Skepticism and Unhappy Consciousness: A Hegelian Allegory on Modernity]

Henrique Raskin*

Resumo: O presente artigo busca sugerir que, já na Fenomenologia do Espírito (1807), He-
gel desenvolve uma leitura historicista do desenvolvimento do direito na modernidade.
Escrita a partir de metáforas, propomos que a tríade estoicismo, ceticismo e consciência
infeliz referenciaria o percurso do pensamento moderno, perpassando a doutrina do
contrato social, o construtivismo moral de Kant, e a eticidade hegeliana – lida, aqui,
a partir do entendimento de que o direito se subjuga à ética contextualmente situada,
manifesta na religião. As consequências para essa leitura consolidam-se na percepção
de que Hegel, na Fenomenologia do Espírito, traça a visão de que é preciso superar o
dualismo entre consciência e natureza, a fim de compreender que a própria experiência
ética fornece os termos da razão que, por sua vez, reflete e incorpora a natureza.
Palavras-chave: Hegel; Fenomenologia do Espírito. Estoicismo. Ceticismo. Consciência
Infeliz.

Abstract: The present essay seeks to suggest Hegel develops a historicist reading of
the development of law in modernity in The Phenomenology of Spirit (1807). Written
through metaphors, one proposes that the triad Stoicism, Skepticism and Unhappy
Consciousness would refer to the course of modern thought, spanning the doctrine
of social contract, Kant ’s moral constructivism, and Hegelian ethics. Such reading
consolidates in the perception that Hegel’s Phenomenology of Spirit draws it is necessary
to overcome the dualism between consciousness and nature, in order to understand that
the ethical experience itself provides the terms of reason which, in turn, reflects and
embodies nature.
Keywords: Hegel. Phenomenology of Spirit. Stoicism. Skepticism. Unhappy Conscious-
ness.

* Coordenador e Professor de Relações Internacionais na Universidade Positivo. Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul. E-mail: hraskin@hotmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3496-3166.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 233-250 233
ISSN: 2317-9570
HENRIQUE RASKIN

As cinco páginas específicas que He- ção kantiana havia radicalizado o dua-
gel dedica na Fenomenologia do Espírito lismo entre as categorias do ser e pen-
para tratar do Estado de Direito são cru- sar, naturalizando os sujeitos em suas
ciais na compreensão do que ele pre- inclinações e espiritualizando-os em
tende ao recuperar suas considerações sua razão contraposta, Hegel, por sua
sobre estoicismo, ceticismo e consciên- vez, ao adentrar o tema do Estado de
cia infeliz. Acessando o mundo ético, Direito, abordará justamente essa su-
esses três momentos, que antes carac- posta natureza, em uma tentativa de
terizam a liberdade da autoconsciência não a separar do político. Não é por
frente à exterioridade, retornam para se acaso que, ao publicar a Filosofia do Di-
pensar a vida em sociedade política, en- reito, catorze anos depois, Hegel atri-
quanto lócus da liberdade. Os três mo- buirá à obra um título alternativo, ao
mentos do estoicismo, ceticismo e cons- passo em que insere ‘ou Direito Natural
ciência infeliz ilustram originalmente e Ciência do Estado em Compêndio’, jus-
a relação opositiva da autoconsciência taposto ao título original.
perante o mundo externo, a partir de A relação entre natureza e política,
uma relação gnosiológica. A ética es- como um todo, situará Hegel junto ao
toica prescindiria do mundo externo; fio condutor do pensamento político
a cética passaria a negar o mundo ex- moderno. O que buscamos sugerir é
terno; e a consciência infeliz, por sua que, em última instância, Hegel está,
vez, encontraria nessa ruptura entre a partir de uma metaepistemologia, in-
interno e externo, entre sujeito e ob- termediando ontologia e ética, natureza
jeto, inquietação relativa entre o ser e e espírito. Que o caminho do conheci-
o conhecer. O que mais interessa aqui, mento em direção ao absoluto, antes,
principalmente, é o fato de que, na pró- pressupõe o próprio absoluto, a ser ma-
pria Fenomenologia do Espírito, as cate- nifesto e revelado a partir de uma dinâ-
gorias do estoicismo, ceticismo e cons- mica intersubjetiva. Pensar a natureza
ciência infeliz adquirem a significação é pensar, dialeticamente, o espírito. Na
ética frente a essa natureza, ou objetivi- tríade estoicismo, ceticismo e consciên-
dade, ‘exterior’. Significa, assim, enten- cia infeliz, assim, propomos que, na re-
der que a motivação epistêmica do pen- lação entre sujeito e objeto, Hegel esteja
sar o objeto em sua cognoscibilidade é, problematizando os principais momen-
antes, uma demanda da manifestação tos do pensamento político moderno e
da liberdade na efetividade, através da liberal, através dos quais sua filosofia se
ética. torna etapa de superação.
A relação de identidade entre ser e
pensar se firmará como axiomática na
Fenomenologia do Espírito. Se a revolu-

234 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 233-250
ISSN: 2317-9570
ESTOICISMO, CETICISMO E CONSCIÊNCIA INFELIZ: UMA ALEGORIA HEGELIANA DA MODERNIDADE

I. O Estoicismo e o Contrato Social a orientação racional dos homens não


seria a eles exclusiva, como na teleolo-
gia: regularia, ao contrário, a ideia da
A união entre direito natural e ciência
totalidade, a compor, também, os se-
do Estado, feita por Hegel, ao recuperar
res humanos. Nesse sentido, não faria
premissas aristotélicas da natureza po-
sentido a Hobbes pensar a natureza hu-
lítica do ser humano, embora aparente
mana como alheia às leis naturais e é
romper com os princípios modernos de
por isso que Zagorin sugere que “para
Hobbes1 , pode ser interpretada como
Hobbes, direitos naturais não são cria-
um movimento orgânico da própria his-
ção da lei natural, mas o direito primor-
tória do liberalismo e da efetivação da
dial fundamentado no desejo da natu-
liberdade no mundo moderno.
reza humana mais instintivo e razoável,
Para isso, é mister compreender, pri-
a paixão e o desejo de viver”5 .
meiro, que o desprendimento de Hob-
Essa correlação entre Hobbes e o es-
bes em relação à ética aristotélica não
toicismo se torna fundamental quando,
visava a rejeitar absolutamente qual-
na Fenomenologia do Espírito, voltamos
quer traço de antiguidade remanes-
à questão da liberdade da autoconsci-
cente no pensamento medieval. O Levi-
ência. Ao abordar o estoicismo, Hegel
atã, enquanto obra-prima da moderni-
não mais se refere à filosofia da natu-
dade, remontaria, ao contrário, o pen-
reza, porém a uma manifestação cons-
samento estoico2 – não contra o holismo
ciente na história do espírito. Sobre o
dos gregos, perpetuado na Idade Média,
princípio dessa consciência pensante,
mas em contrapartida à teleologia esco-
atesta que “uma coisa só tem essenci-
lástica que não mais satisfaria a crise de
alidade, ou só é verdadeira e boa para
autointerpretação do sujeito na moder-
ela, na medida em que a consciência aí
nidade3 . O que se identifica em Hobbes
se comporta como essência pensante”6 .
é justamente a ideia estoica de que a
Ou seja, o estoico, que na busca interior
razão, a orientar os homens de acordo
pela liberdade relaciona-se à exterio-
com o correto e o justo, pertenceria à
ridade, torna-se, com isso, consciente
externalidade da lei natural4 . Portanto,

1 A oposição feita por Hobbes entre estado de natureza e Estado Político é paradigmática na teoria política moderna, ao se utilizar
da distinção para romper com os preceitos greco-romanos (de Aristóteles e Cícero) de natureza política e da sociabilidade humana
natural. A separação entre natureza e política, assim, é instrumental para fixar a ideia de obrigação contida na sociedade, que para
Hobbes, é um produto artificial da vontade humana de estabelecer a paz (Ver Frateschi, 2008, p. 18). Hobbes, assim, opõe aos princí-
pios aristotélicos de natureza política, de desigualdade natural e de teleologia uma constituição do estado de natureza pautada sobre
o atomismo, a igualdade relativa e a ignorância em relação aos fins alheios. O corpo político artificial, então, permitiria a criação da
sociedade civil, ao permitir a conciliação entre a busca do benefício próprio e a vida em sociedade (Ver Frateschi, 2008, p. 30).
2 Zagorin, 2009, p. 31.
3 Cf. Luft, 2012.
4 Zagorin, 2009, p. 28.
5 Ibid., p. 28.
6 Hegel, PhG, 1989, p. 157/ FE, 2013, §198, p. 152.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 233-250 235
ISSN: 2317-9570
HENRIQUE RASKIN

das leis naturais que ditam sobre ele e, apenas formal. Esse formalismo, con-
portanto, torna-se livre através do pen- tido no movimento filosófico de Hob-
samento. Coloca que: bes, diz respeito a dois fatores: o con-
ceito de razão instrumental, por um
lado, e a “igualdade-consigo-mesmo”8
a essência é só o pensar em
do pensar, que transfere a essência, o
geral, a forma como tal, que
seu conteúdo, à própria externalidade.
se afastando da independên-
Primeiramente, tomemos as considera-
cia das coisas retornou a si
ções hobbesianas sobre a natureza ‘do
mesma. Mas porque a individu-
homem’, de acordo com a primeira e a
alidade, como individualidade
segunda leis naturais, na obra do Levi-
atuante, deveria representar-se
atã. Se a condição natural da humani-
como viva; ou, como indivi-
dade, para Hobbes, havia determinado
dualidade pensante, captar o
entre os homens 1) a igualdade relativa
mundo vivo como um sistema
das faculdades corporais e espirituais,
de pensamento; então teria de
2) a semelhança entre seus fins de au-
encontrar-se no pensamento
topreservação e de benefício próprio,
mesmo, para aquela expansão
e, portanto, também, 3) a desconfiança
[do agir], um conteúdo do que
mútua9 , pode-se entender que a mesma
é bom, e para essa [expansão do
“condição de guerra de todos contra to-
pensamento, um conteúdo] do
dos”10 determinaria a regra geral da ra-
que é verdadeiro. Com isso não
zão em sua instrumentalidade. A razão,
haveria absolutamente nenhum
em Hobbes, passa a ser um meio de so-
outro ingrediente, naquilo que
brevivência e de obtenção de fins indi-
é para a consciência, a não ser o
viduais.
conceito que é a essência7 .
Essa razão instrumental, enquanto
uma fórmula de aplicação na natu-
O problema para Hegel é que, em- reza11 , é vazia de conteúdo para Hegel
bora no estoicismo já se encontre no e, então, não poderia ser capaz de res-
pensamento a possibilidade da liber- ponder sobre o que é bom e verdadeiro.
dade frente às leis da natureza, ainda Explica-se aqui a amoralidade da natu-
se tem nele uma razão sem conteúdo, reza hobbesiana. Tal como no estado

7 Ibid., p. 158/ FE, 2013, §200, pp. 153-154.


8 Ibid., p. 159/ FE, 2013, §200, p. 154.
9 Hobbes, 1979, cap. XIII.
10 Ibid., cap. XIV, p. 78.
11 Cf. Hobbes, 1979, cap. XIV, p. 78. Hobbes sobre a regra geral da razão: “Que todo homem deve esforçar-se pela paz, na medida
em que tenha esperança de consegui-la, e caso não a consiga pode procurar e usar todas as ajudas e vantagens da guerra. A primeira
parte desta regra encerra a lei primeira e fundamental de natureza, isto é, procurar a paz, e segui-la. A segunda encerra a suma do
direito de natureza, isto é, por todos os meios que pudermos, defendermo-nos a nós mesmos”.

236 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 233-250
ISSN: 2317-9570
ESTOICISMO, CETICISMO E CONSCIÊNCIA INFELIZ: UMA ALEGORIA HEGELIANA DA MODERNIDADE

de natureza hobbesiano, o esforço pela remediavelmente dissolvido, como um


paz, ou pelo bem comum, nada mais edifício cujos alicerces se arruínam”14 .
seria que o princípio da autopreserva- É nesse sentido que Hegel atribui à
ção individual – que, aliás, designaria sua própria concepção de Estado de Di-
restrições à própria liberdade, no pacto reito, então, que “o que para o estoi-
social, em nome da autoconservação12 . cismo era o Em-si apenas na abstração,
O primeiro problema que Hegel con- agora é mundo efetivo”15 . O paradoxo
sidera no estoicismo traça um paralelo é que, embora houvesse uma transfe-
a essa autopreservação da individuali- rência da essência do estoico para a ex-
dade, pois “a essência dessa autocons- terioridade, a sua essência passa a ser,
ciência é ao mesmo tempo apenas uma agora, o puro pensar. Portanto, se, por
essência abstrata. A liberdade de au- um lado, o estado de natureza de Hob-
toconsciência é indiferente quanto ao bes tinha exposto a dependência de sua
ser-aí natural; por isso igualmente o construção política sobre uma essência
deixou livre, e a reflexão é uma refle- exterior ao indivíduo, por outro lado,
xão duplicada”13 . Isso leva ao segundo havia demonstrado a possibilidade de
déficit do pensamento estoico, pois a existir contingência nessa construção
‘igualdade-consigo-mesmo’ do seu pen- de um ente político. A partir disso,
samento, transfere à externalidade sua Hegel nega, conserva e supera o estoi-
essência. O homem como “lobo do ho- cismo, passando para a figura do ceti-
mem” representa essa terceirização da cismo no desenvolvimento de sua pró-
essência humana. Tal transferência, pria filosofia.
que já se vê na concepção da razão ins- Antes, entretanto, é necessário que
trumental, também pode ser observada se evidencie essa contingência do puro
no diagnóstico e no remédio que Hob- pensar estoico. Para os fins deste ar-
bes prescreve à guerra de todos contra gumento, o movimento filosófico do
todos do estado de natureza: sua filo- contratualismo, em geral, poderia ser
sofia política será pressuposta, em peti- acomodado sob a figura do estoicismo
ção de princípio, pela sua concepção de da Fenomenologia do Espírito. Hob-
natureza humana. A figura do Leviatã bes, como um dos grandes pensadores
tem em seu fim sua causa, é um ins- dessa escola filosófica já pôde aqui re-
trumento racional: por isso, “em todo presentar a dependência existente do
Estado, lei fundamental é aquela que, puro pensar em relação a uma essên-
se eliminada, o Estado é destruído e ir- cia externa ao pensamento: no que

12 Ibid., cap. XVII.


13 Hegel, PhG, 1989, p. 158/ FE, 2013, §200, p. 153.
14 Hobbes, 1979, cap. XXVI, p. 174.
15 Hegel, PhG, 1989, p. 356/ FE, 2013, §479, p. 325.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 233-250 237
ISSN: 2317-9570
HENRIQUE RASKIN

diz respeito ao político, por exemplo, que forma o pensamento liberal na mo-
sua prescrição tem como pressuposi- dernidade contém em si a semente da
ção uma natureza exterior a ele – o es- filosofia hegeliana, é preciso identificar
tado de natureza pré-político. A fra- a continuidade entre os pensadores –
gilidade dessa composição se mostra, um continuum que, ao mesmo tempo
justamente, na diversidade de pensa- em que os relaciona como diferentes, os
mento quando estudamos como um conecta com um sentido comum. De-
todo o movimento contratualista mo- vido ao método contratualista, o estado
derno. Tomando as figuras de Hobbes, de natureza adquire esse papel concili-
Locke e Rousseau, por exemplo, vemos ador e, visando a alcançar a união entre
o quanto o argumento de Hegel sobre a Direito Natural e Ciência do Estado na
insuficiência de um critério da verdade Filosofia do Direito, buscamos encontrar
como algo dado estava correto. Os três no desenrolar do absoluto essa progres-
pensadores, que em suas obras busca- siva aproximação entre natureza e po-
vam o estado de natureza como funda- lítica, já presente na Fenomenologia do
mento de sua filosofia política, embora Espírito.
utilizassem método semelhante, che- O estoicismo, recuperado por Hob-
gavam a resultados muito diferentes, bes, viria a relacionar o pensamento e
para não dizer conflitantes. A proposta a natureza como “diferença que é pen-
desta tese, no entanto, investiga não a sada, ou que não se diferencia imedi-
ruptura, mas a continuidade do libera- atamente de mim”16 . Ora, o estoico
lismo, ainda nascente em Hobbes, até pensa a natureza como o outro, embora
a filosofia política que Hegel desenvol- pertença à sua totalidade, da mesma
verá. forma com que Hobbes pensa a Natu-
Entre as vidas de Hobbes, Locke e reza como oposta ao Estado. Locke,
Rousseau, há quase duzentos anos de tendo sido influenciado por Hobbes,
história. Isso naturalmente estabelece- segue o mesmo caminho no que diz
ria divergências político-filosóficos que, respeito ao método hipotético-dedutivo
sob olhar desavisado, permitiria fazer de, a partir de uma concepção ontoló-
jogos de oposição entre os pensado- gica da natureza humana, derivar um
res. Como dito anteriormente, houve modelo político-filosófico. Locke, di-
profundas distinções entre os filóso- ferentemente, não atribui ao estado de
fos, que até hoje influenciam o pensa- natureza a ausência de sociedade, de
mento político contemporâneo de for- modo com que a oposição entre estado
mas praticamente antagônicas. Porém, de natureza e Estado político seja mais
tendo como objetivo compreender de tênue, menos brusca do que propunha

16 Ibid., p. 157/ FE, 2013, §199, p. 153.

238 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 233-250
ISSN: 2317-9570
ESTOICISMO, CETICISMO E CONSCIÊNCIA INFELIZ: UMA ALEGORIA HEGELIANA DA MODERNIDADE

a tese do Leviatã. Locke, que através Social, a contenção ou subtração da de-


de juízos empíricos já delimitava em generação que um suposto estado social
um estado pré-político a consciência do havia causado perante à ordem natural
bem e do mal, do justo e do injusto, no do homem autônomo. A frase “o ho-
Segundo Tratado Sobre o Governo deter- mem nasceu livre, e em toda parte se
mina a razão instrumental como regu- encontra sob ferros”19 parece, em pri-
ladora, e não como orientadora ao con- meira instância, remontar a estrutura
flito17 . O Estado político, que para Hob- argumentativa da necessidade da arti-
bes significaria a retirada do homem ficialidade do Estado político frente a
de seu estado de natureza, em Locke, problemas ou demandas no estado de
tem uma relação mais próxima com seu natureza. Entretanto, é apenas no Dis-
momento ‘anterior’, pois o acordo em curso sobre a Origem da Desigualdade
torno da criação de um governo sur- que se explicita o significado norma-
giria com a finalidade de devolver aos tivo de se conceber o estado de natu-
homens a perfeição de seu estado natu- reza frente às relações sociais que, in-
ral, prejudicado por julgamentos sub- variavelmente, representariam artifici-
jetivos que levariam à ‘justiça com as alidade. Rousseau, conforme os outros
próprias mãos’. Nessa concepção, não contratualistas clássicos, ainda funda-
há uma oposição tão brusca como havia menta sua filosofia política sobre uma
em Hobbes, pois a natureza humana é concepção individualista de estado de
não apenas mantida, mas também vi- natureza; no entanto, já podem-se iden-
sada a ser recuperada pelas instituições tificar em sua obra traços que acusem, à
do Estado. própria ideia de estado de natureza, um
Rousseau, como o último dos que instrumento normativo de fundamen-
aqui poder-se-ia classificar no conceito tação do político. Ou seja, a natureza,
de estoico, significaria ainda um passo explicitamente, em Rousseau, opõe-se
além de Locke na aproximação entre à sociedade e ao Estado político; entre-
natureza e Estado – rumo à categoria do tanto, sua outra faceta expõe que essa
que entendemos por ceticismo18 . Ainda oposição trata de uma natureza hipo-
no que diz respeito à ideia de contrato tética e impossível de provar20 . A ver-
como fundamento individualista do Es- dadeira natureza, no entanto, é conta-
tado político, Rousseau vê, no Contrato minada desde o início pela artificiali-

17 Cf. Locke, 2005, pp. 453-454: “No que não se pode deixar de admirar aí a sabedoria do grande Criador que, tendo dado ao
homem a capacidade de previsão e de planejar para o futuro, bem como de suprir as necessidades presentes, tornou necessário que a
sociedade entre homem e mulher fosse mais duradoura do que entre os machos e fêmeas de outras criaturas, de modo que seu esforço
seja estimulado e seus interesses mais bem unidos, para fazer provisões e acumular bens para sua progênie comum”.
18 Poder-se-iam enxergar, nele, já uma transição ao que Hegel descreverá como o pensamento cético que atribuiremos a sua crítica
à filosofia kantiana.
19 Rousseau, 2002b, Livro I, cap. I, p. 10.
20 Rousseau, 2002a, p. 41.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 233-250 239
ISSN: 2317-9570
HENRIQUE RASKIN

dade das relações sociais e, portanto, selvagem e pintavam o homem


não apenas criada, mas também pas- civil. Não ocorreu mesmo ao
siva de alteração. Conforme, Rousseau espírito da maior parte dos nos-
escreve: sos duvidar que o estado de na-
tureza tivesse existido, quanto
é evidente, pela leitura dos li-
Os filósofos que examinaram os vros sagrados, que o primeiro
fundamentos da sociedade sen- homem, tendo recebido imedia-
tiram a necessidade de remon- tamente de Deus luzes e precei-
tar até ao estado de natureza, tos, não estava também nesse
mas nenhum deles aí chegou. estado, e que, acrescentando
Uns não vacilaram em supor no aos escritos de Moisés a fé que
homem desse estado a noção do lhes deve toda filosofia cristã, é
justo e do injusto, sem se in- preciso negar que, mesmo antes
quietar de mostrar que ele de- do dilúvio, os homens jamais
via ter essa noção, nem mesmo se encontrassem no puro estado
que ela lhe fosse útil. Outros de natureza, a menos que, não
falaram do direito natural que tenham nele caído de novo por
cada qual tem de conservar o algum acontecimento extraor-
que lhe pertence, sem explicar dinário: paradoxo muito emba-
o que entendiam por perten- raçante para ser defendido e ab-
cer. Outros, dando, primeiro solutamente impossível de ser
ao mais forte, autoridade sobre provado21 .
o mais fraco, fizeram logo nas-
cer o governo, sem pensar no
tempo que se devia ter escoado O estoicismo, bem como o contratu-
antes que o sentido das palavras alismo moderno, apresentam sua con-
autoridade e governo pudesse tradição e “não podem chegar a ne-
existir entre os homens. Enfim, nhuma expansão do conteúdo”22 , pois
todos, falando sem cessar de ne- são a abstração do pensar. Vê-se isso,
cessidade, de avidez, de opres- claramente, na arbitrariedade da deter-
são, de desejos e de orgulho, minação do que é a natureza humana.
transportaram ao estado de na- São, então, superados pelo ceticismo
tureza ideias que tomaram na através da “reflexão da autoconsciên-
sociedade: falavam do homem cia para dentro do pensamento simples

21 Ibid., pp. 40-41.


22 Hegel, PhG, 1989, p. 159/ FE, 2013, §200, p. 154.
23 Ibid., p. 159/ FE, 2013, §202, p. 155.

240 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 233-250
ISSN: 2317-9570
ESTOICISMO, CETICISMO E CONSCIÊNCIA INFELIZ: UMA ALEGORIA HEGELIANA DA MODERNIDADE

de si mesma”23 , significando essa tran- rito que o subjugava e mantinha coeso


sição para o ceticismo a aniquilação do em sua unidade”25 . A aniquilação da
outro lado do ser-aí determinado. Dessa objetividade externa, pelo ceticismo do
forma, a liberdade duplicar-se-ia na au- sujeito, representa uma das mais fortes
toconsciência. Se o estoicismo dos con- críticas de Hegel a Kant, pois é justa-
tratualistas significava a liberdade do mente essa cisão, presente no dualismo,
pensamento em relação às leis da na- que careceria da unidade entre onto-
tureza, o ceticismo, aqui, será corres- logia e ética, entre natureza e Estado.
pondido pela revolução do idealismo Ainda é necessária, contudo, no criti-
kantiano, cuja principal consequência cismo do idealismo transcendental a
seria a aniquilação e substituição da en- afirmação da “pessoa absoluta”, a que
tidade externa pela representação que sarcasticamente Hegel denomina “se-
o sujeito pensante tem dela. A dupli- nhor do mundo”, atestando que “como
cação da liberdade, ou seja, o dualismo [a consciência descomunal que se sabe
transcendental de Kant, no ceticismo, como deus efetivo] é apenas o Si formal
radicalizará a relação com a natureza – que não é capaz de domar essas po-
que os contratualistas tinham, a ponto tências [de conteúdo] – seu movimento
de não apenas negar conhecê-la, mas de e gozo de si mesmo é também uma or-
assumir no sujeito o próprio processo gia colossal”26 . Ou seja, embora o ceti-
de sua construção. Pretendemos, aqui, cismo tenha superado o estoicismo, que
associar o ceticismo ao construtivismo abstraía a natureza, a apropriação cé-
moral kantiano. tica da natureza pelo sujeito ainda não
se mostra suficiente para Hegel pois,
ainda que o idealismo kantiano busque
II. O ceticismo e a revolução kantiana estabelecer leis da natureza através do
imperativo categórico, esse “senhor do
Hegel critica, no ceticismo, a indepen- mundo” a que se refere, não mais passa-
dência pessoal do direito, pois nele “vi- ria do que uma simples arbitrariedade
gora como essência absoluta a auto- carente-de-essência.
consciência como o puro Uno vazio da No entanto, ainda que insuficiente-
pessoa”24 . Para ele, a ausência de con- mente para Hegel, a formulação de leis
teúdo na pessoa significaria a cisão pró- da natureza, através do imperativo ca-
pria ao dualismo, onde “o conteúdo é tegórico, aproxima o ético da natureza,
completamente deixado livre e desor- sendo esta uma construção do sujeito
denado, já que não está presente o espí- pensante, mesmo que de forma pura-

24 Ibid., p. 356/ FE, 2013, §480, p. 326.


25 Ibid., p. 356/ FE, 2013, §480, p. 326.
26 Ibid., p. 358/ FE, 2013, §481, p. 327.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 233-250 241
ISSN: 2317-9570
HENRIQUE RASKIN

mente pedagógica. Weber, ao contem- zões pura e prática, admite, como con-
plar a Fundamentação da Metafísica dos sequência disso, a superação de Kant
Costumes, aponta para o fato de que, em relação ao movimento cético, que
para Kant, “devemos agir ‘como se’ tenderia a questionar a coerência da ra-
nossa máxima pudesse se transformar zão. A crítica de Hegel ao formalismo
em lei universal da natureza, [...] [sendo kantiano e o próprio desenvolvimento
esse] um projeto que vai muito além das do idealismo absoluto, no entanto, vi-
nossas forças humanas finitas”27 . A na- riam a questionar o transcendentalismo
tureza, aqui, submete-se ao agir moral e a razão de Kant como imunes à crí-
do sujeito, de tal forma em que, sendo tica filosófica. Vejamos mais uma consi-
os valores morais constitutivos do Eu deração na Fenomenologia sobre o ceti-
transcendental, isso signifique “que a cismo e questionemos se a razão formal
máxima que não estiver de acordo com não se reduz à arbitrariedade do pensa-
a forma da lei da natureza, [seja] moral- mento subjetivo:
mente impossível”28 . Por isso, a própria
natureza, em Kant, poderia dizer res-
Em sua realidade, esse Uno va-
peito à construção de um projeto ético,
zio da pessoa é um ser-aí con-
conforme encontra-se na Crítica da Ra-
tingente, e um mover e agir
zão Prática: “Interroga-te a ti mesmo se
carentes-de-essência, que não
a ação que projetas, no caso de ela ter de
chegam a consistência alguma.
acontecer segundo uma lei da natureza,
Como o ceticismo, assim o for-
de que tu próprio farias parte, a pode-
malismo do direito, sem con-
rias ainda considerar como possível me-
teúdo próprio, por seu conceito
diante a tua vontade”29 . Kant, na cita-
[mesmo] encontra uma subsis-
ção, não nega a existência da natureza;
tência multiforme – a posse – e
entretanto, preconiza submeter qual-
como o ceticismo, lhe imprime
quer “ordem independente de valores
a mesma universalidade abs-
[...] [à constituição] pela atividade, real
trata, pela qual a posse recebe
ou ideal, da própria razão prática (hu-
o nome de propriedade. Mas
mana)”30 , conforme Rawls denominará
no ceticismo, a efetividade as-
posteriormente autonomia constitutiva.
sim determinada se chama apa-
Rawls que, todavia, concebe em Kant a
rência em geral, e tem apenas
unidade da lei natural e da liberdade
um valor negativo; enquanto
moral, legitimada pela unidade das ra-
no direito, tem um valor posi-

27 Weber, 2009, p. 43.


28 Ibid., p. 44.
29 Kant, CRPr, 1986, A 122, apud Weber, 2009, p. 44.
30 Rawls, 2000, p. 145.

242 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 233-250
ISSN: 2317-9570
ESTOICISMO, CETICISMO E CONSCIÊNCIA INFELIZ: UMA ALEGORIA HEGELIANA DA MODERNIDADE

tivo. Esse valor negativo con- através da progressiva relação que per-
siste em que o efetivo tenha passa Locke, Rousseau e Kant, ou seja, a
a significação do Si enquanto história do liberalismo na modernidade
pensar, enquanto universal em – em Hegel alcança a reconciliação, que,
si. Ao contrário, o valor posi- finalmente, poderia significar a efetiva-
tivo consiste em que o efetivo ção da liberdade.
seja o “Meu” na significação da O estoicismo e o ceticismo signifi-
categoria, como uma vigência cam, na Fenomenologia do Espírito, uma
reconhecida e efetiva31 . progressão histórica da sujeição da ob-
jetividade à subjetividade, parábola do
pensamento político moderno. A ca-
Para Hegel, o valor do Estado de Di- tegoria de consciência infeliz, por sua
reito não repousa nessa cisão entre su- vez, síntese entre estoicismo e ceti-
jeito e objeto, entre pensamento e natu- cismo, não se encerra em uma subje-
reza – ainda que essa fosse pertencente tividade absoluta, em um sujeito au-
ao entendimento. Será, não no ceti- tossuficiente, mas acusa, justamente,
cismo, mas apenas a partir da consciên- um desconforto, uma infelicidade34 .
cia infeliz, que a independência estoica Esse talvez seja um dos grandes lega-
dos modernos encontraria sua verdade. dos da Fenomenologia do Espírito, que,
Tendo no ceticismo o reconhecimento de maneira revolucionária, não se atém
da inessencialidade do sujeito frente ao à figura do homem abstrato, do su-
dualismo da natureza e do ético, emer- jeito transcendental, do indivíduo ato-
giria um mal-estar, uma infelicidade no mizado, mas o entende em sua situa-
sujeito32 . A efetividade hegeliana que, ção contextual, em suas circunstâncias
contra o idealismo kantiano, supera “o concretas, de incompletude. Se a Feno-
ponto de vista unilateral da consciência menologia endereçará não a busca pura
como consciência”33 , tem, no Estado de pelo conhecimento, mas o processo da
Direito, o retorno da efetividade do Si descoberta humana das categorias da
à pessoa. Observa-se, em Hegel, por- vida prática35 , ter-se-á como resultado
tanto, o Aufheben, no que diz respeito à do estoicismo e do ceticismo não a au-
natureza e ao Estado, em relação ao es- tossuficiência, mas uma cisão. Uma in-
toicismo e ao ceticismo. A unidade que, felicidade proveniente do dualismo que
já em Hobbes, provocava o movimento se fortalece na oposição sujeito-objeto,
entre estado de natureza e Estado civil –

31 Hegel, PhG, 1989, p. 357/ FE, 2013, §480, p. 326.


32 Cf. Wahl, 1951.
33 Hegel, PhG, 1989, p. 359/ FE, 2013, §483, p. 328.
34 Wahl, 1951, p. 8.
35 Ibid., p. 7.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 233-250 243
ISSN: 2317-9570
HENRIQUE RASKIN

espírito-natureza, identificada sobre- ção judaico-cristã representará a cisão


tudo desde Kant. na consciência? A transcendência terá
papel central na definição de Hegel da
consciência infeliz e é por esse mo-
III. A consciência infeliz e a filosofia tivo que se faz necessária a abordagem
hegeliana das religiões ocidentais para entender
a questão. O rompimento que as reli-
A infelicidade, advinda da cisão da giões judaica e cristã têm frente ao pa-
consciência, será justamente o propó- ganismo significa, na história da huma-
sito da reconciliação que Hegel bus- nidade, a obtenção da consciência de
cará encontrar ao fim da Fenomenologia sua infelicidade36 . Não que o paga-
do Espírito. A superação do dualismo nismo fosse suficiente, ou visado por
sujeito-objeto será, portanto, um pro- Hegel: o paganismo não permite haver
blema ético. Não é à toa que, tal como autoconsciência. Porém, a transcendên-
se falara em estoicismo e ceticismo para cia do divino no monoteísmo e o con-
designar categorias do conhecimento fi- seguinte dualismo entre ser e pensar
losófico, a religião exercerá um papel do transcendentalismo kantiano trarão
central na intermediação ao saber abso- a infelicidade de uma consciência in-
luto. Será ela o caminho ético à felici- capaz de encerrar-se em si mesma, de
dade, à plenitude e ao absoluto, na Fe- obter autonomia. Representará o dua-
nomenologia do Espírito. lismo do transcendentalismo um con-
A apropriação de Jean Wahl em rela- flito interno à consciência, tido na hu-
ção à filosofia hegeliana recorta a cons- manidade judaico-cristã37 .
ciência infeliz enquanto uma leitura da O retorno à unidade, que busca He-
tradição judaico-cristã, em sua incapa- gel ao radicalizar a crítica da razão kan-
cidade de prover satisfação perante o tiana, significará, sobretudo, retornar à
destino dos indivíduos. Traz-se à luz o felicidade da consciência. Aqui torna-
dualismo implícito no estoicismo e no se clara a relação entre a metaepistemo-
ceticismo que, no entanto, mantém-se logia da Fenomenologia e o seu propó-
conservado. Eis, da mesma maneira, sito ético. A crítica ao dualismo sujeito-
a percepção do dualismo no contratu- objeto é uma crítica à transcendenta-
alismo e no idealismo transcendental lização da razão e, assim, da autono-
que Hegel percebe como um problema. mia. Hegel quer retornar à unidade ori-
Por que a religião ocupa esse espaço ginal: um estado anterior ao da percep-
na Fenomenologia? E porque a tradi- ção da infelicidade, o paganismo, po-

36 Ibid., p. 12.
37 Ibid., p. 15.
38 Ibid., p. 18.

244 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 233-250
ISSN: 2317-9570
ESTOICISMO, CETICISMO E CONSCIÊNCIA INFELIZ: UMA ALEGORIA HEGELIANA DA MODERNIDADE

rém dotado da razão revelada pelo cris- ganismo. O judeu, escravo, interme-
tianismo38 . Busca, assim, o melhor dos dia a essência, o Senhor, e o mundo.
dois mundos: o holismo antigo, mas Domina a natureza, dota-se de cul-
vinculado à razão moderna. Dessa ma- tura, sem, no entanto, adquirir a auto-
neira, procura corrigir o pessimismo de consciência: a essência permanece ex-
sua época, o desconforto da desconexão terna, escravizante, transcendental. Por
do ser com o dever-ser; do orgânico com isso, conforme Hegel, a figura do ju-
o moral; da natureza com o espírito. deu não busca e nem conseguirá a fe-
A dialética entre Senhor e escravo, licidade. “Entre impulso e ação, prazer
que metaforizara as relações de reco- e ato, vida e crime, crime e perdão há
nhecimento em sociedade, ilustrará o um abismo, um julgamento estrangeiro.
significado e a relevância das categorias Confiou [o judeu] toda a harmonia da
epistêmicas na vida e ética religiosas. essência, todo amor, todo espírito e toda
Se, a nível epistemológico, o dualismo a vida a um objeto exterior”40 . A lei
sujeito-objeto seria superado pela inter- religiosa, aqui, é apenas a consciência
subjetividade, a nível ético o dualismo da destruição da natureza. O homem
Deus-homem seria superado pela ple- não é, ele apenas intermedia. Por um
nitude da “consciência feliz”. A uni- lado, é passivo perante Deus; por outro,
dade da imanência não separa a exis- encontra-se ativo apenas na materiali-
tência da essência – como faria o es- dade. A religião judaica, assim, seria o
toico, como radicalizaria o cético, ou sintoma da vontade humana de fuga da
como de forma reveladora provocaria realidade41 .
a dialética do Senhor e do escravo. A Para Hegel, a revelação de Jesus vi-
consciência feliz, assim, para se efeti- ria a partir do judaísmo e, contradito-
var, precisaria reconciliar o dualismo riamente, em oposição a ele. Jesus tra-
em uma compreensão de que a trans- ria o significado histórico da vontade
cendência, na realidade, emerge a par- da independência, a partir da libertação
tir de dentro. da subjetividade. Realizaria uma troca:
É por essa razão que o princípio do dever judaico pelo amor cristão. Ou
da consciência infeliz se dá na ori- seja: o advento da subjetividade será
gem do monoteísmo, o judaísmo, que o advento da sensibilidade, em que se
Hegel chamará de religião da servi- busca retornar à união com a natureza.
dão. Eis o princípio religioso da dua- Em primeiro lugar, universaliza o hu-
lidade Senhor-escravo, onde tudo serve mano – rompe com a particularidade da
a Deus39 , em rompimento com o pa- nação. Em segundo lugar, reintegra o

39 Ibid., p. 25.
40 Ibid., p. 28, tradução nossa.
41 Ibid., p. 28.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 233-250 245
ISSN: 2317-9570
HENRIQUE RASKIN

homem à sua própria ação: é dizer que judaísmo. A igreja da Idade Média fará
“o homem não deve mais se colocar fora do material – o pão, o vinho –, símbo-
ou acima de suas ações por ter consci- los do imaterial46 . O judeu buscava a
ência delas, por se felicitar ou se cul- infelicidade, o sofrimento na materiali-
par [...]. Ele deve agir com um tipo de dade, ao ser passivo perante um Deus
espontaneidade inconsciente [...]. Não transcendental, sua essência. Com o
busca mais aprovação, porque o amor é cristão, não será diferente: o amor re-
a base”42 . Jesus, assim, representa a re- velado por Jesus será tido na passivi-
velação de um “Eu”, a subjetividade43 . dade dos fieis frente à Igreja. O amor,
Jesus é, para Hegel, a primeira per- que para Jesus estaria na natureza, se
sonificação da consciência feliz, em- converterá contra a natureza. Con-
bora sua chegada logo se converta nova- forme Hegel, a Igreja se oporá ao seu
mente em consciência infeliz44 . Ele não Senhor e separará a comunidade da to-
veio para trazer a paz, mas a espada: talidade47 : o cristão, tal como o judeu,
veio para opor o filho ao pai, a filha à estará oposto à natureza e, assim, não
mãe, os cônjuges entre si; trouxe o com- encontrará a liberdade48 ; a religião de
bate entre o puro e o impuro no espetá- Jesus, na Idade Média, voltará a ser uma
culo da dor, no qual o que é santo sofre religião positiva, presa à materialidade
por culpa do que não o é. A mistura en- da Igreja e governada por uma essência
tre o sagrado e o profano, assim, preva- divina externa. Escreve, então, que “o
lece contra a aceitação do destino e, por cristianismo despovoou Valhala49 , lim-
isso, a humanidade retorna ao estado de pou os bosques sagrados e fez da fan-
servidão que se via no judaísmo. Jesus tasia do povo uma superstição vergo-
só pôde encontrar a liberdade “no vá- nhosa”50 .
cuo”: veio para atingir o destino uni- O Deus cristão permaneceu mestre
versal e, para isso, teve de sacrificar a do céu e mestre da terra, e, assim, He-
própria sina45 . gel afirma que é como se Jesus tivesse
Por isso a Igreja na Idade Média re- vindo “em vão”51 . O dualismo medie-
presentará um retorno à infelicidade do val fez permanecer a visão judaica de

42 Ibid., p. 31, tradução nossa.


43 Ibid., p. 32.
44 Ibid., p. 35.
45 Ibid., p. 35.
46 Ibid., p. 36.
47 Ibid., p. 37.
48 Ibid., p. 39.
49 Reino pagão do rei nórdico.
50 Wahl, 1951, p. 41, tradução nossa.
51 Ibid., p. 42.
52 Ibid., p. 43.

246 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 233-250
ISSN: 2317-9570
ESTOICISMO, CETICISMO E CONSCIÊNCIA INFELIZ: UMA ALEGORIA HEGELIANA DA MODERNIDADE

que somente o homem-Deus pode ser dade se torne consciente de si mesma58


virtuoso, e não o homem-mesmo52 . Por – adquirindo o presente, consumindo
ter os olhos virados para o céu, a cons- sua natureza inorgânica em si mesma,
ciência cristã permaneceria infeliz: “as e apropriando-se dela59 . O protes-
belas sensações humanas lhe são torna- tantismo como marco do mundo mo-
das estrangeiras. O cristianismo é a re- derno significará uma nova chance de
ligião da dor”53 . Eis a maneira com reconciliação da subjetividade consigo
que Hegel interpretará o pensamento mesma60 .
moderno: “uma luta entre opostos e O iluminismo do século XVIII sig-
ao mesmo tempo uma luta por man- nificará a concretização dessa supera-
ter cada um desses opostos e sua opo- ção: o homem finalmente conceber-se-
sição”54 . A essência do cristianismo ori- á como Senhor, em oposição à passivi-
ginalmente detinha a ideia de reconci- dade medieval. Desde a vinda de Je-
liação. A vinda de Jesus faria dela jus- sus, não ocorria tal retorno à subjetivi-
tamente a religião da esperança, frente dade. No entanto, haverá uma percep-
ao desespero judaico55 . No entanto, ção que, para a filosofia hegeliana, será
a alma permanece dividida no cristi- decisiva. Embora se interprete como Se-
anismo medieval, repousada sobre a nhor da razão, dotado de essência, o ilu-
simbologia do transcendental e do di- minista moderno não supera o período
vino. infeliz da consciência. Pelo contrário:
Por ter vindo Jesus para mostrar que Hegel aponta que a dor da consciên-
o homem é um deus caído e que a santi- cia só aumentou neste período. A sub-
dade está na atividade56 , concebe Hegel jetividade, que deveria retornar ao ho-
o protestantismo como uma segunda mem uma consciência feliz, traz mais
revelação, a reconciliação de uma subje- angústia e sofrimento61 . Repousa, aqui,
tividade ativa57 . A compreensão da filo- o problema do individualismo.
sofia hegeliana por Wahl se dará na to- Eis, talvez, a revelação que dá sen-
mada da consciência individual da sa- tido, para Hegel, à sua filosofia: os
bedoria humana, bem como na própria Aufklärer, embora retornem à subjeti-
noção de cultura, para que a humani- vidade cristã, não têm consciência de

53 Ibid., p. 44, tradução nossa.


54 Ibid., p. 45, tradução nossa.
55 Ibid., p. 48.
56 Ibid., p. 50.
57 Ibid., p. 51.
58 Ibid., p. 58.
59 Ibid., p. 59.
60 Ibid., p. 51.
61 Ibid., p. 52.
62 Ibid., p. 53.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 233-250 247
ISSN: 2317-9570
HENRIQUE RASKIN

sua infelicidade. Por esse motivo, con- um significado histórico na passagem


tinuam infelizes62 . Pergunta-se, então: do Senhor/escravo, para o estoicismo,
de que adianta o subjetivismo kantiano, para o ceticismo, e para a consciência
se ele serve para transcender a razão? A infeliz. O espírito, assim, “é a existên-
interioridade dos iluministas conserva cia, a razão que se tornou um mundo
o dualismo entre o divino e o mun- vivo, o indivíduo que é um mundo”65 .
dano; encontram, em si mesmos, uma Enquanto fenomenologia, não se trata,
essência, mas uma essência externa, es- porém, da história do mundo. Trata-
trangeira. Por esse motivo, Hegel con- se da construção da consciência que se
cebe que Jesus condenaria Kant: não forma no saber. O humano como filho
basta agir por mero dever63 . O fato do seu tempo66 .
da razão iluminista permanece judaico, A crítica ao estado de natureza e o sis-
sustentado por um dever-ser externo. tema da Eticidade, conforme veremos
Há felicidade em Kant, mas uma feli- posteriormente, significarão a impossi-
cidade apenas conceitual, distante: o bilidade de se fazerem abstrações sobre
reino dos fins como abstração. Surge, o humano sem atentar para o contexto
assim, o propósito de Hegel: reunir o espaço-temporal do qual se faz parte.
espiritual e o temporal, de tal forma Da mesma forma, não se pode conce-
a efetivar a felicidade abstrata. Trans- ber o mundo cristão ocidental sem a
formar a incognoscível coisa-em-si ilu- subjetividade do indivíduo67 . Eis a di-
minista no atingível espírito absoluto é alética da individualidade universal68 :
justamente compreender que com o ser não há indivíduo humano sem coletivi-
pode-se efetivar o dever-ser. Essa era dade, ao mesmo tempo em que não há
a revelação da religião em Jesus, e esse história humana sem subjetivação. “O
será o papel da filosofia de Hegel. movimento da individualidade é [justa-
A Fenomenologia do Espírito tem, as- mente] a realidade do universal”69 .
sim, a importância de demonstrar es- Evidencia-se, assim, a crítica de He-
peculativamente como se transforma o gel ao liberalismo individualista de sua
pensamento particular em universal64 . época – sobretudo o da Revolução Fran-
Isso se vê na projeção do judaísmo para cesa. “O remédio havia matado o paci-
o cristianismo, e se vê na progressão da ente”, pois a abstração filosófica, desco-
certeza sensível ao saber absoluto. Há nectada do contexto histórico, se mos-

63 Ibid., p. 55.
64 Hyppolite, 1983, p. 50.
65 Ibid., p. 54, tradução nossa.
66 Ibid., p. 56.
67 Ibid., p. 290.
68 Ibid., p. 66.
69 Ibid., p. 312.

248 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 233-250
ISSN: 2317-9570
ESTOICISMO, CETICISMO E CONSCIÊNCIA INFELIZ: UMA ALEGORIA HEGELIANA DA MODERNIDADE

trara ineficaz e inacurada, frente ao mo- zão: o que já vigora, também, contém
mento de modernização dos territórios um princípio racional, tanto que assim
germânicos. Em consonância ao espí- o é. Queiram ou não os filósofos, eles
rito romântico, via-se que o projeto uni- estão fadados a se situarem no tempo
versalizante, centralizado na figura do e no espaço, no aqui e agora71 . Com
sujeito moral, não se mostrava capaz isso, Hegel transmuta a filosofia da mo-
de libertar os indivíduos efetivos, mem- ral transcendental em uma filosofia da
bros da vida comunitária. É assim que, ética efetivada, desenvolvendo um pen-
logo no prefácio da Filosofia do Direito, samento acerca do ser, do concreto, do
Hegel escreve: “O que é racional, isto efetivo que não se opõe, mas manifesta,
é efetivo; e o que é efetivo, isto é raci- em sua possibilidade finita, o dever-ser,
onal”70 . Essa talvez seja a citação mais o abstrato e o absoluto, infinitos. O
emblemática do seu pensamento, a má- ideal, o dever-ser, para se fazer efetivo,
xima do idealismo absoluto que con- deve emergir do que já é, do que efeti-
tém, em si, um caráter revolucionário vamente existe, e não da pura transcen-
e conservador ao mesmo tempo – a se- dência abstrata.
rem conciliados, uma vez que separada- Surge, assim, a pergunta: à luz
mente, em si mesmos, são falsos. He- das transformações sócio-políticas nos
gel estabelece, com ela, uma perspec- territórios germânicos, como, de fato,
tiva do movimento, da mudança, para modernizar-se e, ao mesmo tempo, efe-
o pensamento europeu. “O que é raci- tivar a liberdade, sem perder a cultura
onal, isto é efetivo” é o lado revoluci- e o contexto que constituem os germâ-
onário da frase, a perspectiva classica- nicos? Como conciliar ser e pensar, his-
mente iluminista, em que a razão indica tória e progresso, tradição e moderniza-
e prescreve a efetividade do devir; é a ção, de maneira efetiva e concreta, subs-
justificativa da normatividade. No en- tantiva? Será esse o propósito da filo-
tanto, quando Hegel complementa com sofia de Hegel: demonstrar, a partir do
“e o que é efetivo, isto é racional”, ele contexto, as condições para a efetivação
conduz o leitor ao outro lado da mo- da liberdade à luz da história do pensa-
eda, o contraposto conservador da ra- mento político moderno.

70 Hegel, PhR, 1989, p. 24/ FD, 2010, p. 41.


71 Cf. Hegel, PhR, 1989, p. 28/ FD, 2010, p. 44: “quando a filosofia pinta seu cinza sobre cinza, então uma figura da vida se tornou
velha e, com cinza sobre cinza, ela não se deixa rejuvenescer, porém apenas conhecer; a coruja de Minerva somente começa seu voo
com a irrupção do crepúsculo”.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 233-250 249
ISSN: 2317-9570
HENRIQUE RASKIN

Referências
FRATESCHI, Yara. A Física da Política: Hobbes contra Aristóteles. Campinas: Editora da Unicamp, 2008.
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Grundlinien der Philosophie des Rechts oder Naturrecht und Staatswissenschafl im Grun-
drisse [PhR]. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1989.
__________. Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito [FD]. Tradução: Paulo Meneses et al. São Leopoldo: Ed. Unisinos,
2010.
__________. Fenomenologia do Espírito [FE]. Tradução: Paulo Meneses. 8ª edição. Petrópolis: Vozes, 2013.
__________. Phänomenologie des Geistes [PhG]. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1989.
HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Tradução: João Paulo Monteiro e
Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
HYPPOLITE, Jean. Introdução à Filosofia da História de Hegel. Lisboa: Edições 70, 1983.
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Prática [CRPr]. Tradução: Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1986.
__________. Kritik der praktischen Vernunft [KpV]. Leipzig: Reclam, 1986.
LOCKE, John. Dois Tratados Sobre o Governo. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
LUFT, Eduardo. “Subjetividade e Natureza”. In: UTZ, Konrad; BAVARESCO, Agemir; KONZEN, Paulo Roberto. Sujeito
e Liberdade na Filosofia Moderna Alemã. Porto Alegre: Evangraf, 2012.
RAWLS, John. Lectures on the history of moral philosophy. Cambridge: Harvard University Press, 2000.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem da desigualdade. Tradução: Maria Lacerda de Moura. 2002a. Disponí-
vel em: <http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/desigualdade.pdf>.
__________. Do Contrato Social. Tradução: Rolando Roque da Silva. 2002b.
Disponível em: <http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/contratosocial.pdf>.
WAHL, Jean. Le Malheur de la Conscience dans la Philosophie de Hegel. Presses Universitaires de France: Paris, 1951.
WEBER, Thadeu. Ética e Filosofia Política: Hegel e o Formalismo Kantiano. 2ª edição. Porto Alegre: EdiPucrs, 2009.
ZAGORIN, Perez. Hobbes and the Law of Nature. Princeton: Princeton University Press, 2009.

Recebido: 26/01/2020
Aprovado: 13/07/2020
Publicado: 30/12/2020

250 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 233-250
ISSN: 2317-9570
DOI: https://doi.org/10.26512/rfmc.v8i2.28292

Espécie Monstro: Variações sobre Darwin


[Species Monster: Variations on Darwin ]

Marco Antonio Valentim*

Resumo: O ensaio investiga o conceito darwiniano de espécie a partir de A origem das


espécies e de algumas de suas versões científicas e filosóficas. O objetivo principal é
demonstrar o caráter essencialmente problemático do conceito, cujo estatuto oscila, no
plano lógico, entre a categoria e a imagem, e, no plano vital, entre tipo e aberração.
Argumenta-se para tanto que a teoria darwiniana da evolução da vida comporta uma
teratologia, segundo a qual origem das espécies é pensada como potencial de diferen-
ciação das formas vivas, sendo a monstruosidade o seu caráter mais originário. Por
fim, conclui-se com a hipótese metafísica, inspirada pelo neoevolucionismo, e aplicada
retroativamente à teoria darwiniana, de que as espécies naturais, enquanto formas de
vida, são obra da imaginação metabólica e simpoiética dos viventes.
Palavras-chave: Espécie. Monstruosidade. Adaptação. Simbiose. Imaginação.

Abstract: The essay investigates the Darwinian concept of species from The Origin of
Species and some of its scientific and philosophical versions. The main objective is to
demonstrate the essentially problematic character of the concept, whose status oscillates
logically between category and image, and vitally between type and aberration. It is
argued, therefore, that the Darwinian theory of the evolution of life includes a teratology,
according to which the origin of species is conceived as the potential of differentiation of
the living forms, being monstrosity its most original character. Finally, it concludes with
the metaphysical hypothesis, inspired by neoevolutionism, and applied retroactively to
the Darwinian theory, that natural species, as life forms, are the work of the metabolic
and sympoietic imagination of living beings.
Keywords: Species. Monstrosity. Adaptation. Symbiosis. Imagination.

* Professor do Departamento de Filosofia e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Pa-


raná (UFPR). Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). E-mail: mavalentim@gmail.com.
ORCID:https://orcid.org/0000-0001-7950-1673.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 251-274 251
ISSN: 2317-9570
MARCO ANTONIO VALENTIM

Para Walter Menon

ENTREVISTADOR: Kurt Vonnegut, em sua entrevista a “Art of Fiction”, em 1977, descre-


veu a antropologia como sua única religião.

URSULA LE GUIN: Isso não é o suficiente para mim, mas sei exatamente o que ele quer
dizer, e é a isso que me atenho. Se eu tivesse que escolher um herói, seria Charles Darwin
– a dimensão de sua mente, que incluía toda aquela curiosidade científica e busca de co-
nhecimento, e a aptidão para juntar isso tudo. Há uma genuína espiritualidade em torno
ao pensamento de Darwin. E ele também sentiu isso.

—Paris Review, Art of Fiction, 221

Não tenho como entrar aqui em detalhes que sustentem minha teoria a esse respeito, mas,
se o homem é capaz, em pouco tempo, de dar porte e beleza ao garnisé, segundo padrões
estéticos próprios, não vejo por que duvidar que fêmeas de pássaros, ao selecionar por
milhares de gerações os machos mais melodiosos e mais belos de acordo com seu próprio
padrão de beleza, pudessem produzir efeitos notáveis.

—Darwin, A origem das espécies, Capítulo 4

Especiação e especificação1 mático, começando com uma retomada


da significação vaga e usual de três di-
O Capítulo 2 de A origem das espé- visões taxonômicas – espécie, variedade
cies,2 “Variação na natureza”, oferece e aberração:
uma exposição do conceito de espécie
como conceito eminentemente proble-

1 Gostaria de agradecer à/ao parecerista as pertinentes críticas que me permitiram refinar o argumento propositalmente aberrante
que tentei construir, bem como a generosa sugestão de certas passagens de A origem das espécies cuja referência explícita tornou
possível melhor embasá-lo, apesar das ressalvas da/o parecerista ao mesmo argumento.
2 Salvo indicação em contrário, utilizarei aqui sempre a primeira edição da obra (1859). Como se sabe, ao longo de sucessivas
edições, Darwin alterou substancialmente o texto original, fazendo com que sua própria concepção basilar sofresse consideráveis
desvios de orientação. O mais significativo deles talvez seja o teor fortemente teleológico que a teoria da seleção natural passa a
exibir a partir da sexta edição (1872), última publicada por Darwin em vida. Se a primeira edição de A origem das espécies enseja uma
concepção em que o caráter estocástico da evolução das formas vivas é determinante, a sexta edição, como que arrastada por A descen-
dência do homem (1871), faz intervir, como interpreta Pimenta, “o conceito de uma atividade tecnológica intencional” da natureza,
com consequências de ordem metafísica drásticas para a teoria: “Em 1872, ao introduzir a ideia da evolução [nominalmente ausente
das primeiras edições] e abrir assim a possibilidade de pensar, como será feito em 1876, o primado da estrutura frente à adaptação,
Darwin recua, como dissemos, frente a Cuvier e se aproxima da posição de Lamarck. E, ao sublinhar a contingência da adaptação
e a necessidade da evolução, introduz uma teleologia de fundo que compromete o princípio do equilíbrio que governa a produção
das formas vivas na primeira edição de A origem das espécies. [. . . ] Resta saber em que medida não haveria, em sua obra tardia, uma
nova teleologia, não heurística, voltada a explicações particulares, porém teórica, ligada à sua concepção geral de seleção natural
complementada por evolução, teleologia esta que respaldaria, por seu turno, uma teologia de tipo inaudito, em que a figura de Deus
dá lugar à do homem” (2019, pp. 80-81). Uma vez que meu interesse neste ensaio vai na contramão de tal desenvolvimento, procurei,
com base na primeira edição de A origem das espécies, explorar uma virtualidade do darwinismo refratária à te(le)ologia referida por
Pimenta.

252 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 251-274
ISSN: 2317-9570
ESPÉCIE MONSTRO: VARIAÇÕES SOBRE DARWIN

Nenhuma das suas definições tes formas de vida (2018, p. 100), mas
foi até aqui capaz de satisfazer vai mais além ao indicar a própria vari-
a todos os naturalistas, embora abilidade das formas vivas como funda-
cada um deles saiba vagamente mento real para a indeterminação desse
o que quer dizer quando fala conceito. É o evidencia, entre muitas
em espécie. Em geral, o termo outras, a seguinte passagem da obra, na
inclui um elemento desconhe- qual Darwin toma a tendência inexo-
cido, relativo a um ato de cri- rável dos seres vivos à variação “mons-
ação independente. O termo truosa” de forma como razão pela qual
“variedade” é quase tão difí- a distinção entre raças domésticas (su-
cil de ser definido quanto o postamente mais homogêneas, graças
anterior; mas geralmente im- à seleção artificial humana) e espécies
plica uma ascendência comum, naturais (supostamente menos estáveis,
que, no entanto, é difícil de devido à ausência de desígnio na na-
ser comprovada. Há também tureza) se mostra, em última instância,
as ditas aberrações, que são, insustentável:
em geral, gradações de varieda-
des. Por “aberração” [monstro-
sity] costuma-se entender um Quando observamos as varie-
desvio considerável em uma dades ou raças hereditárias de
parte da estrutura, prejudicial nossos animais e plantas do-
ou não benéfico à espécie, e mésticas e as comparamos a es-
que não costuma ser transmi- pécies estreitamente aparenta-
tido (DARWIN, 2018, pp. 95- das, percebemos que cada raça
96). doméstica possui, em geral, um
caráter menos uniforme do que
espécies de fato. Raças domés-
A partir de uma série de exemplos, ticas de uma mesma espécie
Darwin faz notar que “os naturalistas têm às vezes um caráter aber-
não chegam a um acordo sobre o que rante [a somewhat monstrous
é espécie e o que é variedade” (2018, character], pois, embora difiram
p. 97). Mais ainda, já afirmava, no entre si ou de outras espécies
Capítulo 1, que “não há como separar do mesmo gênero em numero-
aberrações [monstrosities] de meras va- sos detalhes, não raro também
riações por linhas nítidas de distinção” diferem muito, em algum ou-
(2018, p. 50). O filósofo naturalista não tro aspecto, seja umas das ou-
se limita a comprovar que o conceito de tras, seja, com mais frequên-
espécie resulta em geral indeterminado cia, de espécies naturais estrei-
e arbitrário, ao ser aplicado às diferen- tamente aparentadas. [. . . ] ra-

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 251-274 253
ISSN: 2317-9570
MARCO ANTONIO VALENTIM

ças domésticas de uma mesma ries de variedades a ponto de, em um


espécie diferem da mesma ma- ímpeto classificatório, deduzir precipi-
neira como, em menor grau, es- tadamente certa homogeneidade para
pécies estreitamente aparenta- reuni-las sob uma mesma unidade es-
das de um mesmo gênero em pecífica (2018, pp. 101-102, 104).
estado de natureza. É algo que É como se, fascinado pela variabi-
me parece irrecusável, pois não lidade exorbitante das formas vivas,
se encontram raças de animais o naturalista trabalhasse irresistivel-
ou plantas domésticas que não mente contra a “lei transcendental da
tenham sido classificadas pelos especificação” formulada por Kant no
juízes mais competentes como Apêndice à Dialética Transcendental da
apenas variedades e, por outros Crítica da razão pura. Apesar de expri-
juízes igualmente competentes, mir o fato de “a razão exigir que ne-
como descendentes de espécies nhuma espécie seja em si mesma enca-
aborígenes extintas. Se é que rada como a última”, fazendo com que
um dia a distinção entre raças o conhecimento empírico tenda sempre
domésticas e espécies foi acen- a uma “especificação incessantemente
tuada, ela não poderia se man- progressiva dos conceitos [empíricos]”
ter para sempre (2018, p. 58).3 (KANT, 1980, pp. 324-325, B684), a
referida lei serve, de acordo com o es-
pírito da epistemologia transcendental,
Trata-se da tese darwiniana segundo
à constituição sistemática do conheci-
a qual indivíduos de uma mesma es-
mento empírico em vista da unidade
pécie podem variar tanto quanto su-
suprema da razão. Assim, ao explicar
bespécies dentro uma mesma espécie e,
o estatuto da lei de especificação, Kant
no limite, tanto quanto espécies dentro
ressalta o seu caráter a priori, de modo
de um mesmo gênero. “Formas ambí-
que a diversidade das formas naturais
guas” são a regra, não a exceção; aliás,
resulte de uma pressuposição transcen-
elas são, para Darwin, “as que mais nos
dental, a que afirma a homogeneidade
interessam” (2018, p. 98). Segundo
do múltiplo sob conceitos genéricos:
ele, isso seria atestado, inclusive, pelo
próprio comportamento do naturalista,
ora “propenso a multiplicar as espé- Tal lei da especificação tam-
cies”, tal como os criadores de animais, pouco pode ser tirada da ex-
ora deixando-se “impressionar” por sé- periência, pois esta não pode

3 Em sentido similar, lemos no Capítulo 4 de A origem das espécies: “Nossos animais domésticos mostram peculiaridades adquiridas
(como a barbela dos pombos-correio machos, as protuberâncias, como chifres, em galos de certas linhagens) que não parecem úteis
para a batalha nem atraentes na corte; e casos análogos se apresentam na natureza, como um tufo de pelos no peito do peru macho,
que não é nem útil nem ornamental e que, se tivesse surgido sob domesticação, seria considerado uma aberração [monstrosity]”.

254 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 251-274
ISSN: 2317-9570
ESPÉCIE MONSTRO: VARIAÇÕES SOBRE DARWIN

fornecer perspectivas tão vas- de modo a exprimir a “durabilidade”


tas. A especificação empírica sempre instável dos seres vivos agru-
detém-se logo na distinção do pados em populações (PIMENTA 2018,
múltiplo, caso pela já prece- p. 20). A especificação não é, pois, re-
dente lei transcendental da es- sultado de uma pressuposição racional,
pecificação enquanto princípio mas um efeito lógico da especiação en-
da razão não tenha sido gui- quanto variação das formas “na natu-
ada a procurar essa distinção reza”.
e a supô-la sempre de novo, Segundo Darwin, as espécies são,
mesmo que não se revele aos portanto, “simples variedades bem de-
sentidos. Para descobrir que finidas e estáveis” (2018, p. 108). A
terras absorventes são de di- característica fundamental de uma es-
ferentes espécies (terras calcá- pécie enquanto forma viva é a variabili-
rias e muriáticas), precisou-se dade, seu potencial de discrepância em
de uma regra precedente da ra- relação a um padrão – sua capacidade
zão que impusesse ao entendi- de adaptação – frente às “condições de
mento a tarefa de procurar a vida, orgânicas e inorgânicas” (2018, p.
diversidade ao mesmo tempo 147), sempre sujeitas à mudança:
em que pressupusesse a natu-
reza tão rica que levasse a supô-
la. Pois nós possuímos entendi- Assim, as espécies mais prós-
mento apenas sob a pressuposi- peras, ou, se preferirmos, as
ção da diversidade na natureza, espécies dominantes, que se
como sob a condição de que os disseminam mais amplamente
objetos da mesma possuam em pelo mundo, as mais difundi-
si homogeneidade, pois preci- das em seu país de origem e as
samente a multiplicidade da- com o maior número de indiví-
quilo que pode ser reunido sob duos são aquelas que com mais
um conceito perfaz o uso desse frequência produzem varieda-
conceito e a ocupação do enten- des bem definidas, ou, como
dimento (1980, p. 325, B685). prefiro chamá-las, espécies in-
cipientes. O que não chega a
surpreender: pois, para adqui-
Ora, se, para Kant, a especificação e a rirem um grau mínimo de per-
variedade são pressupostas a priori em manência, as variedades têm
função da unidade sistemática do co- necessariamente de lutar com
nhecimento empírico da natureza, para outros habitantes do país, o que
Darwin, a homogeneidade é precedida significa que as espécies já do-
pela variabilidade das formas naturais, minantes serão provavelmente

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 251-274 255
ISSN: 2317-9570
MARCO ANTONIO VALENTIM

as que produzirão uma prole máximo, declinam e desapare-


que estará destinada a herdar, cem (2018, p. 109).
com algum grau de modifica-
ção, as vantagens que possibili- Para Darwin, bem longe de toda e
taram a seus progenitores so- qualquer lei transcendental, o único
brepujar os rivais (2018, pp. critério possível para determinar a clas-
106-107). sificação dos seres vivos em espécies
ou variedades é a “quantidade de di-
Quer dizer, a especificidade de uma ferença” entre as formas – o que consti-
espécie, sua homogeneidade variável, tui, por si só, um fator dinâmico. Certa-
não satisfaz, em primeiro lugar, à exi- mente, a quantidade de diferença en-
gência racional de sistematicidade, mas tre espécies de um mesmo gênero é
ao imperativo vital de sobrevivência. menor que a quantidade de diferença
Assim, quando encontramos na natu- entre espécies de gêneros diferentes,
reza formas estáveis, contemplamos o mas o ponto é que os gêneros maio-
registro de uma configuração instantâ- res, com mais espécies, espécies domi-
nea da “luta pela vida” em que certas nantes, tendem à maior variabilidade e,
espécies se mostram dominantes, mais assim, a uma maior quantidade de di-
bem definidas, em comparação com ou- ferença. É assim que Darwin resume
tras. E essa configuração é, por princí- a exposição do seu conceito essencial-
pio, instável “com o passar do tempo”: mente problemático de espécie:

É certamente o caso quando to- Variedades têm os mesmos ca-


mamos as variedades como es- racteres gerais que espécies e,
pécies incipientes, e minhas ta- com duas exceções, não po-
belas claramente mostram que, dem ser distinguidas delas. Pri-
quando quer que tenham sido meiro, a descoberta de formas
formadas muitas espécies de de ligação intermediárias, que,
um mesmo gênero, as espécies no entanto, não afeta os carac-
desse gênero apresentam um teres das formas ligadas; e, se-
número de variedades, isto é, gundo, a ocorrência de certa
de espécies incipientes, acima quantidade de diferença, pois,
da média. [. . . ] o que a geo- por mais que duas formas que
logia plenamente mostra é que, pouco diferem sejam classifica-
com o passar do tempo, os gêne- das como variedades, mesmo
ros menores com frequência se que elos intermediários não te-
multiplicam muito, enquanto nham sido descobertos, a quan-
os gêneros maiores chegam ao tidade de diferença considerada

256 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 251-274
ISSN: 2317-9570
ESPÉCIE MONSTRO: VARIAÇÕES SOBRE DARWIN

necessária para dar a elas o es- entre espécie, variedade e aberração não
tatuto de espécie permanece in- consiste senão em um efeito de perspec-
definida. [. . . ] as espécies de tiva. Pimenta resume com perspicácia
gêneros maiores têm poderosa o significado da instabilidade constitu-
analogia com variedades. Pode- tiva do conceito de espécie em A origem
mos compreender por que su- das espécies:
pondo que as espécies tenham
se originado como variedades; A introdução de uma perspec-
mas seria algo inexplicável se tiva nova na história natural
cada espécie tivesse sido criada permitirá a Darwin abandonar,
independentemente. As espé- logo de saída, um velho dogma,
cies mais prósperas e mais do- estabelecido desde Aristóteles
minantes em cada gênero são e vigente ainda no século XIX.
as que mais variam na média; Pois, doravante, não se tratará
e, como veremos à frente, va- mais de ver nos seres vivos indi-
riedades tendem a ser converti- viduais a especificação de uma
das em novas espécies distintas. estrutura geral que os perpassa
Os gêneros maiores tendem, as- e os condiciona. Não haverá
sim, a crescer ainda mais, e, na mais, no limite, espécie alguma:
natureza, as formas de vida já tudo são indivíduos em cons-
dominantes tendem a predomi- tante variação, que compõem
nar ainda mais, com a produ- grupos, integrados em popu-
ção de numerosos descendentes lações que vivem em proximi-
dominantes modificados. Mas dade e competem umas com as
também os gêneros maiores, outras, sofrendo mutações (ou
por passos que serão explica- “conversões”, como também se
dos, tendem a se fragmentar em exprime Darwin), cuja durabili-
gêneros menores. E assim as dade, garantida pelo êxito, per-
formas dividem-se pelo mundo mite que sejam tomados como
em grupos subordinados a gru- espécies ou como variedades
pos (2018, p. 112). (2018, p. 20).

Se permanece “indefinida” qual seja “Não haverá mais, no limite, espécie


a quantidade de diferença necessária alguma”: com isso, a lógica taxonômica
para distinguir-se inequivocamente en- – seja essencialista, segundo o exem-
tre espécie e variedades, é porque “va- plo aristotélico, ou transcendentalista,
riedades tendem a ser convertidas em segundo o modelo kantiano – vacila di-
novas espécies distintas”. A distinção ante da dinâmica de variação específica.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 251-274 257
ISSN: 2317-9570
MARCO ANTONIO VALENTIM

Entre a vida e o conceito, a escolha de se em duas ou mais durante


Darwin é inequívoca. o curso da evolução vertical.
Darwin compreendeu de uma
maneira geral a diferença entre
Replicação e metabolismo evolução vertical e o desmem-
bramento das espécies, mas ca-
Wilson enxerga o traço logicamente recia do conceito de espécie bi-
aberrante da conceitualidade darwini- ológica fundamentado no isola-
ana como resultado de uma “carência”. mento reprodutivo. Como re-
Partindo da distinção entre “dois mode- sultado, não descobriu o pro-
los de evolução” – mudança “vertical” cesso pelo qual ocorre a multi-
de uma mesma espécie ao longo tempo plicação. Suas ideias sobre di-
versus desmembramento de uma espé- versidade permaneceram obs-
cie em múltiplas outras –, ele adverte curas. Nesse sentido, o título
que Darwin teria privilegiado o pri- abreviado Da origem das espé-
meiro modelo em sua explicação da ori- cies é ilusório (2012, pp. 67-68).
gem das espécies. Para o biólogo, esse
modelo, apesar de corresponder ao pro-
Uma distinção rígida entre mudança
cesso básico da dinâmica evolutiva, su-
vertical e desmembramento simultâneo
postamente não daria conta de elucidar
parece assim pressupor que as espé-
a especiação enquanto origem da diver-
cies sejam originariamente autoidênti-
sidade biológica, um “subproduto da
cas – pressuposição que destoa clara-
evolução”, pois “especiação exige evo-
mente da ideia darwiniana segundo a
lução vertical, mas evolução vertical
qual as espécies são variantes. O con-
não requer especiação”:
ceito de especiação que decorre disso
antepõe a identidade à variação como
Uma espécie pode ser alterada sua condição. Mas o que, para Wilson,
tão extensamente pela seleção garante que a autoidentidade de uma
natural que se torna uma es- espécie? Resposta: o seu “isolamento
pécie diferente, disse Darwin. reprodutivo”. A razão para o fracasso
No entanto, por mais tempo de Darwin em sua suposta tentativa de
que transcorra, por mais mu- estabelecer um conceito inequívoco de
danças que ocorram, continua espécie – requisito indispensável, se-
a haver somente uma espécie. gundo Wilson, para uma explicação su-
Para criar uma diversidade que ficiente da origem da diversidade das
vá além da simples variação formas vivas – residiria na negligência
entre organismos concorrentes, do papel da reprodução na constituição
a espécie precisa desmembrar- de uma espécie natural:

258 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 251-274
ISSN: 2317-9570
ESPÉCIE MONSTRO: VARIAÇÕES SOBRE DARWIN

se acasalar, a progênie talvez


não consiga chegar à maturi-
A maioria das espécies de ani- dade – ou, chegando à maturi-
mais e de plantas, incluindo H. dade, poderá revelar-se estéril.
sapiens, preserva sua identidade O surpreendente não é que a hi-
simplesmente não se cruzando bridação possa falhar, mas que
com outras espécies. Mas como chegue a ocorrer. A origem das
ocorre essa segregação? O pro- espécies é, portanto, simples-
cesso, como nós o compreen- mente a evolução de alguma
demos, é surpreendentemente diferença – qualquer diferença
simples. Toda mudança evo- – que, sob condições naturais,
lutiva que reduz as chances de impeça a produção de híbridos
produzir híbridos férteis é ca- férteis entre populações (2012,
paz de produzir uma nova es- p. 71).
pécie. O motivo é que o sur-
gimento de híbridos férteis é
um procedimento complicado e Portanto, para Wilson, uma espécie
delicado, mais ou menos como é algo como um anti-híbrido. A dife-
pôr em órbita um veículo es- rença de uma espécie é o que garante
pacial. Um imenso número de sua autoidentidade, mas essa diferença,
partes precisa funcionar corre- por sua vez, resulta da segregação entre
tamente, e a sincronia de ope- as espécies – e não de sua variabilidade
ração dessas partes precisa ser intrínseca. Os híbridos, assim como as
quase perfeita ou a missão fra- aberrações, seriam anti-evolucionários.
cassará. Consideremos um ma- A constituição identitária de uma espé-
cho da espécie A e uma fêmea cie dependeria, pois, da resistência ao
da espécie B tentando criar uma hibridismo enquanto monstruosidade
progênie híbrida fértil. Como pretensamente infértil. Apenas assim,
são geneticamente diferentes o “conceito biológico de espécie” per-
um do outro, as coisas podem mitiria “evitar o caos” (WILSON, 2012,
dar errado. Os dois indivíduos p. 72).
talvez queiram acasalar-se em Ora, a concepção de Wilson des-
lugares diferentes. Poderão ten- toa fortemente da de Darwin, na qual
tar se cruzar em diferentes es- parece prevalecer, não por mero des-
tações do ano ou horas do dia. cuido, a afirmação do caráter essenci-
Seus sinais nupciais podem ser almente variável, diferencial, das espé-
mutuamente incompreensíveis. cies. Longe de evitar o caos taxonômico,
E, mesmo se os representantes Darwin compreende a identidade es-
das duas espécies chegarem a pecífica como o limite mínimo, o grau

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 251-274 259
ISSN: 2317-9570
MARCO ANTONIO VALENTIM

zero da variabilidade incessante e irres- por isso menos vivas, pois, assim como
trita das formas vivas. Logo, ao con- os humanos que não se reproduzem,
trário do que supõe Wilson, o conceito elas se sustentam a si mesmas por meio
darwiniano de espécie natural não seria do metabolismo. Por outro lado, não
carente de critério, nem sua explicação sendo capazes de metabolizar nada, de-
da origem das espécies, uma promessa pendendo de organismos autopoiéticos
não cumprida, pois, ao que tudo indica, para se reproduzir, “os vírus não têm
mudança vertical e desmembramento vida” (2002, p. 32). Da mesma forma,
são, para Darwin, processos em última é certo, como argumentam os autores,
instância indiscerníveis. Toda mudança que, para Darwin, “os seres que não
é, pelo menos potencialmente, especiação. conseguem reproduzir-se antes de mor-
Se “não há, no limite, espécie alguma”, rer são excluídos pela seleção natural”
é porque se trata sempre de “indivíduos – e contudo:
em constante variação”. A hibridação
seria a condição, por assim dizer, nor- A identidade e autossustenta-
mal. ção requerem o metabolismo.
Diante da variedade profusa das for- A química metabólica precede
mas vivas, seria mesquinhez pressupor, a reprodução e a evolução. Para
em prol de uma racionalidade que to- que uma população evolua,
lhe a criatividade da natureza, que a seus membros têm que se re-
variação dependa primordialmente da produzir. No entanto, para que
reprodução, que a especiação seja sim- um ser orgânico possa se repro-
plesmente resultado do isolamento re- duzir, primeiro ele precisa se
produtivo. Isso já é de todo questioná- sustentar. Durante a vida de
vel pelo fato de tomar-se a reprodução uma célula, cada uma das apro-
como condição mais fundamental da ximadamente cinco mil pro-
vida. Em O que é vida?, Margulis Sa- teínas diferentes faz um inter-
gan argumentam, a partir do conceito câmbio completo com o meio
de autopoiese (MATURANA VARELA, circundante, milhares de vezes
2002), que a capacidade de “replica- (2002, pp. 32-33).
ção”, embora necessária à evolução, ja-
mais seria uma condição suficiente. Por
exemplo, “os seres humanos que já não A interação metabólica com o ambi-
podem ou que nunca puderam, ou que ente – variação intensiva do organismo
simplesmente optam por não se repro- – opera como condição fundamental
duzir” – “é claro que eles também vi- para a autossustentação e daí para a re-
vem” (MARGULIS SAGAN, 2002, p. produção e a evolução. Mais uma vez,
32). As mulas são estéreis, mas nem agora a partir da microbiologia, mostra-
se que, no ser vivo, a autodiferença é

260 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 251-274
ISSN: 2317-9570
ESPÉCIE MONSTRO: VARIAÇÕES SOBRE DARWIN

mais originária que a identidade espe- se modifique ou se aprimore


cífica, assim como a interação metabó- outras também terão de fazê-
lica em relação ao isolamento reprodu- lo em grau equivalente, ou se-
tivo. Avesso à “segregação” postulada rão exterminadas. Além disso,
por Wilson, o metabolismo é uma obra tão logo cada nova forma tenha
monstruosa de hibridação. sido aprimorada, ela poderá se
Porém, para rebater a objeção de Wil- disseminar pela área aberta e
son, não seria imprescindível recorrer contínua, entrando em compe-
à revisão do conceito de vida propici- tição com outras. Novos do-
ada pela microbiologia evolucionista. mínios surgirão, e a competi-
Darwin mesmo esboçara previamente ção para ocupá-los será mais
uma refutação, argumentando que o severa em uma área grande do
isolamento reprodutivo é, no limite, re- que seria em uma isolada. [. . . ]
fratário ao princípio mesmo da seleção Por isso, concluo que, embora
natural: pequenas áreas isoladas sejam,
sob muitos aspectos, bastante
favoráveis à produção de novas
Não questiono que o isolamento espécies, o curso da modifica-
tem importância considerável ção é provavelmente mais rá-
na produção de novas espécies; pido em grandes áreas. E, por
ao mesmo tempo, inclino-me a fim, mais importante, entre as
pensar que o fator decisivo é a novas formas produzidas em
extensão da área, especialmente grandes áreas, as que enfren-
no que diz respeito à produ- taram muitos rivais e os vence-
ção de novas espécies, que se ram serão aquelas que mais se
mostrarão mais resistentes por disseminam, que dão origem à
um longo tempo e serão capa- maioria das novas variedades e
zes de se disseminar por áreas espécies e têm, assim, um im-
amplas. Em uma grande área portante papel na reconfigura-
aberta, são maiores as chan- ção do mundo orgânico (2018,
ces de que ocorram variações pp. 172-173).
favoráveis, devido ao grande
número de indivíduos de uma
mesma espécie que ali vivem, De acordo com isso, a competição se-
e também serão infinitamente ria uma circunstância eminentemente
complexas as condições de vida, favorável à evolução da vida não apenas
em virtude do grande número por convidar as espécies à luta inces-
de espécies já existentes; por- sante, mas sobretudo por intensificar o
tanto, caso alguma entre elas complexo de relações com outras espé-

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 251-274 261
ISSN: 2317-9570
MARCO ANTONIO VALENTIM

cies e com o ambiente em que se acham tude do poder de seleção da na-


entretidas. A competição configuraria, tureza, que atua em longos pe-
portanto, uma causa de “perturbação” ríodos (2018, p. 176).
ao curso desimpedido das espécies, in-
dispensável à sua formação:
Uma origem desconhecida?
A atuação da seleção natu-
Apesar de tudo, a concepção na qual
ral depende, com ainda mais
Wilson baseia a objeção a Darwin tem
frequência, da lenta modifica-
raízes na ortodoxia do próprio darwi-
ção de alguns habitantes que
nismo. Abrindo sua suma evolucio-
perturbe as relações entre eles
nista, Wallace afirma que “para apre-
e outros habitantes. Tudo de-
ciar plenamente o objetivo e o assunto
pende de haver circunstâncias
de A origem das espécies [. . . ] é mister
favoráveis, e a variação parece
formar uma concepção clara do signifi-
sempre um processo extrema-
cado do termo espécie” (2012, p. 19) –
mente lento. O cruzamento li-
o que, porém, vai na contramão da con-
vre é um entrave que a retarda
clusão com que Darwin encerra o Capí-
(DARWIN, 2018, p. 176).
tulo 2 de A origem das espécies: “a quan-
tidade de diferença considerada neces-
Logo, bem ao contrário do isola- sária para dar às formas vivas o esta-
mento, a competição se mostra explici- tuto de espécie permanece indefinida”.
tamente como modalidade – ora suave, A consequência lógica dessa conclusão
ora violenta, nem sempre cruel, por ve- para o conceito evolucionista de espé-
zes até dotada de beleza, mas sempre cie é drástica, ensejando um nomina-
complexa – de coadaptação como fator lismo radical, incompatível com o pro-
principal de formação das espécies: pósito de definir “claramente” aquele
conceito:
Se o homem, com seus débeis
poderes, é capaz de tantas re- Considero o termo “espécie”
alizações por meio de seleção um nome arbitrário, dado por
artificial, não vejo limite para conveniência a um grupo de in-
a quantidade de modificação, divíduos muito semelhantes e
ou ainda, para a beleza e a infi- que, nessa medida, não difere
nita complexidade das coadap- essencialmente do termo “vari-
tações entre os seres orgânicos, edade”, dado a formas menos
uns aos outros e em relação às distintas e mais oscilantes. O
suas condições de vida, em vir- termo “variedade”, por sua vez,

262 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 251-274
ISSN: 2317-9570
ESPÉCIE MONSTRO: VARIAÇÕES SOBRE DARWIN

em comparação a formas me- feitamente: em ambas, são determinan-


ramente individuais, também tes as funções da semelhança e da per-
se aplica arbitrariamente por manência, da reprodução e da filiação.
mera conveniência (DARWIN, A pretexto de ilustrá-las com exemplos,
2018, p. 105). o próprio Wallace acusa o limite dessas
definições para a elucidação da origem
das espécies:
Não obstante, um elemento biológico
substancial ressalta nas definições de
espécie favorecidas por Wallace, formu- A gralha (Corvus frugilegus) e o
ladas respectivamente pelo botânico De corvo (Corvus corone) são duas
Candolle e pelo zoólogo Swainson: espécies distintas porque, em
primeiro lugar, elas sempre di-
ferem entre si em algumas pe-
[De Candolle:] Espécie é uma quenas particularidades de es-
coleção de todos os indivíduos trutura, forma e hábitos, e, em
que se assemelham entre si segundo lugar, porque as gra-
mais do que com qualquer ou- lhas sempre produzem gralhas,
tra coisa, que podem por fecun- os corvos produzem corvos, e os
dação mútua produzir indiví- dois tipos de ave não se cruzam.
duos férteis e que se reprodu- Concluiu-se, por conseguinte,
zem por geração, de tal sorte que todas as gralhas do mundo
que podemos por analogia su- descendem de um único par de
por que todos eles procedem de gralhas, e que, de igual modo,
um único indivíduo. os corvos descendem de um
[Swainson:] Espécie, na acep- único par de corvos, ao mesmo
ção usual do termo, é um ani- tempo que se considerou im-
mal que, no estado natural, se possível que corvos pudessem
distingue – por certas peculia- descender de gralhas, ou vice-
ridades de forma, tamanho, cor versa. A “origem” do primeiro
ou outras circunstâncias – de casal de cada tipo é um mistério
outro animal. Ela dissemina, [. . . ] uma “origem” desconhe-
“segundo seu tipo”, indivíduos cida” (2012, p. 20).
que se assemelham perfeita-
mente ao pai; suas peculiarida-
Mas, e se tal “origem desconhecida”
des, portanto, são permanentes
se encontrasse justamente na monstruosi-
(WALLACE, 2012, pp. 19-20).
dade criativa dos indivíduos em constante
interação metabólica e variação autopoié-
As definições se espelham quase per- tica? Será que essa característica não

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 251-274 263
ISSN: 2317-9570
MARCO ANTONIO VALENTIM

implica uma tendência formalmente evolucao filiativa hereditaria


contrária – embora efetivamente solidá- para tornar-se antes comunica-
ria – à reprodução filiativa, algo como tiva ou contagiosa. [. . . ] O ne-
uma aliança interespecífica diferencial? oevolucionismo parece-nos im-
É o que propõem Deleuze Guattari, portante por duas razoes: o ani-
ao explicar o conceito metafísico de de- mal nao se define mais por ca-
vir por referência ao neoevolucionismo, racteristicas (especificas, gene-
do qual Lynn Margulis (1998), com sua ricas, etc.), mas por populacoes,
teoria da endosimbiose evolucionária, é variaveis de um meio para ou-
uma das principais vozes (HARAWAY, tro ou num mesmo meio; o mo-
2016, pp. 58 e ss.): vimento nao se faz mais apenas
ou sobretudo por producoes fi-
liativas, mas por comunicacoes
O devir e sempre de uma ordem transversais entre populacoes
outra que a da filiacao. Ele e da heterogeneas. Devir e um ri-
ordem da alianca. Se a evolucao zoma, nao e uma arvore classi-
comporta verdadeiros devires, ficatoria nem genealogica (DE-
e no vasto dominio das simbi- LEUZE GUATTARI, 1997, p.
oses que coloca em jogo seres 19).
de escalas e reinos inteiramente
diferentes, sem qualquer filia-
cao possivel. Ha um bloco de Sem dúvida, há consequências do
devir que toma a vespa e a or- neoevolucionismo que se voltam con-
quidea, mas do qual nenhuma tra a doutrina não apenas “darwinista”
vespa-orquidea pode descen- mas também darwiniana da evolução
der. Ha um bloco de devir que arborescente da vida (DARWIN, 2018,
toma o gato e o babuino, e cuja pp. 179-201), com a “transferência ho-
alianca e operada por um virus rizontal” de caracteres entre espécies
C. Ha um bloco de devir entre distintas – “momentum involucionário”
raizes jovens e certos microor- (HUSTAK MYERS, 2012) – vindo a so-
ganismos, as materias organi- brepujar a descendência vertical com
cas sintetizadas nas folhas ope- modificação (JABLONKA LAMB, 2014,
rando a alianca (rizosfera). Se o pp. 385-392). Incapaz de tratar de-
neoevolucionismo afirmou sua las no momento, gostaria de ressaltar o
originalidade, e em parte em traço “rizomático” referido pelos filóso-
relacao a esses fenomenos nos fos, segundo o qual a origem das espé-
quais a evolucao nao vai de um cies residiria na comunicação e no con-
menos diferenciado a um mais tágio como relações transversais entre
diferenciado, e cessa de ser uma populações heterogêneas. Nesse sen-

264 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 251-274
ISSN: 2317-9570
ESPÉCIE MONSTRO: VARIAÇÕES SOBRE DARWIN

tido, as espécies naturais seriam, antes dos monstros, penso aqui no conceito
de mais nada, aspectos perspectivos, es- de monstruosidade proposto por Fou-
pectros, de povos em aliança diferencial cault em seu comentário ao “quase-
e transfiguração simbiótica. Monstros. evolucionismo do século XVIII” como
“presságio” do darwinismo (1992, p.
168). “Ruido de fundo, murmurio inin-
terrupto da natureza”, o filósofo coloca
Teratologia o monstro ao lado do fóssil na condição
de antípodas para a explicação da dinâ-
Tudo isso resulta de que a origem das mica evolutiva:
espécies mede-se fundamentalmente
por sua capacidade natural de varia-
ção. A vida consiste na variação inces- O monstro faz aparecer a di-
sante de formas orgânicas. Trata-se de ferenca: esta e ainda sem lei e
uma variação paralógica, que não se re- sem estrutura bem definida; o
gula necessariamente pelo ideal racio- monstro e o fulcro da especifi-
nal de unidade sistemática. Levando cacao, mas nao e mais que uma
essa tese ao limite, torna-se possível en- subespecie na obstinacao lenta
tão perguntar: visto que, com o passar da historia. O fossil e aquilo
do tempo, gêneros se transformam em que deixa subsistir as seme-
espécies, e espécies em gêneros, será lhancas atraves de todos os des-
possível propor em contrário que, se- vios que a natureza percorreu;
gundo a mesma dinâmica, variedades funciona como uma forma lon-
se tornam monstruosidades, e mons- ginqua e aproximativa da iden-
truosidades, variedades? Há, na origem tidade; marca um quase-carater
de toda espécie, sempre um monstro? no mover-se do tempo. [...]
Se, em seu surgimento, toda espécie foi Quer como um movimento in-
uma variedade discrepante, e se, em cessantemente delineado, mas
sua forma atual, toda variedade bem estancado desde seu esboco, e
definida é uma espécie incipiente, pa- perceptivel somente nas bordas
rece haver uma tendência generalizada do quadro, nas suas margens
à monstruosidade na configuração das descuidadas: e assim, sobre o
formas de vida: o monstro, e não o típico, fundo do continuo, o monstro
seria a forma originária do vivente (VA- narra, como em caricatura, a
LENTIM, 2018, pp. 189-212). Em vez genese das diferencas e o fos-
de uma sub-antropologia, a biologia de sil lembra, na incerteza de suas
A origem das espécies implica uma tera- semelhancas, as primeiras obs-
tologia. tinacoes da identidade (1992, p.
Ao mencionar a lógica aberrante 172).

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 251-274 265
ISSN: 2317-9570
MARCO ANTONIO VALENTIM

fabulosos, g) caes em liberdade,


Assim, enquanto o fóssil opera como h) incluidos na presente classi-
fundamento das identidades ao longo ficacao, i) que se agitam como
do continuum da vida, o monstro, “ful- loucos, j) inumeraveis, k) dese-
cro da especificação”, consiste no fator nhados com um pincel muito
explicativo das descontinuidades, com fino de pelo de camelo, l) et
a monstruosidade sendo algo como um cetera, m) que acabam de que-
coeficiente de multiplicação da dife- brar o jarro, n) que de longe
rença. parecem moscas”. No deslum-
Podemos supor que a taxonomia vir- bramento dessa taxonomia, o
tualmente aberrante de Darwin se as- que de subito atingimos, o que,
semelha à “enciclopédia chinesa” refe- gracas ao apologo, nos e indi-
rida no célebre início de As palavras e cado como o encanto exotico
as coisas – enciclopédia comentada por de um outro pensamento, e o
Borges em “O idioma analítico de John limite do nosso: a impossibi-
Wilkins” (2007, pp. 121-126) – antes lidade patente de pensar isso
que à taxonomia sistematicamente ti- (FOUCAULT, 1992, p. 5).
pológica de Lineu:
Contudo, é preciso fazer ressalva de
Este livro nasceu de um texto que, ao contrário de corroborar a ori-
de Borges. Do riso que, com sua ginariedade do monstro, ou seja, sua
leitura, perturba todas as fami- prioridade em relação ao típico, tanto
liaridades do pensamento – do quanto sua precedência real em re-
nosso: daquele que tem nossa lação à própria táxis, Foucault tende
idade e nossa geografia –, aba- a “antropologizar” a monstruosidade,
lando todas as superficies or- subentendendo-a como dispositivo ló-
denadas e todos os planos que gico voltado à explicação sistemática da
tornam sensata para nos a pro- natureza:
fusao dos seres, fazendo vaci-
lar e inquietando, por muito A monstruosidade que Borges
tempo, nossa pratica milenar faz circular na sua enumeracao
do Mesmo e do Outro. Esse consiste, ao contrario, em que o
texto cita “uma certa enciclope- proprio espaco comum dos en-
dia chinesa” onde sera escrito contros se acha arruinado. O
que “os animais se dividem em: impossivel nao e a vizinhanca
a) pertencentes ao imperador, das coisas, e o lugar mesmo
b) embalsamados, c) domesti- onde elas poderiam avizinhar-
cados, d) leitoes, e) sereias, f) se. Os animais “i) que se agi-

266 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 251-274
ISSN: 2317-9570
ESPÉCIE MONSTRO: VARIAÇÕES SOBRE DARWIN

tam como loucos, j) inumera- sinala nada menos que o limite mais
veis, k) desenhados com um extremo e estranho à razão pura, sob
pincel muito fino de pelo de a (anti-)forma da “adversidade a fins”
camelo” – onde poderiam eles (LEMOS, 2014, p. 200) da natureza:
jamais se encontrar, a nao ser “Um objeto é monstruoso se, pela sua
na voz imaterial que pronuncia grandeza, anula o fim que constitui o
sua enumeracao, a nao ser na seu conceito” (KANT, 2002, p. 99, AA
pagina que a transcreve? Onde 90). Por sua vez, contrariamente à ori-
poderiam eles se justapor, se- entação transcendental, seja esta crítica
nao no nao- lugar da lingua- ou arqueológica, a filosofia zoológica
gem? (1992, pp. 6-7). de Darwin, graças à sua sensibilidade
precoce às “promessas dos monstros”
(HARAWAY, 2004), esboça uma concei-
Com isso, Foucault parece seguir à tualidade por si monstruosa – uma “fi-
risca a sentença borgiana: “Sabida- lozoofia” (NODARI, 2017).
mente, não há classificação do universo
que não seja arbitrária e conjectural”
(BORGES, 2007, p. 124). No entanto,
a que razão, ou desrazão, se deve esse Phantasía animal
caráter arbitrário e conjectural? Por
que atribuir, ou reduzir, a uma opera- Podemos agora entrever, ousando pen-
ção de codificação racional da natureza sar a partir e talvez além de Darwin,
pela linguagem o que, em sentido contra- um fundamento, digamos, selvagem
antropológico, poderia, ou mesmo deve- para a especificação dita “arbitrária”.
ria, ser reconhecido como refluxo transfor- Trata-se da “capacidade [dos viventes]
mador da vida sobre o conceito? Como de produzir imagens e serem afetados
afirma Donna Haraway, se “a natureza por elas” (COCCIA, 2010, p. 11) – por
é um tópos e uma poderosa construção assim dizer, uma origem imanente das
discursiva”, trata-se, por outro lado, de espécies vivas, segundo a qual as suas
uma construção “efetuada nas intera- formas lógicas não seriam senão refra-
ções entre atores material-semióticos, ções espectrais de imagens corpóreas.
humanos e não[-humanos]” (2004, p. A ambiguidade está inscrita na própria
66). Sem sequer aventar a possibilidade etimologia do termo: afora seu signi-
de tal “construtivismo” multiespecífico, ficado lógico-taxonômico, espécie sig-
a arqueologia foucaultiana permanece nifica ao mesmo tempo forma, figura,
assim bem mais obediente ao espírito imagem. Enquanto a forma é substan-
da lei transcendental da especificação cial e categorial, a imagem é intencional
que a teratologia darwiniana. e performática. Como aponta Cervelin,
Com efeito, para Kant, o monstro as- tradutor de A vida sensível:

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 251-274 267
ISSN: 2317-9570
MARCO ANTONIO VALENTIM

imagens desempenham um pa-


pel semelhante ao alimento, ao
Em um primeiro momento, spe-
deli-near a maneira pela qual
cies poderia significar o com-
cada um vive. A vida precisa,
plexo das caracteristicas coin-
na mesma medida, tanto do
cidentes em muitos individuos,
sensivel e das imagens quanto
ou seja, o termo “especie” tal
da nutricao. O sen¬sivel define
qual utilizado pela taxonomia
as formas, as realidades e os li-
biologica. Por outro lado, a
mites da vida animal (2010, pp.
etimologia do termo latino e o
10-11).
seu uso pelo discurso filosófico
apontam para outras significa-
coes que dizem respeito ao pen- Entendidas como imagens imanentes
samento das imagens e do inte- aos seres vivos, que se espelham mutua-
lecto, à figura exterior que pode mente para a produção dos seus corpos,
ser vista, à forma, ao aspecto, à as formas intencionais não são exclusi-
aparencia, às imagens impres- vamente humanas; por sua vez, ao ope-
sas na imaginacao (2010, pp. 6- rar como categorias aplicadas aos vi-
7). ventes, as formas taxonômicas são intrin-
secamente antropocêntricas. Mas o que,
segundo Coccia, explicaria a prevalên-
Para Coccia, o significado imagético cia desse significado abstrato, substan-
– diríamos, espectral – de espécie é, sem cial e taxonômico, na compreensão das
dúvida, o mais concreto: espécies? Vejamos:

A vida animal – a vida sensivel A proibicao de reconhecer qual-


em todas as suas formas – pode quer autonomia ontologica as
ser definida como uma facul- imagens e um dos inumeros
dade particular de se relacionar mitos fundadores que a mo-
com as imagens: ela e a vida derni¬dade produziu e culti-
que as proprias imagens escul- vou. No gesto aparentemente
piram e tor¬naram possivel. insignificante pelo qual Des-
Cada animal nao e senao uma cartes procurou liberar “o espi-
forma particular de abertura ao rito de todas aquelas pequenas
sensivel, uma certa capacidade imagens que flutuam no ar, as
de apropriar-se dele e de inte- ditas formas [species] intencio-
ragir com ele. [. . . ] Se e a fa- nais, que tanto cansam a ima-
culdade sensitiva que da nome ginacao dos filosofos”, trava-
e forma a todos os animais, as se na realidade uma das bata-

268 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 251-274
ISSN: 2317-9570
ESPÉCIE MONSTRO: VARIAÇÕES SOBRE DARWIN

lhas decisivas do pensamento gito ergo sum cartesiano e


moderno contra o proprio pas- ameaada pelas formas [spe-
sado. [...] Foi somente o aban- cies] intencionais. Elas expri-
dono da forma [species] inten- mem, de fato, o modo com que
cional que possibilitou fazer o objeto insiste no sujeito, uma
coincidir o sujeito com o pen- especie de lasca de objetuali-
samento (e com o pensado) em dade infiltrada no sujeito, ou o
todas as suas formas. [...] Aos sujeito enquanto pro¬jetado em
olhos dos modernos a forma direcao ao objeto e a realidade
[species] intencional se apresen- exterior, nao psiquica (literal-
tava como um obstaculo inutil mente tendido em direcao a
que impedia pensar a percep- eles). Se e gracas a essas species
cao subjetiva: a existencia do que podemos sentir e pensar,
sensivel, separada tanto do su- qualquer sensacao e qualquer
jeito quanto do objeto, torna ato de pensamento demonstra-
efetivamente impossivel toda riam nao exatamente a verdade
reducao da teoria do conheci- do sujeito ou a sua natureza,
mento em psicologia, em te- mas sim a simples existencia
oria do sujeito. E toda teoria das imagens (2010, p. 14).
das imagens se torna entao um
ramo acidental da antropolo-
gia. Do mesmo modo, somente Todavia, como diria Lévi-Strauss,
o abandono dessas “imagens” a potência selvagem das espécies en-
por todo ato espiritual permite quanto formas vivas persiste no pensa-
considerar a reflexao do sujeito mento domesticado, assombrando-o: se
sobre si mesmo como o funda- a presença das imagens no sujeito autô-
mento de todo conhecimento nomo do conhecimento atesta a “insis-
(2010, pp. 12-14). tência” do objeto no sujeito, é porque os
animais, humanos e não-humanos, inter-
vêm incessantemente, como que agen-
Desse modo, a “autonomia ontoló- tes infiltrados, na intimidade pretensa-
gica” das imagens, persistente na filo- mente inviolável da subjetividade me-
sofia pré-moderna, seria recusada na tafísica. As formas animais subsistem
modernidade em proveito da constitui- como verdadeiros espectros na imagi-
ção do homem como sujeito autônomo nação subjetiva, tornando possível, in-
do conhecimento em seu pretenso do- clusive, a própria abstração classificató-
mínio sobre a natureza: ria, ou especificação, pela qual se pro-
cura dominá-las. Mais além, reconhe-
A propria consistencia do co- cida como faculdade extra-humana de

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 251-274 269
ISSN: 2317-9570
MARCO ANTONIO VALENTIM

constituição dos corpos vivos, a ima- cias da intuição darwiniana:


ginação consiste no fundamento mons- afirmar que as espécies estão
truoso da especiação, pois precede não ligadas por uma relação gene-
só a reprodução, que é fisicamente de- alógica não significa simples-
pendente do corpo-imagem, mas pre- mente que os seres vivos consti-
side também o metabolismo, na medida tuem uma grande família. Sig-
em que este implica a troca “material- nifica, sobretudo, estabelecer
semiótica”, “simpoiética” (HARAWAY, que a identidade de cada espé-
2016, pp. 58-98), de imagens entre os cie é puramente relativa. Toda
corpos animais. Donde o nexo real en- identidade específica define ex-
tre imaginação, especiação e “monstru- clusivamente a fórmula de con-
ação”, explícito no conceito de metamor- tinuidade (e de metamorfose)
fose: com outras espécies (COCCIA,
2020, pp. 15-16).4

Cada espécie é a metamorfose


de todas aquelas que a prece- Por conseguinte, quando Darwin
deram. Uma mesma vida que acusa como insuperável a defasagem
se fabrica [se bricole] um novo da taxonomia em relação às formas vi-
corpo e uma nova forma a fim vas, é como se, na contramão do antro-
de existir diferentemente. Eis a pocentrismo moderno, testemunhasse
significação mais profunda da a origem imanente das espécies na ca-
teoria darwiniana da evolução, pacidade imaginativo-metamórfica dos
que a biologia e o discurso pú- seres vivos. A evolução seria, an-
blico não querem entender: as tes de tudo, obra da phantasía ani-
espécies não são substâncias, mal. A origem das espécies poderia ser
entidades reais. Elas são “jo- lido não apenas como uma investiga-
gos de vida” (no mesmo sentido ção genealógica das formas de vida,
em que se fala de “jogo de lin- mas também como um tratado “factual-
guagem” para o discurso), con- especulativo” (HARAWAY, 2004, p. 63)
figurações instáveis e necessari- acerca da imaginação animal em suas
amente efêmeras de uma vida múltiplas transfigurações. A sua ques-
que ama transitar e circular de tão central seria, então: como os viven-
uma forma à outra. Não tira- tes produzem por si e entre si mesmos
mos ainda todas as consequên- suas próprias espécies? Se não há criação

4 Coccia reatualiza aqui uma intuição original de Haeckel, para quem a filosofia natural de Goethe, estruturada sobre o equilíbrio
instável entre metamorfose (“força centrífuga de formação”) e especiação (“força centrípeta de formação”), antecipa prodigiosamente
o “transformismo” darwiniano (2012, pp. 30 e ss.).

270 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 251-274
ISSN: 2317-9570
ESPÉCIE MONSTRO: VARIAÇÕES SOBRE DARWIN

independente de formas vivas, é porque, mica da vida. Se a metamorfose, como


além de sensíveis, elas são imanentemente parece ser o caso, implica, em algum
criativas, sencientes. nível, disrupção monstruosa, catástrofe,
Por mais aberrante que possa pare- a referida equivalência demanda ser
cer, tal hipótese interpretativa explica, complexificada, com a metamorfose a
entre outras coisas, a peculiar profusão ser pensada para além da antinomia
de imagens animais mescladas a enti- metafísica entre continuidade e descon-
dades conceituais que tanto caracteriza tinuidade. Trata-se, a rigor, de uma di-
a filosofia de Darwin – trama única de ficuldade que o metamorfismo de Coc-
vida e conceito, tão amarrada a ponto cia herda da própria teoria darwiniana,
de se tornarem quase indiscerníveis segundo a qual “a natureza não procede
quanto ao papel que suas respectivas por saltos”.
formas desempenham como funções Consideremos, por exemplo, a se-
lógicas na argumentação (PIMENTA, guinte passagem do Capítulo 6 de A ori-
2018, pp. 24-26). De fato, a prosa gem das espécies, “Dificuldades relativas
darwiniana mimetiza ostensivamente o à teoria”, na qual Darwin, examinando
seu próprio objeto, tornando-se tão “in- o problema da transição de forma dos
tricada” quanto ele (DARWIN, 2018, p. seres vivos diante da continuidade da
175), ao proceder mediante seleção, va- vida, afirma:
riação, divergência, operações que re-
gem, segundo o filósofo naturalista, a
(trans)formação complexa das espécies. Em muitos casos, é extrema-
Trata-se, enfim, de algo que não de- mente difícil conjecturar por
veria soar menos que óbvio: conforme meio de quais transições um
o espírito da própria teoria, A origem órgão teria chegado ao seu
das espécies é forma viva, perspectiva de estado atual, e, no entanto,
certa espécie em meio ao conjunto das considerando-se que a propor-
espécies naturais, e obra animal, pen- ção entre formas vivas e conhe-
samento primata sobre a vida na Terra. cidas e formas extintas e des-
Animal-Darwin. conhecidas é muito pequena,
constato, não sem admiração,
que dificilmente se encontra
um órgão para o qual não
Coda aponte um grau transicional
conhecido. É uma observação
Para terminar, caberia, apesar de tudo, confirmada pelo velho adágio
questionar a equivalência firmada por da história natural, Natura non
Coccia, e considerada mais acima, entre facit saltum, máxima admitida
continuidade e metamorfose na dinâ- por quase todos os naturalis-

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 251-274 271
ISSN: 2317-9570
MARCO ANTONIO VALENTIM

tas mais tarimbados; ou, como antiga qualquer sofreu uma


bem colocou Milne-Edwards, a transformação súbita, graças
natureza é pródiga em varieda- a uma força ou tendência in-
des e avara em inovações. Seria terna, tem de assumir, con-
assim na teoria da criação das tra toda a analogia, que mui-
espécies? Estariam ligados en- tos indivíduos variaram dessa
tre si, invariavelmente, todas as mesma maneira. Mas a ideia de
partes e órgãos de muitos seres grandes mudanças estruturais
independentes, cada um deles abruptas contraria as transfor-
supostamente criado à parte e mações pelas quais a maioria
designado a um lugar na natu- das espécies parece ter passado.
reza? Por que haveria a natu- Pior ainda, o proponente das
reza de dar saltos de uma es- transformações súbitas será le-
trutura a outra? Na teoria da vado a conceber que muitas es-
seleção natural, compreende-se truturas lindamente adaptadas
claramente por que ela não o a todas as outras partes de uma
faria, pois atua aproveitando- criatura, e às condições circun-
se de variações sucessivas mí- dantes, foram produzidas de re-
nimas e jamais poderia saltar, pente; mas não terá como expli-
mas avança sempre, a passos car essas complexas e maravi-
curtos e lentos (2018, pp. 278- lhosas coadaptações; e terá for-
279). çosamente de admitir que não
há vestígio, no embrião, dessas
Na segunda versão do mesmo capí- grandes e súbitas transforma-
tulo, publicada na 6a. edição de A ções. O que equivale, parece-
origem das espécies sob o título “Obje- me, a abandonar os domínios
ções variadas à teoria da seleção na- da ciência para adentrar os do
tural”, a mesma distinção, entre vari- miraculoso (2018, pp. 777-
ação de caracteres por meio de modi- 779).
ficações sucessivas mínimas e inovação
de estrutura mediante descontinuida- Não obstante, como se sabe, Darwin
des abruptas, é reforçada a ponto de a apoia sua pressuposição da continui-
possibilidade de algo como a metamor- dade suave entre as formas vivas, a
fose catastrófica dos seres vivos ser re- da uniformidade evolutiva, na pre-
chaçada como de ordem sobrenatural, tensa “imperfeição do registro geoló-
anti-científica: gico” (2018, pp. 379 e ss.) – hipótese re-
futada pela geologia e pela paleontolo-
Quem defende que uma forma gia “neocatastrofistas” que se lhe segui-

272 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 251-274
ISSN: 2317-9570
ESPÉCIE MONSTRO: VARIAÇÕES SOBRE DARWIN

ram,5 em favor daquilo que, em 1955, nidade, bem como o do reino


Velikovsky chamou exemplarmente de animal e o do reino vegetal,
“evolução cataclísmica”: também deve agora ser conside-
rado à luz da experiência de Hi-
roshima [ou Chernobyl, ou Fu-
A uniformidade, que Darwin
kushima, ou mesmo Wuhan. . . ],
considerava o principal apoio
e não mais ser visto da vigia do
da teoria da evolução, quase
Beagle (1981, p. 253).
fez com que sua teoria saísse
da realidade. As grandes ca-
tástrofes do passado, acompa- Face a tudo isso, restaria elaborar (ta-
nhadas por descargas elétricas refa para outra ocasião) um conceito
e seguidas de radioatividade, de metamorfose adequado à dinâmica
poderiam ter produzido muta- catastrófica da vida na Terra – sobre-
ções múltiplas e repentinas do tudo agora, quando, no Antropoceno,
tipo que se consegue hoje em por obra da civilização industrial, o co-
laboratório, porém em escala lapso da biosfera avança a passos lar-
imensa. O passado da huma- gos.6

Referências
BORGES, J. L. Outras inquisições. Tradução de Davi Arrigucci Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
CERVELIN, D. “Nota sobre a tradução brasileira”. In: E. Coccia. A vida sensível. Tradução de Diego Cervelin. Desterro
[Florianópolis]: Cultura e Barbárie, 2010, pp. 6-7.
COCCIA, E. A vida sensível. Tradução de Diego Cervelin. Desterro [Florianópolis]: Cultura e Barbárie, 2010.
_____. Métamorphoses. Paris: Bibliothèque Rivages, 2020.
DANOWSKI, D. VIVEIROS DE CASTRO, E. Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins. Desterro [Florianópolis]:
Cultura e Barbárie, Instituto Socioambiental, 2014.
DARWIN, C. On the Origin of Species By Means of Natural Selection, or The Preservation of Favoured Races in the Struggle
for Life. London: John Murray, 1859.
_____. A origem das espécies por meio da seleção natural, ou A preservação das raças favorecidas na luta pela vida. Organiza-
ção, apresentação e tradução de Pedro Paulo Pimenta. São Paulo: Ubu Editora, 2018.
DELEUZE, G. GUATTARI, F. “1730 – Devir-intenso, devir-animal, devir-imperceptível. . . ”. In: G. Deleuze F. Guattari.
Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, Vol. 4. Tradução de Suely Rolnik. São Paulo: Editora 34, 1997, pp. 11-113.
FOUCAULT, M. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Tradução de Salma Tannus Muchail. São
Paulo: Martins Fontes, 1992.
HARAWAY, D. “The Promises of Monsters: A Regenerative Politics for Inappropriate/d Others”. In: D. Haraway. The
Haraway Reader. New York and London: Routledge, 2004, pp. 63-124.

5 Para uma interpretação da polêmica biogeológica entre uniformitarismo e catastrofismo na perspectiva da Sexta Grande Extinção,
atualmente em curso, enquanto evento emblemático do Antropoceno, cf. KOLBERT, 2015, pp. 103-104: “O que por vezes é rotulado
de neocatastrofismo, mas que hoje em dia é em grande parte considerado geologia padrão, defende que as condições da Terra mudam
muito devagar, exceto quando isso não acontece. Nesse sentido, o paradigma vigente não é cuvieriano nem darwiniano, mas combina
elementos importantes de ambos – ‘longos períodos de tédio interrompidos pelo pânico ocasional’. Embora raros, esses momentos de
pânico são desproporcionalmente importantes. Eles determinam o padrão da extinção, ou seja, o padrão da vida”.
6 Cf., entre outros, DANOWSKI VIVEIROS DE CASTRO, 2014; KOLBERT, 2015; HARAWAY, 2016; MARQUES, 2016; LATOUR,
2020.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 251-274 273
ISSN: 2317-9570
MARCO ANTONIO VALENTIM

_____. Staying with the Trouble: Making Kin in the Chthulucene. Durham and London: Duke University Press, 2016.
HAECKEL, E. Die Naturanschauung von Darwin, Goethe und Lamarck. Nachdruck des Originals von 1882. Paderborn:
Salzwasser Verlag, 2012.
HUSTAK, C. MYERS, N. “Involutionary Momentum: Affective Ecologies and the Sciences of Plant/Insect Encounters”.
Differences, Providence, 2012, v. 23, n. 3, pp. 74-118, May.
JABLONKA, E. LAMB, M. J. Evolution in Four Dimensions: Genetic, Epigenetic, Behavioral, and Symbolic Variation in the
History of Life. Revised Edition. Cambridge and London: The MIT Press, 2014.
KANT, I. Crítica da razão pura. Tradução de Valerio Rohden e Udo Baldur Moosburger. São Paulo: Abril Cultural (Os
Pensadores), 1980.
_____. Crítica da faculdade do juízo. Tradução de Valerio Rohden e António Marques. Rio de Janeiro: Forense Universi-
tária, 2002.
KOLBERT, E. A sexta extinção: uma história não natural. Tradução de Mauro Pinheiro. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2015.
LATOUR, B. Diante de Gaia: oito conferências sobre a natureza no Antropoceno. Tradução de Maryalua Meyer. São Paulo:
Ubu Editora, 2020.
LEMOS, F. “Kant e o Monstro”. Kriterion, Belo Horizonte, 2014, v. 55, no. 129, pp. 189-203, Janeiro/Junho.
LE GUIN, U. K. Ursula K. Le Guin Interviewed by John Wray. The Paris Review – The Art of Fiction, New York, 2013, no.
221, Issue 106, Fall.
MARGULIS, L. Symbiotic Planet: A New Look at Evolution. New York: Basic Books, 1998.
MARGULIS, L. SAGAN, D. O que é vida? Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002.
MARQUES, L. Capitalismo e colapso ambiental. 2a. ed. Campinas: Editora Unicamp, 2016.
MATURANA, H. VARELA, F. De máquinas e seres vivos: autopoiese – a organização do vivo. Tradução de Juán Acuña
Llorens. Porto Alegre: Artes Médicas, 2002.
NODARI, A. “Filozoofia”. Canguru, Curitiba, 2017, no. 2, pp. 21-27, Julho/Setembro.
PIMENTA, P. P. “Apresentação: O grande livro de Charles Darwin”. In: C. Darwin. A origem das espécies por meio da
seleção natural, ou A preservação das raças favorecidas na luta pela vida. Tradução de Pedro Paulo Pimenta. São Paulo:
Ubu Editora, 2018, pp. 9-36.
_____. Darwin e a seleção natural: uma história filosófica. São Paulo: Edições 70, Discurso Editorial, 2019.
VALENTIM, M. A. Extramundanidade e sobrenatureza: ensaios de ontologia infundamental. Desterro [Florianópolis]: Cul-
tura e Barbárie, 2018.
VELIKOVSKY, I. Terra em ebulição. Tradução de Aldo Bocchini Neto. São Paulo: Melhoramentos, 1981.
WALLACE, A. R. Darwinismo: uma exposição da teoria da seleção natural com algumas de suas aplicações. Tradução de
Antonio de Padua Danesi. São Paulo: Edusp, 2012.
WILSON, E. O. “Novas espécies”. In: E. O. Wilson. Diversidade da vida. Tradução de Carlos Afonso Malferrari. São
Paulo: Companhia das Letras, 2012, pp. 67-95.

Recebido: 20/11/2019
Aprovado: 20/07/2020
Publicado: 30/12/2020

274 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 251-274
ISSN: 2317-9570
DOI: https://doi.org/10.26512/rfmc.v8i2.29074

Ruptura, Dobra e Emenda do Eu: Esboço para uma Teoria da


Subjetividade
[Rupture, Fold and Amendment of the Self: An Outline for a Theory of Subjectivity]

Cássio Robson Alves da Silva*

Resumo: O impulso que direciona o eu para a objetividade do conhecimento é o mesmo


que se volta sobre si mesmo no interior da subjetividade. O propósito deste trabalho é
mostrar que esse movimento empreendido pelo indivíduo, ou seja, o desdobrar-se do
eu sobre si mesmo (a dobra), é sucedido pela atividade livre do pensamento na qual o
eu recupera (emenda) o que se perdeu na busca especulativa. Assim, tal recuperação
apresenta-se através de manifestações legítimas da subjetividade (dúvida e desespero),
as quais podem ser concebidas como a negatividade constituinte da existência humana.
Para tanto, confronta-se a filosofia do dinamarquês Kierkegaard, de caráter não sistemá-
tico, com outras concepções sistemáticas do real presentes na história da filosofia, tais
como as de Leibniz e o idealismo alemão, a fim de obter um esboço para se pensar a
questão do eu como abertura da subjetividade diante da tarefa do existir humano.
Palavras-chave: Subjetividade. Kierkegaard. Dobra. Emenda. Vazio.

Abstract: The impulse that directs the self towards the objectivity of knowledge is the
same as that which turns on itself within subjectivity. The purpose of this paper is to
show that this movement undertaken by the individual, that is, the unfolding of the self
on itself (the fold), is succeeded by the free activity of thought in which the self recovers
(amends) what was lost in the speculative search. Thus, such recovery is presented
through legitimate manifestations of subjectivity (doubt and despair), which can be
conceived as the negativity that constitutes human existence. To this end, it is a matter
of confronting the philosophy of the Danish Kierkegaard, of a non-systematic character,
with other systematic conceptions of the real present in the history of philosophy, such
as those of Leibniz’s and German idealism, in order to obtain an outline to think about
the self as an opening of subjectivity in the face of the task of human existence.
Keywords: Subjectivity; Kierkegaard; Fold; Amendment; Emptiness.

* Mestre e graduado em Filosofia pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Atualmente realiza doutorado na mesma instituição.
E-mail: cassioalvesdasilva13@gmail.com. ORCID: http://orcid.org/0000-0001-9014-3416.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 275-292 275
ISSN: 2317-9570
CÁSSIO ROBSON ALVES DA SILVA

Introdução ou a fissura inicial da sub-


jetividade

Há pontos obscuros, turvos, nebulosos,


espécie de mundo das ideias ainda em
gênese, em formação e que às vezes não
chegam nunca a desenvolver-se.
João da Cruz e Sousa

Há metafísica bastante em
não pensar em nada.
(Alberto Caeiro) Fernando Pessoa

A grande questão impulsionadora compreendida como afastamento gra-


deste trabalho pode ser colocada da se- dativo de uma noção abstrata da exis-
guinte maneira: como o indivíduo per- tência (Existentz) humana para poder-
cebe a si mesmo numa compreensão fi- mos, assim, aproximarmo-nos do con-
losófica da realidade? Observaremos, à teúdo concreto subjetivo e examinar a
luz de Kierkegaard, de sua contraposi- pluralidade de relações dessa dimen-
ção ao fazer sistemático1 da filosofia, o são.
que resta da existência humana após a O que restaria da subjetividade após
tentativa de conjugar a finitude com a a tentativa de abarcar a totalidade do
saída racional do homem em direção à real enquanto objetividade infinita?
totalidade infinita. Para falarmos da constituição do eu di-
Na esteira de Nietzsche e bem antes ante de tal questão, podemos dizer que
de Emil Cioran assimilar, no século XX, o horizonte do pensamento filosófico
os espasmos do homem em decorrência em geral está marcado por uma impor-
da vontade de transcendência, Kierke- tante definição consagrada por Aristó-
gaard já intuía as tensões do indivíduo teles e retomada por outros pensadores
imbuído nessa empreitada. Longe de ao longo da história da filosofia.
reconstituir os traços sistemáticos ex- O homem, no seu primeiro esforço
postos à crítica de Kierkegaard, tenta- inteligível, segundo Aristóteles (2007,
remos entender a subsistência do eu p. 116), sofre o impacto originário do

1 Sobre a relação entre sistema e subjetividade. Cf. GROSOS, 1996.

276 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 275-292
ISSN: 2317-9570
RUPTURA, DOBRA E EMENDA DO EU: ESBOÇO PARA UMA TEORIA DA SUBJETIVIDADE

ser por intermédio do intelecto pas- ciência empírica, “capaz de múltiplos


sivo (nous patétikos) e toda a realidade conhecimentos”. Para evitar equívocos,
mostra-se em seguida habilitada ao co- podemos dizer que o eu, tal como co-
nhecer através do intelecto ativo (nous loca Kant, está situado como subparti-
poiétikos). Ao contrário do que pode ção de uma partição englobante que é a
parecer, assimilar a ambiguidade desse relação entre finito e infinito, tempo e
nous não pressupõe, veremos, que o eternidade, etc. O que investigaremos
espírito (em grego: pneuma) já esteja é o efeito disjuntivo dessa bipartição, a
determinado. Esta bifurcação oportu- fim de evidenciar como isso se mani-
niza uma transição patética (em dina- festa na existência (Tilvaerelse) humana
marquês: Overgange patetiske)2 , pois e como os esforços reparadores de tal
não sabemos onde situar definitiva- disjunção podem ser muitas vezes insu-
mente o eu, uma vez que, após sofrer a ficientes.
ação do inteligível, o intelecto encontra- Podemos encontrar, na Monadologia
se também compelido ao tratamento de Leibniz, um equivalente desse pro-
abstrato enquanto atividade do pensa- cedimento inicial. A articulação dos
mento, podendo confundir-se com ou- termos distintos, seja em Aristóteles,
tras realidades. seja em Kant, ganha significado am-
Mas o que é o eu? Nos termos do pen- bíguo quando constatamos que “uma
samento moderno, poderíamos dizer alma não pode ler em si mesma senão
que o eu é a consciência de si, mas esta aquilo que está nela representado dis-
identificação é de todo modo disjuntiva, tintamente, e não poderia subitamente
pois o “‘sou consciente de mim mesmo desenvolver todas as suas dobras [replis],
é’”, segundo Kant (1995, p. 30), “um pois vão ao infinito” (LEIBNIZ, 2009,
pensamento que contém já um duplo p. 36, grifo nosso). Doravante, toma-
eu, o eu como sujeito e o eu como ob- remos, para além do ponto de partida
jeto (Objekt)”. Ainda que preservando kantiano acima mencionado, a identi-
a clássica cisão aristotélica, Kant (1995, dade entre pensar e ser3 , evocada por
p. 30, grifo do autor) vai além preci- Leibniz (2009, p. 30), como algo am-
samente pelo fato de que distingue o plamente problemático. No Pós-escrito,
“Eu, que pensa e intui, a pessoa” do obra para a qual voltaremos adiante,
“Eu do objeto que por mim é intuído” Kierkegaard (2013b, p. 130) mostra tal
ou, em outros termos, distingue o eu ló- problemática como abertura:
gico do eu psicológico, enquanto cons-

2 Kierkegaard refere-se à transição patética como contraponto às transições dialéticas, comuns na filosofia moderna (Pap. IV C
11-13). Ao longo do nosso texto esse contraste será evidenciado.
3 “Ao pensar em nós mesmos pensamos no Ser, na substancia, no simples e no composto, no imaterial e mesmo em Deus, conce-
bendo como aquilo que em nós é limitado, n’Ele é sem limites” (LEIBNIZ, 2009, p. 30).

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 275-292 277
ISSN: 2317-9570
CÁSSIO ROBSON ALVES DA SILVA

A ideia sistemática é o sujeito- mos até o limite as consequências dessa


objeto, é unidade de pensar e postura e abertura de espaço entre esses
ser; a existência, ao contrário, é termos acima sublinhada.
precisamente separação. Disso
não se segue de modo algum, A razão não para, pois o que
que a existência seja irrefle- havia sido determinado como
tida, mas a existência abriu es- sujeito, no primeiro momento,
paço entre sujeito e objeto, en- logo passa ser objeto num se-
tre pensar e ser. gundo momento e, portanto, de
fato desaparece e cede posto a
A resolução das determinações do outra coisa, a qual, por sua vez,
pensamento padece de uma dissolução não está destinada a permane-
interna capaz de um impulso produ- cer, senão a ceder lugar a outra
cente, gerador de estados inquietantes, coisa mais elevada. (SCHEL-
ainda que estes sejam conjecturados e LING, 1998, p. 107, tradução
logo represados dentro de um plano ri- nossa, grifo do autor).
gorosamente sistemático. Por isso, em
Leibniz (2009, p. 29), quando a ausên- Esta citação de Schelling ecoa for-
cia do distinto perturba a unidade sim- temente no jovem Johannes Clima-
ples4 , logo surgem as condições neces- cus, um dos pseudônimos de Kierkega-
sárias para que seja superada a verti- ard. Ainda profundamente influenci-
gem (vertige) oriunda dessa etapa turva ado pelo pensamento moderno (de que
do pensar. Em nossa discussão evitare- a filosofia começa pela dúvida), ele en-
mos assumir essa posição de modo de- tendia, na obra É preciso duvidar de tudo,
finitivo embora saibamos que, segundo de 1843, que essa passividade inicial
Schelling (1998, p. 23, tradução nossa), pode surgir da tentativa de conceber a
é preciso alegrar-se quando se oferece consciência de si mesmo como indeter-
qualquer ponto de unificação. Mas o minação diante da multiplicidade infi-
alento é momentâneo, visto que é ne- nita, no sentido de mantê-la aberta a
cessário esclarecer, com Kierkegaard toda exterioridade, inclusive a do eu
(1979, p. 200) e contra a cisão de Kant e pronto a ser objetificado.
a superação do atordoamento (étourdis- Ora, “a consciência do filósofo pre-
sement) leibniziano, que “aquele eu, do cisava, assim, abraçar as mais ver-
qual ele teria se despojado, [...] provoca tiginosas contradições: sua própria
agora sua tristeza.” Desse modo levare- personalidade, sua pequena emenda

4 Cf. LEIBNIZ, 2009, p. 29: “Donde se vê que, se nada tivéssemos de distinto e, por assim dizer, elevado e de um mais alto gosto
em nossas percepções, permaneceríamos em constante estado de atordoamento”.

278 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 275-292
ISSN: 2317-9570
RUPTURA, DOBRA E EMENDA DO EU: ESBOÇO PARA UMA TEORIA DA SUBJETIVIDADE

[Amendement] – a filosofia de todo o 53, grifo nosso). Vejamos, portanto,


mundo como desenvolvimento da filo- para quais direções aponta a emenda
sofia eterna” (KIERKEGAARD, 2003, p. em suas respectivas dobras internas.

As múltiplas dobras

Quid pro quo.


Pois EU é um outro.
Arthur Rimbaud

Gradativamente, percebe-se que a Não obstante corramos o risco de


subjetividade ganha conteúdo quando confundirmos o começo da subjetivi-
o eu concreto e singular coloca-se, tam- dade com o começo da filosofia, cons-
bém, como conteúdo diante da multi- tatamos que esse movimento empreen-
plicidade infinita cognoscível. Desse dido pelo indivíduo (em dinamarquês:
modo, o impulso que direciona o eu den Enkelte), ou seja, o desdobrar-se
para a objetividade do conhecimento do eu sobre si mesmo (a dobra), é su-
é o mesmo que se volta sobre si no in- cedido pela atividade livre do pensa-
terior da subjetividade. Todavia, a dú- mento através da qual o eu recupera
vida seria o primeiro elemento causa- (emenda) o que se perdeu no corte ori-
dor da ruptura qualitativa do pensa- ginário da dúvida, entendida aqui como
mento convertido em consciência de si incompatibilidade entre instâncias qua-
mesmo. Se para Kant (1995, p. 31, grifo litativamente opostas. Também tradu-
nosso), “toda observação psicológica in- zido por interrupção, o termo Afbry-
terna, por nós empreendida, nos pode delsen sugere que a questão do começo
servir de prova e exemplo de que isso é como dúvida renove a cada instante a
assim, pois se exige que [...] afectemos o consciência de si enquanto singulari-
sentido interno – o que pode ir até a fa- dade concreta, “como um homem que
diga”, para Climacus (2003, pp. 64-65, empurra morro acima uma carga pe-
grifo nosso), por outro lado, tudo se da- sada muitas vezes sucumbe a peso, de
ria de modo que, diz ele ironicamente, modo que seu pé escorrega e a carga
“quanto mais importante aquele que re- rola morro abaixo [...]”, distanciando o
pete a proposição, mais profundo é o indivíduo de uma concepção abstrata
corte [em dinamarquês: Afbrydelsen]”, de si mesmo (KIERKEGAARD, 2003, p.
ou ainda, que “a proposição foi confir- 54).
mada pela repetição, mas confirmada O sentido interno do qual falava
justamente para separar”. Kant, pode também ser denominado de

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 275-292 279
ISSN: 2317-9570
CÁSSIO ROBSON ALVES DA SILVA

interioridade, mas com a diferença de 2003, p. 56), e tal estado de coisas en-
que, em termos kierkegaardianos, não contraria conformação apenas no sis-
se exclui o aspecto heterogêneo de cada tema monadológico de Leibniz (2009,
indivíduo em função da homogenei- p. 41) “sendo cada Espírito como uma
dade de uma consciência pura. Sobre pequena divindade em seu domínio”
isso objetaria Vigilius Haufniensis, ou- ou no sistema hegeliano. De modo bas-
tro pseudônimo de Kierkegaard (2010, tante assertivo Kierkegaard (2010, pp.
p. 149), afirmando, na obra O Conceito 150-151) resume o que até agora disse-
de Angústia, de 1844, que essa fissura mos da seguinte maneira:
kantiana, causada pela determinação
da reflexão na produção de um eu ló-
O conteúdo mais concreto que
gico e um eu psicológico, é, na verdade,
a consciência pode ter é a cons-
o esquema para exclusão ou a ausên-
ciência de si, do próprio in-
cia da interioridade, pois “a infelicidade
divíduo, não a autoconsciên-
mesmo do saber consiste em que tudo
cia pura, mas a autoconsciência
se tornou terrivelmente grandioso” ou,
que é tão concreta que nenhum
na melhor das hipóteses, para usar as
autor, nem o de vocabulário
palavras de Adorno (2010, p. 347),
mais rico, nem o mais hábil nas
tornou-se uma “interioridade sem ob-
descrições, jamais conseguiu
jeto”.
descrever um único tipo des-
A partir dessa crítica, Kierkegaard,
ses, enquanto que cada um dos
por meio de seus pseudônimos, almeja
homens é um deles. Esta au-
impedir que o eu também se eleve ao ní-
toconsciência não é contempla-
vel de subjetividade abstrata dado que,
ção, pois quem acredita nisso
dessa forma, – na saída de si como ten-
ainda não compreendeu a si
tativa de abarcar a multiplicidade in-
mesmo, já que vê que ele pró-
finita – “seria preciso, afinal que indi-
prio ao mesmo tempo está em
víduo fosse onisciente e o mundo esti-
devir, e portanto não pode ser
vesse pronto” (KIERKEGAARD, 2003,
algo concluso para a contem-
p. 56). A dificuldade de aceitar a cons-
plação. Esta autoconsciência é
ciência pura como inteligibilidade ab-
portanto ato [...].
soluta tem como consequência direta
a aceitação da interioridade do indi-
víduo. Inversamente e de modo limi- Desse modo, tem razão Adorno
tador, isso se dá em virtude de que (2010, pp. 169, 179, grifo nosso)
“tornar-se consciente do eterno em toda quando diz que:
concreção histórica [...]” está “reser-
vado à divindade” (KIERKEGAARD,
Se em Kant, ‘a consciência em

280 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 275-292
ISSN: 2317-9570
RUPTURA, DOBRA E EMENDA DO EU: ESBOÇO PARA UMA TEORIA DA SUBJETIVIDADE

geral’ insiste, para aquém da ideia de uma existência de Deus tem,


fratura [em alemão: Bruches], logo que é colocada como tal para a
como garantia da ontologia, Ki- liberdade do indivíduo, uma onipre-
erkegaard renuncia à validade sença que para a individualidade de-
científica de ‘resultados’ e con- licada tem alguma coisa de constrange-
trasta com a causalidade da ex- dora” e, justamente por isso, lhe falta
periência exterior a consciência interioridade. Numa outra direção, re-
particular do ser humano indi- conhecendo a malfadada pretensão de
vidual como consciência con- se efetivar enquanto espírito absoluta-
creta. mente determinado (Deus), o homem é,
no entender de Schelling (1991, p. 44),
o ser “dotado de si-mesmo e de um ca-
Ainda retomando as inflexões da ráter específico (cindido de deus) e pre-
consciência acima mencionadas, pode- cisamente essa ligação constitui a per-
mos dizer que a instabilidade do espí- sonalidade.” Aqui, o ponto de partida
rito, além de ser sentida pela ausência do eu é marcado por uma alter-ação da
do eu, sofre um déficit ontológico irre- personalidade como contraste dialético
parável, cujo pathos alcança a lingua- diante de si mesmo e diante de Deus.
gem, bem como o âmbito ético. A não Só poderíamos falar de um eu ativo
correspondência imediata entre possi- se, unilateralmente, não houvesse a im-
bilidade e necessidade, entre ação e posição desesperada que faz com que
ideia, afeta a consistência do eu e o o eu seja mais do que se é. Em úl-
mantém no lastro da ruptura entre su- tima instância, ao relacionar-se con-
jeito e objeto de tal modo que, “em rela- sigo próprio, diz Kierkegaard através
ção à possibilidade, a palavra é o pathos de Anti-Climacus (1979, p. 233), em
supremo” e “em relação à realidade efe- Doença para a morte, de 1849, “sem
tiva a ação é o pathos supremo” (KIER- levar o seu desespero [Fortvivlelse] ao
KEGAARD, 2016, p. 107, grifo do au- ponto de, experimentalmente, se erigir
tor). em Deus, nenhum eu derivado pode,
Com efeito, Kierkegaard (2010, p. contemplando-se, dar-se por mais do
148), ao assumir a individualidade con- que é”. O eu passivo, da mesma forma,
creta, reforça o distanciamento radical também desespera, pois vai confinar-se
entre tempo e eternidade, finito e in- em sua sujeição interior. Em ambos os
finito, homem e deus, cuja diferença casos a constituição do eu poderia ser o
ontológica se exprime de duas manei- resultado de uma ação recíproca5 ou de
ras: numa direção, para o indivíduo, “a

5 A ação recíproca é uma categoria predominante no idealismo alemão, geralmente utilizada para explicar a relação causa e efeito
entre determinados termos.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 275-292 281
ISSN: 2317-9570
CÁSSIO ROBSON ALVES DA SILVA

uma receptividade mútua de instâncias a ação recíproca, é pura abstração e não


qualitativamente opostas. evitaria, do ponto de vista do eu, a uni-
Todavia, a esse respeito, Kierkega- lateralidade do desespero que se perde
ard critica a noção de ação recíproca no infinito, cujo risco de personificação
pelo fato desta ser apenas uma cate- faria o eu, transparente de si próprio,
goria relacional operada no âmbito da mergulhar até Deus. Assim, “o unila-
abstração. As consequências dessa di- teral rejeita, clara e indefinidamente,
nâmica dar-se-iam, segundo Kierkega- o que não quer possuir”, porque de-
ard, de modo que a consciência inde- sespera voltando a si de mão (espírito)
terminada diferenciar-se-ia da dialética vazia ou, o que é pior, como adiante
quanto aos fatores da síntese do eu. É veremos, porque “a unilateralidade do
aqui que o eu se desespera e o surgi- pensamento produz uma aparência de
mento da ação recíproca não passa de se possuir tudo” (condição prometeica)
uma unilateralidade da razão. Os me- (KIERKEGAARD, 2016, p. 66):
andros desse desenvolvimento podem
ocorrer de duas maneiras. Em primeiro Em toda vida humana que se
lugar, para Kierkegaard (1979, p. 195), julga já infinita, e o quer ser,
“o homem é espírito”, porém, indaga cada instante é desespero. Por-
ele, “o que é espírito? É o eu”. Em que o eu é uma síntese de fi-
segundo lugar, por indicar o espírito nito que delimita e de infi-
como o núcleo do eu, traz consigo tam- nito que ilimita. O desespero
bém a sua condição “como relação, que que se perde no infinito é por-
não se estabelece com qualquer coisa de tanto imaginário, informe; por-
alheio a si, mas consigo própria” (KIER- que o eu não tem saúde e não
KEGAARD, 1979, p. 195). Ao trazer a está livre do desespero, senão
relação para interioridade, a síntese im- quando, tendo desesperado,
plica um dos termos dialeticamente e transparente a si próprio, mer-
“sob este ponto de vista, o eu ainda não gulha até Deus. (KIERKEGA-
existe”, sendo o desespero “a discordân- ARD, 1979, p. 208).
cia interna duma síntese cuja relação
diz respeito a si própria” (KIERKEGA-
ARD, 1979, p. 195). Trata-se de algo sutil e ao mesmo
Ora, se o eu na tentativa de tornar-se tempo problemático, pois esta saída in-
si próprio se desespera na infinidade de finitizada – sendo ela delegada exclu-
uma consciência em geral, nega a si en- sivamente pela vontade – poderia, por
quanto finito em função de uma trans- um lado, como vimos, fazer com que
parência que o faria mergulhar no ab- o eu mergulhasse até Deus e, por ou-
solutamente infinito. Porém, isso, para tro lado, tal mergulho é justamente a
impossibilidade de identificação do eu

282 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 275-292
ISSN: 2317-9570
RUPTURA, DOBRA E EMENDA DO EU: ESBOÇO PARA UMA TEORIA DA SUBJETIVIDADE

com tal Ser, caso contrário este movi- indefinidamente a essas atividades “se
mento configuraria a irrupção do mal perdeu no imaginário” e “todo eu corre
ou da loucura (o mal da razão?). igualmente o risco de nele se perder,
Num outro momento, Kierkegaard e, abandonando-se voluntariamente, se
associa a expansividade da reflexão aos deixe levar” (KIERKEGAARD, 1979, p.
momentos mais variados da intelecção 209).
e o faz, seguramente, recuperando a É neste regresso a si que pode resi-
importância da imaginação nos enla- dir a possível validade da assertiva de
ces da filosofia de Fichte (1984, p. 114) Adorno de que o eu concreto de Kier-
na qual o filósofo alemão atesta que a kegaard encontraria sentido numa prá-
“imaginação é uma faculdade que os- xis subjetiva. Nesse sentido, pode-se
cila no intermédio entre determinação tomar a interioridade como núcleo de
e não-determinação, entre finito e infi- onde parte a decisão da existência, não
nito”. Kierkegaard (1979, p. 208), não como mero intermédio “dado que não
por acaso, declara reconhecimento da lhe é permitido extrair as suas determi-
imaginação dizendo que “ela é a refle- nações do mundo objetivo” e, por isso,
xão que cria o infinito” e nisso o “velho “ele vem a ser definido de dentro para
Fichte tinha razão”. fora a partir da mesma ‘interioridade’
No entanto, essa concessão à qual ele deveria atribuir ‘sentido’”
6
(STEWART, 2017, p. 16) é apenas par- (ADORNO, 2010, pp. 175-176). Impac-
cial, considerando que Kierkegaard não tado pelo seu contraste implacável com
leva a cabo a inteireza do sistema fichte- a objetividade exterior, o eu, “como si
ano. Entretanto, os momentos são gra- mesmo, permanece privado de determi-
dativos e o eu acaba sendo um produto nação; como ponto de corte [em alemão:
desta oscilação, dado que é “o imaginá- Schnittpunkt] das linhas conceituais, ele
rio em geral que transporta o homem nunca vem a ser concebido como este
ao infinito, mas afastando-o apenas de si-mesmo.” (ADORNO, 2010, p. 177,
si próprio e desviando-o assim de re- grifo nosso).
gressar a si próprio” (KIERKEGAARD, Por outro lado, é por não ser deter-
1979, p. 209). O indivíduo é para Ki- minável como algo puramente exterior
erkegaard não apenas a experiência da que a interioridade se instaura como
imaginação submetendo, seja pela es- realidade concreta fornecendo-lhe uma
peculação filosófica, seja pela filosofia determinação específica, aquém do for-
transcendental, o querer, o conhecer malismo abstrato. Em contrapartida,
ou o sentir; o indivíduo que se entrega isso ocorre em virtude de que, num tra-

6 Jon Stewart (2017, p. 16) lembra que “Kierkegaard tem sido saudado tanto como crítico do Idealismo Alemão quanto como
seguidor dele”.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 275-292 283
ISSN: 2317-9570
CÁSSIO ROBSON ALVES DA SILVA

tamento puramente conceitual do su-


jeito, pensar a si mesmo é já conceber-se
Mais do que circunscrever esse mo-
como objeto habilitado à identificação e
vimento numa mera tautologia, o eu
este é metodologicamente, desde o seu
percebe-se a si mesmo [Self ] sem a ne-
mais tenro surgimento, colocado como
cessidade de recorrer extrinsecamente
algo desconhecido, de natureza quase
à instância niveladora de uma subjeti-
inapreensível. Nesse instante, o eu é
vidade abrangente. Portanto, vale res-
dissociado de si mesmo para, então, as-
saltar, novamente com Adorno (2010,
sumir uma forma objetificada e receber
p. 175), que não somente “a virada de
passivamente a condição de realidade
Fichte ao ato como unidade de teoria e
incógnita submetida aos procedimen-
práxis, conduz para fora da tautologia”.
tos lógicos e suas respectivas inferên-
cias genéricas. No entanto:
O progresso, neste caso [...]
está em que o desespero já não
O existente não é um X abstrato
provém sempre dum choque,
que realiza algo e depois vai
dum acontecimento, mas pode
mais além [...]; mas o existente
ser devido a essa reflexão so-
se torna concreto no vivenciado
bre si próprio, e não é então
e, quando vai mais além, tem
uma simples submissão pas-
isto consigo e pode perdê-lo a
siva a coisas exteriores, mas, em
qualquer instante; ele tem junto
parte, um esforço pessoal, um
a si, não do modo como a gente
ato. Manifesta-se aqui, efeti-
tem algo no bolso, mas em vir-
vamente um certo grau de re-
tude desta coisa determinada,
flexão interna, e portanto um
ele é o que é de modo mais espe-
regresso ao eu; e esse começo
cificamente determinado, e se a
de reflexão inicia a ação de es-
perdesse perderia sua própria
colha pela qual o eu se aper-
determinação mais específica.
cebe da íntima diferença com o
Pela decisão na existência, um
mundo exterior. (KIERKEGA-
existente, mais especificamente
ARD, 1979, p. 224).
determinado, tornou-se o que
é; se deixa isto de lado, não é
como se perdesse algo, de modo Com Kierkegaard, evidentemente,
que não se perdesse a si mesmo embora não se trate de uma determina-
e só tivesse perdido algo, mas ção absoluta, a importância dessa deter-
então perdeu a si mesmo e deve minação específica tem como caracte-
começar do começo. (KIERKE- rística marcante uma condição prome-
GAARD, 2016, p. 204). teica resultante dos desdobramentos do

284 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 275-292
ISSN: 2317-9570
RUPTURA, DOBRA E EMENDA DO EU: ESBOÇO PARA UMA TEORIA DA SUBJETIVIDADE

eu na busca por ser si mesmo. Assim, que “o postulado do amor e da fé soa


os impasses ontológicos presentes nesse mais agradável e mais suave do que
procedimento já foram evidenciados, uma exigência maravilhosa de uma in-
quais sejam, o risco de uma identifica- tuição transcendental” (2003, p. 118).
ção com Deus na possível transparência É possível que Kierkegaard tenha escu-
absoluta de si próprio ou ainda a opaci- tado tal recomendação, pois em obras
dade igualmente absoluta de modo que centrais (As obras do Amor e Migalhas
o mal seja engendrado como demên- Filosóficas, por exemplo) o filósofo di-
cia demoníaca tendo como base a “in- namarquês chega a esboçar tais postu-
surreição egoica da existência humana” lados, os quais se mostrariam válidos
(GROSOS, 1996, pp. 16-17) decorrente na confrontação das antinomias e pa-
do fracasso da identidade (BUTLER, radoxos por parte do indivíduo confi-
2018). O caráter demoníaco é inerente nado entre duas estruturas (finito e in-
ao “pensar que a eternidade poderia finito, tempo e eternidade, verdade e
lembrar-se de o privar da sua miséria” não-verdade, possibilidade e necessi-
(KIERKEGAARD, 1979, p. 235). Po- dade, etc.). Malgrado isto, nosso pro-
rém, sabe-se que “o indivíduo não deixa pósito se detém em momentos metodo-
de ser um humano, não se despoja do logicamente anteriores da obra de Kier-
hábito da finitude” (KIERKEGAARD, kegaard e propõe analisar as insuficiên-
2016, p. 203). cias e intermitências do homem diante
Kierkegaard (2016, p. 203) sugere dessas contradições ontológicas, isto é,
que é necessário abandonar o religi- antes da afirmação de qualquer certeza
oso (enquanto orientação para Deus) na absoluta conquistada pela fé, pelo amor
crise da doença, embora saiba que a do- ou pela razão.
ença não seja para a morte. Se pela von- Não seria demasiado evocar – mesmo
tade o indivíduo não se torna o que se é, de modo anacrônico – a prosa poé-
sob pena de engendrar o mal ou a lou- tica de Rimbaud e tomar para si a se-
cura, se não se constitui efetivamente guinte exortação: “Cautela, meu espí-
enquanto eu sob pena de estar continu- rito. Nada de projetos violentos de sal-
amente desesperado, qual é, todavia, a vação” (RIMBAUD, 1998, p. 181). Não
fonte de justificação da existência do eu estariam perdendo de vez a esperança
fora ou pelo menos distante da repre- na salvação aqueles que negam a vio-
sentação de Deus? lência, uma vez que é dos violentos o
Hegel, no seu escrito sobre a Dife- Reinos dos Céus?7 Por ora, essa questão
rença entre os sistemas filosóficos de Fi- pode permanecer suspensa.
chte e Schelling (Differenzschrift), atesta Para o que nos importa, por Kier-

7 Mt 11, 12.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 275-292 285
ISSN: 2317-9570
CÁSSIO ROBSON ALVES DA SILVA

kegaard não circunscrever o indiví- condições para que a subjetividade con-


duo concreto, o eu, suprassumido como sútil possa reestabelecer internamente
etapa intermediária de um sistema filo- elos perdidos a partir de vincos corroí-
sófico totalizante, é que Michael Theu- dos pelas desilusões especulativas. Essa
nissen (2005) denomina-o como pre- concepção converge com o que Henri-
cursor de um anteprojeto de moderni- Bernard Vergote (1982, p. 318, tra-
dade. É bem verdade que ele concentra dução nossa) afirma sobre a passagem
sua análise exclusivamente na questão do estético para o ético na filosofia de
da melancolia (em alemão: Schwermut; Kierkegaard, entendendo-a como mu-
em dinamarquês: Tungsind) presente dança de posição do espírito, “modifi-
nos primeiros escritos de Kierkegaard, cando”, assim, “correlativamente a po-
mas isto retrata o sentimento negativo sição de todas as constituintes da per-
em relação ao enrijecimento conceitual sonalidade”. Inequivocamente, o im-
da época profundamente influenciada pulso dessa inflexão, por exemplo, fez
pelo idealismo alemão. com que o guarda-livros de Frater Taci-
Numa carta de 16 de janeiro de 1842 turnus trocasse, na elasticidade de sua
ao amigo Emil Boesen, Kierkegaard ideia fixa, a razão pela loucura (VALLS,
(1956, p. 104) já expressava seu descon- 2004, p. 49); ou que o jovem Johannes
tentamento com desenvolvimentos dia- Climacus, entusiasmado pelo pensar,
léticos, base metodológica para a cons- colocasse tudo em jogo, quer se tornasse
trução de sistemas filosóficos. Neste pe- sábio, quer se tornasse louco (KIERKE-
ríodo, via o estético como seu “verda- GAARD, 2003, p. 94).
deiro elemento”. Por estético entenda-
se o movimento através do qual “um in- A psicologia kierkegaardiana
divíduo rejeita a si mesmo para salvar não busca, no entanto, nula-
algo grande”. O complemento não ne- mente rivalizar com as ciên-
cessariamente sequencial, o ético, dar- cias empíricas. Mas ela almeja
se-ia, então, quando o indivíduo “de- completá-las reinterpretando a
siste de tudo para salvar a si mesmo” parcialidade de seus resultados
(KIERKEGAARD, 2016, p. 108). numa visão de homem como
De acordo com Deleuze (2013, p. 31), animal metafísico. (VERGOTE,
a natureza da dobra possui um compo- 1982, p. 319, tradução nossa).
nente, um “elemento genético ideal da
curvatura variável” que é a inflexão, ou
seja, um redirecionamento qualitativo Contudo, os esforços de Kierkegaard
constituindo, assim, o movimento das não estão direcionados, por assim dizer,
sinuosidades existentes na dobra. Em à construção de uma metafísica stricto
outros termos, essa inflexão fornece as sensu. Isto o faz distanciar-se paulatina-
mente do projeto de metafísica subje-

286 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 275-292
ISSN: 2317-9570
RUPTURA, DOBRA E EMENDA DO EU: ESBOÇO PARA UMA TEORIA DA SUBJETIVIDADE

tiva de Fichte e também do empirismo perado de determinação – e ainda não


metafísico presente no último período sendo possível a determinação pela de-
da obra de Schelling, com sua Filosofia cisão concreta –, adequar-se apressada-
da Revelação.8 Nesta, Schelling enfatiza mente aos primeiros arquétipos forne-
a importância da filosofia positiva na cidos pela abstração. Os representantes
justificação da doutrina do cristianismo do idealismo alemão transferem a não
e é aqui onde reside a decepção de Ki- correspondência direta entre os termos
erkegaard, ouvinte das aulas do filósofo opostos para uma zona de não deter-
alemão em Berlim. minação, cujo estatuto ontológico seria
Enfim, para adiar a salvação e para absorvido por uma contraimagem (em
reforçar, como síntese, o apelo antinô- alemão: Gegenbild), em Fichte (2014,
mico da própria existência humana, Ki- p. 36), ou por um contradivino (em ale-
erkegaard nos faz acreditar que “in- mão: widergöttliche) em Schelling (KI-
dependentemente de todo saber a res- ERKEGAARD, 2014, p. 144). Em Kier-
peito de si mesmo”, o existir se cons- kegaard, tal zona de não determinação
titui como desespero, estando o ho- pode irromper como hermetismo.
mem direcionado para o finito ou para O problema é constantemente reno-
o infinito (ADORNO, 2010, p. 186). vado, pois o que se apresenta como re-
Entretanto, sabe-se que o direciona- solução é uma emenda, um mero fecha-
mento para este último prefigura as mento, fazendo com que o eu se encerre
consequências da atitude prometeica no vazio do hermetismo; “então, ou o
dentro do arranjo subjetivo em relação seu desespero condensa-se numa forma
à realidade objetiva, podendo surgir superior, mas sempre hermética, ou
como frequente reconciliação formal, desesperar-se-á destruindo o disfarce
como emenda, sem, no entanto, jamais exterior que como incógnito [como um
constituir-se enquanto conteúdo válido X] envolvia sua vida” (KIERKEGAARD,
para pensar e solucionar as contradi- 1979, p. 230).
ções do indivíduo com o real. Por força de oposição, sendo este her-
O que deriva dessa concepção não é metismo definitivo, “aqui rouba-se o
o resultado de possíveis nivelamentos fogo roubado dos deuses por Prome-
ou conformidades obtidas na aceita- teu... aqui rouba-se a Deus a ideia de
ção de si mesmo, pois estas poderiam que ele nos contempla” (KIERKEGA-
em última instância, pelo anseio deses- ARD, 1979, p. 232). No que concerne

8 Aliás, numa outra carta ao seu amigo de infância Emil Boesen, desta feita em 6 de fevereiro de 1842, Kierkegaard relatava não
estar satisfeito com os rumos tomados por Schelling. Cf. KIERKEGAARD, 1956, p. 104 e SCHELLING, 1998, pp. 120-122. Sabe-se
que entre novembo de 1841 e fevereiro de 1842 Kierkegaard fora ouvinte nas aulas de F. W. J. Schelling em Berlim, onde o filósofo
alemão ministrava suas lições sobre a Filosofia da Revelação (Spätphilosophie). As anotações do filósofo dinamarquês foram preserva-
das e designadas originalmente como Apontamentos sobre a Filosofia da Revelação de F. W. J. Schelling (Notesbog 11. F. W. J. Schellings
forelæsniger over åbenbaringsfilosofien).

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 275-292 287
ISSN: 2317-9570
CÁSSIO ROBSON ALVES DA SILVA

a qualificação subjetiva, o eu acaba por ção nossa).


desvanecer-se no nada por encerrar pe- Trata-se, em suma, de uma tranquili-
remptoriamente a relação com toda e dade sepulcral, visto que “cada homem
qualquer exterioridade; fecha-se, por- é um mundo inteiro de representações
tanto, à multiplicidade infinita, ao ge- que estão sepultadas na noite do Eu”
ral, a Deus e a qualquer tipo de nive- (HEGEL, 2005, p. 79), doravante, como
lamento imposto abstratamente (soci- vimos, convertida em desespero. A ma-
edade, história-universal, rebanho, gê- nifestação deste desespero, editada por
nero humano, massa, eternidade). Ab- Victor Eremita, consta nos papéis de
sorvido pelo universal, o indivíduo luta A, outro pseudônimo de Kierkegaard
para não alienar-se de si mesmo, em- (2013a, p. 60), como pathos existencial:
preendendo dobras e mais dobras, para, “Miserável destino! [...] entedias-me
enfim, efetivar a emenda e se esta “não acaba por ser, entretanto o mesmo, um
cicatrizar, ele salvaguarda a cada ins- idem per idem [o mesmo pelo mesmo]”.
tante uma probabilidade de salvação” Por fim, antes de encaminharmos nosso
(KIERKEGAARD, 1979, p. 228). trabalho para conclusão, é preciso bre-
A essa excepcionalidade prometeica vemente dizer que até o valor de ver-
acrescenta-se a constante suscetibili- dade torna-se ambíguo quando relacio-
dade ao vazio. Ora, o indivíduo, sempre nado com a subjetividade.
estranho à prolixidade da razão provo-
cada pela ruptura entre sujeito-objeto,
sente-se absorto numa universalidade Quer se defina verdade, mais
abstrata. Tornando-se redutível ao ni- empiricamente, como concor-
velamento, o indivíduo corre o risco de dância do pensar com o ser, ou,
perder a si mesmo. mais idealisticamente, como
Na Enciclopédia das Ciências Filosó- concordância do ser com o pen-
ficas, Hegel (2005, p. 79) afirma que sar, importa, em qualquer dos
o “Eu é esse vazio, o receptáculo para casos, que se dê minuciosa aten-
tudo e para cada um, para o qual tudo ção ao que se entende por ser e
é”. Entretanto, aqui, objetaria Kier- que ao mesmo tempo se atente
kegaard, “o indivíduo já não pertence a que o espírito humano consci-
a Deus, nem a si mesmo, nem a sua ente não seja atraído com en-
amada, nem a sua arte, nem a sua ci- godos para o indeterminado,
ência” e “sabe que está pertencendo a não se venha a tornar fantas-
uma abstração”, pois o “nivelamento é ticamente alguma coisa tal que
o equivalente reflexivo da Modernidade nenhum ser humano jamais foi
à ideia de destino na Antiguidade” (KI- ou pode ser, um fantasma com
ERKEGAARD, 2012, pp. 60-61, tradu- o qual indivíduo se ocupa ocasi-
onalmente, sem contudo jamais

288 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 275-292
ISSN: 2317-9570
RUPTURA, DOBRA E EMENDA DO EU: ESBOÇO PARA UMA TEORIA DA SUBJETIVIDADE

elucidar para si mesmo. (KIER- varo Valls alerta, o fato de Adorno in-
KEGAARD, 2013b, p. 197). correr apressadamente na tese de que
Kierkegaard seria um idealista, reside,
Além de remeter à relação entre pen- por um lado, na máxima kierkegaar-
sar e ser evocada em nossa introdução, diana de que “a subjetividade é a ver-
a questão da verdade e da não-verdade dade”, mas, por outro lado, apoia-se no
incide sobre o indivíduo a mesma ten- equívoco de ocultar em sua tese que “a
são dialética presente no interior da for- subjetividade [também] é não verdade”
mação do espírito sem, no entanto, fixar (VALLS, 2017, p. 243). Uma vez mais –
na ideia nenhum dos termos. Para es- é necessário insistir nisso – as relações
clarecermos isto, convém, já que estive- entre os termos qualitativamente opos-
mos até aqui em constante diálogo com tos mantêm-se disjuntiva, não obstante
Adorno, fazer uma ressalva. Como Ál- haja esforços unificadores.

A emenda do eu à guisa de conclusão

[...] Se tivéssemos a coragem de olhar


cara a cara as dúvidas que concebemos
sobre nós mesmos, nenhum de nós
proferiria um “eu” sem envergonhar-se.
Emil Cioran

Como a vida é oca e vazia de significação!


Søren Kierkegaard

Em toda discussão empreendida até demarcações sistemáticas, optou-se por


aqui buscou-se evitar o que, através de evidenciar os “limiares de intensidade
Herbert Marcuse (2011, p. 218), conhe- ontológica” (GUATTARI, 2006, p. 46) e
cemos como “o tratamento terapêutico mostrar como o indivíduo se relaciona
do pensamento [therapeutic treatment of com eles.
thought]” para, assim, subverter inter- Buscamos, ainda, articular o desem-
namente a lógica conformista e con- penho do eu diante da ruptura (fissura)
clusiva de alguns sistemas filosóficos. originária do espírito entre sujeito-
Tal estratégia tornou-se possível, pois, objeto e denominamos isso de dobra.
ao invés de operarmos subordinados às Por conseguinte, optou-se por nomear

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 275-292 289
ISSN: 2317-9570
CÁSSIO ROBSON ALVES DA SILVA

emenda os possíveis reparos e con- da tentação de erigir uma metafísica


sequências daquela fissura, bem como para resolvê-las. Sobre esse espectro
das dobras empreendidas. Percebemos metafísico, vale ressaltar que “a orienta-
que a dobra, como sobreposição dos ção para Deus dota o eu de infinito, mas
termos outrora apartados converteu- essa infinitização, neste caso, quando o
se numa elasticidade dialética. É vá- eu for devorado pelo imaginário, ape-
lido realçar, porém, que tais esforços nas conduz o homem a uma embria-
acabavam por hipostasiar, em algum guez do vácuo” (KIERKEGAARD, 1979,
momento, uma das instâncias quali- p. 209). Para avançarmos na discussão,
tativamente opostas e o eu, o indiví- nossos argumentos perpassaram pela
duo, comprimido entre elas, mecanica- contraposição de Kierkegaard ao idea-
mente estava impelido a determinar seu lismo alemão e aos seus projetos meta-
próprio conteúdo sem, no entanto, po- físicos, cuja tentativa de reconciliação
der identificar-se completamente com sistemática dos termos apartados não
ele. Em nossa tese, o eu, contorcendo- evitou, todavia, que as contradições in-
se nesse procedimento, cai no vazio de cidissem sobre o indivíduo as mais va-
si mesmo, não consegue destituir deus riadas manifestações subjetivas, dentre
(ou pelo menos uma saída prometeica) as quais destacamos o desespero.
e, como corolário deste assomo, engen- Por essa razão, no século seguinte,
draria o mal ou a loucura (em dina- Deleuze (2018, p. 127), afirmaria que
marquês: Galskab). “a saída do kantismo não está em Fichte
Vinculamos o início de nossa discus- ou em Hegel, mas somente em Hölder-
são aos importantes empreendimentos lin, que descobre o vazio do tempo puro
de Aristóteles e, sobretudo, de Kant. [eternidade?] e, nesse vazio, o afasta-
Deste último extraímos o prius de nossa mento contínuo do divino, a rachadura
discussão atribuindo-lhe a ruptura for- [fêlure] prolongada do eu e paixão cons-
mal e sem precedentes do eu lógico e titutiva do Eu”. Poderíamos, pelo que
do eu psicológico. Ao tentarmos arti- vimos principalmente nos momentos
cular os reparos dessa ruptura, trouxe- derradeiros deste artigo, sem grandes
mos necessariamente Kierkegaard para prejuízos hermenêuticos atribuir a pa-
o debate a fim de fazer com que o eu tente desta descoberta do vazio também
não orbitasse longe do seu ponto gra- à Kierkegaard. Diante disto, com Julia
vitacional que é, para o filósofo dina- Watkin (1990, p. 73), é correto dizer
marquês, a existência concreta de cada que o filósofo dinamarquês:
indivíduo. Nesse sentido, Kierkegaard,
por mais longe que estivesse de Kant,
aproximava-se dele por assumir as an- Não tenta fornecer uma geogra-
tinomias e estava sempre acompanhado fia ou metafísica do Reino ce-
leste transcendente. Como um

290 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 275-292
ISSN: 2317-9570
RUPTURA, DOBRA E EMENDA DO EU: ESBOÇO PARA UMA TEORIA DA SUBJETIVIDADE

possível destino para cada in- resolvido; opgive indica que se entrega,
divíduo, propõe um estado real se renuncia algo (noget Opgivet) ou de-
de estar em frente ao reino da siste de algo. Isto é, ao resignar-se no re-
imanência em que ele [Kierke- torno das frustrações metafísicas, o in-
gaard] e seus pseudônimos in- divíduo entrega algo que não possui (a
dicam e sublinham a sua exis- si mesmo), pois continuamente está em
tência factual. vias de desaparecer no reino do vazio
da exterioridade. O eu não é um dom
Resta-lhe explorar sua interioridade (gave). Precisamente por isso – por se
como separação radical e o que ocorre resignar em detrimento de algo maior –
é o fechar-se sobre si mesmo no conten- é que a tarefa (opgave) da subjetividade
tamento do vazio, ainda que não defini- está posta e o eu coloca-se constante-
tivo. Percebemos que à emenda cum- mente como problema a ser resolvido:
pre relativizar todos os desdobramen- emenda da vacuidade não cicatrizada.
tos até que o eu, além de isolar-se, possa Homens ocos no reino do vazio. Kier-
também impor o mesmo isolamento, a kegaard mostrou-se original por explo-
mesma passagem ao nada às demais rar e deflagrar a vacuidade como mo-
instâncias, inclusive a Deus. Só pode- mento mesmo da tensão dialética do
mos falar de emenda caso esta seja en- eu. Tal originalidade, de tão irrever-
tendida como o envolvimento da vacui- sível, mantém suas irradiações no en-
dade sentida numa alteridade radical lace de uma subjetividade particionada
marcada pela resignação no/do vazio. pela adequação às exigências sistemáti-
Em dinamarquês, a palavra resignar cas e dicotomias tradicionais, ao mesmo
(opgive) guarda semelhanças morfológi- tempo que tenta uma reelaboração ante
cas e proximidades semânticas com a os insucessos desses mesmos procedi-
palavra tarefa (opgave), problema a ser mentos.

Referências
ADORNO, Theodor. Kierkegaard. Konstruktion des Ästhetischen. Frankfurt: Suhrkamp, 1962.
_____. Kierkegaard: A construção do estético. Tradução: Álvaro Luiz Montenegro Valls, São Paulo: Unesp, 2010.
ARISTÓTELES. De anima. Tradução: Maria Cecília Gomes dos Reis. São Paulo: Editora 34, 2007.
BUTLER, Judith. La desesperacíon especulativa de Søren Kierkegaard. Tradução: Leandro Sánchez. Medelín: Ennegativo,
2018.
CIORAN, Emil. Breviário de decomposição. Tradução: José Thomaz Brum. Rio de janeiro: Rocco, 2011.
_____. Nos cumes do desespero. Tradução: Fernando Kablin. São Paulo: Hedra, 2012.
DELEUZE, Gilles. A Dobra. Leibniz e o Barroco. Tradução: Luiz Orlandi. Campinas: Papirus Editora, 2013.
_____. Diferença e Repetição. Tradução: Luiz Orlandi e Roberto Machado. Rio de Janeiro, São Paulo: Paz Terra, 2018.
FICHTE, Johann Gottlieb. Os Pensadores. Tradução: Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo Abril Cultural, 1984.
_____. O destino do erudito. Tradução: Ricardo Barbosa. São Paulo: Hedra, 2014.
GROSOS, Philippe. Système et Subjectivité: étude sur la signification et l’enjeu du concept de système: Fichte, Schelling,
Hegel. Paris: Librairie Philosophique J. Vrin, 1996.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 275-292 291
ISSN: 2317-9570
CÁSSIO ROBSON ALVES DA SILVA

GUATTARI, Félix. Caosmose. Tradução: Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. São Paulo: Editora 34, 2006.
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Diferença entre os sistemas filosóficos de Fichte e Schelling. Tradução: Carlos Morujão.
Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2003.
_____. Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio (1830). Tradução: José Machado e Paulo Meneses. São Paulo:
Edições Loyola, 2005.
KANT, Immanuel. Os progressos da Metafísica. Tradução: Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1995.
KIERKEGAARD, Søren. Lettres des fiançailles. Tradução: Marguerite Grimault. Paris: Falaize, 1956.
_____. Os pensadores. Tradução: Adolfo Casais Monteiro. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
_____. Johannes Climacus ou É preciso duvidar de tudo. Tradução: Sílvia Saviano Sampaio e Álvaro Valls. São Paulo:
Martins Fontes, 2003.
_____. O conceito de ironia: constantemente referido à Sócrates. Tradução: Álvaro Luiz Montenegro Valls. Bragança
Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2006.
_____. Journaux et Cahiers de notes. Vol. I. Tradução: Else-Marie Jacquet-Tisseau. Paris: Éditions L’Orante; Éditions
Fayard, 2007.
_____. O Conceito de Angústia. Tradução: Álvaro Luiz Montenegro Valls. Rio de Janeiro: Vozes, 2010.
_____. La época presente. Tradução: Manfred Swensson. Madrid: Trotta, 2012.
_____. Ou-Ou. Um fragmento de vida - Primeira parte. 1ª ed. Tradução: Elisabete M. de Sousa. Lisboa: Relógio D’Água
Editores, 2013a.
_____. Pós-escrito às Migalhas Filosóficas. Vol.I. Tradução: Álvaro Luiz Montenegro Valls e Marília Murta de Almeida.
Rio de Janeiro: Vozes, 2013b.
_____. Apuntes sobre la Filosofía de la Revelacíon de F. W. J. Schelling (1841-1842). Tradução: Óscar Parcero Oubiña.
Madrid: Trotta, 2014.
_____. Pós-escrito às Migalhas Filosóficas. Vol.II. Tradução: Álvaro Luiz Montenegro Valls e Marília Murta de Almeida.
Rio de Janeiro: Vozes, 2016.
LEIBNIZ, Gottfried Wilhelm. La Monadologie. Paris: Librairie Classique Eugène Belin, 1886. Disponível em <https://gal-
lica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k5551698p>: acessado em [22/10/2019].
_____. A Monadologia e outros textos. Fernando Luiz Barreto Gallas e Souza. São Paulo: Hedra, 2009.
MARCUSE, Herbert. O homem unidimensional. Tradução: Miguel Serras Pereira. Lisboa: Letra Livre, 2011.
RIMBAUD, Arthur. Prosa Poética. Tradução: Ivo Barroso. São Paulo: Topbooks, 1998.
SCHELLING, Friedrich Wilhelm Joseph. A essência da liberdade Humana. Tradução: Mária C. de Sá Cavalcante. Petró-
polis: Vozes, 1991.
_____. Filosofía de la Revelación. Tradução: Juan Cruz Cruz. Pamplona: Cuaderno de anuário Filosófico, 1998.
STEWART, Jon. A Companion to Kierkegaard. Chichester: Wiley Blackwell, 2015.
_____. Søren Kierkegaard: subjetividade, ironia e a crise da modernidade. Tradução: Humberto Araújo Quaglio de Souza.
Petrópolis: Editora Vozes, 2017.
THEUNISSEN, Michael. Anteproyectos de modernidad: antiga melancolía y acedia de la Edad Media. Tradução: Antonio de
la Cruz Valles y Naomi Kubota. Valencia: Náyade, 2005.
VALLS, Álvaro Luiz Montenegro. Do desespero silencioso ao elogio do amor desinteressado. Tradução: Álvaro L. M. Valls.
Porto Alegre: Escritos, 2004.
_____. Kierkegaard, Préludes Brésiliens. Paris: L’Harmattan, 2017.
VERGOTE, Henri-Bernard. Sens et Répétition. (2 v.). Paris: Cerf/Orante, 1982.
WATKIN, Julia. “Kierkegaard view of death”. In: History European Ideas, Vol. 12, Nº 1, pp. 65-78, 1990.
ŽIŽEK, Slavoj. El resto indivisible. Tradução: Ana Bello. Buenos Aires: EGodot Argentina, 2013.

Recebido: 07/01/2020
Aprovado: 16/07/2020
Publicado: 30/07/2020

292 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 275-292
ISSN: 2317-9570
DOI: https://doi.org/10.26512/rfmc.v8i2.29416

Considerações sobre a Relação entre Filosofia e Ciência em


Alexandre Koyré a partir de uma Questão
[Considerations about the Relationship between Philosophy and Science in Alexandre
Koyré from one Question]

Filipe Monteiro Morgado*

Resumo: A partir de uma questão apresentada na “Introdução” deste artigo, procurare-


mos elucidar a relação entre os pensamentos filosófico e científico conforme escritos de
Alexandre Koyré. Dividimos nosso texto em quatro partes, que abordam: (1) a disputa
de Koyré contra a filosofia da ciência positivista e a epistemologia de Émile Meyerson,
estas duas defendendo a existência de verdades imutáveis; (2) a oposição de Koyré às
epistemologias continuistas, apresentando o citado pensador como um descontinuista
dado seu diagnóstico da historicidade da razão; (3) a tese koyreana que busca explicar
a gênese do matematismo da física clássica como uma ilustração do primado teórico da
ciência e da sua descontinuidade; (4) a resposta à questão inicial do nosso artigo, a partir
da ideia da inseparabilidade entre filosofia e ciência e da ideia de descontinuidade da
razão.
Palavras-chave: Alexandre Koyré. Filosofia. Ciência.

Abstract: Based on a question presented in the “Introduction” of this article, we will


seek to elucidate the relation between philosophical and scientific thoughts, according
to Alexandre Koyré’s writings. We divide our text into four parts: (1) Koyré’s dispute
against the philosophy of positivist science and Émile Meyerson’s epistemology, both
defending the existence of immutable truths. (2) Koyré’s opposition to the continuist
epistemologies, presenting himself as a discontinuist given his diagnosis of the his-
toricity of reason; (3) the koyrean thesis that seeks to explain the genesis of classical
physics mathematism as an illustration of the theoretical primacy and discontinuity of
science; (4) the answer to the initial question of the article, through the ideas of reason
discontinuity and inseparability between philosophy and science.
Keywords: Alexandre Koyré. Philosophy. Science.

* Bacharel, licenciado e mestre (bolsista CAPES) em Filosofia pela Universidade Federal Fluminense (UFF). E-mail: filipemontei-
romorgado@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2732-7164.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 293-311 293
ISSN: 2317-9570
FILIPE MONTEIRO MORGADO

Introdução epistemólogo um racionalista, posto


que enfatiza a atuação da matemática
No artigo que ora lhes apresentamos, na ciência e, no pensamento filosófico,
abordaremos o pensamento do francor- o matematismo; mas, a despeito do ra-
russo Alexandre Koyré (1892-1964), fi- cionalismo, ele defenderá que a razão
lósofo e historiador da filosofia, religião não é terreno habitado por absolutos e
e ciência, almejando responder a um verdades imutáveis. As verdades cien-
inquérito, qual seja: por que Koyré vis- tíficas mudam.
lumbrou uma descontinuidade na his- Muito embora o imo das investi-
tória das ciências já na revolução cien- gações koyreanas fosse a ciência mo-
tífica do século XVII? Por dois motivos, derna em suas origens, o epistemólogo
a opinião koyreana pode suscitar certa não deixou de compreender, pioneira-
estranheza: (1) quando se fala em corte mente, que a história das ciências deve
epistemológico, refere-se a uma fissura ser entendida como descontínua (BUL-
na razão científica e (2) “científico” é CÃO, 2010, pp. 102-103), havendo, já
entendido como algo que só passou a na aurora da ciência moderna, alguma
existir a partir do advento da ciência ruptura, fissura na razão. Dado o pe-
moderna. A fim de dirimir essas razões ríodo que investigava (o início da ciên-
de estranheza, mostraremos que, con- cia moderna), Koyré parecia encontrar-
forme o pensamento koyreano, a ciên- se em dupla desvantagem na tarefa
cia moderna nasceu deveras no século de efetuar o diagnóstico da desconti-
XVII, mas que a razão científica data de nuidade do desenvolvimento científico:
muito antes, já estando presente na fi- (1) a primeira e quase óbvia desvanta-
losofia. gem ocorre em virtude do epistemólogo
A ciência moderna, uma ciência ma- francorrusso ter efetuado um pionei-
tematizada, teve sua consolidação, de rismo e, como todo trabalho pioneiro,
acordo com nosso epistemólogo fran- trata-se de algo difícil de ser efetivado;
corrusso, a partir de uma brusca mu- (2) a segunda dá-se em razão de seu ob-
tação intelectual culminada no século jeto de pesquisa ser mais a ciência em
XVII. As pesquisas koyreanas atinentes seu momento originário (século XVII) e
à história das ciências primam pelo pe- não aquela em cujo interior já haviam
ríodo inicial do pensamento científico ocorrido bruscas modificações (a título
moderno, em que surge a física clás- de exemplo, temos a segunda metade
sica1 . Podemos considerar o referido

1 Utilizaremos a mesma nomenclatura de Études Galiléennes (1939), que, ao menos em sua edição de 1966, indica, em nota de ro-
dapé, a expressão “física clássica” para a pré-quântica e para a quântica, “física moderna”. Quando falarmos em “ciência moderna”,
entretanto, estaremos referindo-nos à física clássica e moderna (KOYRÉ, 1966, p. 12), haja vista entendermos que elas têm algo em
comum: a ênfase ao matematismo no tratamento do mundo físico. A física clássica ou pré-quântica é a de Galileu, Descartes, Newton,
Laplace, etc. e a física moderna, a de Max Planck, Albert Einstein, Werner Reisenberg, etc.

294 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 293-311
ISSN: 2317-9570
CONSIDERAÇÕES SOBRE A RELAÇÃO ENTRE FILOSOFIA E CIÊNCIA EM ALEXANDRE KOYRÉ A PARTIR DE
UMA QUESTÃO

do século XIX e o início do século XX). telectual, expurgando da explicação a


Ora, se comparado a pensadores cujo respeito da sua gênese a ênfase dada
objeto de estudo é a ciência moderna já à técnica, ao caráter prático da ciên-
drasticamente modificada, que gozava cia moderna. Tal consideração possui
então de salutares mutações teóricas em resultados, sendo um deles a conside-
relação ao estado inicial da ciência ma- ração de que, em ocorrendo uma mu-
tematizada, o filósofo-historiador fran- dança no cenário intelectual, abrem-se
corruso parece encontrar-se em desvan- caminhos a novidades também na ci-
tagem na empreitada de diagnosticar a ência, haja vista ela ser uma das suas
descontinuidade inerente ao progresso integrantes. Foi o que ocorreu no sé-
científico. Então, inquerimos: qual mo- culo XVII: a ciência moderna foi fruto
tivo fez o nosso epistemólogo enten- de uma radical mutação intelectual en-
der que, já nos primórdios da física gendrada por um quadro de ideias pro-
clássica, ocorrera uma descontinuidade duzido pela filosofia. Em Études Gali-
no interior da racionalidade científica? léennes (1939), Koyré escreve:
Por agora, nossa resposta é lacônica:
porque ele nunca achou possível sepa- Com efeito, o estudo da evolu-
rar, de maneira absoluta, a filosofia (e ção (e das revoluções) das ideias
até mesmo a teologia) da ciência, fri- científicas [. . . ] nos mostra o es-
sando que uma revolução científica está pírito humano lutando com a
sempre acompanhada de uma subver- realidade; revela-nos seus de-
são filosófica (KOYRÉ, 2011c, p. 264), feitos, suas vitórias; mostra-
levando-o a considerar que já ocorrera, nos qual esforço sobre-humano
na história humana, outras rachaduras custou-lhe cada passo sobre a
na razão, sendo a revolução científica via da intelecção do real, es-
do século XVII uma delas. forço que resultou, por vezes,
em uma verdadeira “mutação”
do intelecto humano; transfor-
Primeira parte: a teoria como primado mação graças àquelas noções, às
da ciência penas “inventadas” pelos mai-
ores gênios, tornadas não so-
Acima, valemo-nos de expressões como mente acessíveis, mas ainda fá-
“teoria”, “ideias”, “quadro de ideias”. ceis, evidentes para os estudan-
Fizemo-lo propositalmente, pois, desde tes (KOYRÉ, 1966, p. 11).
quando iniciou suas pesquisas a res-
peito da história do pensamento cien- Na nota 6 do artigo “Galileu e Pla-
tífico, Koyré considerou a ciência como tão” (1943), assevera-se: “A ciência de
sendo, sobretudo, teoria, atividade in- Descartes e de Galileu foi, bem enten-

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 293-311 295
ISSN: 2317-9570
FILIPE MONTEIRO MORGADO

dido, extremamente importante para bilitadora da tecnologia e da técnica tal


o engenheiro e o técnico. Afinal, ela como se configuram na Modernidade.
provocou uma revolução técnica. En- A física clássica não se confunde com
tretanto, não foi criada e desenvolvida a técnica, embora esta seja uma marca
nem por engenheiros, nem por técnicos, sumária daquela. A ciência moderna
mas por teóricos e filósofos” (KOYRÉ, aperfeiçoou a técnica e promoveu a tec-
2011e, p. 166). O tom do “Prefácio” nologia. Os engenheiros não guiaram
à obra Do Mundo Fechado ao Universo Descartes e Galileu; estes encetaram o
Infinito (1957) não é diferente: con- caminho que aqueles deveriam seguir.
siderando rasas as interpretações que Havia ciência na Antiguidade e na
propunham explicar a revolução cien- Idade Média, mas não nos moldes mo-
tífica do século XVII a partir de uma dernos. Uma acentuada modificação
“suposta conversão do espírito humano no quadro das ideias ocorreu, forjada
da teoria para a praxis, da scientia con- por filósofos, teólogos e – se assim já
templativa para a scientia activa et ope- os podemos denominar – cientistas,
rativa, o que transformou o homem de acarreando o surgimento do que co-
espectador em proprietário e senhor da nhecemos como “ciência moderna” ou
natureza” (KOYRÉ, 2006, p. 1), Koyré “física clássica”, abjurando o pensa-
fala em “mudança espiritual”, em “qua- mento científico antigo e medieval, eri-
dro de ideias”. Assim, podemos notar gindo novos padrões de racionalidade.
que o historiador-filósofo salienta o ca- Quando Koyré dá primazia à teoria, vai
ráter teórico para explicar as origens da de encontro aos positivistas, refratando
ciência moderna, não o seu cariz prá- tanto o ímpeto empirista deles quanto
tico, ativo, técnico e tecnológico; isso as suas consequências, como o menos-
porque sustenta que a técnica, o poder prezo e/ou a aversão direcionados à
prático da ciência, não é senão criação influência dos pensamentos filosófico
da própria ciência, sendo esta a possi- e religioso sobre a ciência. Conforme

2 “Koyré critica a leitura positivista da história do saber científico. Mostra que o pensamento científico não se separa do pensa-
mento filosófico, pois não se desenvolve no vácuo, mas sim no interior de um sistema de ideias” (BULCÃO, 2010, p. 99). “Se eu
tivesse tomado inteiramente ao pé da letra o título de minha comunicação – as cosmologias científicas, isto é, aquelas que levam
às últimas consequências a separação e, portanto, a desumanização do cosmo –, não teria, verdadeiramente, grande coisa a dizer,
e teria tido de começar imediatamente com a época moderna, provavelmente com Laplace. Quando muito teria podido evocar, à
guisa de pré-história, as concepções das primeiras épocas da astronomia grega, a de Aristarco de Samos, de Apolônio, de Hiparco,
porque as concepções cosmológicas, mesmo as que consideramos científicas, só muito raramente – quase nunca, até – foram independentes de
noções que não o são, ou seja, de noções filosóficas, mágicas e religiosas. Mesmo para um Ptolomeu, mesmo para um Copérnico, mesmo
para um Kepler, e mesmo para um Newton, a teoria do cosmo não era independente daquelas noções. Portanto tomei ‘cosmologias
científicas’ num sentido mais amplo, capaz de englobar as doutrinas dos pensadores que acabo de citar” (KOYRÉ, 2011a, p. 83, grifo
nosso). Aliás, por falar em Laplace: “[. . . ] o determinismo, como se diz a partir do século XIX, é ao mesmo tempo estrito e universal.
Ele manifesta-se numa passagem famosa de Laplace, que o liga expressamente ao princípio de razão suficiente, apresentado como
evidente. Ele estabelece uma ligação estreita entre determinismo e previsibilidade. E nota-se que esta requer, por um lado, o co-
nhecimento das leis da mecânica e o domínio do aparelho matemático adequado, por outro, a medida precisa e exacta das condições
iniciais que são de duas espécies, umas de ordem mecânica, outras de ordem geométrica” (BLANCHÉ, 1983, p. 75, grifo do autor).

296 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 293-311
ISSN: 2317-9570
CONSIDERAÇÕES SOBRE A RELAÇÃO ENTRE FILOSOFIA E CIÊNCIA EM ALEXANDRE KOYRÉ A PARTIR DE
UMA QUESTÃO

entendiam os positivistas, tudo o que entre filosofia e ciência é impensável.


era filosófico e religioso configurava-se Estabelecer fronteiras que separassem
como entrave ao progresso científico2 . a ciência da filosofia seria um ato bas-
No século XIX e início do XX, a filoso- tante arbitrário, pois essas disciplinas
fia da ciência positivista era majoritária são, em certo grau, simbióticas. Por
nas universidades, com algumas exce- essa razão, Marlon Jeison Salomon sa-
ções importantes, como Poincaré e De lienta que
Broglie (MOLES, 2010, p. 4). O que os
positivistas tomavam por caro à ciên-
cia, com efeito, eram os fatos sensíveis, Se é apenas a partir da década
as coisas brutas observáveis empirica- de 1930 que ele [Koyré] irá se
mente. Ora, o epistemólogo francor- tornar historiador do pensa-
russo, ainda no “Prefácio” de Do Mundo mento científico, não se pode
Fechado ao Universo Infinito (1957), frisa desconsiderar que em sua ma-
que “A ciência, a filosofia e até mesmo neira de escrever esta história
a teologia mostram interesse legítimo tal dissociação [entre filosofia
por questões sobre a natureza do es- e ciência] nunca será susten-
paço, a estrutura da matéria, os padrões tada – o que não significa di-
de ação e, last but not least, sobre a na- zer que Koyré advogue con-
tureza, a estrutura e o valor do pensa- tra a afirmação da autonomia
mento e da ciência humana” (idem, pp. da ciência3 . Na Introdução ao
2-3). primeiro dos três ensaios redi-
Koyré compreende, em suma, que, gidos na segunda metade dos
para entender o surgimento da ciência anos 30 e reunidos em 1939 sob
moderna, não se pode separá-la da filo- o título Études galiléennes en-
sofia e dos debates teológicos, que cria- contramos implicitamente esta
ram uma ambiência intelectual da qual ideia: o nascimento da ciência
a ciência é, “a um só tempo, raiz e fruto” moderna não corresponde a um
(ibidem, p. 1). A cisão nítida e absoluta momento de cientifização do
mundo, de purificação do espí-

Partindo disso que Blanché explica, fica clara a razão da crença laplaciana em uma inteligência divina capaz de saber a respeito de
tudo (inclusive passado, presente e futuro, simultaneamente): “Devemos, pois, encarar o estado presente do Universo como o efeito
do seu estado anterior e como causa do que vai seguir-se. Uma inteligência que, por um instante dado, conhecesse todas as forças de
que está animada a natureza e a situação respectiva dos seres que a compõem, e que, além disso, fosse ampla o bastante para submeter
seus dados à análise, abarcaria na nossa fórmula os movimentos dos maiores corpos do Universo e os do mais leve átomo: nada seria
incerto para ela, e o futuro, como o passado, estaria presente aos seus olhos” (LAPLACE apud BERGÉ; POMEAU DUBOIS-GANCE,
1996, p. 30). Talvez, a ideia laplaciana dessa inteligência não tenha contribuído para a construção da ciência de Laplace, mas é certo
que as noções de determinismo e previsibilidade (esta associada àquela (BLANCHÉ, 1983, p. 75), noções depois consideradas de
cunho um tanto fideístico e, consequentemente, abandonadas na segunda metade do século XIX (idem, p. 75)) foram de imponente
influência sobre a formulação do pensamento científico do astrônomo francês.
3 “O que não significa, bem entendido, que eu pretenda negar a importância da descoberta, dos fatos novos, nem a da técnica, nem
tampouco a autonomia e até mesmo a autologia do desenvolvimento do pensamento científico” (KOYRÉ, 2011c, pp. 264-265).

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 293-311 297
ISSN: 2317-9570
FILIPE MONTEIRO MORGADO

rito científico ao cabo da longa e o saber científico, mas sim depurando


taciturna noite da Idade Média, o mundo mediante teorias, sendo mar-
de estabelecimento das corre- cante na ciência moderna o espectro
tas e verdadeiras leis que regem teórico do matematismo, que, por sua
os fenômenos físicos, mas sim a vez, somente pôde realizar-se em vir-
uma “profunda transformação tude de uma mudança no quadro de
intelectual”, a uma mutação da ideias sobre a natureza do espaço na
atitude intelectual que carac- física, em que o espaço aristotélico do
terizava o pensamento cientí- Cosmos foi substituído pelo universo in-
fico antigo e medieval, ou, mais finito (o que veremos melhor adiante).
precisamente, a uma transfor- Essa mudança ensejou em Koyré a ideia
mação dos próprios marcos so- de que não há absolutos, sendo perecí-
bre os quais o pensamento até veis até os axiomas e os fundamentos
então se assentava. [. . . ] Em do pensamento, demonstrando desse
passagens decisivas sobre todos modo que a razão é histórica e que,
os debates que, de Copérnico por conseguinte, a história das ciência
a Galileu, tornaram possível a é marcada pela mudança, sendo escul-
emergência da noção de sistema pida pela descontinuidade, fazendo o
mecânico da realidade e de uma desenvolvimento da ciência repleto de
física matemática, Koyré afirma rupturas teóricas.
sem demora: “não é de um sim-
ples problema de ciência, é de
um problema filosófico que se
trata ao longo de todo este de- Segunda parte: a história das ciências
bate”; ou ainda: “é de filosofia, é descontínua
de ontologia, de metafísica que
se trata ao longo de todo este Abordamos, brevemente, a filosofia da
debate. Não de ciência pura” ciência dos positivistas. Gostaríamos
(SALOMON, 2010, pp. 75-76). de chamar atenção, outrossim, para o
círculo meyersoniano (este último inte-
grado, durante certo tempo, também
Privilegiando o aspecto teórico da ci- por Koyré) de epistemologia, especi-
ência, Koyré rompe com a epistemo- ficamente para salientar que tanto os
logia vigente em seu tempo. Assim, positivistas quanto os meyersonianos
torna-se possível mostrar que a partir anelavam encontrar absolutos, estabe-
da física clássica a ciência não visa ao lecer conhecimentos perenes, afastando
mundo empírico tal como ele é, expe- da ciência qualquer efemeridade. A
rienciando as coisas brutas, acessíveis epistemologia de Meyerson distingui-
empiricamente, e doravante formando se da dos pensamento positivista; en-

298 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 293-311
ISSN: 2317-9570
CONSIDERAÇÕES SOBRE A RELAÇÃO ENTRE FILOSOFIA E CIÊNCIA EM ALEXANDRE KOYRÉ A PARTIR DE
UMA QUESTÃO

tretanto, entre ambos há uma comuni- XVII a partir da física galile-


dade que se dá em torno da esperança ana não se inscreve em conti-
nos absolutos4 . Koyré, por seu turno, nuidade com os saberes que a
faz declinar a ideia da existência de ab- precederam. A física que surge
solutos da razão. Sem absolutos, não então não é o prolongamento
há possibilidade de uma história epis- da física do Renascimento ou
temológica continuista, posto que cai da Idade Média. A astronomia
por terra o entendimento consoante o moderna não é uma continua-
qual a ciência sempre se desenvolve- ção da astronomia assíria, indi-
ria sobre uma base imutável formada ana ou chinesa. Existe um corte
por verdades perenes, pois essa não epistemológico entre as ciências
há, esvaindo-se de tempos em tempos. antigas e as ciências novas, que
Entre os positivistas e a epistemologia inauguram um novo regime de
meyersoniana, portanto, o desenvolvi- saber. Esse novo saber é o que
mento da ciência dar-se-ia por acúmulo Lacan, depois de Koyré, chama
de conhecimento, assentando-se sobre de “A ciência”, que qualifica
o mesmo solo e como se ela fosse um como “moderna” por distingui-
só edifício, obra una, cujos construto- la da episteme antiga (GAULT,
res/colaboradores fossem os cientistas. 2015, p. 156).
Porém, o filósofo francorrusso frustra
o desejo daqueles. Doravante, ciência
não é um caminho tão seguro quanto se A filosofia koyreana, ao frisar a rup-
supunha outrora. tura, o conflito de ideias científico-
filosóficas do qual umas saim vivas e
outras, mortas, contrapor-se frontal-
[. . . ] a modalidade do saber que mente à leitura da história das ciências
se distinguiu ao longo do século vigente em seu tempo, cujos apologis-

4 “A preocupação de afirmar os absolutos da razão perpassa, pois, a obra meyersoniana e torna-se evidente quando este [Meyerson]
afirma: ‘Desembaraçamo-nos de tudo o que é relativo nas diversas observações para alcançar o absoluto, representado aqui por uma
distância. Todos os observadores estudarão o mesmo espaço geométrico e é neste contexto que serão estabelecidos, de uma vez por
todas, os fenômenos físicos. Aí está uma afirmação importante que nos mostra até que ponto o processo de pensamento ao qual
obedecem os relativistas está de acordo com o cânone do intelecto humano que constitui não somente a ciência mas também o mundo
do senso comum. Com efeito, este mundo de invariantes absolutos, colocado no contexto eterno do espaço, não somente o mundo da
mecânica de Galileu e de Descartes, mas é ainda aquele da nossa percepção imediata’” (BULCÃO, 2010, p. 101, grifo do autor).
5 “Alexandre Koyré ficou famoso por sua história das revoluções científicas que se volta para as transformações ocorridas nos sé-
culos XVI e XVII. Pode-se dizer que o caráter singular da sua obra histórica é sua ruptura com toda uma perspectiva positivista e
evolucionista, dominante no campo dos estudos históricos, seja no da história das ideias, assim como, no das ciências” (BULCÃO,
2010, p. 99). “Na verdade Koyré foi levado aos estudos de história das ciências pelo círculo de pesquisas meyersonianos, do qual
fez parte durante algum tempo e que dominava o contexto sorboniano da época, início do século XX. Acreditamos, entretanto, que
Koyré não se manteve fiel ao mestre, na medida em que uma profunda diferença os separa” (idem, p. 100). Na sequência do artigo
de Marly Bulcão, esse “acreditamos” demonstrar-se-á ser um eufemismo, dado que se provará a cisão entre a epistemologia koyre-
ana e meyersoniana, gizando suas fronteiras, sobretudo no aspecto da apologia (Meyerson) ou oposição (Koyré) da/à existência de
absolutos racionais.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 293-311 299
ISSN: 2317-9570
FILIPE MONTEIRO MORGADO

tas eram positivistas e filósofos como presença faz-se indispensável ao desen-


Émile Meyerson5 . Estes conferiam ao volvimento da racionalidade.
desencadeamento histórico das ciências No século XIX, Lobachewsky de-
um caráter contínuo, não havendo rup- monstrou que a soma dos ângulos inter-
turas. Atinente a essa concepção, as ci- nos de qualquer triângulo retângulo or-
ências desenvolver-se-iam por acúmulo dinário é igual a uma medida menor do
de conhecimentos e não por oposição que a soma de dois ângulos retos, eclo-
de ideias. Assim entendido, a ciência dindo, desse modo, a verdade eterna6
de Einstein seria um desenvolvimento, que supostamente continha a afirma-
um prolongamento, uma continuidade tiva “a soma dos ângulos internos de
da ciência de Galileu, Descartes, New- qualquer triângulo é igual à soma de
ton. . . A ênfase no cariz intelectual da dois retos”. Tratou-se de clara rup-
ciência somado ao diagnóstico do de- tura; outras mais não deixaram de ser
clínio de absolutos leva nosso episte- notadas por nosso epistemólogo fran-
mólogo a entender que o intelecto, a corrusso. Entretanto, Koyré salientara
razão humana, é maleável. Por conse- a filosofia e suas relações com a ciên-
guinte, a ciência, como expressão da ra- cia para diagnosticar a descontinuidade
cionalidade, também o é. Maleável, his- da ciência e, de forma mais geral, da
tórica, a razão desenvolver-se-ia, por- razão. Desse modo, nosso epistemó-
tanto, ruptilmente; a descontinuidade logo inaugura um novo entendimento
seria imprescindível a todo progresso do que seria a razão. Esta, antes en-
científico. Agora, razão e descontinui- tendida como morada do necessário, do
dade não são opostas, sendo esta uma imutável, habitada por absolutos, agora
característica relevante daquela, cuja se torna arena de ideias mais ou menos

6 Aqui, temos em mente, sobretudo, Descartes, que afirma, em carta a Marin Mersenne (1588-1648) escrita em Amsterdam e da-
tada de 15 de abril de 1630: “Mas eu não deixaria de tocar, em minha física, várias questões metafísicas e particularmente esta: que
as verdades matemáticas, as quais vós nomeais ‘eternas’, foram estabelecidas por Deus e em dependência inteiramente [dEle], bem
como todo o resto das criaturas.” (ADAM TANNERY, 1897, v. 1, p. 145, tradução nossa). Diz, ainda: “[. . . ] Deus que estabeleceu
essas leis na natureza, assim como um rei estabelece leis em seu reinado” (idem, p. 145, tradução nossa). De Amsterdam, escreve
ainda em carta ao mesmo destinatário, na data de 27 de maio de 1630: “Vós me demandais in quo genere causae Deus disposuit aeternas
veritates [por qual gênero de causalidade Deus formou as verdades eternas]. Eu vos respondo que é in eodem genere causae [pelo mesmo
gênero de causalidade] que ele criou todas as coisas, isto é, ut efficiens totalis causa [como causa eficiente e total]. Pois é certo que ele é
também tanto autor da essência como da existência das criaturas: ora, essa essência não é outra coisa senão essas verdades eternas,
as quais eu não concebo emanando de Deus senão como os raios, do Sol; mas eu sei que Deus é autor de todas as coisas, e que essas
verdades são alguma coisa, e por conseguinte que Ele é o autor [delas]” (ibidem, pp. 151-152, tradução nossa). “E creio que seja o
mais considerável aqui que encontre em mim inúmeras ideias de coisas que, mesmo se não existirem em parte alguma fora de mim,
não se pode dizer, porém, que não sejam nada. Embora elas sejam pensadas por mim, de certo modo, segundo meu arbítrio, não são
contudo uma ficção minha, pois têm suas naturezas verdadeiras e imutáveis” (DESCARTES, 2013, p. 135). “[. . . ] uma verdade eterna
[...] tem o seu lugar no pensamento e à qual chamamos noção comum ou axioma: como quando se diz que é impossível que uma coisa
seja e não seja ao mesmo tempo, que o que foi feito não pode ser feito de novo, que aquele que pensa não pode deixar de ser ou existir
enquanto pensa, e muitas outras semelhantes que seria demorado enumerar (pois são apenas verdades e não coisas que estejam fora
do pensamento, e destas há um número muito grande)” (DESCARTES, 1997, p. 44). A metafísica e a epistemologia (inseparáveis, no
pensamento cartesiano) sustentam verdades eternas e imutáveis. Como visto imediatamente acima, obras cartesianas de juventude e
maturidade atestam-nos isso.

300 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 293-311
ISSN: 2317-9570
CONSIDERAÇÕES SOBRE A RELAÇÃO ENTRE FILOSOFIA E CIÊNCIA EM ALEXANDRE KOYRÉ A PARTIR DE
UMA QUESTÃO

necessárias cujas existências podem es- estabelecimento de novos alicerces ra-


tar presentes em apenas alguma fração cionais, tanto política (o que não abor-
do tempo histórico. A morte agora in- damos aqui) quanto teoricamente.
vade o território do imortal. A carac-
terística telúrica prevalecente do solo
das ciências é a movedicidade. O des- Terceira parte: a explicação koyreana
vanecer avizinha as verdades eternas que para a gênese da física clássica
ainda não morreram (SALOMON, 2011,
p. 4)7 . A fim de exemplificar a ênfase à te-
Uma boa ilustração desse embate de oria e a ruptura presentes na episte-
ideias e da sobrevivência e morte de al- mologia koyreana, exporemos a tese
gumas se apresenta, justamente, nos sé- de Koyré, que explica a revolução ci-
culos XVI e XVII, quando da revolução entífica do século XVII. Nossa exposi-
científica de então. Koyré considera a ção será lacônica, sendo apenas sufi-
ciência antiga e medieval muito coe- ciente para nossa finalidade atual. O
rente. Composta por explicações bem filósofo-historiador trabalhou, em di-
encadeadas, sistemáticas e por argu- versas obras, a tese abaixo apresentada,
mentos convincentes em razão de co- como em “Galileu e Platão”, Estudos Ga-
adunarem bem com a experiência co- lilaicos (1939), entre outras, sobremodo
mum, corriqueira, ordinária, do dia a em Do Mundo Fechado ao Universo Infi-
dia, a ciência pré-moderna usufrui de nito (1957).
alto grau de coerência e poder de con- Em consonância com o pensamento
vencimento. Muitas de suas afirmações koyreano, o mais importante que ocor-
parecem evidentes. Confrontada por rera na supracitada revolução foi a ma-
ideias opostas aos seus alicerces teó- tematização do mundo, que se configu-
ricos, o pensamento científico antigo rou como a revolução teórica de então,
e medieval realiza um forte combate. exarando novos padrões racionais. O
Com efeito, quem sai vitorioso desse que significa essa matematização? Essa
embate é o quadro de ideias fundante questão faz-se salutar. Diferente do que
da ciência moderna. No entanto, no entendiam os positivistas, a matemá-
momento em que se fortaleceram ques- tica produz um real, não se limita ao
tionamentos à ciência pré-moderna, seu simples papel de qualificar quantitati-
ideário estava consolidado há cerca de vamente os dados sensíveis oriundos da
um milênio e meio, desde, pelo menos, realidade:
Aristóteles. Foi bem áspera a via do

7 “[. . . ] o que é a história, especialmente a história do pensamento científico ou técnico? Um cemitério de erros, ou até mesmo uma
coleção de monstra relegados com razão ao quarto de despejos bons apenas para um canteiro de demolição” (KOYRÉ, 2011c, p. 265,
grifo do autor).

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 293-311 301
ISSN: 2317-9570
FILIPE MONTEIRO MORGADO

Na doutrina de ciência formu-


lada por Koyré (1979, 1982b,
1991), a ciência é definida pelo a. Destruição do Cosmos, ou
processo histórico de formali- seja, a substituição do mundo
zação do real, e não pela quan- finito e hierarquicamente orde-
tificação dos dados da experiên- nado de Aristóteles e da Idade
cia. Essa doutrina, fundamen- Média por um Universo infi-
tada na teorização, na matema- nito, ligado pela identidade de
tização do real, localiza o ex- seus elementos componentes e
perimento como materialização pela uniformidade de suas leis;
da teoria, e não como quanti- e
ficação da experiência sensível b. Geometrização do espaço,
(LIMA FERREIRA, 2015, pp. ou seja, substituição do espaço
40-41). concreto (conjunto de “luga-
res”) de Aristóteles pelo espaço
abstrato da geometria euclidi-
Eis o verdadeiro matematismo, que ana daqui para frente conside-
se configura como o que há de revo- rado como real (KOYRÉ, 2011c,
lucionário na ciência que emerge no p. 266).
século XVII. O epistemólogo francor-
russo visou explicar a mencionada re-
volução, verdadeira ruptura racional, Quando consideramos o espaço con-
inquerindo a respeito do que teria le- creto aristotélico, jamais podemos pen-
vado pensadores – a exemplo de Gali- sar em uma física matematizada. Na
leu e Descartes – a matematizarem o física aristotélica, o matematismo é im-
mundo. O que tornou possível pen- possível. Ilustremos nossa afirmativa
sar o mundo de forma matematizada? com o princício da inércia. Ele, bem
O que possibilitou a matematização do entendido, configura-se como matemá-
mundo? Quais foram as condições ori- tico; por quê? O espaço da física aris-
ginárias do matematismo da física clás- totélica e da Idade Média identifica-
sica? se com o da vida comum, ordinária,
No artigo “Da Influência das Concep- o da experiência sensível, no qual ne-
ções Filosóficas sobre a Evolução das nhum corpo realiza um movimento tal
Teorias Científicas” (1954), Koyré ca- qual descrito por essa lei física da Mo-
racteriza, grosso modo (pois já o fizera dernidade. Fato é que ninguém teve
em seus pormenores em outros escri- qualquer experiência com um corpo
tos), sua explicação da revolução cientí- que, lançado, moveu-se retilínea e uni-
fica do século XVII pelos seguintes tra- formemente; todo corpo arremessado
ços: dirige-se, gradativamente, ao solo que,

302 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 293-311
ISSN: 2317-9570
CONSIDERAÇÕES SOBRE A RELAÇÃO ENTRE FILOSOFIA E CIÊNCIA EM ALEXANDRE KOYRÉ A PARTIR DE
UMA QUESTÃO

para Aristóteles, era o lugar natural do tam o mundo sublunar, dos corpos pe-
objeto pesado jogado e o trajeto que recíveis que, “postos” racionalmente no
faz o seu movimento seria prova disso. espaço euclidiano, adotam característi-
Quando habitante do espaço concreto, cas matemáticas, como a necessidade e
nenhum corpo é inerte plenamente: di- a universalidade válidas dentro de um
agnóstico preciso dos gregos, dentre sistema matemático. No espaço de Eu-
os quais destacamos Heráclito e Aris- clides, um corpo e seu movimento po-
tóteles. Qualquer objeto existente no dem conservar-se por toda a eternidade,
mundo empírico perece, dado que to- como a verdade – à época tomada como
dos são perecíveis, mortais. eterna – da afirmação “a soma dos ân-
Mas, e se pensarmos a partir de um gulos internos de um triângulo é igual
espaço no qual podemos cogitar forças a 180º” ou “2 mais 2 é igual a 4”.
idênticas em direção e diametralmente Imaginando assim o mundo em-
opostas no sentido, anulando absolu- pírico, fez-se declinar a cisão entre
tamente as forças? Ou se pensarmos, mundo supralunar e mundo sublunar,
ainda, em um espaço no qual possa pois se torna possível fazer-se mate-
não haver forças (o que é, na prática, mática do movimento dos seus corpos
o mesmo do acima cogitado, pois se te- pesados como dos daquele já o era.
nho forças com direções iguais e diame- A astronomia torna-se disciplina inte-
tralmente opostas, o valor é zero, força grada à física nascente. A substituição
nula)? Esse espaço teórico, “irreal”, en- do Cosmos pelo universo infinito “de-
contramos na geometria de Euclides. termina a fusão da física celeste com a
Doravante, com o espaço euclidiano, física terrestre, que permite a esta úl-
abrem-se caminhos para o pensamento. tima utilizar e aplicar a seus problemas
Agora, podemos raciocinar a partir de os métodos matemáticos hipotético-
um espaço completamente diferente do dedutivos desenvolvidos pela primeira”
espaço aristotélico. Podemos ensaiar (KOYRÉ, 2011d, p. 198, grifo do au-
racionalmente corpos movendo-se no tor). Doravante, as leis que regem este
espaço euclidiano, um espaço mate- mundo regem também aquele. Na ver-
mático, ou melhor, geométrico. Aqui, dade, morre a ideia da existência desses
perecimento e errância das trajetórias dois mundos, desse Cosmos, hierarqui-
de objetos estão sob o controle da ra- camente ordenado, sendo substituída
zão. Torna-se possível pensar em um pela de universo infinito. Portanto, o
corpo que não perece, bem como em espaço da nova física acolheu uma im-
um movimento que não se modifica, portante característica do espaço eucli-
exceto com a atuação de outras forças. diano: a homogeneidade.
Possibilitou-se, assim, fazer uma ma- Vale fazermos uma observação ati-
temática dos corpos pesados que habi- nente ao caráter experimental da ciên-

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 293-311 303
ISSN: 2317-9570
FILIPE MONTEIRO MORGADO

cia moderna, tanto evocado pelos par- da geometria tornado real ou


tidários da teoria conforme a qual a fí- – o que é exatamente a mesma
sica clássica é oriunda da substituição coisa – substituindo o mundo
da atitude espiritual da vida contem- do mais ou menos, que é o da
plativa pela da vida ativa. O que se nossa vida cotidiana, por um
chama “experiência” (nossa opinião é Universo de medida e de preci-
que o termo “experimento”, nesse con- são. Com efeito, essa substitui-
texto, faz-se mais adequado), em ter- ção exclui automaticamente do
mos de física clássica, difere drastica- Universo tudo o que não pode
mente da “experiência” do cotidiano e ser submetido à medida exata
da ciência de Aristóteles, em virtude do (KOYRÉ, 2011f, p. 303, grifo do
ímpeto daquela ser matemático. autor).

Aliás, devemos acrescentar – e Vejamos ainda:


isto determina os traços carac-
terísticos da ciência moderna –
[. . . ] a história dessa progressão
que a pesquisa teórica adota e
da ciência moderna deveria ser
desenvolve o modo de pensar
dedicada a seu aspecto teórico,
do matemático. Essa é a ra-
pelo menos tanto quanto a seu
zão pela qual seu “empirismo”
aspecto experimental. De fato,
difere toto caelo do da tradi-
como já afirmei, e como bem o
ção aristotélica: “O livro da
expõe a história da lógica das
natureza é escrito em caracte-
ciências contada por Crombie,
res geométricos”, declara Gali-
não só o primeiro está estrei-
leu. Isso implica a circunstân-
tamente ligado ao último, mas
cia de que, para atingir seu ob-
ele domina e determina sua es-
jetivo, a ciência moderna tem
trutura (KOYRÉ, 2011b, p. 80,
de substituir o sistema dos con-
grifo do autor).
ceitos flexíveis e semiqualitati-
vos da ciência aristotélica por
um sistema de conceitos rígidos Se desejamos falar da dicotomia (ou
e estritamente quantitativos. O aparente dicotomia) teoria/prática, na
que significa que a ciência mo- física clássica, nem em uma e nem em
derna se constitui substitundo outra temos a empiria, a experiência
o mundo qualitativo ou, mais ordinária. No âmbito científico mo-
exatamente, misto, do senso co- derno, a experiência do senso comum
mum (e da ciência aristotélica), constitui-se como um obstáculo epis-
por um mundo arquimediano temológico. Ademais, na ciência na-

304 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 293-311
ISSN: 2317-9570
CONSIDERAÇÕES SOBRE A RELAÇÃO ENTRE FILOSOFIA E CIÊNCIA EM ALEXANDRE KOYRÉ A PARTIR DE
UMA QUESTÃO

tural erigida no século XVII, a teo- qual formulado, o princípio da inércia


ria coordena a prática; o experimento jamais poderia ter sido pensado em um
estrutura-se de acordo com o que a te- espaço empírico, como apresentado na
oria instituída pelo matematismo da ci- parte do artigo imediatamente anterior
ência moderna prescreve. a esta.

Por seu turno, isso nos permite


Quarta parte: uma resposta ao nosso compreender por que a des-
inquérito inicial coberta de coisas tão simples
e fáceis quanto, por exemplo,
Tendo em vista o que até aqui expu-
as leis fundamentais do movi-
semos, consideramos termos adquirido
mento, que hoje são ensinadas
ferramentas suficientes para responder-
às crianças – e por elas compre-
mos àquela nossa questão inicial, que
endidas –, exigiu um esforço tão
nos serviu de guia para uma breve ex-
considerável, e um esforço que,
posição de caros aspectos da filosofia
muitas vezes, careceu de êxito
e epistemologia de Koyré. Doravante,
para alguns dos espíritos mais
encontramo-nos preparados para, a
profundos e mais poderosos da
partir desses aspectos, apresentar uma
humanidade. É que eles não ti-
resposta ao inquérito proposto na “In-
nham de descobrir ou de esta-
trodução”.
belecer as leis simples e eviden-
“O princípio da inércia nos parece
tes, mas de criar e de construir
perfeitamente claro, plausível e até pra-
o próprio contexto que tornaria
ticamente evidente” (KOYRÉ, 2011d, p.
possíveis essas descobertas (idem,
199). Entretanto, esse princípio do mo-
p. 20, grifo nosso).
vimento, hoje compreendido pelas cri-
anças, nem sempre foi evidente e, na
verdade, era tomado como impossível. Aí é que atua a filosofia e outros ra-
Foram necessários grandes esforços de mos do conhecimento que não pode-
gênios como Galileu e Descartes para mos chamar estritamente de “ciência”,
que tal princípio fosse naturalizado. O ao menos não no sentido que a pala-
esforço foi o de preparar o terreno ade- vra tomou na Modernidade. O contexto
quado para germinar o citado princípio propício ao aparecimento do matema-
do movimento, sendo esse terreno o do tismo, cuja uma das expressões é o prin-
matematismo na ciência natural. Tal cípio da inércia, foi produzido por de-

8 “Para o autor dos Estudos Galilaicos, o caminho que levou Galileu a matematizar a física se constituía como um acontecimento que
transformava radicalmente os fundamentos de nossa ciência e de nossa concepção de mundo no início do século XVII” (SALOMON,
2015, p. 114).

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 293-311 305
ISSN: 2317-9570
FILIPE MONTEIRO MORGADO

bates filosóficos e até teológicos8 . Em tais, de evidências axiomáticas


Do Mundo Fechado ao Universo Infinito que, em geral, foram conside-
(1957) os exemplos são múltiplos. O rados como pertencentes exclu-
grande filósofo do fim da Idade Mé- sivamente à filosofia (KOYRÉ,
dia Nicolau de Cusa (1401-1464) não 2011c, p. 264).
era um cientista, mas “a ele se atri-
bui em geral o mérito, ou o crime, de
ter afirmado a infinitude do universo” Vínhamos abordando a ideia da inse-
(KOYRÉ, 2006, p. 10), contrariando parabilidade da filosofia e ciência. A
a cosmologia medieval. Além disso, citação acima expõe claramente essa
mesmo entre os cientistas, como Des- noção. A partir dela, podemos enten-
cartes, a temática do espaço não é tra- der que uma revolução científica tem
balhada somente nas suas obras cien- acoplada a si uma revolução, subver-
tíficas, mas também em seus trabalhos são, também no ideário filosófico. Por
metafísicos. conseguinte, toda revolução científica
O artigo koyreano “Da Influência das é também uma revolução filosófica.
Concepções Filosóficas sobre a Evolu- Quando Koyré salienta, em Do Mundo
ção das Teorias Científicas” (1954) frisa: Fechado ao Universo Infinito (1957), que
o debate copernicano era metafísico e
ontológico, muito mais que uma sim-
A história do pensamento ci- ples questão científica, para além de
entífico nos ensina portanto uma temática localizada da física, tam-
(pelo menos eu tentarei susten- bém põe em relevo a concepção se-
tar isso): gundo a qual uma revolução científica
1º Que o pensamento cientí- tem por companheira uma revolução
fico nunca foi inteiramente se- filosófica, asseverando a inseparabili-
parado do pensamento filosó- dade de filosofia e ciência.
fico; Doravante, temos uma resposta mais
consistente ao nosso inquérito inicial,
2º Que as grandes revoluções qual seja: salientando a teoria, o fran-
científicas foram sempre deter- corrusso notou que a ciência moderna
minadas por subversões ou mu- originou-se mediante uma mudança no
danças de concepções filosófi- âmago de ideias filosóficas, teológicas
cas; e científicas, evidenciando que os ideá-
3º Que o pensamento científico rios (inclusive seus axiomas, suas ba-
– falo das ciências físicas – não ses, seus absolutos) mudam de tem-
se desenvolve in vacuo, mas está pos em tempos e que, portanto, a ra-
sempre dentro de um quadro de zão é histórica. A mutação da razão
ideias, de princípios fundamen- demonstra que a racionalidade é his-

306 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 293-311
ISSN: 2317-9570
CONSIDERAÇÕES SOBRE A RELAÇÃO ENTRE FILOSOFIA E CIÊNCIA EM ALEXANDRE KOYRÉ A PARTIR DE
UMA QUESTÃO

tórica e que, consequentemente, suas toricidade da razão. Ademais, até o


expressões (como a ciência e a filosofia) matematismo teve de ter uma condi-
também o são. Koyré percebera, des- ção pressuposta: uma mudança severa
tarte, que, em sendo histórica a razão, na concepção de mundo e de espaço,
mais mudanças (inclusive radicais), cor- eclipsando-se o Cosmos dos antigos e
tes, rupturas poderiam ocorrer no inte- medievais e exaltando o universo infi-
rior da esfera científica, levando a fí- nito dos modernos, imergindo o espaço
sica clássica a outros estágios. Dessa como conjunto de lugares, hierarquica-
maneira, nossa tese é que o epistemó- mente bem ordenado, e emergindo o
logo em questão, a partir de suas in- espaço euclidiano tomado como real. A
vestigações sobre as origens da ciência controvérsia referida (entre modernos
moderna, considerando a ciência sobre- e pré-modernos) e a transmutação do
tudo como teoria, construto racional, e protótipo racional que ensejou deixa-
também a racionalidade como móvel, ram claro, portanto, que era imanente
mutável, histórica, conclui que o pro- à razão a ocorrência de modificações,
gresso da ciência deve ser, necessaria- mutações, da racionalidade, o que, com
mente, descontínuo; sua história, ine- efeito, ocorrera algumas vezes, no in-
vitavelmente, rúptil. Em sendo histó- terior do pensamento científico mate-
rica a racionalidade, com inerência de matizado, por exemplo, com o advento
mutações, fissuras, a história da razão das geometrias não-euclidianas dos ma-
científica também deve ter por caracte- temáticos russo Nikolai Lobachevsky e
rística ser fissurada, descontínua. alemão Bernhard Riemann e com as mi-
Em suma, nada obstante Koyré te- crofísicas do século XX. O filósofo fran-
nha debruçado-se sobre as origens da corruso notara que, nos séculos XVI e
ciência moderna, ele notou que sua gê- XVII, uma revolução filosófica acarre-
nese deu-se em virtude de uma grande tou uma revolução científica ou – como
mudança no ideário filosófico daquela preferimos dizer – que a revolução ci-
época, sobrevalendo um quadro de entífica dos séculos XVI e XVII foi tam-
ideias científicas (moderno) em detri- bém uma revolução filosófica.
mento de outro (antigo e medieval). A
disputa travada entre cientistas moder-
nos e pré-modernos constitui-se como
uma ilustração notória da mutabilidade Conclusão
da razão, da sua historicidade. A mate-
matização do mundo, o matematismo Na “Introdução”, expusemos nossa
físico, constituiu-se com tal pujança questão, situando-a: Koyré promovera,
que levou a efeito uma revolução nos pioneiramente, uma epistemologia des-
padrões racionais, destacando a his- continuista. Ele o fizera tomando a re-
volução científica do século XVII como

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 293-311 307
ISSN: 2317-9570
FILIPE MONTEIRO MORGADO

uma descontinuidade da razão cientí- promovendo um corte racional, salien-


fica. A ciência, conforme os positivis- tando uma descontinuidade científica e
tas e de acordo com o círculo meyerso- filosófica de grandes proporções. Por-
niano, desenvolvia-se por acúmulo de tanto, com a revolução científica do sé-
conhecimento, sendo a física newtoni- culo XVII, já ocorrera uma ruptura na
ana um aprimoramento da cartesiana, a razão, posto que mudou-se a racionali-
eisteiniana um prolongamento da new- dade e não do irracional para o racio-
toniana, etc., dado que sustentavam a nal. A ojeriza dos epistemólogos ante-
existência de absolutos que formavam riores pela filosofia e religião agora se
uma base comum dessas físicas. O fran- vê questionada, recebendo, de uma só
corruso, por sua vez, não adere à tese vez, dois golpes do pensamento koyre-
em favor dos absolutos, conferindo-lhes ano: (1) que atesta que filosofia, a te-
perecimento. Fazendo-os ruir, com a ologia e até o pensamento mágico não
sua epistemologia, os absolutos, pôde tratam de questiúnculas especulativas,
sustentar que o solo, o alicerce dessas sendo também expressões da razão e
físicas é movediço, variando suas bases, exercendo, aliás, muita influência sobre
quanto mais o restante. Dessa forma, a revolução científica do século XVII;
consolidou a descontinuidade. Entre- (2) que frisa a gênese da ciência mo-
tanto, ainda assim inquerimos: com derna como uma fissura na racionali-
qual ciência a ciência moderna teria dade, refratando a razão antiga e medi-
descontinuado, dado que a ciência tal eval (sobretudo aristotélica), hasteando
qual a conhecemos é a moderna? Já novos padrões racionais.
ocorrera aí alguma descontinuidade na Na primeira parte, apresentamos o
razão? Esse é o nosso ponto chave. Con- conflito teórico entre o pensador fran-
forme entendiam muitos epistemólo- corruso e os epistemólogos positivis-
gos, entre os quais constam os positi- tas, no qual aquele explica a ciência
vistas, a inauguração da ciência deu-se pelo primado da teoria e estes, pelo da
no século XVII. Antes, não havia ciên- técnica, empiria e pelo anseio prático,
cia, mas filosofia, pensamento mágico, ativo da ciência moderna. Procuramos
misticismos, religião, que só atrapalha- mostrar que os absolutos também pere-
ram o surgimento do pensamento ci- cem, que não há verdades eternas e que
entífico. Koyré aborda a ciência, a fi- fundamentos vívidos por mais de um
losofia e a religião como expressões da milênio podem virar escombros, pondo
racionalidade. É com a ciência e a filo- em relevo conflitos teóricos.
sofia antigas e medievais majoritária à Na segunda parte, trouxemos à tona,
época que a ciência moderna rompeu, apresentando-se como perecíveis os ab-
mas não afirmando que antes só havia solutos, a impossibilidade de conside-
o irracional, crenças infundadas, mas rarmos a razão como imóvel, avessa a

308 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 293-311
ISSN: 2317-9570
CONSIDERAÇÕES SOBRE A RELAÇÃO ENTRE FILOSOFIA E CIÊNCIA EM ALEXANDRE KOYRÉ A PARTIR DE
UMA QUESTÃO

quaisquer mutações internas, refratária atuam sobre eles são controladas por
a transformações nos princípios racio- raciocínios. Doravante, pôde-se racio-
nais. Pelo contrário, qualquer episte- cinar de outra forma, pensando corpos
mologia deve levar em conta a histó- em um espaço matemático, com esses,
ria, haja vista a racionalidade ser his- inclusive, adotando certas característi-
tórica, mudar de tempos em tempos. cas dos entes matemáticos.
Portanto, como a razão tem sua histori- Enfim, na quarta e última parte
cidade, marcada por cortes, a epistemo- do nosso artigo, respondemos à ques-
logia tem de ser descontinua. tão apresentada na “Introdução”, mos-
Na terceira parte, em compromisso trando que a revolução científica
com a clareza e com o pensamento de do século XVII foi um dos rompi-
Koyré, pusemos em tela a explicação mentos racionais cujas consequências
koyreana da emergência da ciência mo- configuraram-se entre as mais impor-
derna. Segundo o historiador-filósofo, tantes. Imponente, tal revolução exa-
o que marca, superficialmente, a revo- rou, profundamente, novas bases raci-
lução supracitada é o matematismo, en- onais. Explicamos, em linhas gerais,
tendido como poder criativo da mate- que Koyré abarcou como racionais e
mática e não como poder quantificador até científicas áreas do saber lançadas
do real. A grande revolução teórica foi, ao ostracismo da irracionalidade, da
deveras, a matematização do mundo. crença, da superstição e da especula-
Mas, o que possibilitou tal matemati- ção sem fundamento e irregrada. Daí,
zação, característica primordial da ci- tornou-se possível demonstrar que a re-
ência a partir da física clássica? Ora, volução científica do século XVII deu-
de certo, o que foi o pressuposto da se em rompimento com ideias perten-
citada matematização, o que a tornou centes a diversos campos do saber; daí,
possível, configura-se como o mais pro- o historiador-filósofo pôde apresentar
fundo, o traço mais tenaz, da revolução. a revolução científica promulgada por
Trata-se da substituição do espaço aris- Galileu e Descartes como uma rup-
totélico, um espaço empírico, compre- tura interna da racionalidade, porque
endido como um conjunto de lugares, se aqueles pensamentos pré-modernos
pela ideia de universo infinito, sem hie- são racionais assim como a ciência mo-
rarquia ontológica e coincidente com o derna, romper com eles é refratar ou-
espaço da geometria euclidiana. Não há tra racionalidade, que não deixar de ser
mais mundos regidos por distintas leis; uma racionalidade por ser outra. Pondo
mundo sublunar e supralunar fundem- na esfera da razão tais esferas do pen-
se, formando um todo homogêneo. Os samento, a filosofia koyreana trabalha
corpos pesados, agora, podem ser pen- com a ideia de que toda revolução cien-
sados em um espaço cujas forças que tífica tem como pano de fundo uma am-

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 293-311 309
ISSN: 2317-9570
FILIPE MONTEIRO MORGADO

biência teórica, gestada pela ciência, fi- demos distinguir, de fato, muito bem a
losofia, religião, teologia e até pelo pen- filosofia da religião e estas duas da ci-
samento místico ou mágico. Doravante, ências. Mas, enquanto pertencerem ao
gizar até onde vai a filosofia no campo campo da razão, umas influenciarão as
científico e vice-versa mostra-se como outras. O terreno da razão é, assim en-
uma tarefa intangível. Suas fronteiras tendido, múltiplo e dinâmico, tanto em
não são tão claras. Até certo ponto, po- áreas quanto em princípios.

Referências
BACHELARD, Gaston. A formação do espírito científico: contribuição para uma psicanálise do conhecimento. Tradução de
Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.
BERGÉ, Pierre; POMEAU, Yves; DUBOIS-GANCE, Monique. Dos Ritmos ao Caos. Tradução de Roberto Leal Ferreira.
São Paulo: Editora UNESP, 1996.
BLANCHÉ, Robert. A Ciência Actual e o Racionalismo. Tradução de Maria José Andrade. Porto: Rés, 1983.
BULCÃO, Marly. O Racionalismo da Ciência Contemporânea: Uma Análise da Epistemologia de Gaston Bachelard. Rio de
Janeiro: Edições Antares, 1981.
_____. “Uma reflexão sobre a concepção de história das ciências: Koyré e seus contemporâneos”. In: SALOMON, Marlon
Jeison (org.). Alexandre Koyré. Historiador do Pensamento. Goiânia: Almeida Clément Edições, 2010.
COTTINGHAM, John. Dicionário Descartes. Tradução: Helena Martins. Rio de Janeiro: Zahar, 1995.
DESCARTES, René. Meditações sobre Filosofia Primeira. Coleção Multilíngues de Filosofia. Tradução: Fausto Castilho.
Campinas: Editora da UNICAMP, 2013.
_____. Oeuvres de Descartes. Vol. I. Ed. de Ch. Adam P. Tannery. Paris: Vrin, 1897.
_____. Princípios da Filosofia. Tradução de João Gama. Lisboa: Edições 70, 1997.
FERREIRA, Fábio. “Alexandre Koyré e o Pensamento Científico”. In: SALOMON, Marlon Jeison (org.). Alexandre Koyré:
Historiador do Pensamento. Goiânia: Almeida e Clément Edições, 2010.
FRIAÇA, Amâncio. “Cronos e Cosmos”. Ciência e Cultura, São Paulo, 2002, v. 54, n. 2, pp. 37-40. Disponível em
<http://cienciaecultura.bvs.br/pdf/cic/v54n2/14811.pdf>: acessado em [14/01/2020].
GAULT, Jean Louis. “O nascimento da ciência moderna. Uma leitura de ‘A ciência e a verdade’”. Arquivos Brasileiros de
Psicologia, Rio de Janeiro, 2015, v. 67, n. 2, pp. 156-161.
Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/pdf/arbp/v67n2/12.pdf>: acessado em [16/01/2020].
IANNINI, Gilson. “A estrutura e seus efeitos: o simbólico de Lévi-Strauss a Lacan, via Koyré”. Coringa, Belo Horizonte,
2011, n. 32, pp. 117-132.
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Tradução de Valerio Rohden e Udo Baldur Moosburger. São Paulo: Editora
Nova Cultura Ltda, 1999.
KOYRÉ, Alexandre. “As etapas da cosmologia científica”. In: Estudos de História do Pensamento Científico. Tradução de
Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011a.
_____. “As origens da ciência moderna: uma nova interpretação”. In: Estudos de História do Pensamento Científico.
Tradução de Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011b.
_____. “Da influência das concepções filosóficas sobre a evolução das teorias científicas”. In: Estudos de História do
Pensamento Filosófico. Tradução de Márcio Ramalho. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011c.
_____. Do Mundo Fechado ao Universo Infinito. Tradução de Donaldson M. Garschagen. Rio de Janeiro: Forense Univer-
sitária, 2006.
_____. Études Galiléennes. Paris: Hermann, 1966.
_____. “Galileu e a revolução científica do século XVII”. In: Estudos de História do Pensamento Científico. Tradução de
Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011d.
_____. “Galileu e Platão”. In: Estudos de História do Pensamento Científico. Tradução de Maria de Lourdes Menezes. Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 2011e.
_____. “Uma experiência de medida”. In: Estudos de História do Pensamento Científico. Tradução de Maria de Lourdes
Menezes. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011f.
LIMA, Cláudia Henschel de; FERREIRA, Marcio Ramos. “Lacan com Koyré: teoria do sujeito e suas incidências clínicas”.
Arquivos Brasileiros de Psicologia, Rio de Janeiro, 2015, v. 67, n. 1, pp. 37-50.
Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/pdf/arbp/v67n1/04.pdf>: acessado em [16/01/2020].

310 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 293-311
ISSN: 2317-9570
CONSIDERAÇÕES SOBRE A RELAÇÃO ENTRE FILOSOFIA E CIÊNCIA EM ALEXANDRE KOYRÉ A PARTIR DE
UMA QUESTÃO

MOLES, Abraham A. A criação científica. Tradução de Gita K. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2010.
SALOMON, Marlon Jeison. “Alexandre Koyré e o nascimento da ciência moderna” in. SALOMON, Marlon Jeison (org.).
Alexandre Koyré. Historiador do Pensamento. Goiânia: Almeida Clément Edições, 2010.
_____. “Entre história das ciências e das religiões: o problema da temporalidade histórica em Lucien Febvre e Ale-
xandre Koyré no entreguerras”. História da Historiografia, Ouro Preto, n. 19, 2015, p. 107-123. Disponível em
<https://www.historiadahistoriografia.com.br/revista/article/view/943/598>: acessado em [10/01/2020].
_____. “Entre museus e cemitérios, entre monstros e fantasmas: a história das ciências em Gaston Bachelard e Alexandre
Koyré”. Anais Eletrônicos XXVI Simpósio ANPUH, São Paulo, 2011.
Disponível em <http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1300880942_ARQUIVO_Bachelard,Koyre-
museusecemiterios.pdf>: acessado em [25/12/202019].
_____. “O problema do pensamento outro em Alexandre Koyré e Lucien Febvre”. História da Historiografia, Ouro Preto,
n. 15, 2014, p. 124-147.
Disponível em <https://www.historiadahistoriografia.com.br/revista/article/view/715/470>: acessado em [11/0-
1/2020].

Recebido: 29/01/2020
Aprovado: 13/07/2020
Publicado: 30/12/2020

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 293-311 311
ISSN: 2317-9570
DOI: https://doi.org/10.26512/rfmc.v8i2.30128

Crítica da Finalidade à Racionalidade Científica: A Perda Radical


do Mundo-da-Vida
[ Critique of Purpose to Scientific Rationality: The Radical Loss of the Lifeworld ]

Rafael Ferreira*

Resumo: A crítica da finalidade expõe os limites da racionalidade científica. Como


produto desta, deseja-se interrogar as consequências do objetivismo em sua relação com
o afastamento do mundo-da-vida (Lebenswelt). Teremos como ponto inicial uma crítica
da razão científica a partir dos fundamentos anunciados por Edmund Husserl no que
tange pensar uma fenomenologia da crise. Com efeito, o argumento fenomenológico
buscará elementos de que o empreendimento da racionalidade teleológica moderna
limitou a própria forma de pensar e fazer ciência e, portanto, conduzindo a humanidade
a um abandono do mundo moral. Portanto, ao voltar-se para o horizonte vital do
mundo-da-vida, se exige a necessidade da própria negação do objetivismo como uma
atitude necessária para a renovação.
Palavras-chave: Atitude fenomenológica. Mundo vital. Edmund Husserl.

Abstract: Criticism of purpose exposes the limits of scientific rationality. As a product


of this, we want to question the consequences of objectivism in its relationship with
the departure from the lifeworld (Lebenswelt). We will start with a critique of scientific
reason based on the foundations announced by Edmund Husserl regarding the pheno-
menology of the crisis. Indeed, a phenomenological argument will seek elements that
the enterprise of modern teleological rationality has limited the very way of thinking
and doing science and, therefore, leading humanity to an abandonment of the moral
world. Therefore, in turning to the vital horizon of the life-world, there is a need for the
very negation of objectivism as a necessary attitude for renewal.
Keywords: Phenomenological attitude. Vital world. Edmund Husserl.

* Doutorando em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA) da Universi-
dade Federal do Pará (UFPA). Mestre em Ciências Humanas e Sociais Aplicadas pela Faculdade de Ciências Aplicadas da Universi-
dade Estadual de Campinas (Unicamp). Bacharel e licenciado em Geografia pela Universidade Federal do Amapá (UNIFAP). E-mail:
rbferreira.geografia@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9964-8282.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 313-331 313
ISSN: 2317-9570
RAFAEL FERREIRA

A crítica fenomenológica da finali- coisas, o objetivismo teria, com efeito,


dade põe em questão uma reflexão so- negligenciado a dimensão subjetiva do
bre o sentido, a tarefa última e genuína mundo em detrimento de conduzir a ci-
da ciência. A fenomenologia husser- ência a “meras ciências de fato”. Se jul-
liana oferece argumentos importantes garmos que o objetivismo pode em um
sobre este debate, especialmente, nos determinado momento ser sinônimo de
seus últimos escritos sobre a “Crise”: ciência positivista, Bech (2001, p. 87)
Die Krisis der europäischen Wissenschaf- contribui quando argumenta que esta
ten und die transzendentale Phänomeno- “[...] hace abstracción 1) de la subjeti-
logie, 1936. Uma reflexão crítica sobre vidad, y 2) del sentido inherente a los
a perda de sentido das ciências, na vi- hechos, y con ello ignora los problemas
agem do século XIX, pontua uma ta- vitales de la humanidad. La crisis de las
refa fenomenológica genuína sobre as ciencias equivale a una crisis de los va-
possibilidades de um redirecionamento lores [...]”. Tão logo, se a crise das ciên-
do ethos da ciência. Neste artigo va- cias conduziu a própria crise da huma-
mos dar passos menores sem qualquer nidade, toda o nosso espírito (Zeitgeist)
pretensão de abarcar toda a problemá- adoeceu.
tica. Estritamente, objetivamos apre- Portanto, argumentar a recuperação
sentar alguns pontos de uma crítica do mundo-da-vida significa, um re-
fenomenológica à ciência moderna no torno aos fins, aos homens, ao sentido,
que tange os questionamentos ao obje- as metas, as ações. Não temos dúvidas
tivismo como uma faceta exacerbada da que tais questionamentos ainda podem
racionalidade científica moderna. Em nos servir na atualidade quando pen-
primeiro momento, deseja-se compre- samentos os caminhos metodológicos,
ender os argumentos de Husserl acerca por exemplo, de boa parte das ciên-
do pronunciamento de uma crise das cias humanas. Uma postura que ad-
ciências, tal como, o próprio sentido vém do antigo racionalismo – ainda vi-
desta crise. gente – pode ser observado quando o
Em um segundo momento, após con- trabalho científico se volta tão somente
siderar o objetivismo como uma face da às suas próprias obras (seu melhora-
racionalidade (ingênua), interpretare- mento técnico e metódico) e, por ou-
mos a ocorrência de uma espécie de co- tro lado, a desconsideração da dimen-
lonização do mundo-da-vida pelo ob- são inter e subjetiva do mundo-da-vida
jetivismo. Se as ciências estraram em como solo vital pré-científico e antepre-
crise, conforme acusou Husserl (2012a) dicativo. E este argumento não é mera
na década de 1930, grande parte deste especulação: os estudos que mantenho
problema se deve a um desvirtuamento
de sentido teleológico. Entre outras

314 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 313-331
ISSN: 2317-9570
CRÍTICA DA FINALIDADE À RACIONALIDADE CIENTÍFICA: A PERDA RADICAL DO MUNDO-DA-VIDA

na ciência geográfica (humana)1 tem Redução dos homens a meras coisas,


me mostrado que muitas investigações meros fatos
ainda pouco se interessam pelo desco-
brimento do mundo-da-vida como um
solo de validades. Tão logo, a subjeti- A racionalidade científica moderna
vidade passa a conotar pejorativamente desencadeou uma interpretação de
como um procedimento “pouco cientí- mundo pautado no objetivismo (Ob-
fico”. Mesmo que o caráter objetivista jektiv). A consequência deste pressu-
não seja o mesmo do início do século posto conduziu a uma ideia de que o
XX, ainda se faz necessário argumentar mundo só poderia ser enunciável atra-
a necessidade do mundo-da-vida como vés de uma ciência objetiva, isto é, o ob-
solo fundante de toda cientificidade, e jetivismo como o caminho convicto de
mais, a sua anulação possibilitaria uma uma verdade. Mesmo com o diagnos-
nova aproximação com a filosofia e re- tico problemático em torno do sentido
tomada de reorientação da própria ci- e da razão científica, Husserl (2012a,
ência. p. 1) faz um questionamento de saída:
Tornar claro, a partir de certas regras “Há efetivamente, em face de seus cons-
lógicas é pressuposto para qualquer ci- tantes êxitos, uma crise das ciências?” É
ência. Não seria esta a tarefa científica neste horizonte que recorremos aos es-
e filosófica que move o pensamento de critos da fenomenologia da crise com
todos nós, “homens do conhecimento”? fins de clarear melhor a crítica husser-
O que há então de problemático nesta liana no que tange a atitude objetivista
questão? A resposta é pontual: a fina- da ciência.
lidade. Iniciamos então a tentativa de Husserl (2012a) em seu primeiro pa-
explorar e descrever fenomenologica- rágrafo anuncia uma crise das ciên-
mente o quanto se tornou duvidoso este cias, erguendo que toda a sua cienti-
projeto de caráter teleológico, questio- ficidade tornou-se questionável: sua ta-
nando o ethos da ciência e, por conse- refa e metodologia. Crise significa, as-
guinte, apontando para a problemática sim entende-se em seu primeiro espec-
do telos. tro negativo, perda de sentido (da vida,
da razão de ser, dos valores) que per-
passa por uma tomada objetivista da
vida. Em seu caráter positivo e origi-
nal, quer dizer “escolha” ou “decisão”.
Porém, antes de entrarmos na obra é
preciso considerar que o tema da crise

1 A geografia humanista e fenomenológica (de base hedeggeriana, husserliana, Merleau-pontyana, etc.), com exceção, tem oferecido
novos horizontes de estudo.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 313-331 315
ISSN: 2317-9570
RAFAEL FERREIRA

(falo aqui em sentido lato: espiritual e Em primeiro lugar por que Husserl fala
existencial) em Husserl não se localiza em uma crise das ciências e em perda
em uma única obra ou circunscrita em vital? Qual é o seu sentido? Para Zilles
lugar específico, mas faz parte de todo (2008, p. 48) “A crítica de Husserl ao
um movimento filosófico, seja em sua objetivismo da ciência gira, pois, em
forma velada ou não. O que se pre- tomo de dois aspectos: a) o esqueci-
tende dizer? Nas “Investigações Lógi- mento do sujeito e de seu mundo vital;
cas” (Logische Untersuchungen: prolego- b) a perda da dimensão ética, pois o mé-
mena zur reinen Logik, 1900), Husserl todo matemático objetivista renuncia
(2015) apresenta uma refutação siste- explicitamente a tomar posição sobre
mática do psicologismo. Certamente, o mundo do dever-ser”. Vamos pon-
já evidenciava o desvio de sentido e tuar melhor algumas dessas questões.
tarefa que as ciências (especialmente, Husserl aponta que o racionalismo (in-
a psicologia) e a própria filosofia ti- gênuo) – positivo – cegou às questões
nha tomado. Um outro acontecimento últimas da ciência em detrimento de
refere-se as duas importantes perdas um ideal de prosperity e, portanto, toda
que Husserl teve durante a Primeira sua cientificidade tornou questionável.
Guerra Mundial: a morte no campo de Esta crítica não recai tão somente as ci-
batalha de seu filho Wolfgang Husserl, ências naturais, mas vale igualmente
em março de 1916 (BRUZINA, 2004) para as ciências do espírito pois estas
e, posteriormente, seu amigo e discí- teriam adquirido o ideal de exatidão
pulo Adolf Reinach, em novembro de das ciências da natureza. Este aconteci-
1917 (MORAN, 2000). A decadência mento é evidente quando olhamos para
moral da guerra aumentou e reafirmou a divisão entre geografia física e geo-
o sentido de crise em Husserl. Desde grafia humana: a primeira, na metade
1900 quando tenta corrigir a psicologia dos anos 1950, sofreu fortes influências
de sua tarefa em fundamentar a lógica dos pressupostos neopositivas e passou
(FABER, 1943) e, posteriormente, ques- a compreender, por exemplo, o espaço
tionando os rumos da filosofia (HUS- geográfico de modo contrastante com a
SERL, 1965) em Philosophie als strenge geografia humana.
Wissenschaft (1910), a tarefa fenomeno- Se as ciências do espírito se deixa-
lógica husserliana (seja da lógica, das ram levar pelo rigor positivista, Husserl
ideias, da renovação e, sobretudo, da desse modo, vai considerar que uma
crise) sempre teve como problema pa- crítica séria e necessária se deveria re-
tente o horizonte de realização da ciên- alizar, sobretudo, porque a crise repre-
cia e da filosofia. sentou um adoecimento espiritual. Po-
Nas linhas a seguir daremos atenção rém, uma pergunta ainda permanece:
a “Crise”, especialmente, no § 1 e § 2. porque as ciências do espírito não con-

316 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 313-331
ISSN: 2317-9570
CRÍTICA DA FINALIDADE À RACIONALIDADE CIENTÍFICA: A PERDA RADICAL DO MUNDO-DA-VIDA

seguiram realizar o rigor que as ciências sempre dizer sobre as coisas do mundo
da natureza impuseram e, conseguinte- e construir imperativos de validades.
mente, salvar a Europa de sua crise hu- Na sua fase moderna elas passaram a
manitária? Se a humanidade europeia dizer muito devido a uma autoconsci-
caiu em decadência cultural cabe as ci- ência de si – enquanto “sujeitos” que
ências do espírito sua parcela de culpa. apresentam resultados e verdades. A
Porém, não se pode tomar a crítica hus- partir de certas regras – que se consti-
serliana como uma espécie de irracio- tuíram intuitivamente em seu mundo
nalismo ao ponto de questionar as re- circundante – determinam predicativos
alizações científicas, mas tão somente sobre as coisas. “O método tecnicizado
se questiona “[...] todo modo como ela decorre de uma operação com signos e
definiu a sua tarefa [...]” (HUSSERL, palavras irrefletidos, esvaziados de sua
2012a, p. 1). Caberia reorientar as ci- significação e de seus modos de validez
ências e guiá-las a uma espécie de um originais e próprios” (HUSSERL, 2009,
racionalismo autêntico, isto é, resolver p. 666). Ainda no texto, Husserl as-
os problemas espirituais dos homens. sinala que os cientistas já algum tempo
Um outro questionamento emerge: por teriam deixado de se preocupar sobre as
que Husserl entende que a crise das ci- questões últimas da razão. Com efeito,
ências conduziu a própria crise da hu- sem hesitar, passam a buscar tão so-
manidade europeia? Para ele o projeto mente os conhecimentos produzidos e
da razão, como uma escolha do mundo acumulados, isto é, voltando-se para o
europeu, forjou modos de viver e de se seu próprio material histórico, para si
satisfazer, isto é, somos (enquanto oci- mesmos – seus questionamentos e fina-
dente) fruto de uma ciência que buscou lidades. Portanto, para Husserl pecam
a todo o momento o conhecimento e em compreender os problemas relati-
esclarecimento e, portanto, não pode- vos de seus próprios processos histó-
ríamos pensar o contrário: a ciência é ricos, por isso, não negam os conheci-
parte da formação cultural e espiritual mentos acumulados, mas sim, buscam
da nossa humanidade (ocidental), que aprimorá-los. É neste cenário que os
se inicia na filosofia grega (HUSSERL, cientistas têm sido educados: reconhe-
2012b). cendo apenas sua história e limitados
Em “A ingenuidade da ciência” em compreender a historicidade que
(Die Naivität der Wissenschaft)2 Husserl formaram as teorias e práticas – isto é,
(2009) considera que as ciências, em sua a razão e a subjetividade constituidora.
produção histórica, pretenderam desde

2 Texto redigido provavelmente em outono de 1934 (encontra-se inserido no volume XXIX da Husserliana). Cf. HUSSERL, E, Die
Krisis der europäischen wissenschaften und die transzendentale Phänomenologie. Ergänzungsband: Texte aus dem Nachlass 1934-1937.
Herausgegeben von Reinhold N. Smid. Husserliana vol. XXIX, Dordrecht: Kluwer, 1993.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 313-331 317
ISSN: 2317-9570
RAFAEL FERREIRA

O pensar se torna um pensar terpretar a ciência, embora, intrinseca-


com sucedâneos, que no âmbito mente relacionadas: a ciência empírica
dessa técnica possuem evidên- enquanto aquela que busca leis claras,
cia própria, estabelecimento de coordenadas e dedutivas; e a ciência ra-
finalidades próprias, tarefas e cionalista que condiciona suas realiza-
resoluções de tarefas próprias, ções ao imperativo das provas e aplica-
separadas de toda evidência das ção. Pensamos que ambas condicionam
finalidades, das tarefas e dos suas preocupações na manutenção de
caminhos de soluções indica- lógicas metodológicas e teóricas inter-
dos originalmente por aquelas nas. Dilthey (2002) usa o termo ciências
palavras e signos (HUSSERL, explicativas (que seriam as ciências da
2009, p. 666). natureza) em sua obra “Ideias para uma
psicologia descritiva e analítica” (Ideen
über eine beschreibende und zergliedernde
No prefácio, em “A filosofia do não”, Psychologie).
Bachelard (1974, p. 164) nos fornece re- Husserl (2012a) vai, com efeito, con-
flexões sobre esta questão. Diz ele: “O siderar no § 2 da que a perda de signi-
espírito científico só se pode construir ficância das ciências para a vida ocorre,
destruindo o espírito não científico”. portanto, porque elas se tornaram me-
Não temos aí uma crítica a-histótica ras ciências de fatos. O ideal de prospe-
sobre a ciência, Bachelard (1884-1962) ridade, conforme supracitado, teria ce-
enquanto filosófico e poeta do final do gado o homem para as questões decisi-
século XIX, vê no século XX um mundo vas da humanidade e para as possibili-
cada vez mais direcionado a uma ra- dades de uma vida autêntica e genuína.
cionalidade, especialização e normati- Tão logo, “meras ciências fatos fazem
zação da vida. Para o autor a raciona- meros homens de fatos” e, de forma
lidade que conduz a ciência moderna mais radical considerou: “Na urgência
vem antes de qualquer pretensão me- da nossa vida – ouviremos – esta ciên-
tafísica ou filosófica. O que isso signi- cia nada tem a nos dizer” (HUSSERL,
fica e o que está em jogo? Pode-se afir- 2012a, p. 3). As questões últimas – já
mar que as pretensões científicas mo- demasiadamente em referência – quer
derna (igualmente, as ciências atuais) problematizar sobre o sentido de toda
não tem interesse às “grandes questões. existência humana, ou melhor, o que
Conforme Bachelard, o racionalismo teria a ciência a dizer sobre a razão, so-
científico quer aplicar-se. “Se aplica bre homens e sua liberdade. Portanto, a
mal, modifica-se. Não nega por isso os mera ciência teria subtraído todo o as-
seus princípios. Dialetiza-os” (BACHE- pecto subjetivo da vida. É nesse sentido
LARD, 1974, p. 163). Neste cenário, que a ingenuidade da ciência passa, ne-
para o autor haveria duas formas de in-

318 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 313-331
ISSN: 2317-9570
CRÍTICA DA FINALIDADE À RACIONALIDADE CIENTÍFICA: A PERDA RADICAL DO MUNDO-DA-VIDA

cessariamente, por uma crítica do his- Tomemos uma situação como exem-
toricismo e por uma não tematização da plo: uma estudante de Biomedicina,
razão (HUSSERL, 2009). A ingenuidade certamente encantada com a sua ciên-
da ciência residiria na própria falta de cia, não hesitou em afirmar que a sua
interesse em querer saber de seus pró- disciplina se constituía como a verda-
prios atos e caminhos trilhados. Em deira ciência. Tal afirmação direcio-
geral, a acumulação e o aprimoramento nada a mim buscava tão-somente des-
tornaram-se um exercício cotidiano e, construir a tarefa científica da geogra-
com isso, limitando-se a sua mera pre- fia (minha primeira formação) como se
tensão de atitude prática e não mais de esta estivesse fora dos padrões de ciên-
atitude teórica, conforme fora condu- cia: que mede, calcula, aplica, formula,
zido a cientificidade na Grécia (HUS- soma, faz experimentos, etc. Tal pen-
SERL, 2012a). samento, a partir de uma compreensão
Após todo o empreendimento cientí- de ciência empírica e racionalista evoca
fico no que diz respeito ao que se tornou um certo espírito e juízo que faz refle-
brilhantemente com êxito, um certo es- tir na estudante uma crença ingênua
pírito de fazer ciência passou a vigorar no seu ideal de ciência. Nesta situa-
e a impor a realidade mundana sob leis ção, o reducionismo reside sobre um
naturais de explicação. Isso significou tipo de parâmetro de ciência que não
que todos os eventos humanos (históri- ultrapassa suas próprias idealizações e,
cos e culturais) ficaram condicionados portanto, o que é ciência, seu sentido e
sobre estes preceitos. Este espírito ci- finalidade é algo totalmente ignorado.
entífico conduziu então a uma natura- É claro, estas situações não podem ser
lização das ideias, ou conforme aponta vistas como algo particular às ciências
Husserl (1965), uma naturalização da exatas e naturais, mas sobretudo e de
consciência. Husserl está expondo uma um modo diferente, no seio das pró-
preocupação já pontada no início deste prias ciências humanas e sociais. A se-
trabalho: quando fundamentações ge- guir vamos pontuar algumas questões,
rais entram em curso e pouco se sabe de já mencionadas por alto, sobre a crítica
seus fins e, sobretudo, as possibilidades husserliana posta em “A filosofia como
claras dessa realização a tarefa genuína ciência de rigor”.
de uma ciência de rigor desabe ao fra-
casso. As ciências positivas (como as
exatas e biológicas) conseguiram reali-
zar esta tarefa de rigor, porém, apenas A crítica ao naturalismo e ao histori-
pela metade, uma vez, faltar-lhe crítica cismo
interna e conhecimento acerca de seus
fins. Toda a turbulência que as ciências pas-
saram nas décadas anteriores, que ex-

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 313-331 319
ISSN: 2317-9570
RAFAEL FERREIRA

puseram, hora ou outra, uma crítica à se que em 1905 Husserl realizou uma
sua validade ser, é de se notar que na visita a Dilthey em Berlim após saber
atualidade ela nunca esteve tão segura que este explanou sobre sua obra (“In-
e sólida de seu papel. Mesmo após a vestigações Lógicas”) em um seminário.
decaída ética no passar de duas guer- Noutro momento, em 1910, Dilthey en-
ras mundiais, toda a sua produção de via a Husserl uma cópia de sua obra,
conhecimento não perdera validade, ao “A construção do mundo histórico nas
contrário, melhorou-se o seu nível téc- ciências humanas” (Der Aufbau der ges-
nico e metodológico e, portanto, cami- chichtlichen Welt in den Geisteswissens-
nhando para pesquisas de cunho mais chaften). No ano seguinte houve corres-
objetivistas. Este “mundo” científico, pondências sobre a recente publicação
dado como “verdadeiro”, revela por trás de Husserl, “A filosofia como ciência
pressupostos epistemológicos, que por de Rigor” publicada na revista Logos
vezes se divergem, no entanto, se con- (DRUMMOND, 2007). Um fato inte-
vergem ao tornar a ciência objetivista: ressante, é que Husserl utilizou alguns
de um lado temos o naturalismo e do termos de Dilthey como, “ciências do
outro o advento do historicismo. espírito”, ou mesmo, a própria compre-
A fim de estreitar este debate ire- ensão de vida e vivência trabalhada nos
mos mobilizar dois filósofos: Edmund seus últimos escritos (Krisis). De forma
Husserl e Wilhelm Dilthey. Pretende- breve se apresentará a crítica ao histo-
se com os autores dar continuidade a ricismo e ao naturalismo no horizonte
crítica epistemológica às ciências cons- problemático aqui em questão: a racio-
tituídas positivistas no final do sé- nalidade e o objetivismo.
culo XIX. Buscaremos apresentar o pro- Husserl (1965) nas primeiras linhas
blema dos temas anunciados visando do tópico, “A filosofia naturalista”, faz
compreender as análises e, por conse- de imediato uma primeira consideração
guinte, uma questionabilidade ao co- de fato: o naturalismo como consequên-
nhecimento produzido – sobre o obje- cia do descobrimento da natureza con-
tivismo da ciência moderna. É preciso siderada como unidade do ser espaço-
deixar claro que ao trazer os dois auto- temporal conforme as leis naturais exa-
res para esta seção não se trata de uma tas. A fonte originária desses princípios
escolha meramente casual ou por con- é um advento que vem desde a mate-
vergências de temáticas, ao contrário, mática de Galileu (HUSSERL, 2012a),
tiveram eles ricas aproximações filosó- até sua afirmação com os pressupostos
ficas. Embora não seja muito menci- da geometria analítica e a ideia da natu-
onada ou referenciada, diálogos entre reza de Descartes (res extensa). Por seu
Husserl e Dilthey, ocorreram em certos turno, o historicismo se ergue – como
momentos e em certas temáticas. Sabe- tarefa – nas ciências do espírito como

320 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 313-331
ISSN: 2317-9570
CRÍTICA DA FINALIDADE À RACIONALIDADE CIENTÍFICA: A PERDA RADICAL DO MUNDO-DA-VIDA

fonte essencial de sua própria idealiza- de uma racionalidade é posta em jogo


ção, entendimento e realização. Assim, não porque se trata apenas de ques-
estas ciências se constituíram pelas suas tionar e argumentar os pressupostos
sucessões históricas. metodológicos ou lógicos das ciências,
Com feito, no campo de suas verda- mas sim, porque o homem e sua ex-
des, agora em jogo de um lado o natu- periência mundana ficou negligenciada
ralismo das ciências exatas e a criação no que tange a subjetividade transcen-
histórica das ciências do espírito, Hus- dental (HUSSERL, 2012a) e, por ou-
serl aponta que esta condição possibi- tro, tornando-se um mero sujeito a-
litou um tipo de falsificação sobre do histórico (DILTHEY, 2010a). Não en-
que elas poderiam e não poderiam fa- tanto, é preciso considerar: “[...] se
zer conforme seus modos (objetivos) de puede entender que Dilthey no admita
investigação. Desse modo, as ciências pensar al hombre como un sujeto pura-
de um lado se afirmaram sob a base da mente trascendental, desarraigado de la
racionalização das coisas e, por outro, dimensión histórica que, en definitiva,
vislumbrando o avanço das técnicas e alberga momentos tales como signifi-
sua própria transformação nas diversas cación, sentido, valor, etc.” (SALDES,
áreas do saber. 2006, p. 70). Certamente, não dese-
jamos entrar no campo das divergên-
A construção das ciências natu- cias entre Husserl e Dilthey, embora
rais é determinada pelo modo uma consideração é necessária: a ta-
como seu objeto, a natureza, é refa de Husserl caminhava para a cons-
dado. Imagens vêm à tona em tituição da fenomenologia transcenden-
uma alternância constante; es- tal e questionava Dilthey sobre o pro-
sas imagens são ligadas a obje- blema histórico como fundamento de
tos, esses objetos preenchem e compreensão total da vida humana –
ocupam a consciência empírica existências e significados. Cabe ressal-
e formam o objeto da ciência tar, como lembra Gros (2009), que ape-
natural descritiva (DILTHEY, sar de tais afinidades (temas, palavras e
2010a, p. 33). ideias) existirem entre os autores (críti-
cas ao projeto das ciências positivistas)
não são homólogos.
Não há dúvidas, que uma crítica No corpo da crítica historicista e na-
analítica tanto em Husserl como em turalista que Husserl (1965) aponta na
Dilthey não se apresentam como ar- sua pretensão de uma “ciência rigo-
gumentações contra as ciências natu- rosa” um fato é evidenciado no início
rais e exatas, mas sobretudo, as pró- desde texto: o sucesso da ciência posi-
prias ciências do espírito (ou humanas) tivista para o autor não se deu mera-
(DILTHEY, 1949). De fato, a análise

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 313-331 321
ISSN: 2317-9570
RAFAEL FERREIRA

mente de forma casual, mas sim, pelo toda as suas possibilidades do conheci-
sucesso de afirmação de seus métodos mento. No entanto, como aponta Silva
tanto no nível prático e teórico. Não (2009) no campo do relativismo histó-
obstante, para Husserl (2012) esta con- rico isso significou uma certa ausência
dição fez pretender que tais ciências es- teórica e prática. Assim, o positivismo
tariam com competências de conduzir se desencadeou com sucesso na forma-
as possibilidades do conhecimento. Re- ção espiritual nas ciências humanas ao
tornando para uma visualização das ci- comtemplarem a história como seu solo
ências humanas e paralelamente com fundante sem questionabilidade. Para
todo o progresso das ciências naturais Dilthey (2010b, p. 37) “[...] as ciências
e sua influência no horizonte do conhe- humanas não formam um todo dotado
cimento, as ciências do espírito repou- de uma constituição lógico [...]”, ao con-
sam na construção do mundo histórico. trário do conhecimento natural (HUS-
Embora apresente a crítica ao natura- SERL, 1965, DILTHEY, 2010b).
lismo, por um lado, Dilthey entendeu Husserl ao apontar a “filosofia como
que todo saber da ciência encontra-se ciência rigorosa” estava comprometido
na natureza e, por outro, acreditou que com que Descartes iniciara no século
no século XX as ciências do espírito XVII: a filosofia como ciência univer-
sofriam de um mal historicista (rela- sal e absoluta. Nesse sentido, a filosofia
tivismo) (SILVA, 2009). Ainda segundo como ciência primeira (antes das ciên-
Silva compreender o campo de reflexão cias) diante de uma crise, por pretender
crítica do historicismo abrange alguns ser também positivista, devia voltar-se
temas decisivos para uma análise pro- ao rigor de uma metodologia que reer-
blematizando. O autor aponta 5 pontos guesse a própria tarefa universal como
do qual nos interessa dois: a) A limi- balizadora da genuína ciência (até en-
tação da pesquisa histórica à coleta e tão em crise). Assim, a própria ciência
estabelecimento de dados históricos, ou teria sua tarefa.
seja: positivismo e objetivismo histó-
ricos (como, por exemplo, R. Eucken
sobre a tendência científica do século La ciencia que dispone de un
XIX); b) A relativização de todos os sis- fundamento universal y apo-
temas de valores e de orientação a pro- díctico y que a su vez propor-
pósito dos fenômenos do passado no ciona tal fundamento, surge de
fluxo imprevisível da história, ou seja: ahí como la función humana
relativismo histórico (como denotam necesariamente más alta: como
muitos autores no início do século XX). lo he dicho, su función es per-
Nesse sentido, na arena da histó- mitir a la humanidad desarrol-
ria as ciências do espírito depuseram larse hasta el plano de la auto-
nomía personal, de la autono-

322 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 313-331
ISSN: 2317-9570
CRÍTICA DA FINALIDADE À RACIONALIDADE CIENTÍFICA: A PERDA RADICAL DO MUNDO-DA-VIDA

mía humana de irradiación uni- cimento. As ciências humanas, ainda


versal. Ésa es la idea: la idea hoje não alcançaram a tarefa dos auto-
que engendra el impulso vital res, seja pela via da filosofia, seja por
afectado del más alto grado de sua própria condução.
humanidad (HUSSERL, 1992,
p. 137).
O solo vital mundo-da-vida: a perda e
A superação da crise dar-se pela reto-
a recuperação do mundo
mada de uma razão que até então tinha
perdido seu foco (direcionada para a
El olvido del mundo de la vida
espiritualidade humana). Para Dilthey,
es responsable, según Husserl,
trata-se de superar a metafísica da his-
de desarrollos equívocos que
tória que vem desde as ideias de Hegel
sólo pueden ser subsanados
e o próprio papel que as ciências huma-
mediante el regreso al mundo
nas buscaram na compreensão histó-
de la vida. De antemano, el
rica enquanto realidade relativa, isto é,
mundo de la vida no es objeto
busca trazer a importância de se pensar
de una simple descripción o,
o sujeito histórico na sua dimensão in-
menos aún, meta de una bús-
dividual – a construção do mundo his-
queda que tenga como fin la in-
tórico. Nesse sentido, no campo de uma
mediata plenitude de la vida;
compreensão, a história não diria sobre
constituye más bien el tema de
os indivíduos, mas sim, dos indivíduos
un re-cuestionamiento (Rück-
que a história pode ser entendida.
Jrage) metódico y diversificado,
Portanto, as ciências humanas como
como a menudo se dice (WAL-
produto de um historicismo doente não
DENFELS, 1997, p. 43).
se preocuparam em fundar uma via ri-
gorosa de seu fundamento – ao con-
trário do sucesso das ciências naturais. Dedicaremos daqui por diante ao
Nesse sentido, a ciência, de um lado, tema mundo-da-vida. Recorremos aos
se tornou positivista pelos seus méto- anexos XVII, XVIII, XIX e XX que com-
dos naturalistas e, por outro, passou põe a obra “A crise das ciências”. Con-
a encarar o histórico como guardiã de duzimos anteriormente uma crítica a
seu horizonte último; em outras pala- racionalidade científica. Foi questio-
vras, se desocupou da vida do homem nado o caráter teleológico do qual todo
em todos seus significados existenciais. o pensamento da racionalidade proje-
Assim, tanto Husserl como Dilthey bus- tou. Portanto, nesse sentido, a finali-
caram reconduzir a “verdadeira” tarefa dade em todo seu empreendimento, a
das ciências do espírito, como formação fins, tornou-se duvido, pois, o objeti-
da própria vida das pessoas e do conhe- vismo como uma faceta da racionali-

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 313-331 323
ISSN: 2317-9570
RAFAEL FERREIRA

dade ocultou o solo vital do mundo- levando-o a uma fragmentação, ainda


da-vida. Até este momento este con- que universalize pelo projeto da racio-
ceito não tinha ganhado atenção e, por- nalidade. Com efeito, a questão volta-
tanto, vamos apresentar elementos fun- se novamente para o modo de como a
damentais objetivando pensar as pos- representação do mundo ganhou valor
sibilidades de uma reorientação para universal na racionalidade moderna –
além da racionalidade científica. Nesse não relativo.
sentido, primeiramente, deseja-se tra- Considera-se, desse modo, que a con-
zer alguns apontamentos sobre o en- cepção científica de mundo conduziu
tendimento de mundo na problemática (via uma transcendência) uma obstru-
da racionalidade com o objetivo de des- ção do mundo-da-vida – este de cons-
cortinar o mundo-da-vida e suas estru- tituição relativa (transcendental – rela-
turas. tivo ao sujeito). A infinitude reside no
Questiona-se: o “mundo cientifici- ideal de ciência que trabalha na con-
zado”, alcançado na modernidade, con- tinuidade de melhoramento sobre seu
duziu a uma compreensão de infini- próprio mundo circundante (Umwelt)
tude, do qual se impõe a priori pressu- e que se alastra para toda vida parti-
postos e predicações? Aproximando-se cular. Com efeito, este mundo objeti-
de Stein (2003), no que tange pensar vado e científico, a partir de um empre-
ideias sobre “concepções de mundo” endimento (atitude teórica e prática),
(Weltanschauung), uma interpretação anulou o mundo-da-vida enquanto ex-
desta ordem (que elabora uma visão pressão da vida ativa, pré-tematizado.
global de mundo) só poderia ser possí- No mundo finito, “[...] vivemos, cons-
vel se “suas” regras e metas gerais fos- cientes dele como horizonte dos nossos
sem determinadas a priori. Isso ocorre- fins particulares, sejam momentâneos e
ria se passássemos a entender que a ra- mutáveis, sejam uma meta que duravel-
cionalidade assumiu validade de ser na mente nos orienta” (HUSSERL, 2012c,
ciência e na vida moderna. No entanto, p. 381 – anexo XVII). Este mundo é
Stein (2003) pondera que a possibili- quem constitui os meus valores, me és
dade de uma só concepção científica de próprio (SZILASI, 2003).
mundo se torna problemática, uma vez,
terá esta que assumir todas as ciências
e suas próprias concepções de mundo. O mundo pré-dado é o hori-
No entanto, acreditamos que isso não zonte que abrange, em fluxo
quer dizer que este interesse não foi constante, todas as nossas me-
pretendido, ao contrário, cada ciência, tas, todos os nossos fins, passa-
fechada no seu objeto de investigação, geiros ou duradouros, precisa-
oferece uma interpretação de mundo mente tal como de antemão os
“abarca” implicitamente uma

324 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 313-331
ISSN: 2317-9570
CRÍTICA DA FINALIDADE À RACIONALIDADE CIENTÍFICA: A PERDA RADICAL DO MUNDO-DA-VIDA

consciência intencional de hori- e, portanto, se distinguindo da atitude


zonte. Nós, os sujeitos, não co- fenomenológica. Esta última “[...] trata-
nhecemos na vida normal una se de suspender nossa atenção nesse
e ininterrupta quaisquer metas horizonte para ocupar-nos exclusiva-
que alcancem mais longe, não mente com o próprio mundo da vida,
temos, aliás, sequer uma repre- ou seja, como tem lugar para nós a per-
sentação de que pode haver ou- manente consciência da existência uni-
tras. Podemos também dizer versal, do horizonte universal de obje-
que todos os nossos temas, teó- tos reais, efetivamente existentes” (ZIL-
ricos e práticos, residem sempre LES, 2008, p. 44). Como vimos, a ati-
na unicidade normal do hori- tude natural encerra um cogito não re-
zonte da vida “mundo” (HUS- flexivo; é o mundo das coisas e dos va-
SERL, 2012a, p. 117). lores, que aí está para mim e para os
outros como efetivamente é (HUSSERL,
1949).
Conforme Waldenfels (2001), en- Não obstante, a necessidade de um
quanto horizonte universal, o mundo é “retorno às coisas mesmas” se torna
aquele onde tudo aparece. Com efeito, cada vez mais urgente em nosso tempo.
o homem contemporâneo participante As imposições de um mundo racional
do mundo objetivo ou sob uma visão que se intensifica pelas normativida-
científica do mundo na racionalidade des e normalidades das institucionais
dilui-se junto com todas as suas subje- e da própria ciência requer uma avali-
tividades transcendentais e, portanto, ação exigente de suas finalidades. Os
lhe causando o esquecimento do pró- costumes e valores universalizados (por
prio eu (ego). Esquecer-se do ego obs- exemplo, consumismo e egoísmo) em-
curece a possibilidade de uma ontolo- pregam sobre os indivíduos um mundo
gia autêntica. Ocorre que o “mundo ob- pré-dado. Desse modo, o conhecimento
jetivo” atualmente na sua validade de foi “apropriado” regendo formas de to-
ser, tal como é – representação –, pouco talitarismo: do planejar, do fazer e do
é posto em questionamento pela ciên- saber.
cia moderna, uma vez, estar dado na
atitude científica-natural e não na ati-
tude fenomenológica – que suspense a O contraste entre subjetivo do
tese do mundo como verdade inques- mundo da vida e o “objetivo”
tionável. Entende-se: a atitude natu- do mundo “verdadeiro” reside,
ral é “aquela em que espontaneamente então, no fato de que este é
vivemos, acreditando na existência do uma substrução lógico-teórica,
mundo exterior” (ZILLES, 2008, p. 8). a substrução de algo principal-
Nesta atitude a consciência é ingênua mente não perceptível, prin-

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 313-331 325
ISSN: 2317-9570
RAFAEL FERREIRA

cipalmente não experienciável experiência predicativa, no entanto, é


no seu ser-si-mesmo próprio, preciso considerar que ele não pode ser
ao passo que o subjetivo do tomado como único e verdadeiro; sendo
mundo da vida se destaca, em que ele interrompe o conhecimento do
tudo e em qualquer coisa, pre- mundo-da-vida.
cisamente pela sua efetividade
(HUSSERL, 2012a, p. 104). El mundo objetivo (objektiv) es
Com efeito, suspender a tese deste el constituido por cada cual.
“mundo objetivo”, assim como o projeto Es un mundo empobrecido, en
de homem contemporâneo traz a epo- comparación con el Lebenswelt
ché fenomenológica como uma tarefa que me es propio, y este empo-
indispensável. Cabe ressaltar, que não brecimento depende de la me-
basta “por entre parêntese” o mundo, dida en que me está cerrada la
mas, sobretudo, as nossas próprias ati- puerta del Lebenswelt propio
tudes e costumes. O mundo objetivo de ustedes (inadecuadamente
é duvidoso (não apodítico), sobretudo, accesible). La Naturaleza acce-
porque a atitude científica, em sua ta- sible para todos los egos en la
refa, acabou anulando os interesses que constitución común – o sea, la
residem no mundo-da-vida e toda a sua naturaliza objetiva (objektiv) de
significação (HUSSERL, 2012c – anexo cada cual, el campo de inves-
XVIII). No entanto, é preciso conside- tigación de las ciências natura-
rar que não se trata de dicotomias entre les – es algo todavía mucho más
os mundos, ao contrário, a problema da pobre (SZILASI, 2003, p. 143).
constituição vital do mundo-da-vida é
condição própria e fundante do mundo O mundo objetivo, “artificialmente
objetivo. Com razão, Waldenfels (2001) criado”, limita a experiência subjetiva
pontuou: há o mundo enquanto hori- (transcendente imanente) do mundo-
zonte universal (onde tudo aparece) e o da-vida: quando dispenso os meus in-
mundo enquanto solo universal (onde teresses (valores, metas, saberes, von-
tudo tem seu início). tades) forjados intersubjetividade em
Embora vivamos em maior parte no uma dada comunidade em detrimento
mundo em atitude natural (de modo in- de uma adesão ao mundo global e ex-
gênuo), ainda sim repousa nele, após a terno, abandono a minha própria sub-
epoché (sua perda e recuperação), uma jetividade constituidora. Conforme Szi-
evidência originária da experiência hu- lasi (2003, p. 130) a “[...] trascendencia
mana da qual a reflexão descortina. inmanente, el Lebenswelt propio, no
Certamente, não se pode negar a exis- es objetivo (Objektiv) universalmente.
tência desse mundo que pauta a nossa Pasa a serlo mediante el acuerdo y la

326 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 313-331
ISSN: 2317-9570
CRÍTICA DA FINALIDADE À RACIONALIDADE CIENTÍFICA: A PERDA RADICAL DO MUNDO-DA-VIDA

evidencia generales”. Percebe-se que o retorno ao mundo-


O mundo-da-vida sempre existiu, da-vida as experiências antepredicati-
mesmo antes da ciência, ou melhor, a vas tem caráter válido e podem servir
ciência é construída na sua obviedade como uma espécie de depósito de um
(HUSSERL, 2012a). Isso quer dizer que saber evidente. Ainda que o objeti-
ele não deixa de existir, é impossível: vismo prevaleça sobre a produção do
o mundo-da-vida é o mundo experi- conhecimento, nada pode ter de cau-
enciado por mim e por todos. Ele é salidades na formação da vida social –
o solo universal – é o nosso mundo logo, não há um nexo causal no mundo-
particular (HUSSERL, 2012c – anexo da-vida. Todas as nossas orientações
XVII). Vejamos mais elementos sobre e interesses no mundo estão pautadas
o problema do mundo, a fim de não em reinterpretações passadas ou inten-
cairmos em dicotomias, isto é, que o cionadas para uma expectativa de ho-
mundo objetivo possa ser algo apar- rizontes determinados ou indetermina-
tado do mundo-da-vida, ao contrário, dos. Husserl (2012a, p. 133) chama
ele é sustentado no puro fluir universal atenção: “No viver em relação mútua,
do mundo, imerso em ligações sinté- porém, cada um pode tomar parte na
ticas (HUSSERL, 2012a – § 38). Para vida do outro. Assim, o mundo não é
Schutz (2012) “[...] nós não só agimos de todo modo, existente somente para
no mundo, mas também sobre ele”. Po- o homem isolado, mas para a comuni-
rém, ressalva que mundo objetivo im- dade humana [...]”. Husserl (1949, p.
põe certas condições e, portanto, de- 64) já havia apresentado na sua obra
vemos trabalhar sobre ele com ações “Ideias para uma fenomenologia pura”
(SCHUTZ, 2012, p. 84). Pontuamos que (Ideen zu einer reinen Phänomenologie
ao homem comum o cogito não é refle- und phänomenologischen Philosophie) de
xivo às coisas que objetificam sua vida. 1913 tais pressupostos do qual chama
Para Schutz na vida cotidiana o homem no § 27 de “mundo da atitude natural”
pouco se preocupa com a clareza do seu e o “mundo circundante”: “[...] tengo
conhecimento, porém este mundo não consciencia de un mundo extendido sin
é um todo problemático, mas é subs- fin en el espacio y que viene y ha ve-
trato imprescindível. “La estructura del nido a ser sin fin em nel tempo”. De
mundo social es significativa no solo fato, as estruturas do mundo-da-vida
para quienes viven en esse mundo, sino dão aos sujeitos evidências que podem
también para sus interpretos científi- ser reinterpretadas devido a acumula-
cos. Al vivir en el mundo, vivimos com ção cultural da sociedade. Nesse sen-
otros y para otros, y orientamos nues- tido, as ações e projeções dos sujeitos
tras vidas hacia ellos” (SCHUTZ, 1972, raramente caem em um vazio devido ao
p. 39). seu solo vital. O “chão do mundo” dá

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 313-331 327
ISSN: 2317-9570
RAFAEL FERREIRA

concretude existencial para as pessoas, mento da verdade. Não só todas


e o mundo-da-vida uma evidência ori- as questões do conhecimento
ginária (HUSSERL, 2012a). que desempenham um papel
Em uma dimensão mais concreta na vida (na vida pré e extraci-
da experiência humana, a reflexão so- entífica), como também – em
bre o mundo-da-vida, oferece um co- num estágio superior – todas
nhecimento qualitativo sobre a vida e as questões da ciência objetiva.
toda sua constituição fundamental. O Agora, porém, numa maneira
mundo social é por via do mundo-da- de fundamentação que conduz
vida a possibilidade de construir uma a novas dimensões e, por fim,
“teia de significações”, de redes e re- na medida em que estas dimen-
lações intramundanos. Não cabe no sões se abrem nas suas infini-
mundo-da-vida qualquer interpretação tas profundezas, a uma ciência
que leva a hierarquias ou mesmo uma universal que encerra em si to-
espécie de categorização, pois ele não dos os conhecimentos e proble-
é lógico ou teórico, mas sim, o “solo” mas de conhecimentos imagi-
transcendental. Portanto, sendo ele a náveis – todos os problemas da
fonte de conhecimento de todas as for- razão (HUSSERL, 2012c, p. 385
mas constituídas no mundo social – as – anexo XVIII).
objetividades, as culturas e as subjeti-
vidades. No entanto, para todo este al- Esta radicalização, de substituição,
cance a racionalidade científica tornar- precisaria de todo um trabalho primo-
se uma obstrução, pois se coloca dis- roso de pensamento. Por isso, não va-
tante da vida significativa e tão logo mos aqui tentar qualquer maior pro-
não pode ela pretender fundamentar fundidade e dar a cabo as pretensões de
o conhecimento do mundo, ao contrá- Husserl. Cabe, neste momento, apontar
rio: uma ciência do mundo-da-vida é alguns elementos fundamentais, uma
condição de possibilidade para a pró- vez, termos indicado no início deste tra-
pria fundação de toda ciência objetiva balho o nosso ponto de vista de enfreta-
ou objetividade científica. mento da crise que adveio da racionali-
dade objetivista. Para Aztaiza (2011, p.
[...] a ciência de espécie nova do 10):
mundo da vida abarca irrecu-
savelmente por fim, na univer- La ciencia del Lebenswelt se pre-
salidade de tarefas que consti- senta desde este contexto como
tuem a sua cientificidade espe- una ciencia que precede y es
cífica, todos os problemas com base para toda ciencia objetiva,
sentido para o ser e o conheci- como uma suma de franjas en

328 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 313-331
ISSN: 2317-9570
CRÍTICA DA FINALIDADE À RACIONALIDADE CIENTÍFICA: A PERDA RADICAL DO MUNDO-DA-VIDA

las cuales emergen y se cons- estilo de conjunto fica, portanto, deste


tituyen los hechos del mundo modo determinado”. A reflexão sobre
y, sobre todo, como um hori- o mundo-da-vida demanda compreen-
zonte de hechos que no es dado der todas suas estruturas fundamentais
de una sola vez y para siempre de existência: atitude, vontade, metas,
sino que se desarrolla mediante temático, experiência. O que se des-
formas y estilos históricamente cortina são operações intencionais da
proporcionados. consciência, uma vez, toda consciência
é consciência de algo, é dirigida à..., é
Considera-se: a ciência do mundo- consciência de mundo.
da-vida 1) tem seu caráter universal,
isto é, base para todas as ciências obje-
tivas; 2) voltando-se suas preocupações
para o mundo, porém, não dado igual- Considerações finais
mente à todos, ao contrário, conside-
rando 3) os mundos particulares e todo No mundo-da-vida atuam os indiví-
a sua significação histórica, seus pre- duos, as interações e as possibilidades
enchimentos, suas metas. Goto (2008, de entendimentos mútuos. Uma ética
p. 150) nos apresenta mais elementos: e política fenomenológica se põe em
“[...] a distinção entre as ciências obje- pauta quando o retorno do mundo-da-
tivas e a ciência do mundo-da-vida está vida põe abaixo todo o caráter objeti-
estabelecida em dois tipos de a priori vista da vida. Ao problema ético as
que dão na experiência: o mundo-da- questões voltam-se para as dimensões
vida pautado em um a priori concreto dos povos e sua cultura, volta-se para
(experiência originária e pura) e as ci- os interesses significativos dos grupos.
ências em um a priori lógico objetivo A objetivação da vida e da cultura pelo
(idealidades)”. Além de oferecer um objetivismo científico ao produzirem
novo fundamento para as ciências e o o afastamento do mundo-da-vida, en-
conhecimento, a ciência do mundo-da- tão, dirigiram uma perda de valores,
vida nos coloca em uma atitude teórica um abandono do mundo moral e a pró-
e prática do qual o trabalho do cien- pria consciência de liberdade e respon-
tista volta-se para os interesses huma- sabilidade. Tão logo, o mundo-da-vida,
nos, para um regresso à experiência. em uma primeira tarefa, visa romper
O que realmente expressa esta atitude? com o reducionismo e o cientificismo.
Conforme Husserl (2012a, p. 258) “sig- A sua negação retira a possibilidade de
nifica um estilo habitualmente fixo da uma vigilância da pura técnica. Uma
vida volitiva em direções da vontade ou outra consequência do abandono do
interesses por ele prefigurados, em fins mundo-da-vida foi a crença que a vida
últimos, em realizações culturais cujo pode ser toda mensurável e quantificá-

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 313-331 329
ISSN: 2317-9570
RAFAEL FERREIRA

vel pelo método. Nesse sentido, que a ção de um mundo dos valores. A refle-
atitude fenomenológica se põe a todo xão do mundo-da-vida é uma crítica da
o momento sob o rigor de sempre es- finalidade. Assim, ir para o domínio da
tar em alerta para questionar a cultura. ética, dos valores ou da cultura requer
A “Crise”, portanto, além de apontar a um aprofundamento não meramente
perda vital do mundo-da-vida, expõe dos pressupostos lógico-teóricos, mas
toda uma tarefa de renovação (Erneu- da evidência que repousa neste solo vi-
rung) da cultura e, nesse sentido, apre- tal.
sentando as possibilidades da constitui-

Referências
AZTAIZA, J. A. S. El concepto de “Mundo de la vida originario” en la fenomenologia de Husserl. Revista Légein, 2011, n.
12, pp. 7-22. Disponível em: <http://revistalegein.univalle.edu.co/legein1 2.html>: acessado em: [24/08/2014].
BACHELARD, G. A filosofia do não. Tradução de Joaquim José Moura Ramos. Os Pensadores XXXVIII. São Paulo, Abril
Cultural, 1974.
BECH, J. M. De Husserl a Heidegger: la transformacion del pensamiento fenomenologico. Barcelona: UNIVERSITAT DE
BARCELONA, 2001.
BRUZINA, R. Edmund Husserl and Eugen Fink: beginnings and ends in phenomenology, 1928–1938. Yale University Press,
2004.
DILTHEY, W. Psicologia e Compreensão. Ideias para uma psicologia descritiva e analítica. Tradução de Artur Morão. Lisboa:
Edições 70, 2002.
______. A construção do mundo histórico nas ciências humanas. São Paulo: Ed. Unesp, 2010a.
______. Introdução às ciências humanas: tentativa de uma fundamentação para o estudo da sociedade e da história. Trad.:
Marcos Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010b.
______. Introducción a las ciencias del espíritu: en la que se trata de fundamentar el estudio de la sociedad y déla historia.
México: Fondo de Cultura Económica, 1949.
______. La filosofía como autorreflexión de la humanidad. In.: HUSSERL, E. Invitación a la fenomenología. Paidós,
Barcelona, 1992. p. 35-73.
DRUMMOND, J. J. Historical dictionary of Husserl’s philosophy. Lanham, Md: Scarecrow Press, 2007.
FARBER, M, The Foundation of phenomenology: Edmund Husserl and the quest for a rigorous science of philosophy. Cam-
bridge, Mass.: Harvard University Press, 1943.
GOTO, T. A. Introdução à psicologia fenomenológica: a nova psicologia de Edmund Husserl. São Paulo: Paulus, 2008.
GROS, A. E. El vínculo intelectual Husserl-Dilthey en “la filosofia como ciência estricta” y el intercambio epistolar de
1911. V Jornadas de jóvenes Investigadores, IIGG, UBA, Buenos Aires, 2009. Disponível em: <https://www.aacade-
mica.org/000-089/252.pdf>: acessado em [19/03/2010].
HUSSERL. E. A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental: uma introdução à filosofia fenomenológica.
Trad. Diogo Falcão Ferrer. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012a.
______. Ciência da realidade e idealização: a matematização da natureza. In: ______. A crise das ciências europeias e a
fenomenologia transcendental: uma introdução à filosofia fenomenológica. Trad.: Diogo Falcão Ferrer. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2012b. p. 221-248.
______. Anexos XVII, XVIII, XIX e XX. In: ______. A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental: uma
introdução à filosofia fenomenológica. Trad.: Diogo Falcão Ferrer. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012c. p.
380-388.
______. A ingenuidade da ciência. Tradução de Marcella Marino Medeiros Silva. Scientiæ Sudia, São Paulo, v. 7, n. 4,
2009. p. 659-67.
______. A filosofia como ciência de rigor. Tradução de Albin Beau. Coimbra: Atlântida, 1965.
______. Investigações lógicas: Investigações para a Fenomenologia e a Teoria do Conhecimento. Tradução de Pedro M. S.
Alves Carlos Aurélio Morujão. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015.
______. Die krisis der europäischen wissenschaften und die transzendentale Phänomenologie. Ergänzungsband: Texte aus
dem Nachlass 1934-1937. Herausgegeben von Reinhold N. Smid. Husserliana XXIX, Dordrecht: Kluwer, 1993.

330 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 313-331
ISSN: 2317-9570
CRÍTICA DA FINALIDADE À RACIONALIDADE CIENTÍFICA: A PERDA RADICAL DO MUNDO-DA-VIDA

______. Ideas Relativas a una Fenomenología Pura y una Filosofía Fenomenológica. Trad. José Gaos. México: Fondo de
Cultura Económica, 1949.
MORAN, Dermot. Introduction to phenomenology. London: Routledge, 2000.
SALDES, Y. P. D. Ciencias de la naturaleza y ciencias del Espíritu en la perspectiva de Dilthey. Revista Philosophica, 2006,
v. 30, pp. 65-76. Disponível em: <https://dialnet.unirioja.es/ejemplar/213407>: acessado em [19/03/2010].
SCHUTZ, Alfred. Fenomenologia e relações sociais: textos escolhidos. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2012.
______. Fenomenologia del mundo Social. Introducción a la sociologia compreensiva. Buenos Aires: Editorial Paidos, 1972.
STEIN, E. La pasión por la verdad. 2ª ed. – Buenos Aires: Bonum, 2003.
SZILASI, W. Introducción a la fenomenología de Husserl. Buenos Aires: Amorrortu editores, 2003.
WALDENFELS, B. Mundo familiar y mundo extrano. Problemas de la intersubjetividad y de la interculturalidad a partir
de Edmund Husserl. Ideas y Valores, 2001, n. 116, pp. 119-131. Disponível em: <https://revistas.unal.edu.co/in-
dex.php/idval/article/view/29234>: acessado em [20/09/2014].
______. Husserl a Derrida: introducción a la fenomenología. Editores: Barcelona: Paidós, 1997.
ZILLES, Urbano. A fenomenologia husserliana como método radical Husserl; EDMUND, Edmund. A crise da humani-
dade europeia e a filosofia. Trad.: Urbano Zilles. 3. ed. Porto Alegre: EDlPUCRS, 2008. p. 11-57.

Recebido: 23/03/2020
Aprovado: 21/09/2020
Publicado: 30/12/2020

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 313-331 331
ISSN: 2317-9570
DOI: https://doi.org/10.26512/rfmc.v8i2.28986

Ensaio para uma Teoria da Crença segundo a Concepção Tripartite


do Tempo
[Essay for a Belief Theory according to the Tripartite Conception of Time]

João Renato Amorim Feitosa*

Resumo: O presente artigo tem como principal objetivo a tentativa de pensar a possi-
bilidade de uma teoria da crença entendida como dividida em diferentes modalidades
temporais: presente, passado e futuro. Tendo em vista os trabalhos desenvolvidos por
Tarski e Popper acerca do problema da verdade e teorias pragmáticas da linguagem
como a de Habermas e Austin, gostaríamos de testar os limites da concepção de verdade
enquanto correspondência em relação a uma concepção tripartite do tempo, ou seja,
nos perguntamos acerca da validade daquela concepção de acordo com a diferente
modalidade temporal dos enunciados. Em um primeiro momento, analisamos os fatores
para que um enunciado se torne objetivo, isto é, válido para além do âmbito subjetivo, de
acordo com a concepção usual de tempo, para em seguida apresentar alguns exemplos de
uso prático das modalidades temporais dos enunciados na fala cotidiana, e em algumas
instituições públicas regidas por regras aceitas coletivamente. Por fim, nos perguntamos
se as mudanças de paradigma em relação à nossa concepção de tempo seriam fatores
chave no que diz respeito à determinação das regras de validação dos enunciados que o
têm como referência, e as consequências práticas desse tipo de enunciado.
Palavras-chave: Verificação. Justificação. Tempo. Convenção.

Abstract: This article has as main objective the attempt to think the possibility of a
belief theory understood as divided in different temporal modalities: present, past and
future. In view of the work developed by Tarski and Popper on the problem of truth,
and pragmatic theories of language such as of Habermas and Austin, we would like to
test the limits of the conception of truth as correspondence in relation to a tripartite
conception of time, that is, we ask ourselves about the validation of the choice according
to the different temporal modality of the statements. At first, we analyze the factors so
that a statement becomes objective, that is, valid beyond the subjective scope, according
to the usual conception of time, and then to present some examples of practical use of
the temporal modalities of the statements in the speaks every day, and in some public
institutions governed by collectively accepted rules. Finally, we ask ourselves if the
paradigm changes in relation to our conception of time are possible key factors with
regard to the determination of the validation rules of the statements that have them as a
reference, and the practical consequences of this type of statement.
Keywords: Verification. Justification. Time. Convention.

* Mestre em Filosofia pela Universidade de Brasília (UnB). Atualmente realiza doutorado em filosofia e graduação em química pela
mesma instituição. E-mail: joaofeitosafil@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8784-7233.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 333-353 333
ISSN: 2317-9570
JOÃO RENATO AMORIM FEITOSA

1. O problema acerca do conheci- 43], Meditações), Locke (p. ex. Ensaio


mento objetivo [int. § 3]), Leibniz (p. ex. Novos Ensaios
[Livro IV]) , Hume (p.ex. Investigação
[Seção IV]) e Kant1 (p. ex. KrV2 [A 770/
Um dos problemas clássicos da filoso- B 803]). Não menos importante que o
fia consiste na seguinte questão: “o que tratamento oferecido pelas epistemolo-
diferencia um saber de uma opinião?”. gias modernas ao problema do conhe-
Já não seria a ‘opinião’ um tipo de ‘sa- cimento é o novo ferramental teórico
ber’? Quais são os critérios que me as- oferecido pela filosofia da linguagem
seguram que aquilo que afirmo consiste desenvolvida no século XX3 para ava-
num conhecimento ‘verdadeiro’ ou até liar problemas epistemológicos. Gos-
mesmo ‘seguro’? A essas questões po- taríamos de pensar o problema acerca
deríamos acrescentar uma outra, qual da objetividade dos juízos especifica-
seja, qual o fundamento da concordân- mente em sua relação com o tempo –
cia entre dois indivíduos acerca da va- assumindo-o como instância necessá-
lidade de um juízo ou proposição? Na ria da referenciação das proposições –
história da filosofia encontramos uma a partir de uma perspectiva pragmá-
larga tradição de pensamento orientada tica da linguagem, especificamente as-
a esse tipo de discussão. Pelo menos sumindo a proposição ou juízo como
desde os filósofos gregos, a busca pelas “atos através dos quais um falante gosta-
condições para um “conhecimento ver- ria de chegar a um entendimento com ou-
dadeiro” que separasse opinião de saber tro falante sobre algo no mundo”4 . A de-
se fez presente nas obras dos principais finição clássica de conhecimento como
filósofos do ocidente. Essa é uma carac- “crença verdadeira justificada” enseja
terística dominante nas obras de Platão em cada um de seus conceitos um con-
(p. ex. República [478b], Teeteto [145e junto de problemas tratados pelos di-
/188a], Eutidemo [277b]) e Aristóteles ferentes domínios da teoria do conhe-
(p. ex. Metafísica [982b/ 1004b]). So- cimento; portanto, aqui nos preocupa-
bretudo na modernidade tal recorte te- mos apenas com o caráter da crença em
mático é fortemente presente em Bacon primeira instância, ainda que avaliemos
(p. ex. Instauratio Magna e Os progres- sua função em relação aos outros dois
sos do Conhecimento [282 IV]), Descartes domínios teóricos que compõem aquela
(p. ex. Princípios da Filosofia [parte I §

1 Sobretudo em Kant fica evidenciada a orientação teórica à sistematização de todos os saberes presente na modernidade, como ele
mesmo afirmou, “a nossa época é a época da crítica, a qual tudo tem que submeter-se”.
2 Doravante, sigla utilizada para Crítica da Razão Pura.
3 Habermas (1988, p. 15. § 1º) dá uma bela interpretação para o significado da “virada linguística” em relação ao paradigma mo-
derno: “[...] As relações entre linguagem e mundo, entre proposição e estado de coisas, substituem a relação sujeito-objeto. O trabalho
de constituição do mundo deixa de ser uma tarefa da subjetividade transcendental para se transformar em estruturas gramaticais.”
4 Ibidem, p. 65. § 1º. Habermas chama o que aqui estou tratando como juízos ou proposições de “proferimentos linguísticos”.

334 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 333-353
ISSN: 2317-9570
ENSAIO PARA UMA TEORIA DA CRENÇA SEGUNDO A CONCEPÇÃO TRIPARTITE DO TEMPO

definição clássica (veja DUTRA, 2001 p. meiro amigo, ao avistar um conjunto


9)5 . Desse modo, entendemos aqui que de nuvens escuras se aproximando do
a crença guardaria uma estreita relação céu de Brasília, diz: ‘Logo vai chover
com o caráter de verdade sob o ponto de em Brasília’. Será que o outro amigo
vista da conferência ou não de objeti- responderia ‘sim, realmente, logo vai
vidade a um juízo por parte de um in- chover em Brasília’, com a mesma ‘in-
terlocutor, ou seja, entendemos verdade tensidade’ com que concordava com a
como validade objetiva e a crença como primeira afirmação? E se a primeira
uma disposição em conferir ou não essa frase fosse ‘Deus é o criador dos céus e
validade a um juízo6 . Assumindo es- da terra’ ou ‘a essência do nada é a sua
ses pressupostos, nós nos perguntamos concomitância com o devir’? A partir
em seguida como é atribuída validade desses exemplos, podemos classificar
a um juízo que envolva categorias tem- três tipos de crença: 1) em enunciados
porais (ontem, hoje, amanhã) e quais os metafísicos de maneira geral (atempo-
critérios estabelecidos para a concessão rais); 2) as que dizem respeito a uma
de validade em cada um dos momentos situação no tempo presente. 3) as que
do tempo em sua concepção tripartite7 . dizem respeito a uma situação passada.
Imaginemos por um momento uma 4) as que dizem respeito a uma situação
situação hipotética. Um sujeito diz para no futuro. Disso também se segue que
seu amigo: ‘está chovendo em Brasília’. para cada tipo de crença citada acima
Os dois se encontravam num local de encontraríamos um critério de atribui-
Brasília onde, naquele instante em que ção de validade diferente: 1) Coerência
a frase foi dita, atualmente chovia. O lógico-gramatical e crença subjetiva; 2)
outro amigo então confirma ‘sim, real- princípio de verdade como correspon-
mente está chovendo’. Ele poderia tam- dência; 3) ‘1’ ou disposição voluntária a
bém dizer ‘choveu em Brasília ontem’. crer no juízo emitido; 4) indução. Não
De posse de um jornal que continha a queremos com isso dizer que aqui se
informação de que havia chovido um esgotam todas as possibilidades de mo-
dia antes em Brasília, o outro amigo dalidades da crença, tampouco dos cri-
confirma ‘sim, realmente choveu em térios para a justificação de cada tipo
Brasília’. Numa outra situação, o pri- de crença, mas queremos apenas tomar

5 Isto é, “teorias da crença, teorias da verdade e teorias da justificação”.


6 Isto é, não estamos pensando o caráter lógico-formal das regras de verificação ou do conceito de verdade, mas sim pretendemos
pensar a validade como aceitação coletiva de um argumento, proposição ou juízo, portanto, juízo verdadeiro para a presente investi-
gação é aquele no qual se crê coletivamente, mais especificamente estamos pensando em juízos que contêm referência ao tempo.
7 Ou seja, diante do que foi dito no rodapé acima, queremos avaliar as condições para que um juízo seja validado, sob aquela pers-
pectiva, quando ele diz respeito a um acontecimento passado, presente ou futuro. É importante ressaltar aqui que estamos pensando
o tempo como um elemento essencial da constituição da cognição humana, tal qual Kant o pensou na KrV (p.ex. B 52), tomando os
acontecimentos no tempo como referência empírica necessária (a priori) aos objetos (veja B 118). Desse modo, a qualquer enunciado
com referência a uma das três partes do tempo recairia uma demanda de validade material.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 333-353 335
ISSN: 2317-9570
JOÃO RENATO AMORIM FEITOSA

este fio condutor a fim de testar algu- de um conjunto de enunciados estabe-


mas hipóteses. lecidos como verdadeiros, estariam de
comum acordo com o sujeito que enun-
ciou que ‘a origem do universo deriva
de uma causa inteligente’. Assim, se o
1.1 Enunciados metafísicos e crença mesmo enunciado fosse proferido em
subjetiva um ambiente no qual vigem diferentes
enunciados estabelecidos como verda-
Se alguém me diz ‘a origem do uni-
deiros, se não fosse tomado como falso,
verso deriva de uma causa inteligente’,
ao menos seria como duvidoso, vazio,
eu posso questionar esse sujeito acerca
ou insuficiente de provas.
das razões ou motivos pelos quais ele
Um sujeito pode também crer na
justifica a sua afirmação. Ele poderia
existência de entidades metafísicas de
responder: ‘tudo no universo tem uma
modo que, ao tentar expressá-las sob
causa, e a primeira causa só pode ter
conceitos, só consiga dizer algo como
surgido de uma vontade, etc’; se nesse
‘só eu posso sentir’, ‘é algo que diz
momento eu tomasse o princípio de ver-
respeito à interioridade, ao espírito,
dade enquanto correspondência como
etc’; Neste ponto, o sujeito pode ao
critério para avaliar a justificação desse
seu bel prazer associar com coerência
enunciado, certamente eu diria que ele
lógica impecável qualquer argumento
não diz respeito a nada que possa ser
que sustente a tese que lhe aprazer
dado em uma experiência; contudo, se
acerca de entidades metafísicas. O re-
eu tomo como critério de justificação
sultado positivo dessa associação – ou,
a coerência lógica, tudo parece normal
se quisermos, articulação de enunciados
nesse enunciado. Isto é, os enunciados
por via de regras lógicas que garantam
metafísicos, como não contam com uma
sua coerência em uma linguagem – isto
referência na experiência, só podem
é, a adequação correta dos enunciados
contar com a coerência lógica do sistema
individuais ao conjunto de regras, gera
de enunciados, ou seja, as regras sin-
no sujeito que a proferiu a impressão
táticas e semânticas inerentes à lingua-
de que sua dedução resultou em uma
gem utilizada8 . Todos os sujeitos que
ampliação de seu conhecimento. As-
partilham de uma posição metafísica
sim, um líder religioso que tenha sua
específica acerca de Deus, por exem-
religião baseada em um conjunto de
plo, ao reunirem-se em assembleia, es-
crenças ou preceitos aceitos como ver-
tando de posse de um livro comum, e

8 Essa limitação quanto ao escopo de validade de enunciados metafísicos é produto direto do criticismo kantiano. Vide: (KrV B
22), (Prol AA 04. 277.) Kant constatou que a metafísica “[...] ocupa-se ainda de conceitos puros da razão que jamais são dados em
nenhuma experiência possível, conceitos cuja realidade objetiva (fato de que não são meras fantasias) e asserções cuja verdade ou
falsidade não podem ser confirmadas ou descobertas por nenhuma experiência.” (Prol AA 04. 327.).

336 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 333-353
ISSN: 2317-9570
ENSAIO PARA UMA TEORIA DA CRENÇA SEGUNDO A CONCEPÇÃO TRIPARTITE DO TEMPO

dadeiros, pode tomar qualquer trecho pode conter predicados temporais ou pre-
desse conjunto de crenças, e daí dedu- dicados espaciais, mas nunca fazem re-
zir as mais diversas consequências, que ferência a algo da experiência, e por
na maioria das vezes advém a um re- isso dissemos que a sua justificação não
sultado prático. A plateia, atenta à fala pode ser tomada por via do princípio
do líder, profere palavras de ordem a de verdade enquanto correspondência,
cada vez que aquele, com entonações pois desse modo é possível9 tratar os
e modos de fala adequados a cada mo- enunciados metafísicos avaliando-os do
mento, grita com entusiasmo alguma ponto de vista de sua coerência interna.
passagem de seu conjunto de crenças, Desse modo é possível dizer ‘o
corroborando assim, para a verdade e a mundo tem necessariamente um co-
justificação daquilo que foi dito. meço no tempo’, ou ainda que ‘o espaço
É importante perceber que uma no qual o mundo está contido é infi-
crença metafísica não implica necessa- nito’, mas jamais obter para elas uma
riamente em uma crença subjetiva. No comprovação que não dependa de ne-
caso em que se trata de uma reunião nhuma inclinação subjetiva à adesão de
de um grupo que aceita um conjunto algum sistema metafísico, ainda que es-
de crenças, essa crença é coletiva, con- ses problemas também digam respeito
tudo, não se pode dizer que é objetiva. à física e a geometria. Podemos deduzir,
Objetividade é um critério diferente passo a passo, que o mundo tem de ter
de aceitação coletiva, apesar desta úl- tido um começo no tempo, pensando o
tima contribuir para o cumprimento do tempo como uma sucessão infinita de
primeiro. Desse modo, em um grupo momentos, mas não podemos dar uma
que estabeleça formalmente um con- experiência que comprove isso, nem
junto de enunciados aos quais se atri- para o espaço. Porém, dentro de um
bua a crença de verdadeiros, contribui conjunto de crenças, tais afirmações po-
ao mesmo tempo o caráter da crença dem ser tomadas como verdadeiras.
subjetiva, de modo que a concordância
coletiva ocorre simultaneamente a uma
crença subjetiva. Esse tipo de crença

9 Estamos tomando aqui a concepção de verdade enquanto correspondência no mesmo sentido que Alfred Tarski (1944 p. 342)
conferiu a ela: “a verdade de uma sentença consiste em seu acordo com (ou correspondência à) realidade” e desse modo “uma sen-
tença é verdadeira se ela designa um estado de coisas existente”, mas em um sentido mais forte, no qual o estado de coisas exigiria a
materialidade da designação. Karl Popper (1972, p. 50) afirma que aceita “a teoria do senso comum (defendida e aprimorada por Alfred
Tarsky) de que a verdade é a correspondência com os fatos (ou com a realidade)”. Como aos juízos metafísicos falta uma experiência
(realidade) a qual o juízo se refira, eles não são verificáveis segundo aquela concepção. Note que no presente artigo, a experiência
subjetiva da crença é considerada um fato mental, subjetivo, não um fato material, objetivo. Portanto, para se avaliar a validade de
um enunciado metafísico do ponto de vista de sua coerência interna, devemos abrir mão da noção de verdade como correspondência.
Nossa sugestão é avalia-la de um ponto de vista pragmático e fundamentar a verdade de crenças metafísicas na adesão coletiva dos
membros daquela comunidade linguística.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 333-353 337
ISSN: 2317-9570
JOÃO RENATO AMORIM FEITOSA

1.2 Enunciados sobre o tempo pre- ‘ali está um cachorro’, o segundo po-
sente deria muito bem aceitar como justifi-
cado o enunciado do primeiro, mesmo
tomando outro objeto como referência
Se há na minha frente, no exato mo-
para o mesmo. Nesse caso, haveria
mento em que profiro a frase ‘ali está
uma correspondência entre o enunci-
um cachorro’, um desses animais, e meu
ado do primeiro falante com o animal
interlocutor também vê o animal, nem
cachorro, e o mesmo enunciado, to-
mesmo surge o problema da justificação
mado pelo segundo falante como de-
desse enunciado. Aqui, surge a ques-
signando outro animal, isto é, a cabra,
tão epistemológica acerca do comparti-
só pode ser dito corresponder interna-
lhamento das faculdades, pois, caso fos-
mente ao segundo falante, mas jamais
sem diferentes, poderia não haver con-
ao objeto exterior ali dado, pois nesse
cordância entre os dois falantes acerca
caso se trataria de um enunciado so-
do enunciado. A concordância entre
bre o tempo presente justificado por
os dois falantes, num caso como esses,
coerência subjetiva. Não podemos di-
ocorre simplesmente por adesão cole-
zer que nesse caso os dois falantes con-
tiva? Ambos compartilham da mesma
cordaram acerca do fato, mas somente
linguagem, e da mesma língua10 , mas,
acerca do enunciado, pois os dois fa-
poderíamos dizer que aí se trata de uma
tos aos quais esse enunciado se refere
mera concordância com as regras adota-
são diferentes. Como eles são diferen-
das pela linguagem, pois um exemplar
tes, o princípio de verdade como cor-
empírico espaço-temporalmente locali-
respondência deve valer de maneira in-
zado ali se encontra, e nada falta ao
dividual, pensado segundo a perspec-
enunciado? Podemos pensar em uma
tiva de cada falante, e não de uma ma-
situação hipotética na qual um sujeito
neira global, pois nesse caso, esse exem-
tenha a vida toda visto aquilo que co-
plo contrário parece invalidar o prin-
mumente se designa pelo nome de ‘ca-
cípio. Do ponto de vista da sensibi-
bra’ como sendo um cachorro; Se eu
lidade de cada falante, acredito que
digo ‘ali está um cachorro’, apontando
mesmo que eles tenham tomado refe-
para o que comumente chamamos por
rências diferentes para o mesmo nome,
esse nome, certamente ele diria ‘não,
muito provavelmente viram coisas dife-
isto não é um cachorro’. Mas caso se
rentes como referência, isto é, tomando
encontrassem o cão e a cabra distan-
o mesmo sujeito que designava o ani-
tes num pasto, e o primeiro dissesse

10 Segundo FISCHER (2009, p. 12), “Em sua definição mais simples, linguagem significa ‘meio de troca de informações’. Essa defi-
nição permite que o conceito de linguagem englobe expressões faciais, gestos, posturas, assobios, sinais de mão, escrita, linguagem de
programação (ou de computadores), e assim por diante.” Tomamos aqui essa definição de ‘linguagem’, e estamos entendendo ‘língua’
como as línguas naturais dos diferentes povos (p.ex. Alemão, Inglês).

338 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 333-353
ISSN: 2317-9570
ENSAIO PARA UMA TEORIA DA CRENÇA SEGUNDO A CONCEPÇÃO TRIPARTITE DO TEMPO

mal cabra pelo nome ‘cachorro’, e co- tarmos para a questão da ilusão percep-
locando os dois animais claramente di- tual. O único modo de saber se o que
ante dos olhos desse sujeito, ele só de- se passa atualmente em sua sensibili-
signaria um dos dois por esse nome, fi- dade é ou não uma ilusão perceptual
cando confuso acerca ou atribuindo ou- sua é perguntar para outro falante da
tro nome ao outro. língua se ele vê o mesmo que você atu-
Desse modo, caso o enunciado em almente vê; caso ele concorde acerca do
questão coincida atualmente e para o significado dos termos, está tudo bem,
mesmo objeto a qual ele se refere, sua ainda que os dois estivessem sobre o
justificação está feita. Haveria aí al- efeito de uma ilusão perceptual, isso
gum elemento de convenção? A descon- porque nesse caso mesmo a ilusão per-
tar o uso da linguagem comum, parece- ceptual seria para eles objetiva. Assim,
nos que poderia haver alguma con- um enunciado sobre o tempo presente
cordância entre as faculdades dos su- goza de objetividade segundo o critério
jeitos, ainda que não completamente, de verdade como correspondência, mas
mas acerca de alguns requisitos sensí- no fundo o que está em jogo é a con-
veis mínimos, por exemplo, gozar de cordância conceitual envolvida na de-
uma visão saudável. Porém, ainda que finição dos termos, sendo a correspon-
não possa haver elementos de conven- dência em última instância feita entre
ção, pode haver afirmações subjetivas o conceito que compõe o enunciado e a
em enunciados sobre o tempo presente, forma comum compartilhada da sensi-
tais como ‘eu tenho dor’, para as quais bilidade dos falantes.
não pode nem mesmo haver a demanda Podemos pensar que, assim como
acerca de sua justificação, pois seu eu uma reunião de religiosos, uma reunião
digo ‘prove que você tem dor’, jamais a de cientistas que estejam tratando de
pessoa poderá me fornecer uma expe- um experimento atualmente presente
riência. Assim, pode haver enunciados em um laboratório, exige da parte dos
sobre o tempo presente que podem ser colaboradores individuais que estejam
verificados pelo princípio de verdade a par de uma linguagem comum e de
como correspondência e outros para os um conjunto de regras tomadas como
quais é sem sentido exigir verificação. verdadeiras. Porém, ao contrário dos
Se eu digo ‘eu estou na sua frente agora’, enunciados metafísicos, enunciados so-
estando em sua frente, também não há bre o tempo presente são convencio-
motivos para especular muito acerca da nalmente aceitos a partir de experimen-
verdade de minha afirmação, a não ser tos que podem ser reproduzidos, e geral-
que se trate de uma ilusão perceptual mente não são aceitos segundo critérios
sua. como autoridade do falante, adesão cole-
Nesse ponto, é importante nos aten- tiva por crença subjetiva, etc.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 333-353 339
ISSN: 2317-9570
JOÃO RENATO AMORIM FEITOSA

1.3 Enunciados sobre o tempo passado acerca da sinceridade daquele que fala.
Eu não vivi a Segunda Guerra Mundial,
tampouco estava com Neil Armstrong
Se alguém me disser ‘ontem eu fui ao
quando este pisou na Lua, portanto as
cinema’, e eu me perguntar pela justi-
imagens, textos e relatos que me con-
ficação deste enunciado, jamais pode-
tam sobre esses acontecimentos, rigo-
rei saber se a afirmação do interlocu-
rosamente falando11 , não são provas
tor é verdadeira ou falsa. Nesse caso,
que garantem a verificação desses ar-
ou deverei conferir a ele uma espécie
gumentos segundo o critério de corres-
de confiança e acreditar em seu enun-
pondência12 . Mas isso significa que em
ciado por mera concessão, caso eu não
qualquer relato sobre o passado é im-
estivesse naquele momento, ou a jus-
possível a verificação direta? Quando
tificação do enunciado se dá, caso eu
a nossa mãe nos conta acerca de nosso
estivesse também naquele momento,
comportamento quando éramos bebês,
pelo critério de verdade como corres-
podemos verificar este enunciado como
pondência pensada naquele presente que
alguém que esteve ali presente? Nesse
hoje chamamos de passado. Haveria as-
caso, deveríamos acrescentar um fator
sim, uma espécie de presente do preté-
epistemológico a mais à nossa inves-
rito no qual aquele princípio pode ser
tigação e dizer que é preciso além de
aplicado, de modo que, no momento
ter vivido o mesmo fato, ter tido cons-
presente, caso seja enunciado ‘ontem
ciência dele? Num caso como esses so-
eu fui ao cinema’, e eu também tiver
mos obrigados a admitir que também
ido com essa pessoa, a verificação pode
podemos conceder validade aos enun-
se dar por correspondência, caso con-
ciados de nossas mães acerca de nosso
trário, ela só pode se dar por conces-
comportamento quando bebês, mesmo
são. Fatos históricos, notícias, relatos,
não tendo consciência de ter estado lá,
estórias, nunca são sobre o momento
por mera concessão. Mas acontece que
presente. Portanto, nesses casos, se fa-
naquela época, eu não dispunha ainda
lante e interlocutor não compartilha-
da mesma linguagem, e consequente-
ram da mesma experiência no passado,
mente das regras que sustentam a coe-
a verificação dos enunciados só pode se
rência entre os falantes, tampouco esta-
dar pela crença daquele que ouve ou lê

11 J. Dancy (1990) faz uma distinção entre verificação forte e verificação fraca: “A verificação forte é verificação conclusiva; uma
afirmação é conclusivamente verificável se, uma vez que tenhamos a melhor evidência possível para ela, não restar qualquer pos-
sibilidade de a afirmação ser falsa.” (p. 114). Já uma “afirmação fracamente verificável não é em si fortemente verificável, mas é
confirmável ou desconfirmável por recurso a outras afirmações que são conclusivamente verificáveis; isto é, as afirmações fortemente
verificáveis podem contar com a evidência a favor ou contra elas” (ibidem). Apresentamos aqui como uma questão se os enuncia-
dos sobre o passado seriam, sob esta perspectiva, “fracamente verificáveis”, pois sempre são enunciadas no tempo presente, o que
inviabilizaria uma “verificação direta” daquele enunciado.
12 É preciso esclarecer que aqui estamos dando um sentido forte ao critério de correspondência, atribuindo ao presente a única
referência empírica capaz de satisfazer as condições (materiais) de validação objetiva daquele enunciado.

340 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 333-353
ISSN: 2317-9570
ENSAIO PARA UMA TEORIA DA CRENÇA SEGUNDO A CONCEPÇÃO TRIPARTITE DO TEMPO

vam desenvolvidos plenamente os sen- naquele momento passado. Contudo,


tidos, por isso, é como se eu não tivesse ainda que se possa obter boas informa-
vivido o fato, pois faltavam os dois fa- ções a partir desses registros do tempo,
tores que constituem este último13 . As- qualquer tentativa de dizer deles, não
sim, um fato passado só é um fato a tendo estado lá presente, é meramente
partir do momento em que eu o presen- conjectural, e só pode obter algum grau
ciei conscientemente, do contrário, ele de objetividade por mera adesão cole-
é a concessão de um enunciado que so- tiva. Ainda que as evidências científicas
mente é válido por esse caráter. sejam fortes e apoiadas em técnicas so-
É sempre prudente separar o que é fisticadas, como a datação por radiação,
fato do que é uma notícia, uma história, elas são sempre uma estimativa14 . Uma
um relato, pois estes versam sobre os teoria da crença em relação ao tempo
fatos. Nesses tipos de enunciados, fica passado deveria se preocupar também
bastante evidente uma dependência da com uma investigação sobre o relato his-
confiabilidade do interlocutor para com tórico pensado como descrição de um
o falante, de modo que isso se expressa fato histórico, e como se constituiriam
de um ponto de vista prático, como as relações de acordo entre os falantes
quando algum repórter diz ‘a fonte é nesses casos.
confiável’, ou quando alguém nos inter- Muitas vezes acreditamos, isto é, es-
pela acerca da fonte de uma notícia que tamos convencidos de uma memória
a demos se esta é confiável. Fotografias, por um momento, mas depois ficamos
fósseis, imagens de telescópios espaci- em dúvida se realmente aquilo acon-
ais, são verdadeiros recortes estáticos teceu exatamente do modo como des-
de momentos passados, e a não ser que crevemos, como no caso de sonhos, ou
sejam cópias falsificadas de seus origi- memórias antigas. Portanto, deve haver
nais, ou montagens, etc., elas parecem também em enunciados sobre o pas-
gozar de verificação por meio de corres- sado algum elemento subjetivo envol-
pondência, no caso em que o exemplar vido na sua verificação; por exemplo,
representa algo que realmente existiu um sujeito convicto de um fato que não

13 Além desses dois fatores, não poderíamos deixar de mencionar o papel da memória na atribuição de validade a um enunciado
sobre o passado. Dancy (1990 p. 228) define a posição epistemológica realista com relação à memória como “o ponto de vista de que
a ocorrência de memórias atuais e a possibilidade de outras memórias que não as que atualmente temos, têm qualquer coisa de inteiramente
diferente dessas memórias.” Sob esta perspectiva, a referência dos enunciados sobre o passado seria dada pela descrição de fatos passa-
dos. Já o realista indireto afirma que “quando recordamos, há um objeto direto de consciência que funciona como intermediário; é a imagem
da memória.” Nesse sentido, a referência dos enunciados sobre o passado seria dada pela descrição de uma representação, a qual pode
variar de um sujeito a outro (p. ex. um mesmo acontecimento visto por sujeitos a partir de ângulos diferentes), o que põe em questão
a validade objetiva desses enunciados. Destacamos aqui que o caráter da crença, diante dessas dificuldades, pode ser um caminho
teórico interessante para estudar a atribuição de validade objetiva, em uma comunidade, a acontecimentos passados.
14 Desse modo, enunciados científicos sobre o passado gozariam de objetividade por serem validados por um método (p. ex. a
datação por carbono 14) bem estabelecido e aceito por uma comunidade científica, mas jamais seria possível a sua verificação direta,
por se tratarem de juízos sobre o passado, como por exemplo em “a datação por carbono 14 indica que o espécime tem mais de 5 mil
anos”.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 333-353 341
ISSN: 2317-9570
JOÃO RENATO AMORIM FEITOSA

aconteceu jamais o tomará como falso, ou não a ser atestado pela experiência
e dificilmente alguém o convencerá do amanhã. Digamos que essa pessoa co-
contrário, ainda que nem ele nem o in- meça a me fornecer uma série de razões
terlocutor possam fornecer provas de- a fim de me convencer acerca da va-
finitivas. Um conjunto de pessoas en- lidade de seu enunciado, proferido no
volvidas em uma sociedade guiada por momento presente, sobre o futuro; tais
alguns enunciados admitidos como ver- como, ‘o mapa meteorológico mostra
dadeiros também pode, por mera ade- aproximação de um grande volume de
são coletiva, estarem justificados a crer nuvens vindas do leste’, ou ‘veja como o
num acontecimento passado. A morte céu está nublado’. Eu posso aceitar por
de um mártir, relatos de fatos milagro- mera concessão, mas nem eu, nem o su-
sos, todos esses enunciados sobre o pas- jeito que proferiu o enunciado estamos
sado podem obter justificação coletiva, asseguradamente certos de que ele se
mas não objetividade. verificará no dia seguinte. A possibili-
dade de que um vento vindo do oeste
devolva aquelas nuvens ao seu lugar
de origem é a mesma de que ela per-
1.4 Enunciados sobre o tempo futuro maneça em Brasília e venha a precipi-
tar15 . Sob esta perspectiva, toda afirma-
Se alguém me diz ‘amanhã vai chover ção sobre o futuro, sob esta perspectiva,
em Brasília’, que critérios eu utilizo só pode dizer respeito a uma possibili-
para verificar a validade desse enun- dade de que algo aconteça. Enunciados
ciado? Eventos passados, quando vi- científicos, futurologias, cartomantes,
venciados pelos dois falantes, permi- leitores de mãos, e todos os enuncia-
tem uma verificação direta, enquanto dos que pretendem dizer de algo que
que quando um dos dois não esteve ainda não aconteceu o modo como vai
presente, apenas por concessão. Even- acontecer, só podem ter a chance de vir
tos futuros, contudo, não foram viven- a acertar caso refinem seu enunciado
ciados por nenhum dos dois falantes. com uma série de definições auxiliares
Do ponto de vista da possibilidade ló- que permitam aumentar as chances de
gica, pode ser que esse enunciado venha

15 Um exemplo clássico do tratamento desse problema na tradição filosófica é o problema levantado por Hume e a resposta a ele
dada por Kant. Hume afirma que “o contrário de toda questão de fato deve sempre permanecer sendo possível, porque não pode
implicar jamais em contradição” (Investigações, seção IV. § 2). Além disso, Hume assume a impossibilidade de conhecimento a priori
da relação de causa e efeito (ibdem § 6), pois como o efeito é algo distinto de sua causa, ele não pode ser descoberto na própria causa.
(ibidem § 11). Disso resulta a atribuição de mera probabilidade a juízos baseados em experiências passadas para se referir a aconte-
cimentos futuros (ibdem § 19), e a fundamentação no hábito ou no costume daquilo que nos faz esperar para o futuro o que ocorreu
em experiências passadas (ibidem, seção V § 5-6). Referindo-se a essa noção acerca da relação de causa e efeito, Kant afirma (KrV B
794) que “Hume concluiu pois, falsamente, da contingência de nossa ação de determinar segundo a lei, a contingência da própria lei
e confundiu a passagem do conceito de uma coisa à experiência possível (a qual sucede a priori e exprime a realidade objetiva desse
conceito com a síntese dos objetos na experiência rela que, na verdade, é sempre empírica.”

342 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 333-353
ISSN: 2317-9570
ENSAIO PARA UMA TEORIA DA CRENÇA SEGUNDO A CONCEPÇÃO TRIPARTITE DO TEMPO

que seu enunciado venha a se confe- do seu enunciado, o cientista restringe.


rir16 . Geralmente o cientista faz suas Tal restrição, contudo, tem um preço,
definições auxiliares baseado no esta- qual seja, o cientista deve se contentar
belecimento de certas condições experi- em jamais conhecer o objeto em ques-
mentais, enquanto que aquelas espécies tão na totalidade das variáveis que ele
de místicos citadas baseiam suas defi- deve desprezar para que seu enunciado
nições auxiliares nos enunciados que seja capaz de prever um acontecimento
servem para o maior número de pos- futuro17 .
sibilidades, por exemplo, ‘eu vejo que Aqui também intervém a noção de
você passará por um momento difícil confiabilidade, pois se um místico me
na sua vida’; ora, muitos eventos po- dissesse aquela frase, e um meteorolo-
dem ser denotados por um enunciado gista me dissesse que não será o caso,
como esse, e o ouvinte incauto pode fa- certamente eu não levaria o guarda-
cilmente vir a admitir validade a um chuva para a universidade no dia se-
enunciado que as vezes não passa de guinte. Contudo, essa confiabilidade só
mera charlatanice. Porém, enuncia- é conferida ao cientista porque sabemos
dos científicos gozam de um prestígio que ele é uma pessoa experimentada
o qual se afasta radicalmente do misti- naquele tipo de situação, que dispõe de
cismo, apesar de compartilharem esse uma série de informações que refinam
interesse em enunciar acerca de even- a sua crença de que aquele evento irá
tos futuros. Mas a ciência, diferente mesmo acontecer, que dispõe de uma
do misticismo, acerta muito mais, isto instrumentação adequada e de uma lin-
é, em termos estatísticos, se contásse- guagem igualmente adequada para a
mos em uma competição entre um ci- avaliação da possibilidade de ocorrên-
entista e um místico, qual deles acertou cia do fenômeno meteorológico, etc.
mais previsões acerca do futuro, o ci- Contudo, o cientista trabalha sempre
entista sairia ganhando. Portanto, deve com aproximações, isto é, tratamentos
haver alguma característica no enunci- estatísticos que levam em consideração
ado científico que o diferencia do sim- erros aleatórios, erros sistemáticos, dis-
ples misticismo, e essa característica é a persão de dados, e outros cálculos que
capacidade de previsibilidade acertada. o permitem dizer, com alguma margem
O místico amplia o escopo de definição de erro, acerca de alguma caracterís-

16 Com relação aos juízos científicos, Hume (Investigações, seção IV. § 12) afirma que “A mais perfeita filosofia da espécie natural
apenas detém por algum tempo nossa ignorância [...]”. Kant via nisso (KrV B 128) um mal resultado do ceticismo humeano: “a
derivação empírica a que ambos recorreram [Locke e Hume], não se coaduna com a realidade dos conhecimentos científicos a priori
que possuímos, ou seja, os da matemática pura e os da ciência geral da natureza, sendo, por conseguinte, refutada pelo fato.”.
17 Em enunciados científicos, frequentemente é preciso se desconsiderar algumas variáveis a fim de tornar esse enunciado mais
geral, como por exemplo, “desprezando a resistência do ar a aceleração de um corpo em queda nas proximidades da crosta terrestre
é aproximadamente 9,8 m.s2 ”, ou ainda “sob as condições padrão de temperatura e pressão...”. Afirmamos que é nessa restrição de
variáveis que o cientista aumenta as chances de que seu enunciado seja bem sucedido em um evento futuro.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 333-353 343
ISSN: 2317-9570
JOÃO RENATO AMORIM FEITOSA

tica qualitativa ou quantitativa do fenô- dades, mais nunca as eliminando com-


meno estudado com algum intervalo de pletamente de modo que só reste a pos-
confiança específico. Como no expe- sibilidade de que aconteça aquilo que
rimento científico são estabelecidas as foi enunciado. O cientista só pode con-
condições ideais para que um fenômeno tar, assim, para a justificação de seus
ocorra, a coerência do enunciado cien- enunciados, com o procedimento lógico
tífico é em grande parte dada por essas da indução, isto é, a partir da observa-
restrições18 . Caso vários outros cientis- ção de que vários casos diferentes se
tas estrangeiros repitam aquele experi- passaram de modo semelhante, posso
mento, sobre as mesmas condições, e o inferir que casos que se enquadrem na-
evento se repita conforme previsto pelo quelas mesmas condições se passarão
enunciado, então aquele enunciado é de modo semelhante; Hume viu nesse
um princípio. Note, porém, que ainda procedimento uma espécie de associa-
que o enunciado venha a ser verificado, ção psicológica (Investigações, Seção V §
ele deve sempre lidar com uma série 5) a qual não garantia realmente a vera-
de condições possíveis que escapam de cidade desse tipo de enunciado. Porém,
seu controle19 , sendo sempre necessá- a indução pode ser vista como um passo
rio um tratamento estatístico adequado positivo no processo de aquisição de co-
para que seja conferido ao enunciado nhecimento, e não como uma espécie
alguma confiabilidade. Assim o cien- de artifício do qual se vale o cientista
tista não deveria fazer afirmações cate- para escapar de uma “impossibilidade
góricas acerca da experiência, mas ape- total” sobre nossa capacidade de falar
nas hipotéticas, de modo que mesmo com acerto acerca de eventos futuros.
aquilo que é tido como uma lei cientí- Karl Popper (1972 p. 17) aborda o
fica deve ser tomado como passível de problema da indução de maneira di-
contrariedade num evento futuro. versa da de Hume. Popper afirma que
Mas então o que garante a um enun- Hume formulou o problema de ma-
ciado científico a sua confirmação fu- neira errônea, o que o levou a tentar
tura? Somente aproximações e tentati- dar uma resposta a um problema lógico
vas mais ou menos bem refinadas que e a um problema psicológico da indução:
aumentando o número de critérios au- o primeiro deles é o de se estamos jus-
xiliares acaba diminuindo as possibili- tificados, no conhecimento, a partir de

18 Geralmente nos laboratórios a reprodução bem sucedida de um experimento está condicionada a determinadas condições físicas
(p. ex. pressão, temperatura) ou mesmo químicas (p. ex. concentração, pH) ideais. Além disso os instrumentos utilizados nos
experimentos (vidrarias, balanças, etc.) são constantemente submetidos a calibrações e os resultados empíricos das medidas sempre
passam por um tratamento estatístico. Veja´: (SKOOG, Douglas A. [et all], 2009. P. 132)
19 Isto é, o que em estatística é conhecido como “erro aleatório”. Segundo Skoog (2009 p. 98) “Os erros aleatórios, ou indetermina-
dos, existem em todas as medidas. Jamais podem ser totalmente eliminados e são, muitas vezes, a maior fonte de incertezas em uma
determinação.”

344 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 333-353
ISSN: 2317-9570
ENSAIO PARA UMA TEORIA DA CRENÇA SEGUNDO A CONCEPÇÃO TRIPARTITE DO TEMPO

experiências conhecidas a experiências mero de repetições, para em seguida


desconhecidas; a segunda é tentar res- concluir que “a admissão da verdade de
ponder no que se fundamenta a nossa asserções de teste às vezes nos permite
expectativa de que as experiências des- justificar a alegação de que uma teoria
conhecidas serão como as conhecidas. explanativa universal é falsa.”(ibidem).
Ele a firma ainda que Nesse caso, “como estamos em busca
de uma teoria explanativa verdadeira,
preferimos aquela cuja falsidade ainda
Seu resultado de que a repe- não foi estabelecida”(ibidem), portanto,
tição não tem qualquer força a partir da refutação de uma asserção
como argumento, embora do- de teste por outra em decorrência da
mine nossa vida cognitiva ou concorrência entre teorias, mantemos
nosso “entendimento”, levou- aquela cuja falsidade não foi apresen-
o à conclusão de que o argu- tada por nenhuma daquelas asserções
mento, ou a razão, desempe- de teste.
nha apenas um papel menor em A indução tem funcionado e ainda
nosso entendimento. (Popper, funciona muito bem; se um técnico de
1972 p. 16) laboratório sabe que o material do qual
é feito uma câmara de gás só resiste
a determinada pressão, jamais preen-
Popper propõe então “traduzir todos
cherá a câmara a um ponto que ultra-
os termos subjetivos ou psicológicos, es-
passe a capacidade de resistência da-
pecialmente “crença”, etc., em termos
quele material, pois sabe que o resul-
objetivos [...] e em vez de “justificativa
tado esperado é uma explosão; desse
de uma crença” falo de “justificativa da
modo, ele pode todas as vezes em que
alegação de que uma teoria é verda-
duvidar dessa afirmação, testá-la no
deira”, etc.” (ibidem p. 17). Chama en-
tempo presente em qualquer que seja
tão de “asserções de teste” nossas asser-
o tempo futuro, caso repita as mesmas
ções mais básicas, as quais podem ser
condições. Assim, se o cientista decide
dados exemplos na experiência, e aque-
assumir uma posição epistemológica do
las a que não podem, “teorias expla-
tipo realista, isto é, segundo a qual seus
nativas universais”. A sua solução do
enunciados diriam respeito a objetos em
problema da indução consiste primei-
si20 dados independentemente das re-
ramente em admitir, como fez Hume,
gras de sua linguagem, ele não pode re-
a impossibilidade de justificar uma te-
querer para seus enunciados que sejam
oria universal a partir da verdade de
válidos para condições futuras, pois ele
asserções de teste, seja qual for o nú-

20 Nos valendo aqui da distinção que Kant operou entre fenômenos e coisas em si. Veja p. ex. (KrV B 67).

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 333-353 345
ISSN: 2317-9570
JOÃO RENATO AMORIM FEITOSA

poderá no máximo dizer, sob determina- estatísticos dos dados e com a proba-
das condições, que algo pode se passar, bilidade de que o enunciado se verifi-
com algum grau de certeza. que. Em todos os casos, evidencia-se
que o caráter epistemológico da crença
está intimamente associado ao conven-
cionalismo de certos usos, às adesões
2. Consequências práticas dos dife- subjetivas, ou coletivas, voluntárias, e
rentes usos dos enunciados temporais a uma espécie de confiabilidade. Isso
e atemporais tem uma série de consequências práti-
cas para diferentes domínios do corpo
Tentamos expor até o momento o pro- social humano, pois a crença cria e des-
blema acerca da objetividade de um co- trói instituições, povos e estados.
nhecimento do ponto de vista dos dife-
rentes momentos no tempo aos quais o
enunciado se refere. Assim, chegamos
a algumas conclusões principais: 1) 2.1 Religião, História e “Fake News”
enunciados sobre entidades metafísicas
são atemporais, embora possam conter A maioria das religiões que conhecemos
predicados temporais; seu principal cri- está baseada em um livro, ou conjunto
tério de verificação consiste numa coe- de livros, que contém seus principais
rência lógica interna ao sistema, relaci- preceitos, relatos de atos divinos, etc.
onada com a adesão coletiva e a crença Em última instância, nada do que está
subjetiva. 2) existem três tipos de enun- escrito num desses livros pode ser pro-
ciados temporais, presente, passado e vado, no sentido estrito deste termo.
futuro, cada um deles com critérios de Que Moisés tenha aberto o Mar Ver-
verificação particulares. O critério de melho ou que Maomé tenha viajado
verdade como correspondência só vale de Meca até Medina, é algo que eu
para o presente, de modo que para valer jamais poderei saber com certeza ab-
no passado, deve ser em relação ao pre- soluta, ainda que o segundo aconteci-
sente do pretérito, tendo estado o inter- mento acima seja mais plausível que
locutor presente. Estando ele ausente, possa ter acontecido do que o primeiro.
vale o critério de confiabilidade ou mera A institucionalização das religiões é um
concessão. A aleatoriedade do possível dos exemplos mais evidentes de como a
faz com que esse princípio seja inválido noção de verdade de um enunciado está
para o futuro, a não ser no momento pre- intimamente ligada com fatores con-
sente em que ele se realize no futuro. No vencionais, crenças coletivas de cunho
melhor dos casos possíveis, ou seja, nas subjetivo, de modo que isso tem impli-
ciências, o falante só pode contar com cações práticas notáveis.
aproximações a partir de tratamentos Uma pessoa educada segundo os

346 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 333-353
ISSN: 2317-9570
ENSAIO PARA UMA TEORIA DA CRENÇA SEGUNDO A CONCEPÇÃO TRIPARTITE DO TEMPO

preceitos de uma religião jamais vai mos ‘ponto de vista’ a interpretação que
abandoná-los, seja por um momento, depende sempre do sujeito que a relata.
num momento em que esteja avaliando Um evento histórico sempre possui di-
seja um dado empírico, seja o compor- ferentes “pontos de vista”. Um ame-
tamento de uma pessoa, e isso vai in- ricano patriota pode crer que as bom-
fluenciar na hora de avaliar a validade bas lançadas sobre o Japão foram em
dos enunciados que provenham de um prol da manutenção da paz mundial, o
contexto outro que não o religioso. Um que pode não condizer com a verdade,
padre versado em astronomia, quando ainda que isso possa estar presente em
observa o movimento de um astro, glo- alguns livros didáticos de história em
rifica a Deus como o agente secreto da- inglês. Desse modo, a interpretação
quele movimento. Esse mesmo sujeito de um acontecimento que se converte
diante de um ateu que tente convencer- em um relato sobre o mesmo deve ser
lhe da inexistência de Deus, se der aten- destacada do próprio acontecimento ou
ção àquele, será apenas uma atenção evento. Mas, podemos dizer que o sim-
de ouvidos, porque o seu cérebro per- ples relato do lançamento das bombas é
manecerá relutante em tomar qualquer factual? De modo rigoroso, não. Porém,
um daqueles argumentos como válido. há um número enorme de evidências
Todos nós conhecemos mais ou menos que servem como provas auxiliares ao
bem as consequências práticas desse mero relato, que fortalecem a confiança
tipo de crença, mas o que nos chama nele, e que nos faz crer que de fato acon-
a atenção nesse caso é que um conjunto teceram, mas que jamais obterão de nós
de crenças estabelecidas, por assim di- a verificação absoluta. Se formos radi-
zer, de fora do sujeito, são capazes de cais, tudo aquilo que eu não vivi, e de
causar consequências práticas interio- que não tenho uma memória viva, ape-
res, isto é, que dizem respeito à sub- nas pode ter ocorrido; junte a isso um
jetividade, tal como a tomada de deci- conjunto de provas auxiliares e eu lhe
sões, e mesmo a orientação de toda uma concedo meu ‘sim, você tem razão’.
vida segundo aqueles preceitos, como Atualmente temos presenciado na
no caso das freiras, padres, etc. Além mídia internacional vários exemplos de
de se basear em enunciados sobre even- usos de notícias falsas que alteraram o
tos passados, as religiões tem a preten- curso de eleições, e de maneira mais trá-
são de dizer acerca de eventos futuros, gica, determinaram a morte de algumas
como nos casos de apocalipses e messi- pessoas. A tomada de um relato como
anismo. evidente por sua mera repercussão é
Mais importante do que o evento his- uma modalidade desse tipo de crença, e
tórico a ser relatado, é quem relata o podemos dizer que elas vêm a ser acei-
evento histórico. Comumente, chama- tas como válidas de maneira geral por

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 333-353 347
ISSN: 2317-9570
JOÃO RENATO AMORIM FEITOSA

adesão coletiva. Assim, de maneira ge- o professor como testemunha, o qual


ral, esses enunciados presentes em li- afirma ter visto seu cliente na sala de
vros de história, notícias, e em preceitos aula naquele horário, mas o professor
que regulamentam instituições que tem afirma isso com uma certa dúvida, ele
a pretensão de obter validade acerca de não tem bem certeza, quando indagado
enunciados sobre o tempo passado, ob- acaba errando a cor da camisa que o cli-
têm por adesão. Fora do círculo de va- ente usava naquele dia; enfim, nunca
lidade desses enunciados, isto é, da co- saberemos se o professor não o confun-
munidade que os assume e sustentam, diu com algum outro aluno, se alguma
eles não obtêm validade alguma. circunstância outra aconteceu, ou se era
o caso que se tratava daquela pessoa.
Se, por um lado, não deve interfe-
rir no direito as inclinações pessoais do
2.2 Direito juiz, mas tudo deve ser provado me-
diante a letra da lei, por outro lado,
Quando penso no trabalho de um juiz as decisões que levam em considera-
de direito, sinto uma certa aflição em ção somente um ponto de vista técnico
me colocar no lugar desses profissio- podem, devido ao preceito de cumprir
nais. Isso porque na maioria dos casos a lei a qualquer preço, acabar conde-
em que se tem que julgar um crime, nando um inocente, ou libertando um
por exemplo, o juiz só pode contar com culpado. Portanto, o juiz não pode con-
a argumentação da acusação e da de- tar nem com uma técnica bem estabele-
fesa, defendendo seu ponto de vista cida nem com suas inclinações pessoais,
sobre o que aconteceu. Para que con- mas deve ter uma certa capacidade de
vençam o juiz, seja a acusar seja a ab- dedução dos fatos que lhe são apresen-
solver, o promotor e o advogado apre- tados, a fim de ver se cabe a esses fatos
sentam uma série de fatos, baseados aplicar alguma sanção. Mas e se um
em provas, tendo estas últimas de es- dos dois, acusação ou defesa, tiver uma
tarem de acordo com a legislação. A capacidade de exposição de seus argu-
defesa poderia dizer algo como ‘posso mentos de maneira mais clara, mais em
provar que meu cliente estava em um conformidade com a lei, mais inteligí-
local bem distante, no horário em que vel para os que estão ali presentes, do
o crime ocorreu’, e até apresentar algu- que o outro? Será que de maneira al-
mas provas, como ter assinado a cha- guma isso interferiria no resultado de
mada da aula de inglês que ocorreu um julgamento? E quando se trata de
naquele mesmo horário; porém, o juiz um caso de forte apelo popular, o di-
nunca saberá com cem por cento de cer- reito se mantém isento de qualquer in-
teza se aquele documento não é uma terferência pragmática da linguagem
fraude. O advogado de defesa chama

348 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 333-353
ISSN: 2317-9570
ENSAIO PARA UMA TEORIA DA CRENÇA SEGUNDO A CONCEPÇÃO TRIPARTITE DO TEMPO

em suas decisões? Nunca saberemos, reito é se o juiz estivesse presente no


em nenhum desses casos, se o réu re- momento do crime e ali mesmo pudesse
almente cometeu o crime ou não, pois proferir sua sentença, o que obviamente
trata-se de um caso passado, de onde, à não ocorre. Mas, como sabemos, o di-
semelhança de casos futuros, só pode- reito está repleto de costumes e de ri-
mos tirar vestígios ou conceder veraci- tos que são seguidos por todos os seus
dade aos enunciados. praticantes; é uma prática comum dos
A filmagem, a fotografia, são ele- demais tribunais seguirem o entendi-
mentos de prova muito fortes, porém, mento dos colegiados superiores (como
mesmo sobre eles ainda se pode levan- o Supremo Tribunal Federal ou o Supe-
tar dúvida acerca de sua veracidade; em rior Tribunal de Justiça) os quais tomam
uma situação possível poderiam os de- suas decisões a partir da maioria dos
fensores, quando seus clientes são apa- votos acerca do que está sendo pautado.
nhados por uma câmera bem no mo- Jamais saberemos acerca da ‘imparcia-
mento em que estão recebendo uma lidade’ de cada juiz em relação a sua
mala de dinheiro, alegar que ‘não se decisão, portanto, em casos de decisões
trata do cliente, mas de uma outra pes- colegiadas no direito impera a interpre-
soa, devido a qualidade da imagem, tação de cada magistrado, o que mostra
etc’. Quem prova, de maneira definitiva um assustador caráter subjetivo nas de-
e de uma vez por todas, que realmente cisões judiciais. Imagine um juiz racista
era a pessoa em questão? Acreditamos julgando um negro.
que essa incompletude das sentenças e
das provas no direito se deve ao fato de
que se tratam de proposições sobre o 2.3 Linguagem cotidiana e convencio-
passado, pois primeiro ocorre o crime, nalismo21
depois se tem relatos dele, para enfim
serem julgados. Mesmo nos casos em É bastante comum nas conversas do
que ocorre o flagrante no momento em dia-a-dia as pessoas se pronunciarem
que o crime está sendo cometido, como acerca de algo que se passou, algo que
quando um policial apanha um crimi- está se passando agora, ou algo que
noso no ato, por exemplo, é preciso que pode se passar. É difícil pensar em si-
haja testemunhas do flagrante quando tuações em que nenhuma modalidade
este reportar o crime ao poder judiciá- temporal esteja envolvida. Uma pes-
rio. O caso mais extremo a ser pensado soa pode ainda se referir a uma ideia,
para se alcançar a completude no di- ou a uma imaginação, um plano, uma

21 Em seu dicionário, Abbagnano define o termo “convencionalismo” da seguinte maneira: “Qualquer doutrina segundo a qual a
verdade de algumas proposições válidas em um ou mais campos se deva ao acordo comum ou ao entendimento (tácito ou expresso)
daqueles que utilizam essas proposições”. Tomamos para o presente artigo esse sentido de convencionalismo.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 333-353 349
ISSN: 2317-9570
JOÃO RENATO AMORIM FEITOSA

equação, ou um esquema; diríamos que porais, e que a verificação desses enun-


nesses casos ela se refere a algo sem o ciados de maneira geral, se dá ora por
uso de nenhuma daquelas modalida- concordância lógica, ora por concor-
des? Pois se o sujeito não fala de algo dância coletiva, sendo esta última com-
que está fisicamente presente, ou fala posta por enunciados convencionais, de
de algo do passado, ou do futuro, ou tal modo que a depender da instituição,
se refere a alguma ideia ou pensamento grupo ou casta esses enunciados adqui-
seu ou de outrem, excluído é claro a rem um valor de verdade, uma confi-
interrogação, a exclamação, e diferen- abilidade, e uma consequente aceita-
tes usos como ordenar, pedir, chamar, ção coletiva que determinará também o
etc. Por isso, se tratando de frases as- modo como qualquer evento particular
sertivas, em geral elas fazem referên- pertencente a um conjunto de eventos
cia a uma das modalidades temporais. que não se enquadram segundo aque-
Numa frase do tipo ‘este x é y’, trata- las regras deverá ser avaliado. Numa
se sempre do momento presente, pois o conversa cotidiana, geralmente quando
predicado é ligado ao sujeito pelo verbo alguém se refere a um evento passado,
ser conjugado no tempo presente, e as- aceita-se a validade do enunciado por
sim para as demais modalidades. E mera concessão, ao presente por referência,
quando o sujeito se refere a uma ideia e ao futuro por possibilidade. A detec-
sua ou a de outrem, tal como na frase ‘a ção de mentiras, fabulações, histórias
ideia leibniziana de mônada’, podemos imaginadas, sobre o passado, se dá ou
atribuir alguma modalidade temporal? pela incongruência e impossibilidade
Ou numa frase como ‘eu penso que po- de ocorrência do fato enunciado, ou
demos entender a vida como provação’, pela percepção de certos aspectos psi-
podemos dizer que não existe nenhum cológicos como insegurança ao falar, ou
resquício de temporalidade? Acredita- não olhar para os olhos do interlocutor,
mos que não, e que isso não implica em apesar de nada disso ser definitivo.
assumir nenhum compromisso ontoló- Um aspecto prático da modalidade
gico, tal como dizer que se é atemporal temporal na fala cotidiana também se
é eterno, ou algo assim. Acreditamos mostra na alteração do código que acon-
que isso se deve à vaziez da referência tece com a adesão ou retirada de ter-
a que esse tipo de enunciado manifesta, mos novos ou antigos da linguagem
e com isso queremos dizer que somente em questão, ou a adesão a novas re-
enunciados temporais são passíveis de gras. É bastante perceptível como al-
referencialidade, direta e indireta. guns senhores mais velhos ficam des-
Percebemos com isso que, na lingua- locados em uma reunião de jovens, e
gem cotidiana, os falantes intercalam- como esses últimos são relutantes em
se entre enunciados temporais e atem- aceitar em seus grupos culturais locais

350 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 333-353
ISSN: 2317-9570
ENSAIO PARA UMA TEORIA DA CRENÇA SEGUNDO A CONCEPÇÃO TRIPARTITE DO TEMPO

outros membros que não compartilhem talvez enunciados sobre o passado ou


de uma cultura linguística mínima, isto o futuro que permitam uma verificação
é, que compartilhe da mesma tempora- direta. Isso mostra que observando a
lidade cultural vigente naquele grupo. capacidade de enunciação sob o ponto
Talvez a incapacidade de alguns jovens de vista do tempo nós podemos perce-
em conseguir encontrar um grupo no ber que existe associado a eles um ele-
qual possa fazer amigos se dê por conta mento intrínseco de convencionalismo,
da incapacidade desse jovem em com- de uma aceitação geral de determinada
partilhar de regras linguístico-culturais noções que significam esses enuncia-
mínimas que permitem uma primeira dos, e que em última instância vão de-
interação. Pessoas que compartilham terminar, em alguns casos, a verificação
de um mesmo gosto musical, estudam de enunciados que tem efeitos práticos,
um mesmo tema, e, em última instân- mas que não gozam de uma verificação
cia, falam a mesma língua, tem muito autônoma, isto é, que contenha elemen-
mais facilidade para o contato social. tos livres de convencionalismo, inclina-
Esse fenômeno linguístico é muito inte- ção pessoal ou adesão coletiva.
ressante, porque ele acaba implicando
ou em adesão ou abandono do indiví-
duo em relação ao grupo ou deste em
relação ao indivíduo. É bastante co- 3. Conclusão
mum ouvirmos pessoas mais velhas di-
zendo algo como ‘na minha época tal Uma teoria da crença que leve em consi-
coisa não se passava assim’, com o fim deração os diferentes tempos aos quais
de apresentar alguma lição de moral os enunciados se referem deveria então
ou algo parecido ao interlocutor, o que conter as regras segundo as quais é feita
pode apenas ser uma fabulação daquele essa referência de acordo com cada mo-
que a profere, mas uma fabulação com mento do tempo (passado, presente, fu-
efeitos práticos. turo), de modo a indicar em cada um
Dificilmente nós diríamos que a no- deles a vigência dos princípios de va-
ção de tempo apresentada por Einstein lidação, que culminam na crença da-
no século XX já se tornou popular, a quele que atesta a validade a um enun-
ponto de estar subentendida quando ciado. Tomamos neste ensaio o prin-
um falante comum profere a palavra cípio de verdade enquanto correspon-
‘tempo’ em alguma frase. Assim, talvez dência para testar se tal alternativa se-
sejam permitidos novos tipos de cons- ria viável, e vimos que temos alguns
truções frasais acerca de uma concep- indícios a esse respeito. A fala cotidi-
ção de tempo que não seja entendida ana, das famílias, das senhoras que fa-
como dividida nos três momentos, ou lam sobre a novela, está repleta de refe-
rências a elementos temporais, e um es-

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 333-353 351
ISSN: 2317-9570
JOÃO RENATO AMORIM FEITOSA

tudo pragmático dessa caraterística po- empregadas nas falas cotidiana, meta-
deria ser reveladora de alguns aspectos física e científica. Essa teoria deveria
subjacentes a essa fala cotidiana. Isso levar em consideração também os as-
nos mostra que existem alguns elemen- pectos que a sociologia e a antropolo-
tos subjacentes à fala comum que só gia revelam de acordo com as épocas,
uma pragmática linguística pode siste- pois esse estudo revelaria que as regras
matizar, pois os critérios de estabele- que determinam os ‘jogos de lingua-
cimento da verdade e sua consequente gem’, como dizia Wittgenstein, recebem
aceitação pública são a própria estru- do campo sociológico e até mesmo psi-
tura mesma da linguagem cotidiana. cológico as bases ideológicas de funda-
É importante ressaltar aqui que ver- mentação das crenças.
dadeiro e falso, sob esta perspectiva, Mesmo diante das alterações sobre a
pode significar algo a mais do que um noção de tempo é bastante difícil con-
valor lógico de verdade para certas pro- ceber uma frase como ‘amanhã eu fui
posições; por exemplo, se uma senhora à casa de Fabrício’, em alguma concep-
diz a outra a sua opinião sobre um per- ção de tempo possível, como passível
sonagem de alguma novela, ‘você per- de justificação. Ou a concepção tripar-
cebeu o comportamento vil de dona tite do tempo está enraizada em nos-
Mercedes?’ e a outra responde ‘Deus sos cérebros, ou poderá ser que um dia
me livre!’, eu acho difícil pensar que uma alteração da noção de tempo in-
a resposta da segunda se segue logica- cida numa determinação de novas com-
mente da proposição da primeira, ape- binações de regras possíveis. De todo
sar de se tratar de uma espécie de modo, percebemos que em geral alte-
confirmação pela segunda interlocutora rações drásticas nas nossas concepções
acerca do enunciado da primeira. As- científicas fundamentais acabam resva-
sim, uma teoria da crença como uma lando em concepções usuais, como es-
concessão de validade de um enunciado pécies de resquícios seus, que não go-
acerca do momento passado, como no zam do mesmo rigor enunciativo, mas
exemplo acima, poderia ser uma alter- que guardam o seu formato. Caberia a
nativa para a explicação da valoração uma pragmática linguística que leve em
atribuída aos enunciados ouvidos nos consideração nossa noção de tempo, en-
casos em que não cabe a mera coerên- tão, investigar se existem mesmo essas
cia lógica. Há ainda aqueles que esca- mudanças de paradigma em relação a
pam a qualquer regra de tempo, como noções fundamentais como a de tempo.
os enunciados que se referem a ideias, Se elas não existem, então uma alterna-
mas que também deveriam fazer parte tiva ao investigador seria conceber essa
de uma teoria da crença que leve em noção como fazendo parte da constitui-
consideração as modalidades de tempo ção intrínseca do nosso aparato cogni-

352 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 333-353
ISSN: 2317-9570
ENSAIO PARA UMA TEORIA DA CRENÇA SEGUNDO A CONCEPÇÃO TRIPARTITE DO TEMPO

tivo, de modo que seria impossível pen- ceção daquelas que se referem ao domí-
sar construções frasais que se estendes- nio metafísico.
sem para além de seu domínio, com ex-

Referências
ARISTÓTELES. Metafísica. Tradução: Giovanni Reale. São Paulo: Edições Loyola, 2002.
AUSTIN, J. L. Quando dizer é fazer. Tradução: Danilo Marcondes de Sousa Filho. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.
BACON, Francis. O progresso do Conhecimento. Tradução, int. e notas: Raul Fiker. São Paulo: Editora UNESP, 2007.
DANCY. Jonathan. Epistemologia Contemporânea. Tradução: Teresa Louro Pérez. São Paulo: Edições 70, 2002.
DESCARTES, René. Meditações Metafísicas. Tradução: Maria Ermentina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
________. Princípios da Filosofia. Tradução: João Gama. São Paulo: Edições 70.
CASTRO, Armando. Teoria do Conhecimento Científico. Lisboa: Instituto Piaget, 2001.
DUTRA, Luís Henrique de Araújo. Verdade e investigação: o problema da verdade na teoria do conhecimento. São Paulo,
EPU, 2001.
FRIEDMAN, Michael. Foundations of space-time Theories. New Jersey: Princeton University Press, 1983.
HABERMAS, J. Verdade e Justificação: ensaios filosóficos. Tradução: Milton Camargo Mota. São Paulo, Edições Loyola,
2004.
HUME, David. Investigações sobre o entendimento humano e sobre os princípios da moral. Tradução: José Oscar de Almeida
Marques. São Paulo, Editora Unesp, 2004.
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Tradução: Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. 7ª Edição.
Lisboa: Fundação Kalouste Gulbenkian, 2010.
________. Prolegômenos a qualquer metafísica futura que possa apresentar-se como ciência. Tradução: José Oscar de Almeida
Marques. São Paulo: Estação Liberdade, 2014.
LOCKE, John. Ensaio Sobre o Entendimento Humano. Tradução: Pedro Paulo Garrido Pimenta. São Paulo: Martins Fontes,
2012.
MENEZES, Djacir. O problema da realidade objetiva. 2a Ed., rev. E ampl.; Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1971.
POPPER, Karl. Conhecimento Objetivo: uma abordagem evolucionária. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte: Ed.
Itatiaia; São Paulo, Ed. da Universidade de São Paulo, 1975.
SKOOG, Douglas A. [et all...] Fundamentos de Química Analítica. Tradução: Marco Grassi. São Paulo: Pioneira Thomson
Learning, 2006.
TARSKI, Alfred. The Semantic Conception of Truth: and the foundations of Semantics. Philosophic and Phenomenological
Research, Volume 4, Issue 3. (Mar. 1944), 341-376.

Recebido: 04/01/2020
Aprovado: 21/09/2020
Publicado: 30/12/2020

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 333-353 353
ISSN: 2317-9570
DOI: https://doi.org/10.26512/rfmc.v8i2.28966

O Nomear e a Direita
[Naming and Right]

Fabien Schang*

Resumo: Inspirada pela distinção que, através do conceito auxiliar de necessidade,


Kripke estabelece entre os conceitos de analiticidade e a aprioridade, a tese central do
presente artigo é a de que há mais tipos de atitudes políticas do que se costuma admitir.
A falta de algumas dessas atitudes no espectro político vem de uma confusão profunda
entre os conceitos de direita e de conservadorismo. Além disso, a separação entre os tipos
de ordem econômica e moral, justificará as atitudes mais originais de ‘conservadorismo
de esquerda’ e de ‘progressismo de direita’ ao mesmo tempo que explicará as noções
ambíguas de centros e extremos políticos. Em conclusão, uma comparação entre valores
políticos e valores lógicos (verdade e falsidade), permitirá uma explicação das atitudes
ambivalentes ‘esquerda e direita’ e ‘nem esquerda nem direita’, seja como casos de
confusões conceituais, seja como um colapso do discurso político no ‘extremo-centro’.
Palavras-chave: Conservadorismo. Direita. Esquerda. Extremo-centro. Ordem.

Abstract: Inspired by Kripke’s distinction between the concepts of analyticity and


aprioricity though the auxiliary concept of necessity, the central thesis of the present
paper is that there are more kinds of political attitudes than expected; the lack of some
of these in the political spectrum comes from a deep confusion between the concepts
of right and conservatism. Furthermore, the separation between two kinds of order
–economical and moral, will justify the more original attitudes of ‘left conservatism’
and ‘right progressivism’ whilst accounting for the more ambiguous notions of political
centers and extremes. Finally, a comparison between political values and logical values
–truth and falsity, will allow an explanation of the ambivalent attitudes ‘left and right at
once’ and ‘neither left nor right’ either as cases of conceptual confusions or as a collapse
of the political discourse into ‘extreme center’.
Keywords: Conservatism. Extreme Center. Left. Order. Right.

* Professor visitante do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Goiás (UFG). Doutor em Filosofia pela Université
de Nancy 2/Lorraine (França). Realizou Pós-doutorado financiado pela Maison des Sciences de l’Homme/Franz Thyssen Stiftung na
Technische Universität Dresden (Alemanha), bem como pós-doutorado na Higher School of Economics de Moscou (Rússia), e Pós-
doutorado na Universidade Estadual de Maringá (UEM). Pesquisador visitante nas Universidades de Kolkata, Hyderabad, Mumbai e
Chennai (India), financiado pela Indo-European Research Training Network in Logic (IERTNiL). E-mail: schangfabien@gmail.com.
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3918-7629.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 355-381 355
ISSN: 2317-9570
FABIEN SCHANG

Introdução: Quando dizer não é fazer gua entre dizer e pensar. E óbvio dizer
que os homens nem sempre dizem o
É mais fácil concordar com os homens que pensam nem sempre pensam o que
sobre seu desejo de ir para o céu do que dizem, e isso por várias razões, como
dar-lhes os meios para ir para lá. mentira ou ignorância. Se tomarmos
(André Malraux) o cuidado de distinguir dois significa-
dos do verbo ‘pensar’: pensar1 como
Durante meu primeiro curso de filoso- estar simplesmente ciente de algo, por
fia no ensino médio, minha professora um lado, ou pensar2 como aprovar algo,
(Sra. Martine Dumont) havia elaborado por outro lado, então é impossível dizer
uma espécie de tipo ideal de filósofo o que não pensamos1 quando é possível
com base em dois critérios principais dizer o que não pensamos2 . Vamos, por-
de definição: aqueles que pensam ou tanto, eliminar o primeiro significado e
não pensam algo, e aqueles que fazem limitar nossa atenção ao ‘pensamento2 ’.
ou não fazem algo. Surgiram três cate- Esse significado pode ser cognitivo ou
gorias principais de pessoas: (i) aqueles moral, dependendo de o pensamento2
que fazem o que pensam (os ‘coeren- expressar a crença de que uma propo-
tes’); (ii) aqueles que pensam no que sição é verdadeira ou a convicção de
fazem (os ‘pragmáticos’); e, finalmente, que uma ação é boa. É o último signi-
(iii) a categoria daqueles que não fazem ficado do pensamento2 que nos interes-
o que pensam. Poderíamos estender sará no que se segue, visto que o artigo
essa tipologia precisando que aqueles é dedicado à ação política. Consequen-
que fazem o que pensam não necessa- temente, outra tipologia de comporta-
riamente pensam o que fazem, e vice- mento aparece, substituindo ‘pensar’
versa (iv); ou que os melhores deles, os por ‘dizer’ : existem aqueles que sem-
‘sábios’, devem fazer o que pensam e pre dizem o que fazem (i’) e aqueles que
pensar o que fazem do mesmo jeito (v), sempre fazem o que dizem (ii’), aqueles
o que inclui e excede o significado da que às vezes não dizem o que fazem
primeira categoria. Também podemos (iii’) ou às vezes não fazem o que dizem
conceber que algumas pessoas nunca fa- (iv’), aqueles que sempre fazem o que
zem o que pensam (vi) ou nunca pen- dizem e sempre dizem o que fazem (v’),
sam o que fazem (vii), o que difere da então aqueles que nunca fazem o que
terceira categoria, a dos inconstantes dizem (vi’) e que nunca dizem o que fa-
casuais. zem (vii’).
A lista é, portanto, mais complexa do A complexidade do significado das
que parece, bem como as relações lógi- expressões acima pode, portanto, ser
cas entre seus termos. De fato, essa lista acentuada, se dividirmos o conceito ini-
poderia ser mais complicada se desta- cial de pensamento em conceitos auxi-
carmos a outra conexão sutil e ambí-

356 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 355-381
ISSN: 2317-9570
O NOMEAR E A DIREITA

liares de pensamento explícito (dizer o tiu uma revisão profunda no discurso


que pensamos) e pensamento implícito modal. Do mesmo modo, pretendemos
(não dizer o que o pensamos). Várias que a distinção acima entre pensar e
questões subjacentes à atividade polí- dizer funciona de uma maneira seme-
tica estão relacionadas a essas duas clas- lhante enquanto antecipa uma revisão
sificações logicamente vinculadas. A igualmente profunda na estruturação
crise atual na representação política se do discurso político.
deve ao fato de os políticos não fazerem Outras questões relacionadas podem
o que dizem, ou não fazem o que pen- assim enriquecer o debate: os políticos
sam? Tal questão não é nem meramente profissionais fazem o que pensam, pen-
retórica nem irrelevante para o nosso sam o que dizem, ou dizem o que pen-
propósito. Por um lado, a distinção en- sam? Em outras palavras, eles são acu-
tre pensar e dizer fica no centro da ativi- sados, acima de tudo, de serem menti-
dade política, ao menos nos estados de- rosos quando não dizem o que pensam,
mocráticos onde a autoridade depende ou de serem incompetentes quando não
de um contrato de confiança entre go- fazem o que pensam? Para tentar ob-
vernados e governantes. No entanto, ter uma imagem mais clara desses ti-
qualquer discordância entre o discurso pos de acusações, tentaremos avaliar o
oficial e a ação executiva produz um discurso político para revelar crenças e
conflito entre dizer e fazer. Nesse caso, ações políticas. Isso pressupõe a exis-
a distinção semântica entre pensar e di- tência de um critério para determinar o
zer leva à distinção política entre men- que os políticos devem dizer e fazer de
tira e paternalismo – quem não faz o acordo com os seus comprometimentos
que diz mente, enquanto quem não faz públicos: é precisamente a distinção
o que pensa sem dizer pode esconder entre esquerda e direita, que constitui
algum tópico difuso para o seu eleito- o cerne deste artigo e cujo significado
rado. A crise política atual depende em deve ser esclarecido a fim de desvelar
grande parte disso, isto é, a dificuldade a crise da representação política em re-
para distinguir o que os políticos pen- lação a esses comprometimentos. Uma
sam abertamente e o que eles deixam explicação mais precisa desses termos
difuso nos discursos oficiais. Por ou- também poderia explicar outras noções
tro lado, verifica-se que essa distinção é ambíguas tais como a ‘demagogia’ (vi’)
análoga a uma discussão extremamente e o ‘paternalismo’ (vii’).
relevante na estruturação do discurso
filosófico sobre as modalidades. Assim,
a separação realizada por Kripke en-
tre o conceito metafísico de necessidade
e o epistêmico de contingência permi-

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 355-381 357
ISSN: 2317-9570
FABIEN SCHANG

1. ‘Esquerda’? ‘Direita’? mantida? Uma explicação em três eta-


pas pode ser apresentada para pensar
Quando me perguntam se a distinção que a oposição esquerda-direita não faz
entre os partidos à direita e os partidos à mais sentido. Primeiramente, a oposi-
esquerda, os homens à direita e os homens ção tradicional entre os sistemas econô-
à esquerda, ainda faz sentido, a primeira micos do capitalismo e do socialismo
ideia que me ocorre é que o homem que expirou desde o final da Guerra Fria e o
faz essa pergunta certamente não é um desaparacimento do bloco oriental. Em
homem à esquerda. segundo lugar, a multiplicação de no-
(Emile-Auguste Chartier, pseudônimo vos temas políticos (ambientalismo, fe-
Alain) minismo, soberanismo, antiespecismo,
etc.) esvazia substancialmente a opo-
A distinção política entre esquerda e sição binária inicial entre dois cam-
direita gera algumas divergências fun- pos políticos. Por fim, o campo de re-
damentais. Para um autor como Alain flexão política resultante dessa profu-
de Benoist (2017), fundador da Nova são de novas ideias é complexo demais
Direita, essa distinção não faz mais sen- para ser reduzido a essa oposição bi-
tido e deve ser substituída por uma nária. Por exemplo, o ambientalismo
nova divisão entre populismo e eli- pode ser combinado com posições ideo-
tismo. No entanto, se outros, como logicas antagonistas tais como um anti-
Chantal Mouffe (2018), tiverem razão capitalismo não-desenvolvimentista ou
ao proporem a manutenção da distin- um ‘capitalismo verde’ sustentável; o
ção entre populismo ‘de esquerda’ e feminismo pode ser combinado tam-
populismo ‘de direita’, a nova cliva- bém com uma laicidade universal ou
gem proposto por De Benoist apenas um comunitarismo indigenista. Fala-
adiciona precisão à clivagem persis- se, nos países europeus, de ‘conspira-
tente tradicional. Contrário ao abando ção vermelho-marrom’ para designar o
da distinção entre esses dois campos, conluio entre o comunismo da extrema
o cientista político Norberto Bobbio, esquerda e o nacionalismo da extrema
que se considerou de centro-esquerda, direita, ou também o conluoio entre
entende a separação como uma ferra- o anti-sionismo da extrema esquerda
menta essencial para a análise da ativi- e o anti-semitismo da extrema direita.
dade política (1994). Fala-se também de um perigo ‘islamo-
Quem aqui tem razão e por que essa fascista’ ou ‘fascismo verde’ nos países
oposição fundamental entre dois pó- ocidentais, para enfatizar a incompa-
los opostos deveria ser abandonada ou

1 A relevância da designação ‘islamo-fascismo’ como sinônimo de ‘islamo-esquerdismo’ foi criticada como fazendo combinações
de ideologicas sem raízes históricas comuns e dissimulando na verdade um discurso islamofóbico de extrema-direita. Sobre essa es-

358 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 355-381
ISSN: 2317-9570
O NOMEAR E A DIREITA

tibilidade entre a religião mulçumana de que os partidários do abandono da


e os regimes democráticos.1 Assim, o divisão esquerda-direita pertenceriam
campo político atual parece complicado à sensibilidade da ‘extrema-direita’, en-
demais para ser reduzido meramente a quanto os partidários de sua continu-
uma díade com polos excludente. ação seriam fiéis aos princípios da de-
Diante dessa confusão geral involun- mocracia de opinião. Podemos descar-
tária ou mal intencionada (e neste úl- tar esse raciocínio por pelo menos duas
timo caso se pode falar em ‘confusio- razões : essa afirmação repousa na ideia
nismo’), proporesmo a defesa da ma- de que uma análise metapolítica sem-
nutenção da distinção esqueda-direita pre depende de preferências tenden-
por duas razões principais. A primeira ciosas e subjetivas; ao mesmo tempo,
é que a multiplicação de novos tópicos ela pressupõe que a extrema direita é
políticos não impede a manutenção da inimiga da democracia, estabelecendo
organização geral do discurso político uma conotação negativa ao debate an-
em dois campos excludentes reciproca- tes mesmo que ele comece. Em vez de
mente e autônomos. A segunda é que condenar antecipadamente os partidá-
tal divisão não tem que ser associada rios da ‘nem esquerda nem direita’, pro-
a qualquer ideologia em particular, na poremos uma análise o mais imparcial
medida em que ela transcende as épo- possível e baseada na analogia com uma
cas e os lugares onde ela se manifesta. área de reflexão que não tem nada polí-
Embora a clivagem esquerda-direita ve- tico: a teoria dos juízos de Kant (2015),
nha do contexto histórico particular da e sua modificação conceitual proposta
Revolução Francesa e tenha sido base- por Saul Kripke (2012).
ada inicialmente em um critério único,
pró ou contra o absolutismo real, ela
não depende disso e pode ser mantida
2. Conceitos e significados
como princípio organizador do pensa-
mento político. No entanto, uma ques- Mudar o nome das coisas é aumentar a
tão central permanece para justificar desgraça do mundo.
esse princípio: por que precisamente (Albert Camus)
este, e não um outro princípio qual-
quer? A análise conceitual a seguir visa ex-
Para responder a essa pergunta, eli- plicar o significado dos conceitos de
minaremos imediatamente alguns im- esquerda e direita, considerando que
passes. Entre eles, se encontra a ideia constituem opostos semânticos que fun-
cionam, sobretudo, como pontos de re-

tratégia explicativa da chamada ‘reductio ad hitlerum’, veja a abordagem moralista do discurso político em (SCHANG. “Left Nazism?
Right expressivism!”). Para uma genealogia do conceito político de islamismo, veja (KRIPKE, 2012).

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 355-381 359
ISSN: 2317-9570
FABIEN SCHANG

ferência ou pontos cardeais cuja tarefa uma definição se esta não leva em conta
é orientar e, assim, dar sentido a qual- a complexidade dos usos reais dos con-
quer discurso político. Esta análise é ceitos ? Nossa resposta é que tal obje-
baseada em três premissas metodoló- ção coloca a carroça na frente dos bois
gicas que se sustentam mutuamente. ao mal compreender o papel dos mo-
A primeira é uma abordagem analítica delos teóricos: é o uso real de um con-
da filosofia política ou, melhor ainda, ceito que deve ser baseado em sua de-
um ensaio de política formal, em oposi- finição essencial, e não vice-versa. A
ção a uma abordagem histórica e sob a palavra ‘essencial’ pode ser enganosa,
qual o significado dos conceitos políti- no entanto, e é preciso evitar cair em
cos depende das condições de verdade um essencialismo ingênuo pelo qual os
das sentenças em que eles ocorrem. A conceitos de esquerda e direita teriam
segunda é uma analogia estrutural en- condições necessárias e suficientes para
tre diferentes famílias conceituais, que serem definidas. Trate-se de examinar
identifica estruturas lógicas comuns en- se tais conceitos se comportam como
tre diferentes grupos de conceitos mu- termos de espécies naturais submetidos
tuamente independentes. A terceira é à algumas necessidas taxonômicas, ou
uma definição prescritiva e não descri- se o significado é um produto aleató-
tiva desses conceitos. Certamente, nada rio das contingências históricas. Kant e
impede de listar os diferentes partidos Kripke são dois autores que pensam a
políticos da esquerda e da direita, de noção de necessidade e os exemplos aos
acordo com os tempos e os países em quais eles recorrem vão inspirar o pro-
que esses conceitos adquiriram um uso blema do significado dos conceitos polí-
comum. Para nossa análise, negaremos ticos. Neste sentido, dizer que a direita
o valor explicativo dessa abordagem é conservadora e que a esquerda é pro-
descritiva, porque ela enfatiza exces- gressista, seria tão verdadeiro quanto a
sivamente nas diferenças caso a caso e afirmação de que o ouro é amarelo, para
perde de vista as características essen- Kant (2015), e de que e a água é H2 O,
ciais desses conceitos. como par Kripke (2012), isto é, equiva-
Uma objeção óbvia contra essa abor- leria a uma necessidade?
dagem prescritiva é que nenhuma ex- Para justificar essa abordagem ana-
plicação pode ser válida sem incluir lítica e prescritiva do discurso político
exemplos reais de quaisquer movimen- diremos, para simplificar, que uma ex-
tos ou partidos associados à esquerda plicação apropriada dos conceitos po-
ou à direita na história do pensamento líticos de esquerda e direita repousa,
político. De fato, a que serviria impor acima de tudo, sobre a distinção entre

2 Veja Hintikka (1968), onde o autor justifica o projeto de um lógica do conceito de conhecimento contra argumentos de filósofos da

360 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 355-381
ISSN: 2317-9570
O NOMEAR E A DIREITA

o significado básico de um conceito e de conceitos interconectados, cuja com-


seu significado residual.2 O significado plexidade manifesta a vida das ideias
‘básico’ de um conceito é o conjunto de políticas através da história mas não
propriedades que ele deve ter para ex- impede a necessidade de esclarecer es-
pressar um significado padronizado e, sas relações até o significado básico dos
assim, relevar uma certa ‘lógica de pro- conceitos.
fundidade’; os significados residuais, De acordo com a metodologia apre-
por outro lado, são todos os usos que sentada na introdução, um problema
esse conceito pode receber na lingua- filosófico pode ser resolvido a partir
gem comum e que não correspondem de uma análise das relações lógicas en-
ao seu uso básico. Por certo, a distin- tre seus conceitos. Para destacar nossa
ção entre esses dois tipos de uso não análise conceitual das condições de ver-
pode ser justificada sem admitir um dade de agora em diante recorremos ao
papel essencial dos conceitos estuda- simbolismo da lógica da primeira or-
dos. Isso não significa, no entanto, que dem. Isso inclui as constantes proposi-
a expressão do significado básico re- cionais do condicional → , do bicondi-
pouse inteiramente em uma postulação cional ↔ , da conjunção ∧, e da negação
ou convenção arbitrária, contra todos ¬. Com isto, sejam S, P e Q quaisquer
seus significados residuais. Pelo con- conceitos, Q sendo a negação de P. En-
trário, isso significa que o conceito em tão:
consideração segue uma função geral.
O conceito de díade (BOBBIO, 1994) é
• ‘S → P’ significará ‘Algo é S somente
particularmente adequado para carac-
se ele é P’, ou ‘Algo não pode ser S
terizar a função essencial dos conceitos
sem ser P’.
de esquerda ou direita no discurso poli-
tico, que é a de expressar uma oposição • ‘S ↔ P’ significará ‘Algo é S se e so-
ou desacordo fundamental, sem o que a mente se ele é P’, ou ‘Algo não pode
atividade política não tem sentido. Ex- ser S sem ser P, e reciprocamente’.
plicar as fontes dessa ‘lógica subjacente’ • ‘S ∧ Q’ significará ‘Algo é S e Q’, ou
é o objetivo principal deste artigo, além ‘S não implica P’.
das muitas variações semânticas que os
dois conceitos de esquerda e direita po- • ‘¬(S → P)’ ou ‘(S ∧ ¬P)’ significará
dem ter encontrado no passado e ainda ‘Nem todo S é P’, isto é, ‘Algo é S e
encontrarão no futuro. O resultado des- não é P’.
sas variações é um conjunto complexo O seguinte caso irá ilustrar como es-

linguagem ordinária. Assim, a formulação de alguns axiomas característicos do conceito de conhecimento não impede a ocorrência
de contra-exemplos no seu uso ordinário e, pelo contrário, destaque o seu uso principal. Todos usos não são criados iguais, e o papel
da lógica filosófica é dar conta desses usos desiguais.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 355-381 361
ISSN: 2317-9570
FABIEN SCHANG

sas relações lógicas ocorrem no centro original sobre esse assunto, sem dúvida,
dos debates filosóficos. vem de Kripke (2012). Aparentemente,
Segundo Kant, qualquer juízo decla- Kripke aceita os quatro tipos de juízo
rativo do tipo ‘S é P’ pode ser caracte- sem excluir nenhum deles. Mas, em
rizado por dois pares de propriedades uma inspeção mais minuciosa, ele o faz
contraditórias: (1) analítico ou (2) sinté- modificando um pouco os termos do
tico, dependendo de o predicado P estar debate inicial estabelecendo uma dis-
contido ou não na definição do sujeito tinção semelhante àquela da introdução
S; (3) a priori ou (4) a posteriori, depen- entre pensar e dizer. Partindo da defi-
dendo de a atribuição da propriedade P nição adicional em virtude da qual um
ao termo sujeito S ser independente ou juízo analítico (1) é necessário (5) e (3) a
depende da experiência. Uma combi- priori: (1) = (5) ↔ (3), Kripke enriquece
natória abstrata, portanto, leva a quatro o debate ao introduzir um conceito fi-
tipos de juízo concebíveis: losófico adicional: o da necessidade (5),
e seu contraditório da contingência (6).
É em torno deste último que Kripke de-
– analíticos a priori: (α) = (1) ∧ (3) fenderá uma posição sem precedentes.
– analíticos a posteriori: (β) = (1) ∧ (4) Visto que, de Kant a Quine, todos os
filósofos consideram que um juízo é ne-
– sintéticos a priori: (γ) = (2) ∧ (3) cessário se e somente se as respectivas
– sintéticos a posteriori: (δ) = (2) ∧ (4) negações da contingência e da aposteri-
oridade também seriam equivalents, (6)
↔ (4), Kripke, pelo contrário, afirma
Kant é famoso por ter defendido que, que os conceitos de necessidade e apri-
contra a tradição filosófica anterior, (γ) oridade são logicamente independents.
é concebível. Ele também afirmou que De acordo com sua argumentação, exis-
(β) é inconcebível, uma vez que a anali- tem proposições necessárias a posteri-
ticidade excluiria imediatamente qual- ori, (5) ∧ (4), na medida em que ne-
quer uso da experiência. cessidade não implica aprioridade, as-
A posição de Kant na lista dos pos- sim como há proposições contingentes a
síveis tipos de juízo não foi unanime- priori (6) ∧ (3), na medida em que apri-
mente aceita pela comunidade filosó- oridade não implica necessidade. Essa
fica. Positivistas lógicos como Carnap posição iconoclasta é inteiramente ba-
excluíram não apenas (β) mas tam- seada na definição de necessidade, que
bém (δ), enquanto Quine (1975) desafi- Kripke concebe como segue: uma pro-
ava a própria legitimidade da distinção posição é necessária se e somente se for
analítico-sintético e, portanto, desafi- verdadeira em todos os mundos possí-
ava a relevância filosófica dos quatro ti- veis. Consequentemente, a existência
pos de juízo (α)-(δ). Mas a posição mais

362 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 355-381
ISSN: 2317-9570
O NOMEAR E A DIREITA

de proposições necessárias a posteriori (SCHANG, 2016) A situação teórica é


significa que existem proposições ver- semelhante à da teoria dos juízos de
dadeiras em todos os mundos possíveis Kant, apesar de seu conteúdo muito di-
e cuja atribuição de verdade repousa ferente. Segundo Epicuro, todo desejo
em uma confirmação experimental; o pode ser caracterizado novamente por
exemplo de uma proposição necessá- dois pares de propriedades contraditó-
ria a posteriori dada por Kripke é ‘Água rias: aqueles que são necessários (5) e
é H2 O’. E a existência de proposições aqueles que não são, ou seja, os que são
contingentes a priori significa que certas contingentes (6); aqueles que são na-
proposições cuja atribuição da verdade turais (7) e aqueles que não são, que
é independente da experiência não são qualificaremos como culturais (8). Uma
verdadeiras em todos os mundos pos- combinação desses conceitos fornece
síveis. O exemplo de uma proposição quatro tipos de desejos, novamente:
contingente a priori dado por Kripke é
‘O metro-padrão de Paris tem um metro
– necessários naturais: (α’) = (5) ∧ (7)
de comprimento’. Apesar dos escrúpu-
los do lógico Quine na introdução de – necessários culturais: (β’) = (5) ∧ (8)
‘mundos possíveis’ neste debate, faria – contingentes naturais: (γ’) = (6) ∧ (7)
sentido falar de proposições necessá- – contingentes culturais: (δ’) = (6) ∧ (8)
rias a posteriori ou proposições contin-
gentes a priori. E a razão pela qual essas
combinações de propriedades parecem Como se vê, a classificação epicurista
inconcebíveis é, sem dúvida, devido dos tipos de desejos corresponde exata-
à equivalência lógica tradicionalmente mente à classificação kantiana dos tipos
aceita entre necessidade e aprioridade, de juízo, com base nas relações análo-
tornando (β) um sinônimo dos juízos gas (1)-(5), (2)-(6), (3)-(7) e (4)-(8): a
necessários a posteriori. Ao dissociar ne- tradição kantiana recusa a existência
cessidade e aprioridade, Kripke mostra, dos juízos analíticos a posteriori: ¬((1)
pelo contrário, que é possível admitir ∧ (4)), assim como a tradição epicurista
juízos necessários a posteriori sem ad- recusa a existência dos desejos necessá-
mitir que juízos analíticos a posteriori rios e culturais: ¬((5) ∧ (8)). Isso leva
sejam concebíveis. De fato, Kripke se- a uma conclusão logicamente idêntica.
gue Kant e a tradição na rejeição de (β), No primeiro caso, todos os juízos analí-
mas ele abre o debate insistindo no con- ticos são a priori e existem juízos a priori
ceito de necessidade. que não são analíticos: (1) → (3), assim
O mesmo processo de dissociação como, no segundo caso, todo desejo ne-
conceitual também foi aplicado ao cessário é natural e há desejos naturais
caso da teoria dos desejos de Epicuro que não são necessários: (5) → (7). Mas,
assim como Kripke contestou a relação

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 355-381 363
ISSN: 2317-9570
FABIEN SCHANG

de implicação entre necessidade e apri- duziu no debate epicurista uma neces-


oridade, afirmando que analiticidade e sidade de tipo antropológico, compatí-
necessidade não são equivalentes, o au- vel com a fonte cultural de sua produ-
tor afirma que também há razões para ção e, portanto, distingue-se da necessi-
contestar a relação de implicação entre dade de tipo natural. Essa distinção en-
necessidade e naturalidade (SCHANG, tre duas interpretações de um conceito
2016). Se for esse o caso, existem dese- dado será repetida abaixo, no caso das
jos culturais e necessários: (5) ∧ (8), as- categorias políticas. Vamos mais longe,
sim como deve haver juízos necessários porém, nessa ‘crítica à crítica’ da tipo-
e a posteriori. Não entraremos nos de- logia dos juízos de Kant: mudando o
talhes desse argumento, enfatizaremos significado dos conceitos, como no caso
apenas a analogia estrutural dos dois ti- do conceito auxiliar de necessidade, não
pos de raciocínio relacionados às teorias se está mudando de assunto (plagiando
do juízo e do desejo. E, acima de tudo, Quine, 1986) e, assim, criando um pro-
essa hipótese não epicurista de desejos blema filosófico falso a partir de uma
necessários e culturais ao mesmo tempo confusão conceitual? A referência feita
parece proceder da mesma maneira que à Quine será útil mais adiante, consi-
as declarações necessárias a posteriori derando que a preocupação de Quine
de Kripke, deslocando o sentido cosmo- esteja relacionada apenas às condições
lógico de necessidade para um sentido de verdade e falsidade dos conectores
antropológico de necessitação. lógicos. No futuro caso dos conceitos
Agora, uma questão poderia ser for- políticos, a questão também se relaci-
mulada contra esse processo comum, onará com a busca de condições signi-
tanto em relação a necessidade de ficativas para categorias políticas tais
Kripke quanto a necessitação: a neces- como esquerda e direita.
sidade teria o mesmo significado para Antes de focar nessa relação entre va-
Kripke e Kant, mesmo considerando lores lógicos (verdadeiro-falso) e valo-
que a noção de definição de ‘mundo res políticos (esquerda-direita), vamos
possível’ nunca aparece na formulação ao cerne do assunto: a classificação dos
kantiana da teoria da razão teórica? De tipos de comportamento político.
fato, o argumento de Kripke introduz
no debate kantiano a necessidade de
tipo metafísico compatível com a fonte
empírica de seu conhecimento e, por- 3. Os dois dogmas da ciência política
tanto, distingue-se da necessidade ló- (a distinção esquerda-direita e o pro-
gica de proposições verdadeiras por de- gressismo)
finição ou tautologias. Na mesma linha,
a noção anterior de necessidade intro- Como nas famílias conceituais dos juí-
zos kantianos e dos desejos epicuristas,

364 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 355-381
ISSN: 2317-9570
O NOMEAR E A DIREITA

dois pares de propriedades contraditó- esquerda’ ou ‘extrema direita’, embora


rias tornam possível caracterizar o com- seja difícil perceber o que poderia sig-
portamento político: aqueles que são de nificar um juízo ‘semi-analítico’ ou um
direita (9) e aqueles que não são (10); desejo ‘ultra-necessário’. Voltaremos a
aqueles que são conservadores (11) e essas noções adicionais, dando-lhes um
aqueles que não são (12). Será acor- significado compatível com a classifi-
dado que todos aqueles que não estão cação de atitudes políticas anunciadas
à direita estão automaticamente ‘à es- acima. Entretanto, verifica-se que a opi-
querda’, embora haja algumas razões nião comum dos cientistas políticos so-
para contestar essa implicação lógica, o bre atitudes políticas (supondo que al-
que analisaremos mais adiante. Assim guma seja reconhecida nessa comuni-
como aqueles que não são conservado- dade de analistas) é semelhante à opi-
res sejam comumente referidos como nião da epistemologia dos empiristas
‘progressistas’, mas empregaremos esse pré-kantianos e dos empiristas lógicos.
qualificador com cautela para não in- Assim como estes últimos consideram
troduzir conotações positivas ou nega- logicamente equivalentes os juízos ana-
tivas infundadas. Bobbio (1994) con- líticos e a priori, (1) ↔ (3), o que tam-
sidera esses juízos de valor subjetivos bém se aplica a seus respectivos opos-
como inevitáveis no campo do discurso tos, que são os juízos sintéticos e a pos-
político, mas devem ser evitados o má- teriori, (2) ↔ (4), os primeiros parecem
ximo possível para manter uma aná- assimilar o conservadorismo à direita
lise conceitual o mais imparcial possí- (9) ↔ (11) e o progressismo à esquerda
vel. Assim, chegamos novamente a uma (10) ↔ (12). Isso equivale logicamente
lista combinatória de quatro possíveis a pensar que não há esquerda conserva-
atitudes políticas: dora, ¬((9) ∧ (12)) tanto quanto não há
direita progressista, ¬((10) ∧ (11)).
- direita conservadora: (α”) = (9) ∧ (11) Mas antes de refutar essa opinião am-
- direita progressista: (β”) = (9) ∧ (12) plamente compartilhada, ainda é ne-
- esquerda conservadora: (γ”) = (10) ∧ (11) cessário concordar com as expressões
- esquerda progressista: (δ”) = (10) ∧ (12) que a compõem. Devemos, portanto,
propor uma definição inicial para os
Deve-se notar, no entanto, que o dis- conceitos de direita e conservadorismo,
curso político parece mais complexo antes de considerar seus opostos con-
que as famílias conceituais anteriores, traditórios de esquerda e progressismo.
na medida em que inclui nuances ter- Como o nome sugere, o ‘conserva-
minológicas adicionais, como as noções dorismo’ pode ser caracterizado como
de ‘centro’ e ‘extremo’. Há um sen- a atitude de quem quer manter algo,
tido em falar de atitudes de ‘centro- ou não mudá-lo. A grande dificul-
esquerda’ ou ‘centro-direita’ e ‘extrema

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 355-381 365
ISSN: 2317-9570
FABIEN SCHANG

dade, muitas vezes deixada desperce- rias tentativas de definir seu significado
bida, vem da identidade do que deve e o de seu oposto, que é a ‘esquerda’.
ser preservado e de como preservá-lo. Em vez de uma análise descritiva e his-
Embora possa parecer paradoxal reivin- tórica comparável as de René Rémond
dicar preservar o que não é mais (de- (1954) (para a direita) e Jacques Julliard
pois de ter sido) no caso dos ‘reacioná- (2012) (para a esquerda), tentemos ca-
rios’, podemos falar de um certo con- racterizar a linha por uma propriedade
servadorismo cujo objetivo seria restau- comum. Uma hipótese plausível seria
rar uma ordem das coisas da tradição a preocupação com a ordem das coisas.
ou ordem das coisas naturais. Quanto Essa ordem pode ser de origem humana
à identidade do que deve ser preser- ou não (divina ou simplesmente natu-
vado, pode ser tanto uma ordem mo- ral), pois pode se referir à ordem es-
ral quanto um tipo de governo decaído tabelecida ou à de outra época. A es-
ou o ambiente natural. Para simplificar querda seria, portanto, a negação desses
a noção sem disfarçá-la, qualificaremos diferentes significados do conceito de
como conservadorismo a atitude polí- ordem, e seu significado variará ainda
tica de quem faz do grupo a medida de mais, dependendo do significado atri-
todas as normas políticas e privilegia as buído ao conceito de ordem. Mas se
instituições coletivas (família, Estado, virarmos o problema de cabeça para
religião) sobre as vontades particulares baixo e começarmos a análise definindo
ou, em outras palavras, a coexistência a ‘esquerda’ como a preocupação com
sobre a existência. Como resultado, en- a igualdade, segue-se que a direita se
tendemos por ‘progressismo’ a atitude torna sinônimo de desigualdade. Con-
oposta daqueles que tornam o indiví- tudo, assim como não queremos asso-
duo a medida de todas as normas políti- ciar a esquerda à expressão pejorativa
cas e favorecem as vontades individuais de desordem e preferimos a idéia de re-
sobre as instituições coletivas, ou seja, a jeição do autoritarismo a ela, também
existência de cada um sobre convivên- não associaremos a direita à conotação
cia com os outros. Isso ajuda a vincu- pejorativa de desigualdade e preferire-
lar progressismo e iluminismo, consi- mos a idéia de rejeição do igualitarismo
derando que nenhuma decisão superior quando falando da direita.
pode ser tomada legitimamente sem a Outra maneira comum (e igualmente
avaliação concordante das razões de su- equívoca) de caracterizar direita e es-
jeitos particulares. Surge, portanto, a querda é a seguinte : a direita afirma-
seguinte questão: até que ponto o con- ria que a liberdade é um valor político
servadorismo deveria ser de direita? que prevalece sobre o da igualdade, en-
Com relação a esse conceito de ‘di- quanto a esquerda afirmaria que é o va-
reita’, não se pode mais contar as vá- lor de igualdade que prevalece sobre o

366 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 355-381
ISSN: 2317-9570
O NOMEAR E A DIREITA

da liberdade.3 Aqui chegamos ao cerne da direita para garantir harmonia so-


da dificuldade em nossa análise con- cial é a manutenção da ordem estabe-
ceitual. O conceito de liberdade é tão lecida, enquanto a modalidade da es-
vago na filosofia da política e da mo- querda repousa, ao contrário, na alte-
ralidade quanto o conceito de necessi- ração dessa ordem estabelecida. Pode-
dade na filosofia metafísica e na episte- mos, portanto, entender porque o con-
mologia, pois é a partir daí que pare- servadorismo parece andar de mãos da-
cem surgir as divergências relacionadas das com a atitude da direita, se esta
à existência de diferentes juízos e dife- favorece instituições às quais o con-
rentes atitudes políticas. Além disso, a servador se submete em princípio. É
busca por harmonia social parece unâ- certo que o significado de ‘ordem’ fica
nime na política e produz controvér- um tanto ambíguo, mas procuraremos
sias apenas se a chamada ‘ordem’ im- esclarecê-lo no que segue. Dar uma
plica um autoritarismo arbitrário. Por- análise mais detalhada desse conceito
tanto, não podemos reter a ordem sim- de ordem será o objetivo central do fim
ples como critério característico da di- desta seção, considerando que a rele-
reita, pois esse conceito funciona muito vância dele é tão grande no domínio do
mais como um ideal político compará- discurso político quanto a do conceito
vel ao da verdade na teoria do conheci- de necessidade no domínio do discurso
mento. E, assim como analítico e sinté- metafísico.
tico são dois modos de verdade, são as Alguns esclarecimentos ainda devem
modalidades dessa ordem ou harmonia ser feitos sobre vários conceitos anexos
social que se trata de revelar a fim de a (9)-(12), a fim de justificar nossa ca-
distinguir a direita da esquerda. racterização acima. Por um lado, deve-
Chegamos agora ao ponto principal mos nos pergunta se é oportuno opor
da nossa argumentação. Neste ponto a liberdade à igualdade. Bobbio in-
pretendemos apresentar nossa contri- siste que esses dois valores políticos não
buição particular para um ensaio em são mutuamente excludentes, mas re-
filosofia política analítica – como uma lativamente complementares: é possí-
norma geral que ajude a delimitar o do- vel defender os dois valores de uma
mínio do discurso político em vez de só vez, mas em proporções misterio-
uma descrição histórica das numero- sas que ainda precisam ser determina-
sas correntes políticas de acordo com das com base em várias tendências com-
os tempos e lugares. Partamos, as- portamentais. Isso significa, antes de
sim, da afirmação de que a modalidade tudo, que liberdade e igualdade não são

3 Um exemplo de análise onde a igualdade ocorre como propriedade essencial da esquerda é o de Salanskis (2009). O seguinte
quer mostrar que o conceito de igualdade deriva de outros mais centrais e não é tão relevante para o esclarecimento da oposição
esquerda-direita.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 355-381 367
ISSN: 2317-9570
FABIEN SCHANG

conceitos contraditórios, como os casos relação à realidade, e a ordem das coi-


analíticos/sintéticos, a priori/a posteri- sas (que deve ser o caso) em relação
ori, etc. Por outro lado, será correto ao estado das coisas (o que é o caso).
afirmar que a liberdade implica a ne- Aqui vemos o enorme mal-entendido
gação da ordem? Ou ainda: a doutrina produzido pelo conceito de ordem, de-
do anarquismo é uma promoção da de- pendendo se é entendida como a or-
sordem (mas uma rejeição da ordem in- dem atual estabelecida pelo direito po-
justa)? Como se vê, o problema nova- sitivo ou uma possível ordem estabele-
mente reside na confusão ou falta de cida pelo direito natural. Como con-
clareza dos conceitos estudados na filo- sequência, a outra noção anexa de liber-
sofia política. Tal situação lembra furi- dade se opõe ou não ao conceito de or-
osamente a atitude de Quine em rela- dem de acordo com o que cada um sig-
ção à distinção entre analítico e sinté- nifica: liberdade não se opõe à ordem,
tico, e usaremos essa analogia para jus- se esta é justificada por regras morais
tificar nossa classificação exaustiva de e se significa um ideal de emancipação
atitudes políticas e a idéia de uma dis- em relação às ordens coletivas injustas.
tinção de grau (e não de natureza) entre Mas essa noção de liberdade é tão con-
esquerda e direita. fusa quanto inútil para nosso propósito:
Mas antes disso, observamos a ocor- ninguém promove a ignorância ou a to-
rência na sentença anterior, usada para tal falta de conhecimento, assim como
distinguir anarquismo e desordem sim- não queremos injustiça ou total falta de
ples, de um novo termo anexo: justiça. liberdade para nós mesmos. Por esse
No entanto, esse novo termo é tão po- motivo, temos o direito de substituir o
sitivo e vagamente conotado quanto o conceito tendencioso de liberdade pelo
da liberdade, dependendo se ele é base- conceito mais neutro de emancipação. É,
ado em uma norma natural ou social. O portanto, o último que servirá a partir
que fazer com esses termos, se eles de- de agora para esclarecer as diferentes
veriam esclarecer a situação conceitual atitudes políticas. Em outras palavras,
enquanto produzem ainda mais confu- a liberdade se opõe à ordem apenas no
são ? A resposta é a seguinte: enten- seu sentido mais trivial de livre arbí-
der seu uso no campo lexical da política trio ou falta de conduta regulada (em
por analogia ao campo lexical da epis- referência ao que Descartes chamou de
temologia. Sendo a justificação o que é ‘mais baixo grau de liberdade’). Ela é
apropriado para levar à verdade, a jus- um ideal orientador comparável à ver-
tiça refere-se, portanto, ao modo de re- dade, enquanto sua compreensão mais
alização do bem e participa da oposição estreita do conceito de emancipação in-
entre conservadorismo e progressismo. dica um meio de atingir esse ideal polí-
Esse também é o estatuto do ideal em tico.

368 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 355-381
ISSN: 2317-9570
O NOMEAR E A DIREITA

Em resumo, todas as famílias concei- verdade para os juízos kantianos, a feli-


tuais consideradas até agora sempre se cidade para os desejos ou o bem comum
baseiam em dois tipos de conceitos em- para as atitudes políticas; enquanto os
parelhados (X)-(Y): os primeiros (X) são segundos (Y) são meios de atingir esses
tipos de ideais a serem alcançados (ana- valores orientadores (aprioricidade, na-
liticidade, necessidade, direita), seja a turalidade, conservadorismo).

Conceitos X ¬X Y ¬Y auxiliários
ser pensar não pensar fazer não fazer dizer
juízo analítica sintético a priori a posteriori necessário
desejo necessário contingente natural cultural necessitação
política direita esquerda conservador progressisto ordem

O conservadorismo se refere à idéia de tão juízos contingentes a priori e con-


preservar um estado de coisas comum, tingentes a posteriori. Da mesma forma,
mas resta saber se este é atual ou não é provável que o átomo aparente da di-
para poder identificar os diferentes ti- reita conservadora possa ser dividido
pos de conservadores. A direita refere- em seus dois elementos distintos. Resta
se à noção de ordem das coisas estabe- revelar o conceito auxiliar que prova-
lecidas, mas resta saber de qual tipo de velmente isolará a molécula da direita
ordem se trata para poder distinguir os da qual seria também um átomo cons-
diferentes tipos de direita. tituinte: será a ordem estabelecida de
O que emerge dessa análise é que ‘o que é o caso’, mas dividida entre um
prevalece a confusão entre as noções de sentido econômico e um sentido moral.
conservadorismo e direita. Essa confu- Por analogia com a distinção estabele-
são é análoga àquela entre juízos ana- cida por Kripke entre necessidade me-
líticos e juízos a priori. Como lem- tafísica e necessidade lógica, também é
brete, Kant ‘quebrou’ o átomo aparente possível distinguir dois tipos de ordem
do analítico a priori em seus dois ele- política: uma ordem econômica, que se
mentos distintos antes de Kripke isolar refere à norma dos modos de produ-
a molécula da analiticidade do átomo ção e troca de bens materiais entre os
de necessidade, esta sendo um consti- membros de uma determinada comuni-
tuinte essencial dela combinada com dade e uma ordem moral, que se refere
aprioridade. Foi, portanto, o conceito às normas comportamentais dos indi-
auxiliar de necessidade metafísica que víduos no espaço público. Assim como
permitiu a Kripke justificar novas for- não há relação de dependência particu-
mas de juízo, como juízos necessários lar entre necessidade metafísica e ne-
a priori e necessários a posteriori, en- cessidade lógica, a ordem econômica é

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 355-381 369
ISSN: 2317-9570
FABIEN SCHANG

independente da ordem moral. se combina com a necessidade de der-


Voltemos agora ao que parecia ser rubar as instituições políticas capitalis-
a taxonomia usual de atitudes políti- tas existentes.4 Nesse sentido, ‘man-
cas, taxonomia limitada a uma opo- ter’ não significa manter a ordem do-
sição binária entre a direita conserva- minante, mas, pelo contrário, estabele-
dora e a esquerda progressista. Se a ex- cer uma ordem econômica alternativa.
pressão ‘progressismo de direita’ pode Outro caso concebível de conservado-
incomodar o senso comum, é na me- rismo de esquerda é o anarquismo de
dida em que o progressismo emanci- Proudhon, que Isabel (2017) descreve
patório é assimilado ao protesto da es- como um programa de defesa da classe
querda contra a ordem estabelecida; as- trabalhadora em nome de valores mo-
sim como a expressão ‘esquerda con- rais tradicionais, tais como família e
servadora’ enfrenta um obstáculo epis- trabalho. Estamos longe da imagem
temológico, desde que associemos o usual do anarquismo, e isso pode pa-
conservadorismo ao respeito da direita recer uma razão suficiente para recu-
pela ordem estabelecida. O conceito sar esse viés da esquerda. Uma objeção
de ‘liberal-libertário’ introduzido por contra a existência de tal ‘conservado-
Michel Clouscard (2008) parece, no en- rismo de esquerda’ é que Proudhon, So-
tanto, uma expressão bastante indicada rel e Niekisch compartiham opiniões
para o primeiro: o lado libertário se re- anti-semitas que são explicitamente in-
fere ao progressismo emancipatório dos compatíveis com o universalismo his-
indivíduos, enquanto o lado liberal cor- tórico da esquerda herdada da Revolu-
responde à atual ordem econômica ca- ção Francesa e, também, inspiraram os
pitalista, assim produzindo uma síntese movimentos fascistas dos anos 1920.5
entre cidadão e consumidor que é espe- Nesse caso, quem é anti-semita (14) não
cífica ao progressismo de direita. Movi- poderia ser de esquerda, de tal modo
mentos como o sindicalismo revolucio- que o antissemitismo seria uma condi-
nário de Georges Sorel ou o nacional- ção suficiente para ser de direita: (14)
bolchevismo de Ernst Niekisch tam- → (9) ou, melhor ainda, de extrema
bém parecem ilustrações do conser- direita. Isso contradiz a nossa ideia
vadorismo de esquerda, uma vez que segundo a qual não há nenhuma im-
sua vontade de defender órgãos sociais plicação lógica entre os conceitos polí-
como a família ou a classe trabalhadora ticos, reabilitando assim a relação de

4 Georges Sorel (1847-1922) é considerado como o pai do sindicalismo revolucionário e o introdutor do marxismo na França en-
quanto inspirado por Proudhon; Ernst Niekisch (1889-1967) foi o principal influenciador da chamada ‘asa esquerda’ do partido
nazista alemão, através dos irmães Gregor e Otto Strasser. Sobre a expressão ‘nazismo de esquerda’ e o seu significado ambiguo, veja
(SCHANG, 2016).
5 Sobre o antissemitismo de Sorel, veja em particular os historiadores Shlomo Sand: Georges Sorel en son temps (Paris, Seuil, 1985),
e Zeev Sternhell (2012).

370 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 355-381
ISSN: 2317-9570
O NOMEAR E A DIREITA

analiticidade entre alguns deles. No nhell deveria explicar tal contradição


entanto, podemos duvidar de que haja que, a menos que seja meramente retó-
algum critério independente para jus- rica, não pode fazer sentido e invalida o
tificar tal relação entre os conceitos de carater análitico dos pares ordenados
antissemitismo e de direita. Pelo con- antissemitismo-direita e capitalismo-
trário, alguns comentadores afirmaram direita. Uma alternativa pode ser a se-
que a atitude de Proudhon vinha da guinte: ou bem admitimos que há an-
sua asimilação do judeu ao capitalismo ticapitalistas de direita e negar assim
e simbolizou por isso um ‘antissemi- a relação de analiticidade entre (15) e
tismo de esquerda’. Aqui está presu- (9): (15) ∧ (8), a fim de salvar a declara-
posto tão somente um caso inverso de ção segundo a qual Sorel foi de extrema
relação de analiticidade, em virtude do direita; ou bem abrimos o debate ao ad-
qual quem é capitalista (15) é de direita mitir que tal ‘extrema direita’ constitui
(9) e, logo, por contraposição, quem é uma expressão desajeitada para uma
de esquerda não é capitalista ou é ‘an- nova atitude política em si mesma, ou
ticapitalista’ (16). Mas aparecem aqui seja: ‘nem direita nem esquerda’. Resta
também as duas suposições análogas de saber o que significa essa forma de ‘ter-
que quem não é de direita é necessari- ceira via’ e o que querem os seus repre-
amente da esquerda e que quem não sentantes, além de saber o que eles não
é capitalista é anticapitalista, e vice- querem.
versa: (15) ↔ (9), logo (8) ↔ (16). Re- Uma terceira opção, que é a que de-
tomaremos em detalhes esse ponto na fendemos, consiste em rejeitar ambos
próxima seção, por meio da pergunta critérios de analiticidade e de terceira
lógica sobre se os conceitos de esquerda via enquanto mantemos a tese de um
e direita são contraditórios ou contrá- ‘conservadorismo de esquerda’. Re-
rios entre si. Por ora, diremos que, tornando ao caso de Proudhon, pode-
provavelmente, é a fim de preservar as mos explicar a dificuldade em admi-
duas relações de analiticidade (14) → tir esse tipo de conservadorismo da se-
(9) e (15) → (9) que Sternhell (2012) guinte maneira: a profunda influência
caracterizou o proto-fascismo de Sorel da noção marxista de ‘ideologia da falsa
como sendo ‘nem de direita nem de es- consciência’ (ENGELS MARX, 1993)
querda’, enquanto manteve a alcunha é sem dúvida responsável pela rela-
tradicional de ‘fascismo’ como ideolo- ção de equivalência estabelecida por
gia de ‘extrema-direita’. Como alguém Marx e Engels entre as ordens econô-
pode ser de ‘extrema direita’ – sendo micas e morais, isto é, a relação causal
assim da categoria geral da direita, e de infraestrutura a superestrutura e, con-
‘nem ser de direita nem de esquerda’ sequentemente, a relação de implica-
– não sendo assim da direita ? Ster- ção pressuposta entre o modo de pro-

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 355-381 371
ISSN: 2317-9570
FABIEN SCHANG

dução capitalista e o conservadorismo reduzindo cada proposição verdadeira


como vontade alienada de manter qual- a um conjunto de dados observáveis,
quer institução dominante. Aparente- a divisão esquerda-direita repousa na
mente, não encontramos essa conexão crença em critérios comuns e trans-
em Proudhon, e o senso comum dos parentes do progresso humano. Sem
cientistas políticos poderia ser com- dúvida, há um elemento de arbitrarie-
parado ao resultado inconsciente da dade nas distinções esquerda-direita e
vitória do materialismo dialético de conservadorismo-progressismo, assim
Marx sobre o socialismo utópico de como nas oposições analítico-sintético
Proudhon. A dificuldade em admitir e a priori-a posteriori; mas isso não nos
a existência de uma esquerda conserva- dá nenhuma razão para abandonar es-
dora e uma direita progressista é basi- sas distinções, e a ideia de Bobbio de
camente a mesma que admitir a exis- que esquerda e direita são tendências
tência de uma necessidade a posteriori e tão irredutíveis quanto difusas lembra
uma contingência a priori. A superação fortemente a ideia quiniana de uma dis-
desse obstáculo epistemológico pressu- tinção de grau (e não da natureza) entre
põe, antes de tudo, uma definição mais verdades lógicas e verdades empíricas.
precisa do primeiro termo, depois uma
distinção entre seu significado usual e
um outro significado mais particular. 4. Valores lógicos, valores políticos
Concluiremos nossa análise política
com uma nota que pode ser aproximada - Existem chefes de esquerda, quero
do ceticismo epistemológico de Quine. ensinar ao senhor.
Assim como ele desafiou a legitimidade - Também existem peixes voadores, mas
da distinção usual entre analítico e sin- que não constituem a maioria do gênero.
tético, a clara separação entre direita (Michel Audiard, O Presidente)
e esquerda repousa sobre uma oposi-
ção forçada entre a ordem econômica Também costuma-se, na linguagem co-
e a ordem moral: decidir em que ca- mum, apresentar a esquerda e a direita
sos um valor moral impõe-se a todos como valores. Será que é possível consi-
dentro de um determinado corpo so- derar essas ideias orientadoras compa-
cial não é mais óbvio do que decidir ráveis aos valores lógicos do verdadeiro
quando uma afirmação é verdadeira e do falso? Não que a direita e a es-
apenas em virtude do significado de querda sejam idênticas ao verdadeiro e
seus termos em um determinado idi- falso, ou vice-versa. É novamente uma
oma. E, assim como a clara separa- reflexão analógica, sabendo que o ver-
ção entre analítico e sintético repousa dadeiro e o falso são geralmente apre-
na crença em um empirismo radical, sentados como um par de opostos. Se
pretendemos rejeitar tal comparação,

372 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 355-381
ISSN: 2317-9570
O NOMEAR E A DIREITA

devemos antes examinar as razões teó- não aparecem na classificação dos


ricas para tal, antes de citar as vanta- juízos de Kant-Kripke, enquanto
gens explanatórias. ‘direita’ e ‘esquerda’ aparecem na
Perguntemo-nos primeiro sobre a na- classificação das atitudes políticas.
tureza dos valores políticos, localizados
em algum lugar entre valores lógicos e Este último critério para distinguir
predicados proposicionais. Os motivos entre linguagem-objeto e metalingua-
para não manter a esquerda e a direita gem é particularmente útil para evi-
como valores podem ser os seguintes: tar paradoxos semânticos e, portanto,
contra a produção de discursos antité-
ticos. É esse tipo de contradição que
• argumento minimalista: a afirma- queremos testar no discurso político,
ção ‘Paris é a capital da França’ de modo que se poderia perguntar: se
é verdadeira ou falsa porque Pa- a oposição esquerda - direita forma um
ris é a capital da França ou não, par contraditório de natureza diferente
ao passo que um partido político do par verdadeiro-falso, por que nos
está ‘à esquerda’ ou ‘à direita’ por- parece tão absurdo pensar que um par-
que ele promove tal ou tal ideolo- tido político pode ser de esquerda e de
gia. Deste modo, podemos explicar direita ao mesmo tempo, quanto pensar
por que esse ou aquele partido é de que uma afirmação pode ser verdadeira
esquerda ou de direita, enquanto a e falsa ao mesmo tempo ? É certo que a
explicação da verdade da afirmação suposta relação contraditória entre es-
de que Paris é a capital da França é querda e direita não implica que estes
redundante; sejam valores em si mesmos. Afinal,
o fato de o predicado ‘preto’ excluir o
• argumento axiológico: a verdade é
‘branco’ (e vice-versa) não significa que
um ideal da ciência em oposição à
esses termos de cores sejam valores. Se
falsidade, enquanto esquerda e di-
os conceitos de esquerda e direita não
reita são dois valores que podem ser
são valores, o que são eles se não corres-
buscados separadamente e em par-
pondem a nenhum objeto em particular
tes iguais (mas por razões diferen-
? A analogia com o exemplo das cores
tes);
permite explicar em que medida dois
• argumento metalinguístico: os con- termos admitem ou não um interme-
ceitos de verdade/falsidade e es- diário. Também explicará em que me-
querda/direita não estão no mesmo dida os conceitos de esquerda e direita
nível de discurso, o primeiro sendo estão relacionados aos valores pelo fato
de ordem superior; a prova disso é de eles se comportarem como expres-
que os predicados ou valores de or- sões de atitudes morais (e não cogniti-
dem superior ‘verdadeiro’ e ‘falso’ vas). Explicar a lógica dessas atitudes

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 355-381 373
ISSN: 2317-9570
FABIEN SCHANG

será o último tema deste artigo. contingente, e vice-versa ; e todo juízo é


Consideremos um agente da es- necessário ou contingente, tertium non
querda ou da direita como um ser moral datur. No caso da direita, nossa defini-
que atribui valor a qualquer ação polí- ção é tal que se baseia no conceito de
tica (SCHANG, 2019). Uma ação é con- ordem e que este último pode ser di-
siderada boa ou ruim e isso distingue vidido em ordem econômica e ordem
atitudes morais de atitudes cognitivas, moral. Responder às duas perguntas
que por sua vez se relacionam com os acima consiste, portanto, em saber se a
valores lógicos de verdade e falsidade. oposição entre esquerda e direita pode
Essas ações podem ser interpretadas a ser considerada como um conjunto de
partir de conceitos ideológicos, que são conceitos políticos que são ao mesmo
formas intermediárias de atribuir valor tempo excludentes e exaustivos. O li-
moral a diferentes tipos de ações en- beralismo é de esquerda ou de direita,
tre membros de um espaço social. Mas por exemplo ? Se a primazia do indiví-
não são apenas as ideologias numero- duo sobre o coletivo caracteriza o liber-
sas e variadas: socialismo, liberalismo, tarianismo, ou liberalismo social, isso
nacionalismo, feminismo, humanismo, constitui uma atitude de progressismo
ambientalismo, etc.; além disso, essas que se opõe ao conceito de conserva-
ideologias têm definições ambíguas e dorismo. E se a promoção de modos
suas relações lógicas são tão pouco es- de troca capitalistas constitui o libera-
pecificadas quanto o número delas fica lismo econômico, então esta é uma ati-
indeterminado. Duas questões surgem, tude de direita, pois promove a ordem
dada essa ambiguidade. econômica estabelecida de livre comér-
cio e se opõe à atitude esquerdista do
(a) Os conceitos de esquerda e direita socialismo. Portanto, alguém seria le-
são definíveis como conjuntos fechados vado a pensar que a ideologia do libe-
de ideologias subjacentes? ralismo estaria à direita em relação à
ordem econômica, enquanto estaria à
(b) Uma atitude política pode ser de es-
esquerda em relação à ordem moral. O
querda e de direita ao mesmo tempo,
movimento ‘Egalité et Réconciliation’
ou nem de esquerda nem de direita?
(Igualdade e Reconciliação) de Alain
Soral, por exemplo, mantém o mesmo
Tentamos caracterizar a divisão registro quando promove um modelo
esquerda-direita por analogia com os político caracterizado pela ‘esquerda
juízos kantianos e os desejos epicuris- do trabalho e direita dos valores’: uma
tas, ou seja, a partir de uma combina- combinação nacionalista de economia
ção de dois conceitos principais cujos
comportamentos lógicos são exclusivos
e exaustivos : nenhum juízo necessário é

374 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 355-381
ISSN: 2317-9570
O NOMEAR E A DIREITA

estatal e de conservadorismo.6 Nossa Esta terceira via refere-se a dois tipos de


análise das atitudes políticas consistiu correntes políticas diferentes : o popu-
em distinguir o conservadorismo das lismo dos chefes de Estado (de Gaulle,
noções independentes de esquerda e di- Vargas, Péron, Chaves), por um lado, e
reita : existe um conservadorismo de a ‘nova social-democracia’ (Tony Blair,
esquerda e um conservadorismo de di- e seu mentor Anthony Giddens [2001]),
reita, assim como existem juízos neces- por outro. Alain de Benoist considera o
sários a priori e necessários a posteriori. debate político atual como uma nova
Em outras palavras, qualquer referên- oposição entre populismo e elitismo,
cia a uma atitude política simultanea- ou localismo e globalismo; ao mesmo
mente de ‘esquerda e direita’ repousa tempo, Chantal Mouffe distingue entre
ainda mais sobre uma confusão entre populismo de esquerda e populismo de
os dois termos combinados de direita direita. Não é possível dar razão a am-
e conservadorismo, da mesma maneira bos com base nas mesmas definições ; o
que a referência a propostas necessá- primeiro sem dúvida interpreta o par
rias a posteriori pode dar impressão de ‘esquerda-direita’ como um conjunto
que uma proposição seria a priori e a de ideologias inactuais, enquanto a se-
posteriori ao mesmo tempo, desde que gunda concebe o populismo como um
se pressuponha uma relação de equiva- conceito ambivalente mas compatível
lência entre necessidade e aprioridade. com essa divisão tradicional.
Assim, se excluirmos a possibilidade Nossa explicação final dos casos de
de atitudes políticas de esquerda e di- atitudes políticas excessivas (esquerda
reita, o que dizer do caso oposto de ati- e direita) e incompletas (nem esquerda
tudes políticas que não seriam nem de nem direita) será baseada em uma in-
esquerda nem de direita ? Se nenhuma terpretação multivalente dos valores po-
ideologia escapa à divisão exaustiva líticos: existiriam políticas que são de
esquerda-direita, essa expressão dupla- esquerda ‘e’ de direita no mesmo sen-
mente negativa não faz mais sentido e tido em que existiriam proposições ‘ver-
é novamente baseada na confusão con- dadeiras e falsas’, assim como existi-
ceitual. Um exemplo de ideologia as- riam políticas que não estão ‘nem’ à es-
sociada a essa posição incompleta é o querda ‘nem’ à direita, no mesmo sen-
conceito de ‘terceira via’, que supõe a tido em que não existiriam proposições
existência de um pensamento econô- ‘nem verdadeiras nem falsas’. Esses ca-
mico nem capitalista nem socialista. sos de valores não-clássicos podem ser

6 Essa máxima resume a associação política ’Égalité & Réconciliation’ (Igualdade e Reconciliação) de Alain Soral:
<https://www.egaliteetreconciliation.fr>. Apesar das acusações de antissemitismo contra esse movimento, não consideramos isso
como uma razão suficiente para recusar a noção correspondente de ‘conservadorismo de esquerda’ e validar a relação de analitici-
dade entre direita e conservadorismo. Fazer isso seria um caso de reductio ad hitlerum (SCHANG, 2016).

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 355-381 375
ISSN: 2317-9570
FABIEN SCHANG

adaptados ao princípio da bivalência, da extrema esquerda. Deve-se observar


em virtude do qual qualquer proposi- que esta interpretação do centro con-
ção é verdadeira ou falsa. No primeiro corda com a definição da necessidade
caso, uma atitude política pode ser con- de Kripke em termos de verdade em ‘to-
siderada como de esquerda ‘e’ de direita dos’ os mundos possíveis, constituindo
quando sendo ‘não totalmente’ de di- um tipo de contingência política em vir-
reita e ‘não totalmente’ de esquerda. A tude da qual uma atitude política seria
fórmula anterior de Soral é desse tipo, boa ou apropriada em determinadas si-
e mostramos como ela se baseia na con- tuações (mas não em todas). A ‘social-
fusão conceitual entre direita e con- democracia’ de centro-esquerda insis-
servadorismo. Outra maneira de en- tiria mais no progressismo enquanto
tender a atitude política contraditória fosse compatível com a ordem econô-
é assimilá-la ao conceito metapolítico mica estabelecida; o ‘social-liberalismo’
de centro. O próprio Bobbio abordou a de centro-direita privilegiaria o livre
questão (b) acima através da noção de comércio econômico enquanto admitir
centro, aludindo ao princípio lógico do uma certa dose de progressismo. Essas
terceiro excluído. O problema foi refor- duas atitudes são nada mais do que for-
mulado por ele nos seguintes termos: o mulações alternativas da direita econô-
espectro político obedece à lei do ter- mica combinada com o progressivismo,
ceiro excluído, à lei do terceiro incluído, a centro-esquerda preferindo o nome de
ou à lei do terceiro inclusivo? Segundo ‘progressismo’ ao de ‘direita’ e a centro-
a primeira lei, qualquer atitude polí- direita exibindo uma postura oposta.
tica é de esquerda ou de direita, tertium Mas os efeitos práticos são os mesmos
non datur. Pela a segunda lei, uma ati- e as duas atitudes produzem as mes-
tude política pode ser dita nem de es- mas ações públicas, da mesma maneira
querda nem de de direita quando é de que um juízo contingente a priori sig-
centro. E de acordo com a terceira lei, nifica a mesma coisa que um juízo a
uma atitude política pode ser de direita priori contingente. A diferença entre
e também de esquerda. Bobbio pro- as duas atitudes é uma simples questão
moveu a primeira posição, reduzindo de aparência pública : insistir em um
o centro a uma tendência variável de dos dois termos é esconder o que pro-
esquerda ou de direita e o acompanha- vavelmente desagradará a base eleitoral
remos neste ponto : centro-esquerda esperada. Também podemos insistir no
e centro-direita constituiriam atitudes aspecto contingente de um juízo ou no
de ‘moderantismo’ que não aplicam os seu modo de conhecimento a priori, o
mesmos tipos de juízo moral em to- que não o torna, contudo, menos con-
dos os casos, em contraste com as ati- tingente ou a priori.
tudes categóricas da extrema direita e

376 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 355-381
ISSN: 2317-9570
O NOMEAR E A DIREITA

5. Holismo político compromisso público. François Mitter-


rand, embora fosse um homem à es-
Ser de esquerda é, como ser de direita, querda, era um homem de direita, ao
uma das infinitas maneiras que o homem passo que Jacques Chirac, que era um
pode escolher para ser um imbecil: ambas, homem à direita, foi um homem de es-
com efeito, são formas de hemiplegia querda.
moral.
(José Ortega y Gasset, A rebelião das
(II) Quais são as condições necessárias
massas)
e suficientes para ser de esquerda ou de
Há uma diferença entre palavras e coi- direita?
sas, e a divisão esquerda-direita não po-
deria ser mais representativa dessa am- As modalidades desse espaço e os cri-
bivalência entre o que as coisas são e o térios de ação são tão variados e confu-
que as pessoas dizem sobre elas. Por- sos que a definição da divisão esquerda-
tanto, vamos nos colocar agora duas direita é suficiente para desencorajar
questões relacionadas à identidade dos qualquer um. No entanto, isso não
entes políticos e à lógica do discurso po- implica a inutilidade ou insignificân-
lítico. cia dessa divisão, assim como as dúvi-
das de Quine sobre o significado da di-
(I) O que significa ‘ser’ de esquerda ou visão analítico-sintético não implicam
de direita? a insignificância desses dois conceitos
antitéticos herdados de Kant. Em vez
Nossa resposta é que esquerda e di- disso, digamos que esquerda e direita
reita se referem a dois tipos de compor- são conceitos operacionais, ou seja, hi-
tamento político global, ou seja, duas póteses ‘convenientes’ (para falar como
maneiras opostas de conceber um mo- Henri Poincaré), cujo significado de-
delo de harmonia social dentro de um pende tanto da ação prática quanto do
determinado espaço público e em vir- discurso teórico. Em outras palavras,
tude de critérios de ação que são as ide- esses dois conceitos metapolíticos tor-
ologias. Mas ser algo politicamente não nam possível dar um significado ou
é apenas falar como tal, é também agir uma orientação geral a uma ação polí-
de um modo esperado. A distinção ini- tica; mas qualificar uma dada ação po-
cial entre pensar e fazer pode ajudar lítica como ‘de esquerda’ ou ‘de direita’
nesse ponto : existem homens à direita continua sendo um exercício perigoso,
que, no entanto, estão considerados de por causa desse aspecto convencional
esquerda (e vice-versa), quando seus (e, portanto, inobservável) dos dois ter-
próprios pensamentos ou sensibilida- mos opostos.
des políticas não coincidem com seu Nossa resposta a (II), quanto a

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 355-381 377
ISSN: 2317-9570
FABIEN SCHANG

isso, vem ao encontro da posição de nesse modelo. Isso significa que os con-
Quine em relação à distinção analítico- ceitos de esquerda e direita não podem
sintético: não sabemos exatamente ser definidos com base em uma atitude
como definir a esquerda e a direita, pois singular ou em uma definição geral.
a definição desses dois conceitos sem- Por fim, a natureza gradual da cli-
pre depende de termos ambíguos. Isso vagem esquerda-direita pode ser com-
não significa, no entanto, que a divisão parada aos famosos paradoxos sorites:
esquerda-direita não faça sentido, mas não sabemos quanto dos cabelos arran-
que a distinção entre as duas é gradual cados deixam uma pessoa careca, ou
e pode ser comparada àquela entre duas quantos grãos de areia são necessários
cores: ‘sabemos’ distinguir o verde do e suficientes para produzir um monte.
vermelho, mesmo se somos completa- Mas sabemos o que significa calvície e
mente incapazes de dar uma definição o que significa um monte. Da mesma
precisa dessas cores; e também sabe- forma, pode-se perguntar quando uma
mos que um objeto não é vermelho se política fica de esquerda (ou de direita)
for verde, e vice-versa. A reflexão de depois de estar de direita (ou de es-
Goodman (1955) sobre o processo de querda). O caso da ‘terceira via’, ou
indução é interessante a esse respeito: ‘nova social-democracia’, segue esse re-
poderíamos considerar o uso de nomes gistro ao constituir uma espécie de di-
de cores como ‘verzul’ (ou ‘berde’), para reitização da social-democracia, esta já
nos referir a esmeraldas que seriam as constituíndo uma direitização do soci-
primeiras verde (ou azul) antes de se alismo. Não sabemos quando tal uma
tornar azul (ou verde) após um certo ‘direita da direita’ do socialismo cruza
tempo; no entanto, não usamos esses a fronteira da esquerda para se tornar
neologismos e continuamos a usar no- uma política da direita, pela simples ra-
mes de cores categóricos. O mesmo zão de que essa fronteira é apenas teó-
acontece na esfera política, onde ‘des- rica e manifesta o caráter convencional
querda’ e ‘ereita’ são apenas fórmulas da divisão esquerda-direita.
sarcásticas.
O resultado dessa reflexão é uma es-
pécie de holismo semântico adaptado ao
domínio político: o significado de uma
atitude política depende do conjunto de
atitudes consideradas em um modelo
historicamente determinado, e a posi-
ção da esquerda e da direita depende
da interação entre as várias ideologias
que compõem o pensamento político

378 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 355-381
ISSN: 2317-9570
O NOMEAR E A DIREITA

Conclusão: A clareza na confusão reita, reduzindo essa fórmula contradi-


tória a um exemplo de confusão con-
Hoje, o vencedor não é o homem forte e ceitual. O exemplo do movimento dos
inteligente, mas o pequenino, o coletes amarelos na França é instrutivo
espertinho, aquele que sabe lidar com neste ponto, porque lembra um tipo
chantagens com uma [veja se é isso completamente diferente de lógica: a
mesmo] Winchester. E acima de tudo a lógica transcendental de Kant, que espe-
confusão na clareza. cifica as condições de possibilidade da
(Claude Lelouch, A aventura é uma experiência com base em uma síntese
aventura) das intuições puras (espaço e tempo) e
das categorias puras do entendimento.
Propusemos uma definição dessa divi- Em contraste com a ‘lógica’ hegeliana,
são entre esquerda e direita, mas sem onde tudo parece contraditório, acredi-
afirmar que sua aplicação prática escla- tamos que as duas formas de discurso
rece todo o cenário político atual. Resta político incompleto (nem esquerda nem
fazer uma análise formal dessa paisa- direita) e excedente (esquerda e direita
gem e das relações inferenciais entre ao mesmo tempo) são apenas os dois la-
as várias atitudes que as compõem. A dos da mesma moeda: aquelas em que
lógica dessas relações vinculando com nada pode ser feito em particular por-
atitudes morais, ela não pode ser ex- que tudo pode ser dito em geral, resul-
plicada em termos de valores de ver- tante de uma confusão conceitual vo-
dade e deve ser capaz de dizer o que um luntária que impede a clareza do dis-
agente político deve e não deve fazer curso político, cria uma impressão ge-
de acordo com os seus próprios com- ral de niilismo semântico [19] e garante
promissos ideológicos. Uma lógica de a manutenção de profissionais políticos
imperativos deve fazer alguma coisa [é no poder, na ausência de uma alterna-
isso mesmo?] a este respeito [24]. tiva concebível (através de programas
Também refutamos a possibilidade claros e objetivos).
de atitudes políticas ‘nem de esquerda Esta atitude de cinismo político pode
nem de direita’, reinterpretando o cen- ser descrita como um extremo centro.7
trismo como um tipo de atitude mo- Tal expressão pode parecer tão parado-
derada ou relacionada a contextos de xal quanto aquela ‘necessidade contin-
ação. O mesmo se aplica às possibili- gente’, na medida em que tudo o que é
dades de ações de esquerda ‘e’ de di-

7 Sobre as origens históricas desse conceito, veja a entrada correspondente do site Wikipédia (em francês):
<https://fr.wikipedia.org/wiki/Extrême_centre# cite_ref-Deneault2016_5-0, bem como um análise do fenomeno contempore-
nao pelo filosofo canadense Alain Denault (2017). Embora a aparência oximorônica desse apelido pode levar a algumas críticas,
consideramos pelo contrario que ele ajuda abrir nossas perspectivas de reflexão em ciência política ao considerar o ‘extremo’ como
uma postura que também se aplica ao centro.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 355-381 379
ISSN: 2317-9570
FABIEN SCHANG

necessário não pode ser contingente (e retorno às condições normais de exercí-


vice-versa). No entanto, o extremo cen- cio da soberania política.
tro corresponde a uma espécie de con- A divisão esquerda-direita faz sen-
tingência necessária que não é nem uma tido em todos os lugares e sempre, por-
mera contingência nem uma mera ne- tanto, mas com a condição de que se-
cessidade: de acordo com as nossas in- jam dados os meios para se manifestar
terpretações anteriores do extremismo na forma de ações políticas que ema-
(a mesma atitude em todos os contextos) nam da vontade do povo. Quine po-
e centrismo (as atitudes dependem do deria nos lembrar, assim, da ambigui-
contexto, então uma atitude aparece em dade do conceito primordial de povo
alguns contextos mas não em todos), o por meio da divisa: ‘Nenhuma entidade
‘centrismo extremo’ corresponde a uma sem identidade’. Qualquer que seja a
atitude em que é sempre o contexto que identidade de povo, privar o cidadão de
determina a atitude do agente político. seu poder soberano, eliminando a di-
Em outras palavras, nenhuma atitude visão esquerda-direita, equivale a pri-
é a mesma no extremo-centristo pois var o sujeito de seu poder de julgar e,
as convicções ideológicas não existem deste modo, o priva de seu status de so-
neste tipo de agente político. Certa- berano político, agente moral e sujeito
mente não é esse o significado do slogan pensante. Quine, Kant e Epicuro certa-
‘nem esquerda nem direita’ dos coletes mente nos concederiam isso.
amarelos, cuja principal aspiração é o

Referências
BOBBIO, N. Direita e esquerda. Razões e significados de uma distinção política. Ed. UNESP, 1994.
CLOUSCARD, M. Néo-fascisme et idéologie du désir: Mai 1968, la contre-révolution libérale. Ed. Broché, 2008.
DE BENOIST, A. Droite-gauche c’est fini! Le moment populiste, Ed. Broché, 2017.
DENAULT, A. Politiques de l’extrême centre. Éditions Lux, collection Lettres Libres, 2017.
ENGELS, F. MARX, K. A ideologia alemã, 1845-1846. Tradução de José Carlos Bruni e Marco Aurélio Nogueira, 9a
edição, ed. Ciências Humanas, São Paulo, 1993.
GIDDENS, A. A Terceira Via e seus Críticos. Rio de Janeiro, Record, 2001.
GOODMAN, N. Fact, Fiction and Forecast. Cambridge, MA: Harvard UP, 1955
HINTIKKA, J. “Epistemic logic and the methods of philosophical analysis”, Australasian of Philosophy, Vol. 46, 1968,
pp. 37-51.
ISABEL, T. Pierre-Joseph Proudhon. L’anarchie sans le désordre. Ed. Autrement, 2017.
JULLIARD, J. Les gauches françaises (1762-2012). Histoire, politique et imaginaire. Ed. Broché 2012.
KANT, I. Crítica da razão pura. Ed. Vozes, 2015.
KRIPKE, S. O nomear e a necessidade. Ed. Gradiva, 2012.
LOTY, L. “Islamisme, laïcité féministe et ultra-libéralisme”. In: La modernité discutée (Textes offerts à Pierre-André Tagui-
eff), CNRS Editions, 2019, pp. 391-402.
MOUFFE, C. Pour un populisme de gauche. Ed. Broché, 2018.
QUINE, W.V.O. “Os dois dogmas do empirismo”. In: Ryle et al. Coleção Os Pensadores: Vol. LII. São Paulo: Abril Cultural,
1975, pp. 237-254.
QUINE, W.V.O. Philosophy of Logic. Harvard Univ. Press (2a ed.), 1986.
RÉMOND, R. Les droites en France. Ed. Aubier- Montaigne, Paris, 1954.

380 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 355-381
ISSN: 2317-9570
O NOMEAR E A DIREITA

SALANSKIS, J.-M. La gauche et l’égalité, Collection Intervention philosophique, 2009.


SCHANG, F. “Non-Epicurean desires”, Unisinos Journal of Philosophy, 17(1), 2016, pp. 63-68.
SCHANG, F. “Le ninisme est-il un nihilisme ?”, Implications Philosophiques, 2015, <http ://www.implications-philosophi-
ques.org/actualite/une/le-ninisme-est-il-un-nihilisme/>.Acesso em: 20 mar. 2020.
SCHANG, F. “Left Nazism ? Right expressivism!” (esboço).
SCHANG, F. “Uma análise operacional da distinção esquerda-direita”. In: Anais do 1o Fórum de Ciência Política da
Universidade Federal de Goiás, 2019, pp. 135-155
STERNHELL, Z. Ni droite ni gauche, l’idéologie fasciste en France, Folio Histoire, 2012.
VRANAS, P. “Logic of Imperatives”. In: The International Encyclopedia of Ethics, Hugh LaFollette (ed.), 2015, pp. 1-10.

Recebido: 01/01/2020
Aprovado: 13/04/2020
Publicado: 30/12/2020

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 355-381 381
ISSN: 2317-9570
DOI: https://doi.org/10.26512/rfmc.v8i2.28981

Nem a Favor, nem Contra, Bem ao Contrário: Metapolítica dos


Coletes Amarelos e a Situação Recolonial
[Neither For nor Against, Quite the Opposite: Metapolitics of the Yellow Vests and the
Recolonial Situation]

Philippe Claude Thierry Lacour*

Resumo: O que significa o movimento social dos « coletes amarelos » (gilets jaunes)
que desafia o poder na França há mais de um ano? Essa « revolta das rotatórias » já é
o principal movimento popular na França desde 1968, e até talvez de 1936, mas ela se
deixa dificilmente definir. Efetivamente, tem manifestantes de esquerda e de direita,
de todos os gêneros e lugares do país, todas as idades e categorias sócio-profissionais.
Diante desse desafio, defendo que tal revolta não se iguala ao movimento social brasileiro
de 2013, que evoluiu gradualmente para a extrema direita. De fato, mesmo que tivesse
começado com reivindicações em torno do custo de vida (gasolina, poder de compra,
taxas), o movimento social dos « coletes amarelos » evoluiu fortemente em favor de uma
conscientização multiforme, até se definir hoje como um movimento constituinte, que
ambiciona uma reformulação do pacto social de base da nação francesa. É então sem
exagero nem lirismo que se pode falar de um movimento revolucionário. Ora, resta saber
o que estamos a ponto de rejeitar para inventar um mundo novo. Defenderei a hipótese
de que o povo Francês tenta se libertar de uma situação quase colonial imposta pela
União Européia.
Palavras-chave: Coletes Amarelos. Recolonial. Metapolítica. União Européia. Soberania.
Democracia.

Abstract: What does the movement of the Yellow Vests (« Gilets jaunes »), which has
been defying the power in France for more than a year, mean? This « revolt of the
roundabouts » can already be considered the most important social movement in France
since 1968, and even maybe 1936, but it can hardly be defined. Indeed, its participants
are protesters from the right and the left, from all genders and places in the country, all
ages and socio-professional categories. In this article, I argue that such revolt cannot
be considered equivalent to the one that happened in Brazil in 2013 and that gradually
evolved towards extreme right. In fact, even if the Yellow vests movement did begin with
claims concerning the cost of living (gas, taxes, etc.), it rapidly evolved towards a more
diverse type of awareness, to the point of defining itself as a constitutional movement,
whose ambition is to reformulate the social contract at the root of the French nation. It
is therefore not exaggerate to speak of a revolutionary event, even if it remains unclear
what is being rejected in order to create a new world. I will try to show that the French
people is trying to get rid of a quasi-colonial situation imposed by the European Union
on their country.
Keywords: Yellow Vests. Recolonial. Metapolitics. European Union. Sovereignty.
Democracy.

* Professor do Departamento de Filosofia da Universidade de Brasília (UnB). Doutor em Filosofia pela Universidade de Provence
Aix Marseille I (2006). E-mail: unb@philippelacour.net. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3226-584X.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 383-403 383
ISSN: 2317-9570
PHILIPPE CLAUDE THIERRY LACOUR

O título do presente artigo, “nem a fa- Além disso, alguém me poderia obje-
vor, nem contra, bem ao contrário” é tar estar exagerando a situação atual
um pouco enigmático, e até um pouco na União europeia que, por péssima
provocante. Por isso, gostaria de come- que esteja, não teria nada ver com uma
çar com algumas precisões em torno do situação colonial, nem mesmo quase-
meu objetivo. Se trata, em primeiro lu- colonial. Peço desculpas se isso parece
gar, de dizer, de maneira irônica, que chocar alguém, pois o meu objetivo ob-
a questão de saber se os coletes amare- viamente não é o de negar a riqueza da
los são mais de direita ou de esquerda França, em comparação com o Brasil,
é bastante fútil, pois o problema que nem de minimizá-la. Trata-se apenas
eles enfrentam é muito mais profundo. de fazer uma comparação: na verdade,
Em segundo lugar, trata-se de subli- por curto que tinha sido, o povo francês
nhar o laço entre a crise política atual já experimentou momentos de domina-
na França e a questão da democracia – ção extrema com a ocupação nazista,
ou, melhor dizendo, a natureza antide- ou o Terror na Revolução Francesa; e
mocrática da União europeia, apesar de vou mostrar como a situação atual, por
sua boa reputação, pelo menos no Bra- paradoxal que possa aparecer em pri-
sil. meira aproximação, tem a ver, de uma
Antes de tudo, gostaria de anteci- certa maneira, com uma forma de po-
par algumas objeções. No resumo, eu der desse tipo.
tentei diferenciar o movimento dos co- Para responder melhor a essas ob-
letes amarelos do que aconteceu no jeções, gostaria de precisar a minha
Brasil em 2013, ao contrário de mui- intenção com o título irônico: “nem
tos brasileiros que sublinharam o para- de direita, nem de esquerda, bem ao
lelo. Mas não caracterizei o movimento contrário”. isso não significa que os co-
social brasileiro de 2013 como sendo letes amarelos são a favor e contra (o
“de extrema-direita”. De fato, acredito governo) ao mesmo tempo. Também, não
que os protestos de 2013 foram popu- é porque esse movimento junta pessoas
lares e não exclusivamente de direita, da direita e da esquerda que ele deve
ou pior1 . Estou simplesmente notando ser desqualificado por ser ineficiente
que foram instrumentalizados para ti- a longo prazo – em outras palavras,
rar do poder um governo legítimo de a minha caracterização não é pejora-
esquerda e criminalizar um partido in- tiva. Em particular, não significa que se
teiro para evitar que ele voltasse ao pode considerar esse movimento popu-
poder durante a eleição presidencial. lar como a expressão de um populismo

1 Cf. a analise de Tatiana Roque, « Brésil : une crise en trois actes », La Vie des idées, 28 mai 2019. ISSN : 2105-3030. URL :
<http://www.laviedesidees.fr/Bresil-une-crise-en-trois-actes.html> (« 2013 - Plus de démocratie ! »).

384 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 383-403
ISSN: 2317-9570
NEM A FAVOR, NEM CONTRA, BEM AO CONTRÁRIO: METAPOLÍTICA DOS COLETES AMARELOS E A
SITUAÇÃO RECOLONIAL

de direita ou de esquerda. Além disso, define as suas condições de possibili-


não quer dizer que a distinção direita- dade (o transcendental de uma expe-
esquerda seria obsoleta, como defendeu riência efetiva e não apenas possível), o
o politólogo Alain de Benoist2 – pelo que permite a emergência de um evento
menos não de maneira estrutural e de- político concreto. O título significa, en-
finitiva. tão, que os coletes amarelos superam
Significa que, de maneira provisória, a divisão direita-esquerda pela radica-
um movimento político só pode conse- lização da política, no sentido etimoló-
guir mudar a situação na França (como gico que levam a reflexão para as raízes
também na Europa) se situar-se fora da experiência política. Por isso, pode-
do quadro tradicional da alternativa da se considerar que vários comentaristas
oposição direita-esquerda. Não se trata erram ao falar da aparição na Europa
de privilegiar uma “terceira via” en- (até agora, com um crescimento “sob
tre a direita ou a esquerda, isto é, em controle”) de uma nova ideologia – o
cima da divisão direita-esquerda: no soberanismo. Pois a soberania não é
centro, como tentaram, de várias ma- uma ideologia, mas a condição do fato
neiras, mas sempre de forma mais ou político e, ao falar de soberania popu-
menos nacionalista, De Gaulle, Vargas lar, a condição da democracia. O mo-
ou Perón. Não se trata de superar a di- vimento dos coletes amarelos é então o
visão direita-esquerda pela combinação indício de um desejo democrático. Daí,
das duas. Não se trata tampouco de fa- se o quadro político tem que ser reno-
zer uma fusão dos dois lados, na forma vado, será com que base? segundo qual
de um extremo-centro3 , como fez Ma- paradigma? A essas perguntas, é o pró-
cron, cujo partido (La Republique en prio movimento dos coletes amarelos
Marche) é uma força centrípeta que en- que poderá nos dar as respostas.
goliu a direita e quebrou a esquerda, Num primeiro tempo, trata-se de ca-
deixando uma nova divisão: um hiper- racterizar a situação do movimento so-
centro, aliado com ecologistas, e um cial dos coletes amarelos, antes de apre-
oponente de extrema direita (o Rassem- sentar uma interpretação dele e, por
blement National). Na verdade, trata- conseguinte, justificar o título.
se de designar, por meio da expressão
“ao contrário” do título, um nível mais
fundamental, anterior à divisão direita-
esquerda, um nível meta-político, aquele
que dá sentido à política mesma, que

2 Alain de Benoist, Droite-gauche, c’est fini ! Le moment populiste, Paris, PGDR Editions, 2017.
3 Alain Deneault, Politiques de l’extrême-centre, Montréal, Lux, 2016.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 383-403 385
ISSN: 2317-9570
PHILIPPE CLAUDE THIERRY LACOUR

1. O que são os coletes amarelos? nas rotatórias que incentivou os coletes


amarelos a fazer manifestações de rua6 .
A primeira coisa a ser respondida a esta As reivindicações cresceram e mu-
pergunta é uma confissão de humil- daram rapidamente, à medida que o
dade: ninguém sabe o que eles são, nem movimento foi se fortalecendo. A ex-
eles mesmo – isto dito sem exagero. O pansão do movimento deixou o governo
que é muito impressionante nesse mo- muito perplexo pela sua ausência de
vimente é que ninguém sabe explicar centro, a multiplicidade flutuante de
claramente o que é, pois desafia todas seus líderes, a sua disseminação naci-
as categorias tradicionais de análise so- onal sobre a totalidade do território,
cial que temos a nossa disposição.4 e seu caráter periférico (não foi um
É necessário lembrar como o movi- movimento nem dos centros das cida-
mento começou, no dia 17 de novem- des, nem das periferias – as famosas
bro de 20185 . Diante de um aumento “banlieues”). Parecia então impossível
do preço da gasolina, várias pessoas acalmá-lo, enquadrá-lo, e, tampouco
chamaram os seus amigos, pelas redes afogá-lo ou asfixiá-lo. Por isso, conti-
sociais, a vestir um colete amarelo e a nuou crescendo.
protestar, nas rotatórias das estradas O movimento surpreendeu os jorna-
francesas, contra o aumento intolerá- listas franceses (e estrangeiros) por ser
vel do custo de vida, com o preço alto totalmente original. De fato, nenhuma
das necessidades primárias e a pres- das análises tradicionais da política po-
são fiscal que impede o acesso às mes- dia funcionar para capturar a singula-
mas. Imediatamente, a chamada fez ridade desse evento. Para começar, não
um grande sucesso, viralizou nas pla- foi iniciado pelos sindicatos que são,
taformas, atingindo muitos amigos de tradicionalmente, na França, os respon-
amigos, colegas de colegas, etc. São so- sáveis por esse tipo de ação de rua, so-
bretudo os moradores das zonas rurais bretudo quando se trata do custo da
e periurbanas (que precisavam de um vida e do poder de compra (aquisição),
carro para trabalhar, e, por consequên- entre outras reivindicações7 . É verdade
cia, de gasolina) que se mobilizam, or- que teve muitos coletes amarelos que
ganizando as primeiras manifestações eram também sindicalizados, ou pró-
no sábado, também no centro nobre de ximos de um sindicato, e até que teve
Paris (Champs Elysées) – foi a repressão responsáveis sindicais explicitamente

4 Cf. por exemplo a confissão de David Weuth, in Le vent se lève, 1/5/2019, « Le manque d’humilité des intellectuels face au
mouvement des gilets jaunes », <https://bit.ly/2ZPmuID>: « les gilets jaunes nous mènent au bout de notre science ».
5 Outras manifestações anteriores prepararam o movimento dos coletes amarelos, como por exemplo “Nuit Debout” em 2016:
<https://pt.wikipedia.org/wiki/Nuit_debout>. Esse movimento, porém, nunca foi massivo e acabou no mês de Maio 2016.
6 <https://www.youtube.com/watch?v=S66efNDlDj4& feature=youtu.be& t=4173>
7 Como repara esse sindicalista : <https://ruptures-presse.fr/opinions/gilets-jaunes-martin-cgt-paris/>

386 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 383-403
ISSN: 2317-9570
NEM A FAVOR, NEM CONTRA, BEM AO CONTRÁRIO: METAPOLÍTICA DOS COLETES AMARELOS E A
SITUAÇÃO RECOLONIAL

presentes nas manifestações, com ban- posta à crise9 . Quando os salários per-
deiras sindicais. Mas isso foi mais a manecem os mesmos (ou ainda, quando
exceção do que a norma. As grandes se está desempregado), e os impostos
centrais sindicais, do público como do aumentam sem que haja mais acesso
privado, ficaram sem voz diante desse aos serviços de comunicação, saúde, ou
movimento que não respeitou as orga- educação, nada mais normal que se per-
nizações tradicionais de defesa dos di- guntar o que está acontecendo e se re-
reitos trabalhistas. belar.
Além disso, os partidos clássicos se Tampouco se podia dizer que os cole-
sentiram também transbordados por tes amarelos definiam-se enquanto um
uma agitação social que não se deixava movimento de extrema direita, porque
encaixar nas categorias estabelecidas a maioria dos manifestantes era total-
da análise política. Por exemplo, teve, mente, senão despolitizada, digamos
dentro dos coletes amarelos, algumas composta de cidadãos bem na norma,
pessoas de extrema-esquerda, anima- votando de vez em quando, mas sem
das pelo projeto de superação do capi- jamais ser ativo em qualquer tipo de
talismo. Mas a maior parte dos mani- militância. Teve, é certo, pessoas de di-
festantes não se deixavam definir pelos reita, conservadoras, às vezes opostas à
conceitos clássicos da luta das classes, imigração importante que ocorreu es-
apesar de muitos deles serem modestos. ses últimos anos para a França (e para
Eles são conscientes de estarem empo- toda a Europa), e que talvez formula-
brecendo, por três razões: (i) os salários ram argumentos nacionalistas. Teve,
estão estagnando (particularmente no também, algumas pessoas de extrema-
serviço público, mas também no setor direita que, por ignorância ou racismo,
privado, por causa da anemia da econo- fizeram algumas declarações xenofóbi-
mia); (ii) as taxas estão subindo, desde cas. Mas isso foi totalmente marginal
a crise de 2008 (foi a classe média e a e não permite de jeito nenhum falar da
classe média-baixa que pagou a conta globalidade do movimento como sendo
dos excessos dos bancos nos anos ante- de extrema-direita. Pela mesma razão,
riores); (iii) os serviços públicos estão se os discursos antissemíticos e homofóbi-
deteriorando por falta de investimentos cos, efetivos, nunca superaram a margi-
adequados8 , por causa de uma política nalidade de casos isolados.
de austeridade estabelecida como res- O movimento começou a provo-

8 Cf. Natacha Polony, Laurence Dequay et Soazig Quemener, « Macron, Juppé, Jospin... comment ils ont cassé le service public »,
Marianne, 20/6/2019, <https://bit.ly/2KHbnfU>.
9 Na verdade, essa demolição dos serviços públicos começou bem antes de 2008, pois é contemporânea da construção euro-
peia desde o fim dos anos 80. Cf. Franck Dedieu, « Service Public : chronologie d’une démolition », Marianne, 21/6/2019,
<https://bit.ly/2xfWQ2f>.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 383-403 387
ISSN: 2317-9570
PHILIPPE CLAUDE THIERRY LACOUR

car reações públicas. Foram em pri- obviamente uma função simbólica, par-
meiro lugar jornalistas e animadores da ticularmente porque correspondia ao
grande mídia que simpatizaram com o preço do aumento da taxa sobre a gaso-
movimento, às vezes por razões pouco lina, que provocou toda a agitação).
altruístas (a pressão fiscal excessiva Mas isso tudo foi bem pontual. A ati-
desde a crise de 2008 afetou o con- tude do governo consistiu em um con-
junto da sociedade, todavia para as clas- trole severo da mídia, especialmente do
ses mais favorecidas, das quais fazem serviço público, sempre mostrando os
parte esses primeiros simpatizantes, a aspectos negativos das manifestações
depressão econômica atingiu os lucros (aspecto que será tratado a seguir), sem
e não a sobrevivência quotidiana, caso jamais dar a fala para os protagonis-
daqueles economicamente desfavoreci- tas, sempre infantilizados por uma ati-
dos). Convidaram alguns coletes ama- tude paternalista (essas crianças não sa-
relos, os mais conhecidos e identifica- bem o que elas estão fazendo, vamos
dos como “líderes”, para falar na rá- explicar melhor para elas, com mais
dio ou na televisão (e.g. o animador do “pedagogia”). Multiplicou-se também
show “Touche Pas à Mon Poste”, Cyril as recomendações às mídias “amigas”
Hanouna). Às vezes, ministros do go- – aquelas mesmas que ajudaram po-
verno foram também convidados, para derosamente a eleição de Macron, que
provocar brigas (mais do que verdadei- se beneficiou de um tempo de fala to-
ros debates, pois são shows superfici- talmente injustificável durante a úl-
ais). A maior parte do tempo, foi puro tima eleição europeia. Por exemplo,
oportunismo midiático, com um pouco TF1 (a “globo” francesa) e BFM TV
de demagogia em torno do seu público, (de informação contínua) marginali-
mas jamais francamente um apoio10 . zaram o fenômeno no início, minimi-
De fato, as reivindicações dos coletes zando o número de manifestantes, mos-
amarelos já tinham mudado de formu- trando cenas de violência de rua, de
lação, passando das reclamações sobre destruição de material, sem prestar
as taxas ou o custo da vida para outra atenção às reclamações dos manifes-
coisa: pedido a favor do Referendum tantes, transformando-os em imbecis,
de Iniciativa Cidadã (o RIC), a favor do “grevistas” patológicos.
restabelecimento do ISF, imposto sobre Entretanto, a cada manifestação, a
a fortuna (que traz pouco dinheiro para violência policial subiu11 . Aqui tenho
o estado – apenas 3 bilhões - mas tem que precisar que, ao contrário do que

10 Raras são as mídias que dão a fala para os coletes amarelos. Entre outros, cf. « Des gilets jaunes prennent la parole » do canal de
televisão (youtube) do partido político União Popular Republicana.
11 O governo utilizou o pretexto da violência dos manifestantes para justificar a repressão policial. Cf. « "Les gilets jaunes ne sont
pas de simples citoyens qui manifestent", déclare Macron au New Yorker », France Info, 26/6/2019, <https://bit.ly/2IHZofY>.

388 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 383-403
ISSN: 2317-9570
NEM A FAVOR, NEM CONTRA, BEM AO CONTRÁRIO: METAPOLÍTICA DOS COLETES AMARELOS E A
SITUAÇÃO RECOLONIAL

acontece no Brasil, não existe algo na injustificada14 . Teve até agora duas pes-
França como a polícia militar (existe a soas que morreram15 e dezenas de fe-
“gendarmerie”, que é um corpo do exér- ridos16 . Pelo momento, nenhuma das
cito que faz atividade de polícia, mas investigações que a polícia lançou de
não se iguala à instituição brasileira). maneira interna teve conclusão defini-
Porém, assistimos esses últimos anos a tiva17 .
uma lenta, mas real “militarização da Além dessa repressão feroz, que pro-
polícia”, com técnicas, armas e atitudes vocou preocupação internacional18 , a
que estão na beira do combate marcial reação do Estado consistiu em ganhar
de rua. Teve então, durante as manifes- tempo. No início, totalmente surpreso,
tações, vários coletes amarelos que fo- Macron considerou que seria uma re-
ram feridos: alguns perderam um olho volta pontual. À medida que o mo-
por causa de tiros de LBD (balas de bor- vimento se prolongava, de novembro
racha); outros foram agredidos pelos para dezembro de 2018, ficou muito
bastões ou os socos e chutes dos poli- perplexo e era possível sentir que o pre-
ciais; outros também sofreram de asfi- sidente vacilava, sem ser capaz de dar
xia por causa dos gases de pimenta; ou- uma resposta clara. Apesar de uma es-
tros, enfim, perderam um membro ao tratégia ruim, Macron é, porém, um
tentar relançar para a polícia as bom- bom táctico: ele utilizou a emoção de
bas que ela tinha lançado (“grenades de um atentado em Strasbourg, no meio
désencerclement” : algo claramente na de dezembro de 2018, para chamar a
zona cinza entre intervenção policial e atenção sobre o risco islâmico e ganhar
militar). Sem falar dos numerosos ca- tempo até o Natal e o Ano Novo. Em
sos de abuso de poder: encarceramento seguida, fez anúncio de que ele iria fa-
massivo12 , detenções preventivas, proi- lar sobre o assunto em janeiro do ano
bição de manifestar, intimidações di- seguinte, alimentando, assim, a espe-
versas, detenções arbitrárias13 , prisão rança de que o Estado faria concessões

12 Por exemplo, durante o 14 de Julho 2019, « Plus de 170 personnes interpellées en marge du défilé du 14-Juillet à Paris », Le
Monde, 14/7/2019, <https://bit.ly/2Pqangu>
13 Foi por exemplo o caso do ex-atleta de boxa que socou policiais (para proteger manifestantes), Christophe Dettinger. Cf. An-
toine Peillon, Cœur de boxeur. Le vrai combat de Christophe Dettinger, éditions Les Liens qui libèrent, 2019 ; e o artigo de Hervé
Kempf, « L’honneur du boxeur contre Macron le voyou », Reporterre, 1/5/2019, <https://reporterre.net/L-honneur-du-boxeur-
contre-Macron-le-voyou?fbclid=IwAR1MiNb28QF-IU_3i3NI8gRm7YwEoPBfXnMBGFMuvTgE4j5v8q7P_1uvjAA>
14 Cf. Giv Anquetil, Antoine Chao, Charlotte Perry, « Les gilets jaunes face à une justice d’exception », France Inter, 15 Junho 2019,
<https://bit.ly/2wTRbyE>.
15 Uma é a velinha Zineb Ridouane ; cf : « Vie et mort de « Mama Zina », l’octogénaire atteinte par une grenade lacrymogène à
Marseille », Le Monde, 24 Junho 2019, <https://bit.ly/2Ftl7pY>
16 Para uma síntese das violências policiais : cf. o site do jornalista David Dufresne, <http://www.davduf.net/alloplacebeauvau>
17 Ao contrario, os policiais foram elogiados. Cf. France Infro, 19/7/2019, « Christophe Castaner a décoré des policiers soupçonnés
de violences contre des "gilets jaunes" », <https://bit.ly/2RpOlNp>
18 ONU Info, « Michelle Bachelet inquiète de la répression des manifestations au Venezuela, au Soudan et en France », 6/3/2019,
<https://news.un.org/fr/story/2019/03/1037951>

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 383-403 389
ISSN: 2317-9570
PHILIPPE CLAUDE THIERRY LACOUR

para atender as reinvindicações dos ma- movimento (apesar da existência de al-


nifestantes. Na verdade, esse tempo gumas listas de coletes amarelos), que
foi utilizado para imaginar uma diver- procuraram diversificar os seus modos
são, que ele divulgou no final de ja- de expressão20 , considerando bloquear
neiro de 2019. Se tratava de organi- lugares de produção, por exemplo21 .
zar um “Grande debate” para a França Quanto à difusão do movimento,
conversar sobre as propostas dos co- deve ser notado também que ele não
letes amarelos. Pelo menos suposta- se difundiu no resto da Europa e do
mente. Pois o que aconteceu na ver- mundo – apenas vagamente no início,
dade foi que foram debatidas as pró- mas nunca foi tão forte nem sustentável
prias ideias do governo, que cuidadosa- como na França. O que indica provavel-
mente tirou as proposições mais radi- mente uma causalidade singular e não
cais do movimento, conservando ape- repetitiva, uma idiossincrasia francesa.
nas alguns temas como a redução fiscal, Pode ser ligado à nossa tradição de con-
a melhora dos serviços públicos, etc. testação, ou até de revolução. Há os
Esse “grande debate” permitiu a Ma- que acreditam que esta tradição é fol-
cron fazer uma (semi) campanha eleito- clórica (os franceses saíram novamente
ral (dado o tempo dedicado às suas fa- à rua!), contudo é possível observar que
las), de submergir a mídia com a agita- essa especificidade francesa dos coletes
ção dele, mas não convenceu os coletes amarelos é ligada a razões mais profun-
amarelos. Eles criaram, em reação à ini- das.
ciativa do poder, o “verdadeiro debate” E agora? Onde estamos? O que está
para conversar precisamente sobre os acontecendo desse movimento hoje?
tópicos fundamentais que são a base de Bem, ele continua, simplesmente. É
suas reivindicações19 . Quando chegou verdade que os coletes amarelos ma-
a campanha eleitoral das eleições euro- nifestam menos desde setembro 2019,
peias, Macron continuou a fazer a tal mas é por boa parte devido à repressão
diversão, acreditando que o movimento policial brutal e do assédio jurídico22 .
dos coletes amarelos poderia se dissol- Também é possível adicionar que al-
ver neste cenário. Mas não foi de modo guns tentam passar para outras for-
algum a intenção dos participantes do mas de ação e, por isso, se afastam um

19 Fabien Buzzanca, « Cet été, avec les Gilets jaunes, le «Vrai débat» à l’assaut de vos boîtes aux lettres », Sputniknews, 17/7/2019,
<https://bit.ly/34XUl3F>
20 France Info, 26/06/2019, « Plusieurs figures des "gilets jaunes" annoncent la création d’un "socle commun" pour le mouvement »,
<https://bit.ly/2s56ftX>
21 Sputniknews, 20/6/2019, « Eric Drouet lance un appel général aux gilets jaunes »,
<https://fr.sputniknews.com/france/201906201041480138-eric-drouet-lance-un-appel-general-aux-gilets-jaunes-video/>
22 Sputniknews, 11/08/2019, « Gilets Jaunes, une répression pénale sans précédent, avec plus de 3000 condamnati-
ons », <https://fr.sputniknews.com/france/201911081042394370-gilets-jaunes-une-reponse-penale-sans-precedent-avec-plus-de-
3000-condamnations/>

390 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 383-403
ISSN: 2317-9570
NEM A FAVOR, NEM CONTRA, BEM AO CONTRÁRIO: METAPOLÍTICA DOS COLETES AMARELOS E A
SITUAÇÃO RECOLONIAL

pouco das manifestações de rua. Porém, Pode-se considerar sucessivamente di-


ainda que o governo não tenha pres- versas explicações possíveis, da mais
tado atenção às reivindicações, o povo evidente e superficial até à mais enig-
continuou a manifestar, mostrando as- mática e profunda.
sim a sua determinação. Entretanto, a (a) Será que o movimento consiste
conscientização política continua: pois numa denúncia do preço da vida? Essa
o movimento se caracteriza primeira- explicação foi bastante retomada pela
mente como uma grande discussão, as- mídia dominante, justamente para ten-
pecto pelo qual se aproxima de maio tar mostrar que o governo estava pre-
1968, que promoveu a ampla liberdade ocupado com o assunto e tentava res-
de fala entre os cidadãos acerca de to- ponder à crise com uma política de li-
dos os aspectos da vida democrática23 . bertação do poder aquisitivo. Mas se
Também se caracteriza como um mo- essas reivindicações formam o que cau-
vimento de solidariedade, com orga- sou o início do movimento, não é o que
nização de várias ações sociais, como permite caracterizá-lo na sua continui-
a ajuda ao número crescente de “sem dade. Foi o que o filósofo Alain Badiou,
tetos”24 . Atualmente, o apoio da opi- no artigo que ele escreveu sobre os co-
nião pública, mesmo que tenha dimi- letes amarelos meses após o desencade-
nuído de 80% para 45 %, ainda é muito amento do movimento27 , obviamente
forte (sobre tudo no contexto atual das não entendeu: decepcionado por per-
greves contra a reforma da previdên- ceber reinvidicações sobre o custo da
cia), e isso é muito significativo. vida, que ele achou muito “pequeno
burguês”. Faltava para ele um desejo
revolucionário verdadeiro, anticapita-
lista e com uma bandeira mais verme-
2. O que significa a raiva dos coletes lha do que azul, branca e vermelha.
amarelos? (b) Seria então esse movimento uma crí-
tica do governo de Edouard Philippe
Houve várias tentativas de interpreta- ou da política do presidente Macron?
ção dessa agitação social, na França25 É verdade que os coletes amarelos pe-
ou fora, em particular no Brasil26 .

23 Michel de Certeau, La prise de parole et autres écrits politiques, Paris, Seuil, 1994.
24 Brice le Gall, « Des engagés du quotidien », Beauvais, 6 juin 2019, <https://bit.ly/2sPiU4J>. A reivindicação « Zero sem teto »
sempre fez parte dos objetivos explicitos, desde o inicio do movimento.
25 Cf. o livro coletivo Le fond de l’air est jaune, Paris, Seuil, 2019 ; para uma documentação fotográfica, cf. também Brice Le Gall,
Lou Traverse, Thibault Cizeau, Justice et Respect. Le soulèvement des gilets jaunes, Paris, Syllepse, 2019. O advogado François Boulo
apresentou o movimento enquanto seu porta-voz, em La ligne jaune, Paris, Indigènes édition, 2019.
26 Jeremy Harding, « Os manifestantes estão em pânico. O que querem os coletes amarelos ? », Piaui, n◦ 151, abril 2019.
27 Alain Badiou, “Leçons du mouvement des gilets jaunes”, L’autre quotidien, 13 Março 2019,
<https://www.lautrequotidien.fr/articles/2019/3/13/alain-badiou-leons-du-mouvement-des-gilets-jaunes->; cf também a con-
versa dele com Aude Lancelin (e outros), 7 Outubro 2019, <https://bit.ly/2Fepvsz>

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 383-403 391
ISSN: 2317-9570
PHILIPPE CLAUDE THIERRY LACOUR

dem a demissão do Ministro do Interior sublinhado que os coletes amarelos re-


(Castaner), responsável pela repressão, clamam muito da injustiça experimen-
criticam Edouard Philippe pela sua po- tada pelos que empobrecem, enquanto
lítica econômica que empobrece grande outros (os ricos proprietários de multi-
parte da população, e pedem a demis- nacionais francesas, do luxo, da cons-
são de Emmanuel Macron –tema de trução civil, dos bancos) se aproveitam
uma canção que virou o hino da re- de um enriquecimento irracional. Po-
volta28 . Mas eles se dão conta também rém, as reivindicações deles vão muito
que Macron está continuando a polí- mais além desse ponto, por importante
tica que antes era aquela de Hollande e que seja.
de Sarkozy (dois presidentes que foram (d) De que se trata então? Pode-se
tão impopulares que não conseguiram defender a ideia que se trata de um mo-
ser reeleitos), então a critica não é só mento constituinte, um esforço de re-
dele: é mais profunda. cuperação do poder de definir o pacto
(c) Seria então uma crítica às desigual- social, na raiz da sociedade. A crise é
dades crescentes na sociedade francesa? tão forte que se trata, então, de vol-
É verdade que esse assunto é impor- tar para o fundamental: afinal, por
tante, sobretudo porque a igualdade é que vivemos juntos? Foi muito impres-
um dos princípios da nossa constituição sionante ver os coletes amarelos, que
(está escrita em todos nossos edifícios não são intelectuais, começar a citar
públicos: “Liberte, égalité, fraternité”) a constituição francesa, fazer filosofia
e a sociedade francesa é tradicional- sobre os conceitos “liberdade, igual-
mente bastante igualitária – é só lem- dade, fraternidade”, e até fazer suges-
brar que o partido comunista Francês tões para a redefinição da vida demo-
fez até 40 % de votos, a um certo mo- crática na França, às vezes a partir do
mento (depois da segunda guerra mun- programa do Conselho Nacional da Re-
dial). Ora desde os anos 1990, e em par- sistência que inventou a França con-
ticular a partir da crise de 2008, as de- temporânea durante a barbárie nazista
sigualdades cresceram muito, como no da segunda guerra mundial. Existem
resto dos países ocidentais (USA, Ale- vários sintomas dessa preocupação pela
manha, Inglaterra, etc.) – basicamente “constituição” da sociedade: o pedido
a orientação financeira da economia fa- pelo Referendo de Iniciativa Popular (o
voreceu quem tinha capital financeiro RIC), a insistência sobre o caráter cons-
em detrimento de quem dependia de titucional dos serviços públicos, e até a
um emprego e de um salário. E deve ser organização de um grupo de “Coletes

28 « Emmanuel Macron, grosse tête de con, on vient te chercher chez toi ! »


29 <https://www.facebook.com/giletsjaunesconstituantspagedesecours/>

392 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 383-403
ISSN: 2317-9570
NEM A FAVOR, NEM CONTRA, BEM AO CONTRÁRIO: METAPOLÍTICA DOS COLETES AMARELOS E A
SITUAÇÃO RECOLONIAL

amarelos constituintes”29 . Tudo isso qual acontece essa pseudo alternativa.


aconteceu durante muitas discussões Alguns coletes amarelos começaram
que aprofundaram ainda mais a cons- a se dar conta de que a quase totalidade
cientização política do movimento. Até das leis atuais dependem das normas
foi organizada uma Assembleia das As- da União europeia – são simplesmente
sembleias dos Gilets Jaunes (em Com- uma transposição delas no direito na-
mercy)30 , que tinha um pouco a ver com cional31 . E que talvez, então, a origem
os Estados Gerais de 1789 (les Etats Gé- do problema seja a existência mesma
néraux), no sentido que a Revolução da União europeia. Em vez de acusar
francesa começou com o fato de juntar o governo Macron, ter-se-ia que acusar
reclamações e com o Terceiro Estado (os a União europeia32 . Não para imaginar
pobres) se constituir como corpo de re- uma outra União europeia, mas para
presentantes da nação. sair dela! Por implícita e às vezes con-
Foi assim que nasceu um fenômeno fusa que seja, essa é a ideia que ganhou
muito interessante. Várias pessoas co- bastante força nas discussões dos cole-
meçaram a fazer análise política apro- tes amarelos, muito mais que o pedido
fundada da situação, e a se dar conta da destituição de Macron.
que, há 15 anos, qualquer que seja o A ideia de sair da União Europeia
voto para deputados, governo e presi- pode surpreender, sobretudo no Bra-
dência, a política escolhida é sempre sil, onde a população tem uma imagem
a mesma: seja durante o mandato de um pouco ideal dessa instituição – lá
Sarkozy (de direita), de Hollande (de é o mundo desenvolvido, a riqueza, a
esquerda) ou de Macron (do centro). O democracia, a paz... Como seria possí-
que permite pensar que há algo errado vel que a França, um país fundador da
na democracia francesa. Como se a al- União, possa querer sair? Porém, ela faz
ternância de poder não tivesse impor- totalmente sentido, por várias razões.
tância, porque acontece dentro de um Primeiro, os coletes amarelos sabem,
certo quadro permanente. De modo por tê-lo experimentado, que o euro, até
que, precisamente, o importante seria antes da crise econômica de 2008, não é
agora contestar este quadro – daí o tí- uma moeda que trouxe a prosperidade;
tulo escolhido para o artigo: os coletes provocou ao contrário um aumento do
amarelos não são a favor, nem contra (a custo da vida, uma anemia da economia
direita ou a esquerda), bem ao contrá- e ultimamente uma austeridade sem
rio; eles são contra o quadro dentro do fim (compressão budgetária, desem-

30 <https://reporterre.net/Pres-de-Commercy-l-assemblee-des-Gilets-jaunes-refonde-la-democratie>
31 <https://ruptures-presse.fr/opinions/gilets-jaunes-martin-cgt-paris/>
32 « L’Union Européenne : Un problème de souveraineté. Conférence pour les gilets jaunes du Grand Est », conferência do
10/7/2019, <https://bit.ly/2Ys5N5d>

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 383-403 393
ISSN: 2317-9570
PHILIPPE CLAUDE THIERRY LACOUR

prego, etc.). Segundo, os coletes ama- metida por lei àquela da OTAN37 , e as
relos sabem, também por experiência, consequências demográficas que expe-
que a União europeia não apenas sofre rimentam: concorrência desleal organi-
de um déficit democrático, como dizem zada pelo grande capital que precisa de
pudicamente os elogiadores dela, mas mão de obra barata (como foi explicita-
que ela é uma estrutura de dominação mente dito pelos patrões na Alemanha,
que esconde o seu aspecto antidemo- por exemplo38 ).
crático embaixo de um paternalismo Essa tripla rejeição da União euro-
cínico; pois ela não respeita os votos peia (a moeda, a política econômica, a
contrários a ela – há vários exemplos política exterior) se juntam numa rei-
dela forçando os povos a votarem no- vindicação nacional, que foi por vezes
vamente em caso de resultado de refe- confundida com uma histeria naciona-
rendum contrário ao desejado (França e lista39 . Mas nem todos os coletes ama-
Holanda em 200533 , Irlanda em 200834 , relos votam em Marine Le Pen; aliás,
Grécia em 201135 , Brexit agora36 ). Ter- o partido do Rassemblement National
ceiro, os coletes amarelos que sofrem da não quer sair do euro, da União euro-
imigração massiva recente fazem o laço peia40 , nem da OTAN41 . A maior parte
entre a chegada de imigrantes da África deles não são fanáticos do absolutismo
e a destruição da Líbia, a chegada de sí- nacional, mesmo que tenham muitas
rios, e o jogo perverso da França e das bandeiras francesas nas manifestações.
potencias ocidentais no Meio Oriente. Não são apenas patriotas que querem
Começam então a estabelecer um laço defender o território ancestral. São
entre a política externa neocolonial da simplesmente pessoas que reclamam a
França e da União europeia, que é sub- democracia, cujo lugar natural desde a

33 O referendo sobre o projeto de constituição europeia fracassou (<https://bit.ly/2FiFqpD>) ; o equivalente legal foi porém ado-
tado na forma do tratado de Lisboa em 2007, votado pelo Parlamento do novo governo de Sarkozy. Quase o mesmo aconteceu na
Holanda : <https://bit.ly/2QmyUEB>.
34 O referendo constitucional irlandês de 2008 fracassou mas foi votado novamente em 2009, dessa vez com sucesso :
<https://bit.ly/39GqNdZ>.
35 Diante das pressões europeias para aceitar medidas de austeridade econômicas, a Grécia propôs de organizar um referendo, que
finalmente foi cancelado pelo primeiro ministro George Papandreou, que aceitou finalmente as condições europeias sem condição.
36 O voto a favor do Brexit aconteceu no dia 23 de Junho 2016, isto é: ha mais de três anos.
37 O artigo 42 do Tratado da União Europeia precisa que a defesa europeia depende da OTAN.
38 Cf., por exemplo, os artigos : « En Allemagne, le patronat prend position dans le débat sur l’immigration », Le Monde, 23
dezembro 2014 ; e « L’afflux de migrants profite aux patrons allemands », Le Temps, 2 setembro 2015.
39 Não se pode confundir, então, essa crítica à União Europeia com uma condanação do liberalismo politico, como accredita Bernard
Bruneteau, em Combattre l’Europe. De Lénine à Marine Le Pen, Paris, CNRS Éditions, 2019 – cf Agnès Louis, « Les anti-européens »,
La vie des idées, 21/10/2019, <https://laviedesidees.fr/Bernard-Bruneteau-Combattre-Europe-Lenine-Le-Pen.html>
40 Cf. por exemplo o artigo do Télégramme de Brest, do 14 de Abril 2019, “Marine Le Pen ne veut plus sortir de l’Europe,
ni de l’euro”, <https://www.letelegramme.fr/elections-europeennes/politique-marine-le-pen-ne-veut-plus-sortir-ni-de-l-europe-ni-
de-l-euro-14-04-2019-12258877.php>
41 A posição do Rassemblement Nacional sobre a OTAN é variável; pode-se porém notar que a herdeira da dinastia Le Pen é
bem vinda nos Estados Unidos : « Etats-Unis: Marion Maréchal Le Pen prendra la parole ce jeudi à Washington », 20/02/2018,
<https://bit.ly/2ZLniOL>

394 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 383-403
ISSN: 2317-9570
NEM A FAVOR, NEM CONTRA, BEM AO CONTRÁRIO: METAPOLÍTICA DOS COLETES AMARELOS E A
SITUAÇÃO RECOLONIAL

época moderna se encontra no quadro poderiam objetar que isso é uma regres-
nacional42 . Por outras palavras, a saída são, pois a União Europeia quis precisa-
da “cadeia dos povos” que é a União eu- mente superar o quadro nacional com
ropeia, e a recuperação da democracia um projeto de associação pós-nacional
integral, na qual se debate sobre tudo e ou supranacional. Mas não é por acaso
se decide acerca de tudo, só pode acon- que os manifestantes voltam para o fun-
tecer dentro de um quadro nacional. damento nacional: não é por nostalgia,
É desse ponto de vista que os parti- fetichismo ou absolutização do quadro
dos políticos tradicionais são transbor- nacional, mas por defesa da democra-
dados pois todos, com uma exceção,43 cia. Os bons resultados eleitorais de Le
apoiam a União Europeia, mesmo que- Pen, que são uma realidade, escondem
rendo mudá-la – o que é impossível, por a realidade da situação, que é aquela de
causa da regra da unanimidade44 . um grande movimento de libertação:
O que está em jogo, então, funda- não é libertação nacional, mas sim uma
mentalmente, no movimento dos cole- libertação democrática, que vai utilizar
tes amarelos, é a soberania: não ape- um meio nacional, pois é o mais prático
nas a soberania nacional, no sentido e tradicional46 .
da independência da França em rela-
ção ao resto do mundo, e em particular
de uma União Europeia sob dominação
alemã, submetida a um neoliberalismo Conclusão: os coletes amarelos e a si-
anglo-americano; mas a soberania popu- tuação recolonial
lar, pois a soberania da nação vem do
povo45 . Isto é, se trata de um movi- É preciso enfrentar uma objeção. Foi
mento democrático, que se inspira do mencionado um movimento que não
artigo 2 da Constituição francesa atual: era de direita, porém o partido do Ras-
o governo do povo, pelo povo, para o semblement National de Marine Le Pen
povo. Então é um movimento popular – ganhou as eleições europeias (de maio
e não um movimento populista, no sen- 2019) e ele é de extrema direita: como
tido que o povo quer recuperar o seu explicar então tal justificativa? É ver-
poder de decidir o seu destino. Alguns dade que as categorias populares, inclu-
sive coletes amarelos, votaram a favor

42 Jérôme Sainte-Marie, « Gilets jaunes : une révolte populaire et tricolore », Ruptures, 20/11/2019, <https://ruptures-
presse.fr/opinions/gilets-jaunes-populaire-sainte-marie/>
43 L’Union populaire républicaine (<https://upr.fr>)
44 Qualquer modificação dos tratados atuais apenas pode acontecer por voto unânime dos países membros, segundo o artigo 48 do
TUE (Tratado da União Europeia).
45 Thomas Branthôme, « Le « moment » Gilets Jaunes (I) : ce qu’ils ont su dire », 15/11/2019, <https://bit.ly/2DSNoFk>
46 É também a opinião de Wolfgang Streeck, « Four Reasons the European Left Lost », Jacobin, 30/5/2019,
<https://bit.ly/2KtZk5L>

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 383-403 395
ISSN: 2317-9570
PHILIPPE CLAUDE THIERRY LACOUR

da extrema direita. Mas foi o próprio gar a venda de bens naturais, das
Macron que transformou essas eleições empresas públicas; exploração dos
num enfrentamento a favor ou contra consumidores pelas empresas mul-
ele: qual é a maneira mais óbvia de se tinacionais que não pagam impos-
opor a ele do que votar para o partido tos
que todas a pesquisas indicam como
a principal força de oposição? Além 3. praticar uma forma de racismo im-
disso, poucas pessoas votaram: teve plícita, no sentido de que essa união
muito mais abstenção do que votos a ocorre entre povos brancos e cris-
favor de Macron ou de Le Pen. Por fim, tão, seguindo uma norma anglo-
teve coletes amarelos que votaram para saxã, em vez de desenvolver os la-
a extrema esquerda. Então o voto dos ços com países cuja população já
coletes amarelos para a extrema direita faz parte do cenário francês, como
não é essencial ou estrutural47 , mas sim é o caso, por exemplo de países da
conjuntural. África do Norte (há muitos afro-
Portanto, o mais importante é que o descendentes na França e o árabe é
movimento dos coletes amarelos não a segunda língua falada no país)
teve uma tradução eleitoral exaustiva
pois muitos deles criticam o quadro 4. integrar a economia a um con-
mesmo dessas eleições, que apenas re- junto econômico maior: a econo-
produzem a política já estabelecida. mia francesa se torna cada vez
Mais profundamente, o que aparece no mais “satelitizada” pela economia
voto de vários coletes amarelos é que a alemã48 , que ganha muito pelo ní-
França perdeu a sua soberania em detri- vel artificial do euro (valor subes-
mento da União Europeia, que decide: timado em relação a força real da
economia alemã).

1. fragmentar os direitos trabalhistas, A França perdeu a sua soberania le-


precarizar, terceirizar, abrir para a gislativa (90% das leis são europeias),
concorrência frenética, destruindo executiva (Macron é apenas o governa-
os serviços públicos em nome da dor da região França e não o presidente
“justa competição” de uma nação livre), judiciária (existe
2. explorar os recursos locais: obri- uma supremacia da jurisdição da Corte

47 Alain Badiou considera ao contrário que esse voto se explica por razões estruturais, mesmo que profundamente es-
condidas: o “racismo” dos intelectuais desde 1983, e o ódio contra os jovens dos subúrbios, fantasiado na forma
do “anti-islamismo”: <https://www.lemonde.fr/election-presidentielle-2012/article/2012/05/05/le-racisme-des-intellectuels-par-
alain-badiou_1696292_1471069.html>
48 Wolfgang Streeck, « Un empire européen en voie d’éclatement », Le Monde Diplomatique, mai 2019, <https://www.monde-
diplomatique.fr/2019/05/STREECK/59873>. O autor designa a UE como uma sorte de Império neoliberal, do qual a Alemanha é o
centro discreto.

396 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 383-403
ISSN: 2317-9570
NEM A FAVOR, NEM CONTRA, BEM AO CONTRÁRIO: METAPOLÍTICA DOS COLETES AMARELOS E A
SITUAÇÃO RECOLONIAL

europeia de Justiça49 ), midiática (trans- sentido de uma incapacidade de ima-


formação do espaço público pelo con- ginar o nosso futuro53 , e até de uma
trole das notícias, e até a censura50 ). saudade patológica do passado, que é
Daí a impressão dos coletes amarelos um signo de desorientação. Crise so-
que, seja de direita, seja de esquerda, cial pois o corpo social está se fragmen-
qualquer governo vai aplicar a mesma tando; há uma dissolução dos laços, por
política. Essa impotência se acompanha causa do neoliberalismo54 , da uberiza-
de um sentimento difuso, mas insis- ção, do multiculturalismo, do enfraque-
tente, cada vez mais presente, de declí- cimento dos serviços públicos, da pres-
nio, e de um ambiente de depressão51 . são migratória, etc.
A França perde os atributos da sua po- Será que a solução consiste numa
tência: na economia (agricultura fracas- volta ao nacionalismo55 ? Depende do
sada, desindustrialização), militar (or- que quer dizer nacionalismo. Como
çamento baixo), científico (destruição o sublinhou ainda recentemente Ber-
do ensino superior e de sua pesquisa trand Badie56 , esse termo é sinônimo
por políticas de austeridade orçamen- de emancipação: das feudalidades (no
tária52 ), e até cultural (desde a época caso da construção do Estado nação, ti-
gloriosa dos anos 60). picamente na França), do colonialismo
Daí, o sentimento de crise política (para os países dominados pelos impé-
aguda que expressa o movimento dos rios ocidentais) e do comunismo (mais
coletes amarelos. Crise da represen- recentemente, na Europa do leste). No
tação política por causa da impressão caso dos coletes amarelos, o recurso à
que as elites são isoladas, separadas do nação é sinônimo de emancipação de
povo, não tem empatia nem se preocu- uma dominação abusiva, cuja natureza,
pam com o povo. Crise “presentista” no porém, é difícil definir. De fato, uma

49 « Un peuple qui souhaite recouvrer sa souveraineté doit procéder à une rupture franche avec l’UE » – Entretien avec Coralie
Delaume et David Cayla, Le vent se lève, 10 de Maio 2019, em relação ao livro dos autores (10+1 questions sur l’Union européenne,
Paris, Michalon, 2019), <https://bit.ly/2WOaLYE>
50 Cf. a lei contra as manifestações digitais de odeio, « Haine en ligne : l’assemblée adopte la loi Avia », 09 Julho 2019,
<https://bit.ly/2ZMXJg6>; « La France de Macron est “l’une des plus grandes menaces mondiales pour la liberte d’expression”
», Sputniknews, 08/07/2019; « La Commission européenne a convaincu Google, Facebook et Twitter de censurer Sputnik », Sputnik-
news, artigo do 14 Junho 2019, <https://bit.ly/2wRDn7U>.
51 Cf. os romances de Michel Houellebecq, ou o sucesso de Virginie Despentes, Vernon Subutex (Paris, Grasset, 2015-2017).
52 « Le CNRS fêtera-t-il ses 100 ans? », declaração coletiva de pesquisadores, Le Monde, 19 juin 2019,
<https://bit.ly/2IXeq0b>. Para o caso particular das universidades, dentro do Ensino Superior, cf o site: « Sauvons l’Université »,
<http://www.sauvonsluniversite.com/>
53 François Hartog, Régimes d’historicité. Présentisme et expérience du temps, Paris, Seuil 2003.
54 Coralie Deleaume, « Derrière la polémique sur le voile, l’assimilation française heurtée par le néolibéralisme », Marianne,
5/11/2019, <https://bit.ly/2OU9Rbq>
55 “Depois da União Europeia: reflexão sobre uma forma inédita de dominação política”, Philosophos, v. 23, n◦ 2 (2018),
<https://www.revistas.ufg.br/philosophos/article/view/51983>
56 Bertrand Badie: « Les nationalistes peuvent-ils travailler ensemble », Du grain à moudre, 27/5/2019,
<https://www.franceculture.fr/emissions/du-grain-a-moudre/du-grain-a-moudre-emission-du-lundi-27-mai-2019>

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 383-403 397
ISSN: 2317-9570
PHILIPPE CLAUDE THIERRY LACOUR

vez estabelecido o caráter não- (e até soumise), Jean-Luc Mélenchon, prefe-


anti-)democrático da União Europeia, riu falar de “ditamole” (“dictamolle”),
sobra dizer em que sentido essa oposi- uma palavra mista, que junta ditadura
ção à democracia ocorre. e o aspecto “mole” de um poder que
Seria a UE uma ditadura? Stricto constrange pelas normas burocráticas e
sensu, uma ditadura, no sentido antigo legais.
(romano) é uma decisão legal de colo- É preferível falar de uma situação re-
car uma pessoa provisoriamente acima colonial, que pode parecer um pouco
das leis: ela é então uma situação pleni- estranha, e até chocante, mas que se
potenciária provisória e limitada a um pode explicar. Imediatamente, aparece
certo quadro (certos objetivos). Ela di- uma objeção: tratar-se-ia de vitimismo,
fere por essa razão da tirania57 , que cor- eu lamentando o destino Francês en-
responde ao arbitrário do poder – ainda quanto que a França não teria feito as
que alguns ditadores tenham estado na devidas reparações em relação ao seu
beira da tirania58 , como o imperador ro- passado colonial, nem mesmo mudado
mano Sula que, por essa razão, alguns a sua política com o seu ex-império, que
comparam a Emmanuel Macron59 . É permanece neocolonial. Não é o caso
apenas por derivação que esse termo foi de negar que a França tem uma ati-
utilizado para falar de formas de poder tude neo-colonial em relação a vários
sem limite, como nos casos da domi- países de seu ex-império colonial. Há
nação fascista (Hitler representado por vários exemplos disso (guerra na Líbia,
Chaplin como “O grande ditador”), ou a união monetária da África do oeste,
comunista (Staline na sua paranoia cri- etc.). Mas a França foi também um país
minosa). Obviamente, esses exemplos colonizado, como o sublinhou a filósofa
não correspondem à realidade atual na Simone Weil nos seus textos sobre o co-
Europa (não há campos de extermina- lonialismo60 : pela Alemanha. Sob do-
ção, nem gulag, nem soldados estran- minação nazista, também tinha perdido
geiros ocupando as ruas). Outro indício todos os atributos da soberania (execu-
que o termo não é adequado: o próprio tiva, legislativa, judiciária, midiática),
líder da esquerda radical (France In- experimentou trabalho forçado, explo-

57 O refrão do hino nacional Francês, a Marseillaise, se opõe frontalmente à tirania : « Contre nous de la tyrannie / L’étendard
sanglant est levé ».
58 Foi o caso de Sula, como aponta Claude Moatti em Res Publica. Histoire romaine de la chose publique, Paris, Fayard, 2018.
Cf. a resenha de Jacques Sapir, « Souveraineté et chose publique : de l’histoire romaine à notre propre histoire », Russeurope-
en-exil, 1/089/2018, <https://www.les-crises.fr/russeurope-en-exil-souverainete-et-chose-publique-de-lhistoire-romaine-a-notre-
propre-histoire-par-jacques-sapir/>
59 Jacques Sapir, « De quoi Macron est-il le nom ? », Russeurope-en-exil, 2 Agosto 2018, <https://www.les-crises.fr/russeurope-
en-exil-de-quoi-macron-est-il-le-nom-jacques-sapir/# _ftnref22>. Macron confiscaria a soberania popular em nome da soberania
« europeia », do mesmo jeito que Sylla tinha privilegiado o Senado como fonte (exclusiva) da soberania, em detrimento do povo.
60 Simone Weil, Contre le colonialisme, Paris, Rivages, 2018. Uma tradução em português será publicada em breve na Revista de
Filosofia Moderna e contemporânea.

398 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 383-403
ISSN: 2317-9570
NEM A FAVOR, NEM CONTRA, BEM AO CONTRÁRIO: METAPOLÍTICA DOS COLETES AMARELOS E A
SITUAÇÃO RECOLONIAL

ração dos recursos locais, racismo, inte- gente que ganha nisso. A Alemanha63 ,
gração à economia do Reich. Perdeu a que perdeu a segunda guerra mun-
sua identidade e seu destino. É verdade dial, agora reclama a cadeira francesa
que essa aventura durou cinco anos e no Conselho Permanente de Segurança
não quinhentos, como foi o caso da co- da ONU, sob pretexto de uma cadeira
lonização europeia alhures, nem mil, “europeia” 64 ; pede para a França com-
como sonhava o terceiro Reich. Ora, a partilhar a sua força de dissuasão nu-
situação atual da França, desse ponto clear65 . As elites francesas que des-
de vista, é comparável com aquela da prezam o seu próprio país (Macron,
segunda guerra mundial – daí o termo por exemplo, insulta constantemente os
de re-colonial que utilizo e para o qual franceses quando viaja ao exterior), va-
espero, ao final desse texto, ter encon- lorizam o sucesso pessoal ou aquele de
trado sua justificativa. outra potência (o modelo alemão, a fas-
A nação pode ter um poder eman- cinação pelos USA). O que leva a pensar
cipatório, inclusive do ponto de vista que esse enfraquecimento global pode-
econômico, ao contrário do que dizem ria ser uma impotência organizada por
autores como Piketty, que negligenciam uma potência exterior: são os USA que
esse aspecto61 . Será que isso não é sinô- tem interesse na União europeia, para
nimo de isolamento, autarcia ou até dominar melhor o outro quintal (além
comportamento agressivo em relação da América Latina) – prova disso é que
aos outros? Será que é compatível com o a defesa da União Europeia é ligada pe-
internacionalismo? Jean Jaurès já dizia los tratados à OTAN, e que Obama ten-
que: “um pouco de internacionalismo tou evitar uma explosão do euro depois
nos afasta da nação; muito internacio- da crise de 200866 e se opôs a ideia do
nalismo nos leva de novo para a nação” referendum sobre o Brexit67 .
62
. É nesse ponto que o movimento dos
Agora, esse enfraquecimento da coletes amarelos toca a geopolítica,
França enquanto Estado-nação não é mesmo que seja de maneira muito indi-
uma perda para todo mundo. Tem reta. Pode ser um pouco arrogante pos-

61 Christophe Ramaux, « Les travailleurs n’ont pas de patrie selon Piketty. . . Vraiment? », Libération, 25 novembro 2019,
<https://bit.ly/2rmsxYd>
62 Jean Jaurès, L’armée nouvelle, 1911 : “un peu d’internationalisme éloigne de la patrie; beaucoup d’internationalisme y ramène”.
63 Sobre a dimensão « imperial » da dominação alemã na Europa, cf Lenny Barbara, « L’Empire allemand vacille mais ne tombe
pas », Le Vent se Lève, 13/10/2019, <https://lvsl.fr/lempire-allemand-vacille-mais-ne-tombe-pas/>
64 Pascale Hugues, « ONU : l’Allemagne veut que la France cède son siège au Conseil de sécurité », Le Point, 30/11/2018.
65 Vincent Jauvert, « La France va-t-elle partager sa bombe atomique avec l’Allemagne ? », Le Nouvel Observateur, 10 setembro
2018.
66 Cf. Phillip Inman, “Europe finally listening to Geithner”, 16 outubro 2011, <https://www.theguardian.com/business/2011/oct/16/europe
finally-listening-to-geithner>
67 Sabrina Siddiqui, « Obama to offer his friendly opposition to Brexit during visit to UK »,
<https://www.theguardian.com/politics/2016/apr/14/barack-obama-brexit-eu-referendum-uk-visit>

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 383-403 399
ISSN: 2317-9570
PHILIPPE CLAUDE THIERRY LACOUR

tular que a macro-política seja preva- tes amarelos significa uma libertação
lente sobre a micro-política mas, nesse de uma dominação velada, de poder
caso, é válido lembrar alguns dados discretamente abusivo, quase incons-
fundamentais que podem explicar cer- ciente. Com a saída da União Europeia,
tos aspectos da situação. Vivemos atu- os manifestantes orientam a história
almente dois eventos profundos: o iní- para o equivalente da caída do muro de
cio do fim do império norte-americano Berlim para o campo soviético: a queda
sobre o mundo, que foi em particular da dominação norte-americana que co-
a doutrina Wolfowitz desde 1990 e o bra a Europa ocidental desde a guerra
projeto de “Novo século americano”, fria. Com essa queda, se quebra tam-
cujo objetivo era de não ter mais ne- bém o império norte-americano, en-
nhum rival – fracassou com a aparição quanto projeto neo-conservador de he-
dos Brics. E também o início do fim da gemonia mundial exclusiva, e acabam
dominação ocidental sobre o resto do também quinhentos anos de domina-
mundo, com uma transição do poder ção ocidental sobre o mundo. Mesmo
para a Ásia, e em particular a China. que seja de maneira muito indireta, en-
Aliada com a Rússia, a China constitui, tão, o movimento dos coletes amarelos
sim, um rival real da potência estadu- certamente terá implicações fortes na
nidense. América Latina.
Para concluir, o movimento dos cole-

Referências
ANQUETIL, Giv; CHAO, Antoine; PERRY, Charlotte. “Les gilets jaunes face à une justice d’exception”. France Inter. 15
Junho 2019. Disponível em <https://bit.ly/2wTRbyE>. Acesso em: 20 mar 2020.
BADIE, Bertrand. “Les nationalistes peuvent-ils travailler ensemble”. Du grain à moudre. 27 mai 2019. Dispo-
nível em: <https://www.franceculture.fr/emissions/du-grain-a-moudre/du-grain-a-moudre-emission-du-lundi-
27-mai-2019>. Acesso em: 20 mar 2020.
BADIOU, Alain. “Le racisme des intellectuels”. Le Monde. Disponível em: <https://www.lemonde.fr/election-presiden-
tielle-2012/article/2012/05/05/le-racisme-des-intellectuels-par-alain-badiou_1696292_1471069.html>. Acesso
em: 20 mar 2020.
BADIOU, Alain. “Leçons du mouvement des gilets jaunes”. L’autre quotidien. 13 mar 2019. Disponível em <https://ww
w.lautrequotidien.fr/articles/2019/3/13/alain-badiou-leons-du-mouvement-des-gilets-jaunes->. Acesso em: 20
mar 2020.
BARBARA, Lenny. “L’Empire allemand vacille mais ne tombe pas ”. Le Vent se Lève. 13 out 2019, Disponível em:
<https://lvsl.fr/lempire-allemand-vacille-mais-ne-tombe-pas/>. Acesso em: 20 mar 2020.
BOULO, François. La ligne jaune. Paris: Indigènes édition, 2019.
BRANTHOME, Thomas. “Le ‘moment’ Gilets Jaunes (I): ce qu’ils ont su dire”. #Positions. 15 nov 2019. Disponível em:
<https://bit.ly/2DSNoFk>. Acesso em: 20 mar 2020.
BRUNETEAU, Bernard. Combattre l’Europe. De Lénine à Marine Le Pen. Paris: CNRS Éditions, 2019.
BUZZANCA, Fabien. “Cet été, avec les Gilets jaunes, le ‘Vrai débat’ à l’assaut de vos boîtes aux lettres”. Sputniknews. 17
jul 2019. Disponível em <https://bit.ly/34XUl3F>. Acesso em: 20 mar 2020.
CERTEAU, Michel de. La prise de parole et autres écrits politiques. Paris: Seuil, 1994.

400 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 383-403
ISSN: 2317-9570
NEM A FAVOR, NEM CONTRA, BEM AO CONTRÁRIO: METAPOLÍTICA DOS COLETES AMARELOS E A
SITUAÇÃO RECOLONIAL

Christophe Castaner a décoré des policiers soupçonnés de violences contre des ‘gilets jaunes’. France Info. 19 jul 2019.
Disponível em <https://bit.ly/2RpOlNp>. Acesso em: 20 mar 2020.
COLLECTIF. Le fond de l’air est jaune. Paris: Seuil, 2019.
CONSTITUANTS, Gilets Jaunes. 6 mar 2019. Facebook: giletsjaunesconstituantspagedesecours.
Disponível em: <https://www.facebook.com/giletsjaunesconstituantspagedesecours/>. Acesso em: 20 mar 2020.
DE BENOIST, Alain. Droite-gauche, c’est fini! Le moment populiste. Paris: PGDR Editions, 2017.
DEDIEU, Franck. “Service Public: chronologie d’une démolition”. Marianne. 21 jun 2019.
Disponível em <https://bit.ly/2xfWQ2f>. Acesso em: 20 mar 2020.
DELAUME, Coralie; CAYLA, David. 10+1 questions sur l’Union européenne. Paris: Michalon, 2019.
DELEAUME, Coralie. “Derrière la polémique sur le voile, l’assimilation française heurtée par le néolibéralisme”. Mari-
anne. 5 nov 2019. Disponível em: <https://bit.ly/2OU9Rbq>. Acesso em: 20 mar 2020.
DENEAULT, Alain. Politiques de l’extrême-centre. Montréal: Lux, 2016.
DESPENTES, Virginie. Vernon Subutex. Paris: Grasset, 2015-2017.
DUFRESNE, David. “Allo Place Beauvau: Le Récapitweete”. David Dufresne. 28 fev 2019.
Disponível em: < http://www.davduf.net/alloplacebeauvau>. Acesso em: 20 mar 2020.
En Allemagne, le patronat prend position dans le débat sur l’immigration. Le Monde. 23 dez 2014. Disponível em
<https://www.lemonde.fr/europe/article/2014/12/23/le-patronat-allemand-appelle-a-accueillir-plus-de-refugi-
es_4545460_3214.html>. Acesso em: 20 mar 2020.
Eric Drouet lance un appel général aux gilets jaunes. Sputniknews. 20 jun 2019. Disponível em <https://fr.sputniknews.
com/france/201906201041480138-eric-drouet-lance-un-appel-general-aux-gilets-jaunes-video/>. Acesso em: 20
mar 2020.
Etats-Unis: Marion Maréchal Le Pen prendra la parole ce jeudi à Washington. 20 Minutes. 20 fev 2018. Disponível em
<https://bit.ly/2ZLniOL>. Acesso em: 20 mar 2020.
GALL, Brice le. “Des engagés du quotidien”. Beauvais. 6 jun 2019. Disponível em <https://bit.ly/2sPiU4J>. Acesso em:
20 mar 2020.
GALL, Brice Le; TRAVERSE, Lou; CIZEAU, Thibault. Justice et Respect: Le soulèvement des gilets jaunes. Paris: Syllepse,
2019.
Gilets Jaunes, une répression pénale sans précédent, avec plus de 3000 condamnations. Sputniknews. 11 ago 2019. Dis-
ponível em: <https://fr.sputniknews.com/france/201911081042394370-gilets-jaunes-une-reponse-penale-sans-
precedent-avec-plus-de-3000-condamnations/>. Acesso em: 20 mar 2020.
Haine en ligne: l’assemblée adopte la loi Avia. Le Point. 09 jul 2019. Disponível em: <https://bit.ly/2ZMXJg6>. Acesso
em: 20 mar 2020.
HARDING, Jeremy. “Os manifestantes estão em pânico. O que querem os coletes amarelos?”. Piauí, n°151, abril 2019.
HARTOG, François. Régimes d’historicité: Présentisme et expérience du temps. Paris: Seuil, 2003.
HENNEQUIN, Pascal ; KEMPF, Hervé. “Près de Commercy, l’assemblée des Gilets jaunes refonde la démocratie”. Re-
porterre. 28 jan 2019. Disponível em: <https://reporterre.net/Pres-de-Commercy-l-assemblee-des-Gilets-jaunes-
refonde-la-democratie>. Acesso em: 20 mar 2020.
HUGUES, Pascale. "ONU: l’Allemagne veut que la France cède son siège au Conseil de sécurité". Le Point. 30 nov 2018.
Disponível em: <https://www.lepoint.fr/europe/onu-l-allemagne-veut-que-la-france-cede-son-siege-au-conseil-
de-securite-30-11-2018-2275513_2626.php>. Acesso em: 20 mar 2020.
INMAN, Phillip. “Europe finally listening to Geithner”. The Guardian. 16 out 2011. Disponível em: <https://www.the
guardian.com/business/2011/oct/16/europe-finally-listening-to-geithner>. Acesso em: 20 mar 2020.
JAUVERT, Vincent. “La France va-t-elle partager sa bombe atomique avec l’Allemagne? ”. Le Nouvel Observateur. 10 set
2018. Disponível em: <https://www.nouvelobs.com/monde/20180910.OBS2107/la-france-va-t-elle-partager-sa-
bombe-atomique-avec-l-allemagne.html>. Acesso em: 20 mar 2020.
KEMPF, Hervé. “L’honneur du boxeur contre Macron le voyou”. Reporterre. 1 mai 2019. Disponível em <https://repor-
terre.net/L-honneur-du-boxeur-contre-Macron-le-voyou?fbclid=IwAR1MiNb28QF-IU_3i3NI8gRm7YwEoPBfXn
MBGFMuvTgE4j5v8q7P_1uvjAA>. Acesso em: 20 mar 2020.
L’afflux de mihttps://www.overleaf.com/project/5ee0175db8aa2400011b1477grants profite aux patrons allemands. Le
Temps. 2 set 2015. Disponível em <https://www.letemps.ch/monde/lafflux-migrants-profite-aux-patrons-alle-
mands>. Acesso em: 20 mar 2020.
L’UNION POPULAIRE RÉPUBLICAINE. [Site institucional]. Disponível em: <https://upr.fr>. Acesso em: 20 mar
2020.
La Commission européenne a convaincu Google, Facebook et Twitter de censurer Sputnik. Sputniknews. 14 jun 2019.
Disponível em: <https://bit.ly/2wRDn7U>. Acesso em: 20 mar 2020.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 383-403 401
ISSN: 2317-9570
PHILIPPE CLAUDE THIERRY LACOUR

La France de Macron est ‘l’une des plus grandes menaces mondiales pour la liberte d’expression’. Sputniknews. 08 jul
2019. Disponível em: <https://fr.sputniknews.com/france/201907081041616804-la-france-de-macron-est–lune-
des-plus-grandes-menaces-mondiales-pour-la-liberte-dexpression-/>. Acesso em: 20 mar 2020.
LACOUR, Philippe Claude Thierry. “Depois da União Europeia: reflexão sobre uma forma inédita de dominação polí-
tica”. Philosophos, v. 23, n°2 (2018). Disponível em: <https://www.revistas.ufg.br/philosophos/article/view/519-
83>. Acesso em: 20 mar 2020.
Le CNRS fêtera-t-il ses 100 ans? Le Monde. 19 jun 2019. Disponível em: <https://bit.ly/2IXeq0b>. Acesso em: 20 mar
2020.
LE VENT SE LÈVE. Todd, Boulo, Garrido, Cargoët: Après Les Gilets Jaunes. Youtube. Disponível em: <https://www.you-
tube.com/watch?v=S66efNDlDj4feature=youtu.bet=4173>. Acesso em: 20 mar 2020. 1:41:15.
Les gilets jaunes ne sont pas de simples citoyens qui manifestent, déclare Macron au New Yorker. France Info. 26 jun
2019. Disponível em <https://bit.ly/2IHZofY>. Acesso em: 20 mar 2020.
LOUIS, Agnès. “Les anti-européens”. La vie des idées. 21 out 2019. Disponível em: <https://laviedesidees.fr/Bernard-
Bruneteau-Combattre-Europe-Lenine-Le-Pen.html>. Acesso em: 20 mar 2020.
L’Union Européenne: Un problème de souveraineté. Conférence pour les gilets jaunes du Grand Est. Grand Angle. 10
jul 2019. Disponível em <https://bit.ly/2Ys5N5d>. Acesso em: 20 mar 2020.
Marine Le Pen ne veut plus sortir de l’Europe, ni de l’euro. Télégramme de Brest. Le Telegramme. 14 de abr 2019. Dispo-
nível em: <https://www.letelegramme.fr/elections-europeennes/politique-marine-le-pen-ne-veut-plus-sortir-ni-
de-l-euro-pe-ni-de-l-euro-14-04-2019-12258877.php>. Acesso em: 20 mar 2020.
Michelle Bachelet inquiète de la répression des manifestations au Venezuela, au Soudan et en France. ONU Info. 6 mar
2019. Disponível em <https://news.un.org/fr/story/2019/03/1037951>. Acesso em: 20 mar 2020.
MOATTI, Claude. Res Publica: Histoire romaine de la chose publique. Paris: Fayard, 2018.
NUIT Debout. In: WIKIPÉDIA: a enciclopédia livre. Wikimedia, 2016. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/
Nuit_debout>. Acesso em: 20 mar 2020.
PEILLON, Antoine. Cœur de boxeur. Le vrai combat de Christophe Dettinger. Éditions Les Liens, 2019.
Plus de 170 personnes interpellées en marge du défilé du 14-Juillet à Paris. Le Monde. 14 jul 2019. Disponível em
<https://bit.ly/2Pqangu>. Acesso em: 20 mar 2020.
Plusieurs figures des ‘gilets jaunes’ annoncent la création d’un ‘socle commun’ pour le mouvement. France Info. 26 jun
2019. Disponível em <https://bit.ly/2s56ftX>. Acesso em: 20 mar 2020.
POLONY, Natacha; DEQUAY, Laurence; QUEMENER, Soazig. “Macron, Juppé, Jospin... comment ils ont cassé le service
public”. Marianne. 20 jun 2019. Disponível em <https://bit.ly/2KHbnfU>. Acesso em: 20 mar 2020.
RAMAUX, Christophe. “Les travailleurs n’ont pas de patrie selon Piketty. . . Vraiment?”. Libération. 25 nov 2019. Dispo-
nível em: <https://bit.ly/2rmsxYd>. Acesso em: 20 mar 2020.
RIDOUANE, Zineb. “Vie et mort de ‘Mama Zina’, l’octogénaire atteinte par une grenade lacrymogène à Marseille”. Le
Monde. 24 jun 2019. Disponível em <https://bit.ly/2Ftl7pY>. Acesso em: 20 mar 2020.
ROQUE, Tatiana, “Brésil: une crise en trois actes”. La Vie des idées. 28 mai 2019. Disponível em <http://www.laviedesi-
dees.fr/Bresil-une-crise-en-trois-actes.html>. Acesso em: 20 mar 2020.
SAINTE-MARIE, Jérôme. “Gilets jaunes : une révolte populaire et tricolore”. Ruptures. 20 nov 2019. Disponível em:
<https://ruptures-presse.fr/opinions/gilets-jaunes-populaire-sainte-marie/>. Acesso em: 20 mar 2020.
SAPIR, Jacques. “De quoi Macron est-il le nom ?”. Russeurope-en-Exil. 2 ago 2018. Disponível em: <https://www.les-
crises.fr/russeurope-en-exil-de-quoi-macron-est-il-le-nom-jacques-sapir/f tnref 22>. Acesso em: 20 mar 2020.
SAPIR, Jacques. “Souveraineté et chose publique: de l’histoire romaine à notre propre histoire”. RussEurope-en-Exil.
11 out 2018. Disponível em: <https://www.les-crises.fr/russeurope-en-exil-souverainete-et-chose-publique-de-
lhistoire-romaine-a-notre-propre-histoire-par-jacques-sapir/>. Acesso em: 20 mar 2020.
SAUVONS L’UNIVERSITÉ. [Site institucional]. Disponível em: <http://www.sauvonsluniversite.com/>. Acesso em: 20
mar 2020.
SIDDIQUI, Sabrina. “Obama to offer his friendly opposition to Brexit during visit to UK”. The Guardian. 14 mar 2016.
Disponível em: <https://www.theguardian.com/politics/2016/apr/14/barack-obama-brexit-eu-referendum-uk-
visit>. Acesso em: 20 mar 2020.
STREECK, Wolfgang. “Four Reasons the European Left Lost”. Jacobin. 30 mai 2019. Disponível em: <https://bit.ly/2Kt-
Zk5L>. Acesso em: 20 mar 2020.
STREECK, Wolfgang. “Un empire européen en voie d’éclatement”. Le Monde Diplomatique. mai 2019. Disponível em:
<https://www.monde-diplomatique.fr/2019/05/STREECK/59873>. Acesso em: 20 mar 2020.
Un an après son lancement, quel avenir pour le mouvement des Gilets jaunes? Ruptures. 29 nov 2019. Disponível em:
<https://ruptures-presse.fr/opinions/gilets-jaunes-martin-cgt-paris/>. Acesso em: 20 mar 2020.
Un peuple qui souhaite recouvrer sa souveraineté doit procéder à une rupture franche avec l’UE – Entretien avec Coralie
Delaume et David Cayla. Le vent se lève. 10 mai 2019. Disponível em: <https://bit.ly/2WOaLYE>. Acesso em: 20

402 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 383-403
ISSN: 2317-9570
NEM A FAVOR, NEM CONTRA, BEM AO CONTRÁRIO: METAPOLÍTICA DOS COLETES AMARELOS E A
SITUAÇÃO RECOLONIAL

mar 2020.
WEIL, Simone. Contre le colonialisme. Paris: Rivages, 2018.
WEUTH, David. “Le manque d’humilité des intellectuels face au mouvement des gilets jaunes”. Le vent se leve. 1 mai
2019. Disponível em <https://bit.ly/2ZPmuID>. Acesso em: 20 mar 2020.

Recebido: 03/01/2020
Aprovado: 12/05/2020
Publicado: 30/12/2020

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 383-403 403
ISSN: 2317-9570
DOI: https://doi.org/10.26512/rfmc.v8i2.27343

A Urgência da Filosofia em Cursos Superiores de Tecnologia: Para


Além da Pragmática da Eficiência e da Normatividade
[The Urgency of Philosophy in Higher Technology Courses: Beyond the Pragmatics of
Efficiency and Normativity]

Marcelo Micke Doti* ; Emerson Freire**

Resumo: A grande especialização alcançada em todas as áreas do conhecimento humano


são formas pelas quais as narrativas do mesmo conhecimento se colocam diante de
objetos construídos dessa especialização, mas que, ao mesmo tempo, compromete o ideal
democrático e integral da universidade. Muito sensível a esses aspectos da contem-
poraneidade são os cursos tecnológicos e a proposta deste artigo é demonstrar porque
a filosofia é fundadora e restauradora de um saber integral e não “tecnicista”. A sua
urgência e necessidade nesses cursos é apresentada argumentando através de Simondon
(Du mode d’existence des objets techniques) bem como do desenvolvimento da concepção
não mediada da tecnologia, mas a tecnologia e suas técnicas como determinado tipo de
linguagem. Acredita-se, assim, abrir espaço para o pensamento filosófico e sua constante
forma de interrogar escampando de determinadas estreitezas da especialização.
Palavras-chave: Tecnologia. Técnica. Linguagem. Simondon. Especialização.

Abstract: The great specialization achieved in all areas of human knowledge are ways
in which narratives of the same knowledge stand before objects constructed from this
specialization, but at the same time compromising the democratic and integral ideal of
the university. Very sensitive to these aspects of contemporaneity are the technological
courses and the purpose of this article is to demonstrate why philosophy is the founder
and restorer of an integral knowledge and not "technicist". Their urgency and necessity
in these courses is presented by arguing through Simondon (Du mode d’existence des
objets techniques) as well as the development of the unmediated conception of techno-
logy, but technology and its techniques as a particular type of language. It is believed,
thus, to make room for philosophical thought and its constant form of interrogation by
eschewing certain narrowness of specialization.
Keywords: Technology. Technique. Language. Simondon. Specialization.

* Professor e pesquisador do Centro Estadual de Educação Tecnológica Paula Souza (CEETEPS) e na Faculdade de Tecnologia
(Fatec/Campus Mococa). Doutor em Planejamento de Sistemas Energéticos pela Unicamp, graduado em Ciências Econômicas pela
Unesp, mestre em Filosofia Política pela Unicamp, e mestre em Sociologia Unesp. Realizou pós-doutorado em Pesquisas Energéticas
na UFABC. E-mail: marcelo.micke@uol.com.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9657-6626.
** Professor e pesquisador no Mestrado em Educação Profissional do Centro Estadual de Educação Tecnológica Paula Souza (CE-
ETEPS) e na Fatec Jundiaí, onde coordena o Núcleo de Estudos de Tecnologia e Sociedade (NETS). Doutor em Sociologia pela Uni-
camp e em Filosofia pela Université de Paris 1 (Panthéon Sorbonne), bem como mestre em Política Científica e Tecnológica pela
Unicamp. Realizou pós-doutorado no Departamento de Sociologia da Unicamp. E-mail: emerson.freire@fatec.sp.gov.br. ORCID:
http://orcid.org/0000-0001-5449-2002.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 405-418 405
ISSN: 2317-9570
MARCELO MICKE DOTI; EMERSON FREIRE

“É por isso que dizemos que a única literatura autêntica


dos tempos modernos é o manual do usuário.”
(David Cronenberg, Consumidos)

1. A filosofia diante da tecnologia e a plos sentidos, teríamos também quebra


formação do tecnólogo de lugares comuns e paradigmas den-
tro dos respectivos cursos. Entre eles
a problemática muito pertinente da co-
A frase que abre este artigo como epi-
municação: esta não é troca de informa-
táfio é a fala da professora de filoso-
ção simplesmente como é investido pe-
fia Célestine Arosteguy, casada com o
los múltiplos ideólogos da ordem com
também filósofo Aristide Arosteguy no
suas aporias de “sociedade do conhe-
livro de estreia de Cronenberg. No li-
cimento”, “sociedade da informação”,
vro, praticamente um thriller policial,
entre tantas outras. Como se a comuni-
mas com reverberações outras e bem ao
cação fosse apenas a carga enorme de
estilo do diretor, a filósofa é morta e
informação orientadora da sociedade
canibalizada. Em outros termos, ela é
atual (GLEICK, 2011). A comunicação
consumida. Mas quem não o é? O ca-
é troca como ato ético (SODRÉ, 2018)
sal de jornalistas, Naomi que quer en-
e como tal é manifestação de atravessa-
tender o acontecido e o que aconteceu
mento de uma subjetividade por outra:
com Célestine, e Nathan, consomem-se
em última instância na dinâmica dos
também em seus aparatos tecnológicos
grupos sociais é uma forma de transfe-
enquanto pensam os consumir. Essa é
rência (DOR, 1989).1
uma questão incontornável e profunda-
Dentro desse quadro já podemos tra-
mente filosófica: as atuais tecnologias e
çar algumas questões e problemáticas
seus consumos. O que se consome e o
para pensar a tecnologia e sua relação
que se deixa consumir em si é uma nova
essencial com a filosofia dentro dos am-
etapa da interação com as tecnologias.
bientes formadores dos cursos tecnoló-
Essa indagação seria essencial dentro
gicos, destacando-se as faculdades tec-
dos cursos de formação tecnológica:
nológicas. Destacamos a seguinte inda-
além da formação crítica em seus múlti-

1 Ver esta questão dos grupos convertidos em massa e sua essencialidade nas eleições de 2018 no Brasil e o cenário aberto no
âmbito cultural e educacional a ponto desta publicação fazer resistência à “balbúrdia” instaurada. Não à toa uma das manchetes do
portal de notícias UOL e outras, logo após às eleições, abordar a eleição na qual a televisão assistiu pela internet. Para a problemática
psicanalítica e o quadro desenvolvido dentro da comunicação das eleições e seu quadro ético, não apenas os clássicos Psicologia de
Massas e Análise do Eu de Freud, o Psicologia de Massas do Fascismo, de Reich, mas também a análise “à quente” de Christian Dunker
(2019) no livro Democracia em Risco? e seu artigo demonstrando como as redes sociais transformaram grupos em massas. Por esse
meio as tecnologias digitais são armas de comunicação não neutras. Atentemos bem a isso: como linguagem as tecnologias nunca são
neutras.

406 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 405-418
ISSN: 2317-9570
A URGÊNCIA DA FILOSOFIA EM CURSOS SUPERIORES DE TECNOLOGIA: PARA ALÉM DA PRAGMÁTICA DA
EFICIÊNCIA E DA NORMATIVIDADE

gação: o que melhor que a tecnologia e mas mais diversas possíveis: o poder de
sua linguagem na narrativa social atual educar e atravessar uma outra subjeti-
do sistema produtivo do capital para vidade e lhe produzir a diferença. Mas,
construir uma inescapável armadilha também, poder para a dominação, su-
dos limites? Como escapar e criticar as jeição e legitimação do discurso tecno-
linhas de prisão de um mundo de múl- científico. São questões e problemáticas
tiplos simbólicos e seu poder, de elo- sobretudo marcantes dentro dos cursos
gio da eficiência e da destruição: não só tecnológicos e contra as quais invoca-
ambiental, mas das mentes excitadas do mos a filosofia como máquina de guerra
espetáculo (TÜRCKE, 2014, DEBORD, conceitual. As linguagens das tecnolo-
1997)? Escapar para uma experiência gias e das técnicas, por serem lingua-
do fora e que exige crítica, uma visão gens, podem ser pensadas conceitual-
pelo outro, mas que a suspeição de uma mente e podem ser atravessadas pela
infinita mediação tecnológica nos im- máquina de guerra da filosofia2 .
pede? São motivos importantes para Pensar essas problemáticas marcam
colocar as problemáticas e indagações profundamente a mencionada urgência
filosóficas dentro dos cursos superiores e necessidade da filosofia dentro dos
de tecnologia. cursos tecnológicos. Adequa-se a uma
No entanto, antes de prosseguir, urgência histórica na qual a filosofia é
deve-se colocar que não só as configura- vista como suspeita, mas também ao
ções sociais e políticas atuais estão em seu caráter próprio dentro do projeto
uma rota de colisão com algumas das democrático de sociedade e da univer-
grandes expectativas da filosofia como sidade pública. A formação integral em
a construção de liberdades possíveis ou cursos do ensino superior, como um
liberdades a serem inventadas, um ru- todo, é parte também da interrogação
mar para as diferenças. Essas configu- dentro dos cursos tecnológicos, porém é
rações sociais e culturais também são preciso considerar suas especificidades.
técnicas e tecnológicas: ambas só se fa- Estes, submetidos apenas a uma lógica
lam no plural (técnicas e tecnologias) e da técnica como linguagem de deter-
são uma forma de linguagem. Como minada configuração social, econômica,
linguagens possuem a propriedade do política e cultural, não mais interrogam
transmitir-se a outro, comunicação. O a técnica, a tecnologia e sua apropriação
ato comunicativo, por ser ato, é pro- pelo aparelho tecno-científico centrali-
cesso ético e coloca-se de um para ou- zado economicamente. A especializa-
tro como poder a ser exercido das for- ção crescente na área de tecnologia e

2 Usamos máquina de guerra aqui no sentido dado por Gilles Deleuze e Félix Guattari em Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia
(1997).

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 405-418 407
ISSN: 2317-9570
MARCELO MICKE DOTI; EMERSON FREIRE

seus cursos superiores é muito sensível pactos da cibernética, em sua aliança


a essa não interrogação e perda da uni- com as teorias da informação, trazidas
versalidade e dos projetos de socieda- principalmente pelas obras de Norbert
des diversas e democráticas. Esse é o ca- Wiener (1968, 1970) em anos anteri-
minho do que costumamos chamar de ores, Simondon apontava uma urgên-
“tecnicismo”. A urgência e necessidade cia da incorporação dos objetos técni-
da filosofia é quebrar esse apelo especi- cos pela cultura que, segundo ele, ig-
alista e tecnicista e interrogar a própria norava a realidade técnica ela mesma,
base da filosofia e sua potencialidade por estar direcionada crescentemente
dentro dos cursos superiores de tecno- ao pueril espetáculo do consumo que
logia. A filosofia precisa interagir com eles podiam proporcionar. Ignorando a
a técnica, a tecnologia e suas configura- realidade humana depositada nas má-
ções socioeconômicas não apenas como quinas, a oposição cultura e técnica, en-
prática pedagógica, mas como projeto tre homens e máquinas, aparece como
social. falsa, sem fundamento.
Assim, duas atitudes contraditórias
da cultura em relação aos objetos téc-
nicos ficavam cada vez mais eviden-
2. Filosofia e tecnologia: diálogos pos- tes para Simondon: a primeira era
síveis, necessários considerá-los como um simples con-
junto de matérias, desprovidos de ver-
Logo no primeiro parágrafo da intro- dadeira significação, prontos apenas
dução ao seu livro mais conhecido, Du para o uso, um sentido unicamente uti-
mode d’existence des objets techniques litário; a segunda, baseada na ideia do
(MEOT), o filósofo Gilbert Simondon autômato, do robô que se insurgiria, se-
faz uma afirmação surpreendente, até riam os objetos técnicos hostis ao ho-
mesmo parecendo exagerada à primeira mem, um perigo iminente a ser con-
vista, qual seja, a de que a intenção do trolado. Controlar ou ser controlado,
seu estudo é suscitar a necessidade da escravizar ou ser escravizado pelas má-
tomada de consciência do sentido dos quinas, aparece enquanto um falso pro-
objetos técnicos pela cultura e que, para blema quando não se elimina a pala-
tanto, é preciso um pensamento filosó- vra “escravizar” da relação, quando não
fico que leve à cabo essa tarefa com o se propõe o estabelecimento de uma
mesmo esforço ou com “um dever aná- cultura técnica de fato, uma acopla-
logo àquele desempenhado para a abo- mento positivo (não positivista) entre
lição da escravidão e da afirmação da homens e máquinas, que considere a
pessoa humana” (SIMONDON, 1969, realidade técnica e suas implicações
p. 9 – tradução livre nossa). sócio-políticas:
No calor das discussões sobre os im-

408 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 405-418
ISSN: 2317-9570
A URGÊNCIA DA FILOSOFIA EM CURSOS SUPERIORES DE TECNOLOGIA: PARA ALÉM DA PRAGMÁTICA DA
EFICIÊNCIA E DA NORMATIVIDADE

dades sociotécnicas, visando diminuir


Longe de ser o vigia de um a distância criada entre cultura e obje-
grupo de escravos, o homem é tos técnicos. A figura do maestro em
o organizador permanente de substituição ao vigia não é aleatória ou
uma sociedade dos objetos téc- retórica. Não se trata de formar vigilan-
nicos que precisam dele como tes de elementos e indivíduos técnicos
os músicos precisam do maes- (técnicas e tecnologias isoladas), leito-
tro. O maestro da orquestra res de manuais operacionais, mas de or-
só pode reger os músicos por- questradores, de pessoas para inventar
que ele interpreta, como eles recombinações potenciais no nível dos
e tão intensamente quanto to- conjuntos técnicos. É nesse nível que
dos eles, a peça executada. Ele o pensamento filosófico, o que não é o
acalma ou apressa os músi- mesmo que dizer o filósofo formado, é
cos, mas é também acalmado imprescindível e urgente.
e apressado por eles; de fato, Uma separação entre cultura e téc-
através dele, a orquestra acalma nica é o que mais proporciona a
e apressa cada músico. Ele é (des)politização constante em relação
para cada um deles a forma mo- aos objetos técnicos, os quais acabam
vente e atual do grupo em sua sempre encerrados em um tecnicismo
existência presente; ele é o in- intemperante, como o classifica Si-
térprete mútuo de todos com mondon, fazendo surgir uma aliena-
relação a todos. Assim, o ho- ção ainda mais profunda daquela que
mem tem por função ser o co- é fruto da exploração do trabalho pelo
ordenador e o inventor perma- capital, no sentido que lhe dava Marx.
nente das máquinas que estão É a alienação frente ao modo de exis-
à sua volta. Ele está entre as tência dos objetos técnicos, da não in-
máquinas que operam com ele corporação da técnica pela cultura por
(SIMONDON, 1969, p.11). suas características mesmas. A inicia-
ção à técnica e à tecnologia, desde que
não a partir das duas vertentes contra-
Portanto, nem a relação de uso, utili- ditórias apontadas, deveria ter, para Si-
tária, autocrática em direção às máqui- mondon, o mesmo estatuto da educação
nas, ou tecnocrática, de subordinação científica. Um aprendizado no nível dos
à elas em nome da velha ideia de pro- esquemas e da gênese dos objetos téc-
gresso técnico, do tecnicismo, nem a re- nicos, não apenas normativo, mas tão
lação de propriedade e de gestão, nem “desinteressado” quanto possível, como
a especialização, nem mesmo o conhe- na prática das artes nos anos iniciais da
cimento científico por si só, são sufici- formação educacional. Ampliar, gene-
entes para retomar o sentido das ativi-

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 405-418 409
ISSN: 2317-9570
MARCELO MICKE DOTI; EMERSON FREIRE

ralizar e aprofundar a cultura, que so- ideia de que o desenvolvimento tecno-


freu certo empobrecimento pela especi- científico é sinônimo de evolução, de
alização intensa e extensiva, são tarefas progresso humano, como que algo na-
próprias ao pensamento filosófico que tural, uma conexão direta entre inven-
ajuda a diminuir estereótipos e mitos ção e melhora das condições de vida.
sobre a técnica, sobre as máquinas do Em outro texto, Les limites du progrès
entorno ao homem. A máquina é o pen- humain, Simondon (1990), demonstra
samento concretizado, o gesto humano o quanto é infundada essa equipara-
depositado, como sempre lembrava Si- ção. O que em um determinado campo
mondon, e o homem é seu intérprete, pode ser considerado como um pro-
aquele que lhe dá significações e senti- gresso (essa palavra tão desgastada),
dos por meio de invenções. não entendido aqui como etapas su-
É interessante que Simondon consi- cessivas cronologicamente, mas como
dere que para essa introdução efetiva uma mudança de fase após a satura-
do objeto técnico na cultura, o tecnólogo ção de um determinado domínio, pode
é figura essencial, uma espécie de psi- não significar necessariamente avanço
cólogo ou de um sociólogo das máqui- no entorno desse domínio. Pode-se ter
nas, das tecnologias, pois seria dele a modificações profundas na linguagem,
função de desvelar, a partir dos esque- o que não implica em uma revolução li-
mas de funcionamento, a tecnicidade terária, com maior ou menor qualidade.
dos objetos, as possibilidades outras de É porque não se pode pensar em ter-
relações do homem com o mundo. Mas, mos somente do que o homem produz
para tanto, um pensar filosófico lhe é (linguagem, técnica), mas também do
fundamental. Não se trata de pensar que o homem é, ou seja, há uma ques-
filosófica e disciplinarmente sobre os tão ontológica envolvida por princípio.
objetos técnicos, mas com eles, de ma- É nesse sentido que a reflexão própria
neira imanente, apontando para a cons- ao pensamento filosófico se torna ima-
trução de uma cultura técnica que eli- nente à concretização objetiva nos di-
mine as relações de subordinação ou de versos domínios do conhecimento, par-
submissão, que produza acoplamentos ticularmente aqui à concretização dos
positivos entre tecnologias e humanos, objetos técnicos, promovendo uma es-
para além das pragmáticas da eficiência pécie de ressonância interna:
econômica e de apelos à moral, de um
uso para o bem ou para o mal de deter-
minado conjunto técnico. Somente o pensamento filosó-
O rechaço à participação do pensa- fico é comum ao progresso da
mento filosófico para a criação de uma linguagem, ao progresso da re-
cultura técnica, muitas vezes vem da ligião, ao progresso da técnica;
a reflexividade do pensamento

410 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 405-418
ISSN: 2317-9570
A URGÊNCIA DA FILOSOFIA EM CURSOS SUPERIORES DE TECNOLOGIA: PARA ALÉM DA PRAGMÁTICA DA
EFICIÊNCIA E DA NORMATIVIDADE

é a forma consciente da resso- saberes e das técnicas”. Não cabe neste


nância interna do conjunto for- espaço se alongar e descrever estas úl-
mado pelo homem e a concre- timas, mas entender a preocupação de
tização objetiva; é esse pensa- Guattari com a atual era:
mento que assegura a continui-
dade entre as fases sucessivas A questão que reaparece de ma-
de progresso, e é somente ele neira lancinante é de saber por
que pode manter a preocupação que as imensas potencialidades
de totalidade e fazer com que o processuais impulsionadas por
descentramento do homem, pa- todas essas revoluções informá-
ralelo à alienação da concretiza- tica, telemática, robótica, buro-
ção objetiva, não se efetue (SI- crática, biotecnológica... leva-
MONDON, 1990, p. 14). ram somente, até o presente, a
É nesse sentido que se considera que um fortalecimento dos sistemas
estabelecer a formação em cursos su- de alienação, à uma mediatiza-
periores de tecnologia somente a partir ção de massa opressiva, às polí-
da especialização utilitária, sem consi- ticas consensuais infantilizado-
derar essa dimensão ontológica, é em- ras (GUATTARI, 1989, p. 22 –
pobrecer essa formação e confinar os tradução livre nossa).
valores políticos e sociais de uma cul-
tura técnica ao pragmatismo comer- Se o desequilíbrio entre homem e
cial, é alienar o indivíduo da realidade máquina, iniciado no século XVIII, fa-
técnica, de submetê-lo a uma subjeti- zendo com que o primeiro perdesse
vidade programada e controlada, pelo paulatinamente espaços sociais para a
marketing e pelo consumo ainda mais. segunda e gerando novos enunciados
Não por acaso que autores como Félix semióticos pelo capital, na era da infor-
Guattari (1989), por exemplo, se voltou mática planetária esse deslocamento é
para o estudo de como se constroem mais intenso, entre outras razões, pelo
os territórios subjetivos, uma vez que aumento exponencial de dados digi-
a produção de subjetividade se tornou tais gerados e pela maior capacidade
cada vez mais depende de uma diver- de processamento em menos tempo. As
sidade de sistemas maquínicos, princi- enunciações, a produção de subjetivi-
palmente em uma fase que ele deno- dades, os desejos e afetos, passam para
minou de “era da informática planetá- o controle da maquinaria informacio-
ria”, que criaria um gerenciamento da nal que se dá em redes mais amplas
subjetividade diferente daquelas vivi- e globais, inclusive com implicações
das na “era cristão europeia” e da “era geopolíticas. Entende-se o incômodo
da desterritorialização capitalística dos de Guattari (1989), pois ele percebe as

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 405-418 411
ISSN: 2317-9570
MARCELO MICKE DOTI; EMERSON FREIRE

potencialidades recombinatórias dessa por meio da tecnicidade e da intuição”


passagem, porém observa claramente o (FREIRE, 2018, p. 22) ontologicamente
caminho da alienação renovada que se ligado ao processo de individuação, do
perpetua e que, como se viu, está muito ser em devir.
próxima àquela descrita anteriormente
a partir de Simondon (1989, 1990) em
relação aos modos de existência dos ob-
jetos técnicos. A planetarização infor- 3. Tecnologia e linguagem
mática permitiria outra aliança entre
homens e tecnologias, não necessaria- Em qualquer estrutura social formamos
mente mais com o homem no centro, e somos formados pelo “consumo”. E
mas como maestro, acompanhando o não nos apequenemos: consumo não é
movimento da música e dos músicos. um conceito exclusivo, único e próprio
Há um importante caráter estético da sociedade manietada pelo capital.
aí envolvido, sem dúvida. Um pen- Nesta ele atinge padrões insustentáveis
samento estético que se alia ao pen- para a própria vida. Somos usados e
samento técnico. Muito curioso que usamos. Na sociedade de tantos objetos
Simondon (2009), em uma entrevista e processos tecnológicos a nos adentrar
sobre a mecanologia (correspondente a vida é muito fácil a emergência de vá-
atualmente à tecnologia) dada à Jean rias formas de atravessamento da sub-
le Moyen e Jacques Parent, em 1968, jetividade a limitar nossas capacidades
chega a afirmar que “faltam-nos poe- críticas, políticas, culturais entre tantas
tas técnicos”. A poética de que fala outras. Ao sermos consumidos pelas
Simondon não se encontra no “embe- coisas e processos tecnológicos na so-
lezamento” do objeto técnico, na mo- ciedade marcada pelas tecnologias co-
vimentação do desejo para o consumo municativas (TICs), temos nossas per-
estrito, utilitário, mas na maneira como cepções transformadas, nossas percep-
expressa o mundo a partir do acopla- ções conceituais, nossos afetos e o des-
mento homem-tecnologia, na gênese, locamento do eu formando um supereu
na tecnicidade operada no processo in- pós-moderno (ŽIŽEK, 1999). Este su-
ventivo, na figura que surge de um pereu pós-moderno e as linguagens tec-
fundo como problema a ser resolvido, nológicas que o formam por consumi-lo
em que a intuição técnica se apresenta vem como um “pacote de ofertas”: ao
e se faz mais potente quando aliada ao sermos consumidos e consumindo tam-
pensamento filosófico. Como dito em bém estamos no reino da pós-verdade,
outra ocasião, “trata-se, em última ins- das Fake News (não entendemos o mo-
tância, da invenção concebida a par- tivo do eufemismo para mentira; talvez
tir de um ponto de vista sociopolítico esta doa mais), de teorias conspirató-
rias estúpidas de todos os tipos – filo-

412 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 405-418
ISSN: 2317-9570
A URGÊNCIA DA FILOSOFIA EM CURSOS SUPERIORES DE TECNOLOGIA: PARA ALÉM DA PRAGMÁTICA DA
EFICIÊNCIA E DA NORMATIVIDADE

sofia da história para as massas como estudo é uma aposta (aqui pascalina) em
diz Safransky (2010). Se no mundo, nos construções de formas de vida a permi-
tempos e espaços produtivos dos sécu- tir pensar outras configurações sociais,
los XIX e boa parte do XX disciplinava- políticas, culturais e, sim, tecnológicas.
se o corpo, disciplinava-se o trabalho, o Problemáticas sobre a tecnologia
próprio fazer dos atos e processos, hoje como forma de pensamento despon-
estamos em novo patamar: o disciplina- tam. Tecnologia como linguagem – e
mento dos desejos e das vontades (DAR- sempre no plural como assinalado e
DOT; LAVAL, 2016). O próprio tempo indicado – pressupõe retirar-lhe ins-
livre da etimologia da escola é atacado. trumentalidade e colocá-la no meio do
A máquina de guerra filosófica adentra “jogo humano”. Logo acima falamos de
neste campo tomando a linguagem das potencialidades de novas configurações
tecnologias para indagar e ousar reen- políticas, sociais, culturais e tecnológi-
trâncias possíveis. cas. No entanto, em hipótese alguma
Já desenvolvemos em outras oportu- isso é permitido enquanto a tecnologia
nidades problemáticas sobre a tecno- for uma subordinação meramente ins-
logia e as técnicas como linguagens3 e trumental e produtiva e todos os cur-
como tais, formas de “confiscar” a sub- sos que as ministram (direta ou indi-
jetividade atravessada. Não compreen- retamente) continuarão a repetir uma
demos a formação de qualquer sujeito e forma de subsunção: não aquela do ho-
sua subjetividade sem o outro. Sempre mem à máquina, mas do fazer tecnoló-
haverá, por sermos linguagem e pro- gico a uma concepção que lhe escapa,
cessos sociais, um alienar-se no outro, não lhe é própria. Por serem formas
a formação do eu como processo para- de linguagem, as tecnologias devem
noico como em Lacan (SAFATLE, 2017). ser pensadas como qualquer outro pro-
O centro nervoso da indagação é en- cesso humano e de construção social tal
tender o que deste atravessamento nos como cinema, música, pintura, relações
leva para uma diferença, para processos sociais etc.
produtores de formas de vida menos Em documentário de Werner Herzog
empobrecedores da liberdade e seu de- sobre a caverna de Chauvet mostram-se
sejo. Também não se nega aqui o fato da as pinturas e como o diretor fica ma-
escolha, a escolha como processo do su- ravilhado diante das mesmas (FREIRE,
jeito assim colocado por diversos pensa- 2018). Destacamos aqui o bisão de 8
dores: Pascal, Sartre, Walter Benjamin. pernas, o bisão em movimento. Por
Mais uma vez a filosofia e seu ensino- meio deste exemplo e outro a seguir

3 Dizemos linguagens, uma vez que nunca se pode dizer tecnologia no singular. Sendo que tecnologia é linguagem como defendemos
há algum tempo (DOTI, 2018a, 2018b, 2018c) elas serão sempre plurais. A questão de articulação de tecnologias e dos seus gadgets
é outra, pois transformamos linguagens e, portanto, as interações humanas sobre elas.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 405-418 413
ISSN: 2317-9570
MARCELO MICKE DOTI; EMERSON FREIRE

poderemos confeccionar uma crítica ao ovos coloridos, nos ícones, na própria


conhecimento tecnológico e especificar catedral de São Basílio se estivermos
mais ainda o entendimento da filosofia em Moscou. Parte dessa riqueza de co-
dentro de cursos tecnológicos e todos res, assim como dos cantos e do pró-
aqueles aplicados. prio misticismo transparece na música
Neste caso do bisão o pintor nesta programática de Rimsky-Korsakov, A
caverna queria mostrar o movimento e Grande Páscoa Russa, o opus 36. Não se
sua beleza. Narrar essa beleza só po- pretende uma análise musical e nem as
dia ser feita usando uma técnica desco- motivações de Rimsky-Korsakov na ela-
lando o real da representação. A beleza boração, ou melhor, na tessitura desta:
surge não como ser, mas como narra- tessitura, pois a partitura musical é um
tiva e narrativa somente possível de ser tecer de notas. E o que é uma partitura
posta no mundo pela técnica da pin- musical e suas notas, o pentagrama ou
tura. O essencial para nós neste ponto pauta musical, a escalas, os acordes, os
é demonstrar a cadeia de continuidade diversos instrumentos e a regência, os
entre olhar, pintar e expressar. A téc- andamentos, senão técnicas? E o som
nica não é mediação, a técnica não é ins- que nos chega aos ouvidos não seria
trumento. Neste passo, mesmo Marx, possível sem esse processo. Há, no en-
foi refém da filosofia idealista alemã e tanto, diferença muito grande em pen-
sua cadeia de mediações (CHAUÍ, 2018, sar o autor e a música final apenas me-
p. 404). Assim a técnica, por ser lingua- diadas pela técnica: esta é linguagem
gem, é também trabalho do afeto: seu essencial do processo e dentro de uma
desenrolar como linguagem e não ins- sociedade tecnológica capturar essa lin-
trumentalidade é afeto, envolvimento guagem é capturar a “fabricação do hu-
com os processos. Se esse afeto é exteri- mano”.
orizado da subjetividade e a torna uma Não sendo pretensão a análise da
pulsão de morte4 , torna-se um afeto peça em questão – o op. 36 – e sim sua
deslocado e usado pelo outro para a do- tessitura, é notável como os instrumen-
minação e a legitimação desta. tos entretecendo-se de forma melancó-
Dadas as características diferentes do lica e armando solos em um leve des-
cristianismo ortodoxo, a Páscoa Russa pertar para as festividades e um grande
é muito colorida: seja nas vestes, nos alegro que se segue. Seria a representa-

4 A pulsão de morte é conceito desenvolvido por Freud para explicar as formas pelas quais os sonhos, por exemplo, não são mais
realização de desejos, são expressões do trauma. A pulsão de morte é a morte do próprio desejar. Por meio dela repetimos incessan-
temente nossos traumas de forma inconsciente. Neste caso queremos enfatizar o repetir cotidiano não apenas como as necessidades
de viver por meio das repetições do trabalho, mas este trabalho tornado trauma, a técnica e as tecnologias tornadas afetividades do
tempo em um eterno retorno do mesmo, uma repetição sem diferença.
5 A questão da representação em arte é complexa e não cabe neste espaço, mesmo porque não se tem intenção de falar da mesma
e por isso apenas assinalamos como potencialidade interpretativa e não “o que foi dito pelo músico”. Mesmo esta frase é passível de
discussão uma vez que o mais importante da linguagem artística é o significante e não o significado: é isso que lhe confere abertura.

414 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 405-418
ISSN: 2317-9570
A URGÊNCIA DA FILOSOFIA EM CURSOS SUPERIORES DE TECNOLOGIA: PARA ALÉM DA PRAGMÁTICA DA
EFICIÊNCIA E DA NORMATIVIDADE

ção5 da festa até a Ressureição. A es- felizmente), mas isso não tira as po-
colha da música de Rimsky-Korsakov tencialidades desse dia a dia e nem
foi casual e não a música: linguagem mesmo joga no lixo a linguagem co-
sem imagem, para nós assemelha-se à mum e exorta aos céus a linguagem ar-
técnica. O compositor russo ao colo- tística. Por isso “faltam-nos poetas téc-
car sons em uma imagem cultural (a nicos”. Neste caso o cowboy cibernético
festa da Páscoa) usou técnicas de seu de Neuromancer (GIBSON, 2016) desa-
repertório formativo, de sua Bildung. fiando as megacorporações e colocando
Usou também instrumentos musicais para si um espaço de construção às mar-
tecendo os sons em uma paleta de co- gens, desestabilizando os sistemas in-
res6 notável. Estes, os instrumentos formáticos, entende mais de filosofia
musicais, são tecnologias de modulação da tecnologia e o sentido de liberdade
do som: cada um com seu próprio tim- que esta deveria ter do que conceitua-
bre e gama de sons. Rimsky-Korsakov, dores de ementas disciplinares em cur-
então, usa de suas técnicas para modu- sos tecnológicos. É este cowboy de Wil-
lar esses sons fazendo música. O resul- liam Gibson alguém que procura não se
tado não é apenas o op. 36, mas um cir- deixar consumir: o oposto de Naomi e
cuito construtivo da técnica como parte Nathan do romance de David Cronen-
do processo e produção do novo, não berg (2014).
como meio: trata-se de metafísica da
imanência.
Poderia se dizer: “mas tudo isso é ou- 4. Conclusão: Prometeu acorrentado
tro domínio, da pintura, da música!?” novamente?
Teríamos uma afirmação/interrogação
ao mesmo tempo expressando a incom- No seu já clássico livro, Prometeu De-
preensão de que a tecnologia, as técni- sacorrentado, David Landes desenvolve
cas, não são meios, não são utilidades com exuberância de dados um perfil
como já aparecia como parte da con- e panorama históricos das transforma-
tradição para Simondon: utilidades e ções tecnológicas dos últimos 150 anos
dominação. São linguagens e não es- à data da publicação da obra (LANDES,
sências, são linguagens e não substan- 1994). Aliás, não seu único livro na área
cialmente diferente de outras. Não fa- (LANDES, 1983) consagrando-o como
zemos em nosso dia a dia poesia (in- grande historiador da economia e das
transformações tecnológicas e sociais.

Para a linguagem tecnológica não seria a mesma coisa? Isso demandaria outro texto não tendo pertinência agora.
6 Não usamos casualmente aqui a sinestesia: trata-se de técnica linguística, uma figura de linguagem – muito usada pelos sim-
bolistas – para construir imagens novas, conceitos novos em uma profusão de ideias. Em outros termos, utilizamos uma espécie de
metalinguagem neste artigo: palavras que falam sobre palavras para construir conceitos sócio-político-culturais destacando a filosofia
e os cursos tecnológicos.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 405-418 415
ISSN: 2317-9570
MARCELO MICKE DOTI; EMERSON FREIRE

Tamanho grau e qualidade das trans- modernidade são esfacelados, entre eles
formações tecnológicas não se dão ao a democracia e a interrogação (DUN-
acaso: resultado de profundas transfor- KER, 2019).
mações socioeconômicas. Numa espiral As tecnologias e técnicas mais sofis-
crescente de fluxos de múltiplas deter- ticadas podem promover mais ainda a
minações e influências de fatores his- especialização e a interdisciplinaridade
tóricos, sociais, políticos, econômicos e tão propalada acaba por ser pura dis-
culturais, essas transformações nos tra- ciplina, apenas uma palavra para so-
zem ao século XXI e sua cultura di- fisticar o discurso ou formar um tra-
gital: o número de publicações sobre balhador múltiplo de afazeres, mas ce-
o assunto é praticamente inesgotável. gado diante do conhecimento. Talvez
E não cabe agora o envolvimento com mais que isso: e se a interdisciplinari-
a cibercultura (LÉVY, 2010; LEMOS, dade não for apenas disciplina no sen-
2007) fruto das transformações digitais tido de um aprendizado, mas discipli-
e de profundo impacto nos afetos, senti- namento no sentido de sujeição e perda
dos, imaginação, cognição, percepção e das capacidades cognitivas e indagati-
nas gramáticas psicanalíticas e seu mal- vas? Diante de cenário assim deline-
estar (BIRMAN, 2012; 2017). Impor- ado, coloca-se a filosofia como esforço
tante é destacar um dos resultados in- urgente e necessário em cursos de for-
felizes dessas transformações: a especia- mação de tecnólogos. Mas não só nes-
lização acadêmica estrita. Esta promove tes: em todos os cursos de ciências da
a perda da integração e do ideal uni- natureza, de ciência aplicada e de ci-
versal e da Universidade, das diferenças ências sociais aplicadas. Estes – como
e das conquistas democráticas. Tam- administração e economia, por exem-
bém em uma espiral crescente nos úl- plo – possuem triste trajeto de construir
timos anos: o WhatsApp, por exemplo, “verdades” sociais e econômicas pouco
a serviço da desinformação e transfor- claras, em puro determinismo tangen-
mado em veículo de informações verí- ciando o absurdo: mercados autorregu-
dicas destruindo um dos possíveis pi- láveis, dívida pública e tetos de gastos
lares democráticos da imprensa livre. como obra essencial de “saneamento”
Pior do que isso: tal veículo de comu- do Estado, entre outras.7
nicação destrói a fala. Não existe fala A questão da especialização e sua
no WhatsApp, pois não há diálogo: este articulação com as tecnologias não é
exige a presença e sem esta os ideais da problemática tão somente do conheci-

7 Impossível não destacar a própria palavra e seu estar entre aspas: saneamento como parte de uma metáfora biológica, o Estado
como corpo que precisa ser sanado, estar são. E isso é obra e tarefa dos especialistas, dos tecnocratas. O problema desse discurso sa-
bemos sempre qual é: cortes e defecção de políticas públicas com exclusão das organizações da sociedade civil e de toda a sociedade
nas decisões, ou seja, destruição das próprias bases da democracia.

416 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 405-418
ISSN: 2317-9570
A URGÊNCIA DA FILOSOFIA EM CURSOS SUPERIORES DE TECNOLOGIA: PARA ALÉM DA PRAGMÁTICA DA
EFICIÊNCIA E DA NORMATIVIDADE

mento particularizado. Não se trata nico, como perigosa, produtora de ali-


apenas de investigar os objetos técni- enação. É como se o tecnólogo estivesse
cos e as tecnologias como linguagens e intimamente ligado ao pensamento fi-
demonstrar seu caráter narrável dentro losófico, como se, idealmente, o filósofo
da filosofia. A especialização e sua ra- necessitasse ser também um tecnólogo
dicalidade em um entroncamento “tec- e vice-versa, um caminho da civilização
nicista” tornam-se problema social e de (re)integrar os objetivos técnicos à cul-
sobrevivência das apostas no projeto da tura. Não por acaso Simondon recobra
modernidade, da universalidade, inte- os pré-socráticos, principalmente a es-
gração dos saberes, do diálogo (atraves- cola jônica, como sendo formadora dos
samento do logos em seu sentido grego, primeiros “engenheiros”, “tecnólogos”,
não um genérico falar) e da democracia, “técnicos por excelência”.
dos limites do progresso humano, para Uma educação superior em tecnolo-
retomar o artigo citado anteriormente gia concebida dessa maneira tecnicista
de Simondon. só reforça o círculo vicioso que começou
É em outra chave a discussão sobre a abranger a formação cada vez mais
progresso que propõe Simondon, não cedo, já nas séries iniciais do ensino
aquela tecnicista da desgastada e re- fundamental, com a ideia de uma su-
corrente posição positivista em relação posta profissionalização futura aliada
aos objetos técnicos, mas um desloca- ao uso utilitário das tecnologias, den-
mento para o processo de individua- tro de uma lógica de criação de sub-
ção em relação à concretização objetiva. jetividades que incorporam a tecnolo-
Sem essa articulação necessária, reali- gia ou o humano escravizados, uma ló-
zada por uma atividade simbólica, ana- gica não emancipadora em sua rela-
lógica, reflexiva, transdutiva, com con- ção com a cultura, naturalizando mo-
ceituaria Simondon, próprias ao pensa- ralmente essa escravização via o con-
mento filosófico, mantém-se a aliena- sumo tecnológico espetacularizado.
ção, que nesse caso não se trata ape- Nestas interfaces de conhecimento e
nas da alienação do trabalho em rela- sociedade e de discursos laudatórios do
ção ao capital, mas aprofunda-se em saber especializado – potencializados
uma alienação frente à técnica, à tec- ao extremo nos cursos de formação su-
nologia, uma desconexão perversa en- perior de tecnólogos – julga-se o saber
tre cultura e técnica. Por isso Simondon da filosofia tão importante e urgente.
vê a formação especializada, calcada no Não se pode acorrentar Prometeu sem
tecnicismo e que desconsidera essa rup- pagar um preço social e cognitivo muito
tura entre cultura e técnica, entre pen- alto por isso.
samento filosófico e pensamento téc-

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 405-418 417
ISSN: 2317-9570
MARCELO MICKE DOTI; EMERSON FREIRE

Referências
BIRMAN, Joel. O sujeito na contemporaneidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.
_________. Arquivos do mal-estar e da resistência. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017.
CHAUÍ, Marilena. “O desafio filosófico de Espinosa”. In: NEGRI, Antonio. A anomalia selvagem: poder e potência em
Espinosa. São Paulo: Editora 34/Politeia, 2018.
CRONENBERG, David. Consumidos. Rio de Janeiro: Objetiva/Alfaguara, 2014.
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo: comentários sobre a sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto,
1997.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol. 5. Tradução Peter Pál Pelbart e Janice
Caiafa. São Paulo: Editora 34, 1997.
DOTI, Marcelo Micke. Onde começa a EPT. In: FREIRE, E.; VERONA, J. A.; BATISTA, S. S. S. Formação Tecnológica:
extensão e cultura. Jundiaí: Editora Paco, 2018a.
_________. Tecnologias como linguagem: configurações atuais da sujeição e dominação. In: II SIMPÓSIO NACIONAL
EDUCAÇÃO, MARXISMO, SOCIALISMO, n. II, 2018b, Belo Horizonte, UFMG.
Disponível em <https://www.simposioedumarx.com.br/trabalhos-completos-mesas-de-discus> Acesso em: 23 de
outubro de 2018.
_________. “Técnica como linguagem e escrita do mundo”. In: Revista Eletrônica de Tecnologia e Cultura (RETC), Jundiaí,
22ª edição, parte II, dezembro de 2018c.
DOR, Joël. Introdução à leitura de Lacan: o inconsciente estruturado como linguagem. Porto Alegre: Artmed, 1989.
DUNKER, Christian Ingo Lenz. “Psicologia de massas digitais e análise do sujeito democrático”. In: VVAA. Democracia
em risco? 22 ensaios sobre o Brasil hoje. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
FREIRE, Emerson. “’Faltam-nos poetas técnicos’: em direção a uma formação tecnoestética”. In: FREIRE, E.; VERONA,
J. A.; BATISTA, S. S. S. Formação tecnológica: extensão e cultura. Jundiaí: Editora Paco, 2018.
GIBSON, William. Neuromancer. São Paulo: Aleph, 2016.
GLEICK, James. A informação: uma história, uma teoria, uma enxurrada. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
GUATTARI, Félix. Cartographies schizoanalytiques. Paris: Éditions Galilée, 1989.
LANDES, David S. Revolution in time: clocks and making of teh modern world. Cambridge/London: Harvard University
Press, 1983.
_________. Prometeu desacorrentado: transformação tecnológica e desenvolvimento industrial na Europa ocidental desde 1750
até nossa época. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994.
LEMOS, André. Cibercultura: tecnologia e vida social na cultura contemporânea. Porto Alegre: Sulina, 2007.
LÉVY, Pierre. As tecnologias da inteligência: o futuro do pensamento na era da informática. Ed. 2. São Paulo: Editora 34,
2010.
_________. Cibercultura. Ed. 3. São Paulo: Editora 34, 2010.
_________. O que é o virtual? Ed. 2. São Paulo: Editora 34, 2011.
SAFATLE, Vladimir. Introdução a Jacques Lacan. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.
SAFRANSKI, Rüdiger. Romantismo: uma questão alemã. São Paulo: Estação Liberdade, 2010.
SIMONDON, Gilbert (1968). “Entretien sur la Mécanologie”. In. Revue de Synthése, tome 130, 6a. série, no. 1, 2009, p.
103-132.
_________. Du mode d’existence des objets techniques. Paris: Aubier - Montaigne, 1969.
_________. "Les Limites Du Progrès Humain". Cahiers Philosophiques. Centre National de Documentation Pédagogique,
no. 42 (1990): 7-14.
SODRÉ, Muniz. Ciência do comum: notas para o método comunicacional. Petrópolis: Vozes, 2018.
TÜRCKE, C. Sociedade excitada: filosofia da sensação. Campinas: Editora da Unicamp, 2014.
WIENER, Norbert. Cibernética e Sociedade: o uso humano de seres humanos. Traduzido por José Paulo Paes. 2 ed. São
Paulo: Cultrix, 1968.
_________. Cibernética. Ou Controle e Comunicação no animal e na máquina. Traduzido por Gita K Ghinzberg. São Paulo:
Editora Polígono, 1970.
ŽIŽEK, S. “O supereu pós-moderno”. In: Folha de São Paulo, São Paulo, 30 de dezembro de 1999. Caderno Especial.

Recebido: 30/09/2019
Aprovado: 22/07/2020
Publicado: 30/12/2020

418 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 405-418
ISSN: 2317-9570
DOI: https://doi.org/10.26512/rfmc.v8i2.32413

Sobre Revelação e Instrução do Povoi

Friedrich Wilhelm Joseph Schelling

Tradução
Luiz Filipe da Silva Oliveiraii

Apresentação

O seguinte texto de Schelling, publi- logo alemão mais famoso da época (JA-
cado em 1798 no Philosophischen Jour- COBS, 1981, p. 63). O mais novo texto
nal, no qual Fichte era editor, foi conce- de Niethammer tocava novamente em
bido como resenha da dissertação que pontos caros a esses teólogos e é prová-
Niethammer, também editor do refe- vel que o texto que aqui apresentamos
rido jornal, produziu com o intuito de tradução tenha nascido de uma pro-
conseguir ocupar a cátedra de Teolo- messa de Schelling de contribuir a favor
gia da Universidade de Jena, o que aca- de Niethammer nessas disputas com a
bara tornando vaga a cátedra de Filoso- escola teológica de Tübingen (SCHEL-
fia que pouco tempo depois seria ocu- LING, 1913, p. 60). A reação negativa
pada por ninguém menos que o pró- por parte destes aos princípios de Ni-
prio Schelling (JACOBS, 1981, pp. 50- ethammer, elaborado anteriormente e
53). Para além desta conveniência, o reforçado agora, seria, então, a oportu-
texto que Niethammer publicara em nidade que Schelling tivera de lançar
1795, intitulado A religião como ciên- seu aporte à questão tão cara ao seu
cia, havia sido mal recebido pelos teó- amigo. É bem provável também que
logos acadêmicos da Universidade de o presente texto tenha passado por um
Tübingen, figurados nas pessoas dos ir- escrutínio apurado por parte dos edi-
mãos Flatt, agindo sob a tutela de G. tores, Niethammer e Fichte, preocupa-
C. Storr, que provavelmente era o teó- dos com a censura cada vez mais pro-

i Publicado primeiramente no segundo volume Philosophischen Journal de 1798. A presente tradução tem como fonte a seguinte
versão: SCHELLING, F. W. J. Ueber Offenbarung und Volksunterricht [1798]. In: Sämmtliche Werk. Stuttgart/Augsburg: J. G.
Cotta’scher Verlag, 1856, v. 1, pp. 474-482.
ii Doutorando em Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Graduado em Filosofia e Ciências Humanas
pela Universidade Federal de Juiz de Fora UFJF), e mestrado em Filosofia pela (UFJF). E-mail: luizfilipe3r@gmail.com. ORCID:
https://orcid.org/0000-0002-2790-8452.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 457-484 419
ISSN: 2317-9570
FRIEDRICH WILHELM JOSEPH SCHELLING

eminente. Não é de se estranhar pois, era que a teoria kantiana dos postula-
pouco tempo depois, deflagraram-se dos da razão prática pura não se opu-
as malfadadas discussões que ficaram nha àqueles princípios, mas os refor-
conhecidas como Querela do ateísmo çava, na medida em que concebia a exis-
(Atheismusstreit), cujo estopim deu-se tência de Deus paralelamente à ideia do
por causa de um artigo intitulado De- sumo bem. Dentro da teoria moral de
senvolvimento do conceito de religião, de Kant, sendo a lei moral o único fun-
autoria de Friedrich Karl Forberg, pu- damento determinante da vontade, a
blicado no próprio Philosophischen Jour- ideia do sumo bem deveria servir como
nal na edição anterior a que aparecera o objeto necessário da razão prática, so-
texto de Schelling em questão.3 Como mado ao pressuposto da imortalidade
bem se sabe, Fichte, responsável pela da alma, postulado de um aperfeiçoa-
sua publicação, tivera que arcar tam- mento moral infinito. De acordo com
bém com as consequências dos pensa- tais teólogos, tal como na filosofia kan-
mentos publicadas ali.4 tiana, as justificações da existência de
A irrupção destas disputas naquele Deus não eram dadas a partir de um
contexto é importante por figurar o es- ganho teórico, mas reveladas a partir
pírito acirrado que marcara a relação da fé. Alegava-se, então, conformidade
entre as ideias iluministas, alastradas com o princípio kantiano no qual a lei
desde Kant, e o trabalho de alguns, moral não se deixava determinar por li-
principalmente os teólogos da escola de berdade, uma vez que, para eles, essa
Tübingen, que necessariamente se alia- fé não consistia num fruto de uma livre
ram a uma versão bastante heterodoxa escolha, mas sim em revelação. Neste
de Kant com a pretensão de se mante- sentido, tal como a ideia de Deus, todos
rem ortodoxos quanto a religião. Schel- os dogmas possíveis eram justificados
ling participou diretamente daquelas por aqueles como postulados da razão
disputas e o seguinte texto abarca bem prática.5
os principais pontos da discordância do Acusando-os de tentar “reintroduzir
autor com aqueles teólogos, que pre- pela porta dos fundos o que foi reti-
tendiam salvaguardar os princípios da rado da filosofia pela porta principal”,
doutrina cristã com base no conceito de ou seja, de realizar um “contrabando”,
revelação. Grosso modo, a ideia geral Schelling rebate boa parte do aparato

3 A respeito dos principais textos envolvidos nesta Querela, Cf. J.G. Fichte and the Atheism Dispute (1798–1800).
4 Heinrich Heine, em seu Contribuição à História da Religião e Filosofia na Alemanha, invocando o “reconciliador” Goethe, disse que
para esse o reprovável seria mais a “palavra”, e não o “pensamento”, ou seja, reprovava apenas que aquilo que existia em pensamento
tivesse sido dito, tornado público (HEINE, 1991, p. 108).
5 A crítica de Schelling ao destino que a filosofia kantiana vinha recebendo até então na boca de muitos teólogos, comparados a er-
vas daninhas [ausjäten], que pretendiam legitimar certos dogmas, como a revelação, como um postulado prático, pode ser observada
também na carta deste a Hegel, datada de 6 de janeiro de 1795 (SCHELLING. 1952, p. 13-15).

420 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 419-427
ISSN: 2317-9570
SOBRE REVELAÇÃO E INSTRUÇÃO DO POVO

conceitual dos teólogos da escola de Tü- “meio externo auxiliar da moralidade”,


bingen alegando que o conceito de re- o que solaparia com qualquer possibili-
velação, tal qual pensado por aqueles, dade de liberdade.
entre outras coisas, serviria como um

Referências
BOWMAN, Curtis; ESTES, Yolanda (Ed.). J. G. Fichte and the atheism dispute (1798–1800). Rou-
tledge, 2016.
HEINE, Heinrich, Contribuição à História da Religião e Filosofia na Alemanha, São Paulo: Iluminuras,
1991.
JACOBS, Wilhelm. Offenbarung und Vernunft. Über Friedrich Immanuel Niethammers Religions-
kritik. In: Philosophisches Jahrbuch nº 88, 1981.
SCHELLING, F. W. J. Ueber Offenbarung und Volksunterricht [1798]. In: Sämmtliche Werke. Stutt-
gart/Augsburg: J. G. Cotta’scher Verlag, v. 1, 1856.
______. BrSchellings an Niethammer vom 24. April 1798. In: Schellings Briefwechsel mit Niethammer
vor seiner Berufung nach Jena, Leipzig: Meiner, 1913.
______. Brief Schellings na Hegel vom 6. Januar 1795. In: Briefe von und an Hegel, Hamburg: Felix
Meiner Verlag, 1952.

Tradução

As breves observações que trago centes, poderia servir como uma leitura
sobre os objetos em questão foram es- saudável a estes em particular). No que
critas por ocasião das Doctrinae de reve- se segue, o que eu disse contra esta va-
latione modo rationis praeceptis consenta- riante [Abart] de filosofia foi tirado na
neo stabiliendae periculum, de 1797, de maioria dos casos desse tratado. O res-
Niethammer (um escrito que, devido à tante deve ser colocado apenas em mi-
rigorosa consequência com que enerva nha conta.
a pseudo-filosofia dos teólogos mais re-

***

É chegado o tempo de, finalmente, tulado da razão prática, pois a alegada


deixarmos de considerar o conceito de necessidade prática ou aceitabilidade
revelação uma ideia da razão ou um pos- de uma revelação já se encontra redu-

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 419-427 421
ISSN: 2317-9570
FRIEDRICH WILHELM JOSEPH SCHELLING

zida à necessidade ou aceitabilidade de cos ao livre campo aberto dos conceitos


um meio externo auxiliar da morali- naturais e apresentar a prova teórica de
dade (o mesmo deve ser a revelação). sua realidade, como a de qualquer ou-
Disso, duas coisas são presumidas: pri- tro objeto natural.
meiro, que esse auxílio seja necessário Assim, também, agora este termo
[bedürfe] em geral, uma proposição que é restaurado à sua antiga dignidade, no
deve ser banida sem piedade da ver- qual os consequentes teólogos do pas-
dadeira moralidade como incompatível sado, infinitamente superiores aos nos-
com a liberdade e pureza da determina- sos semifilosófos, tentaram mantê-lo
ção moral, pois não há nenhum simples com firmeza. Porque, embora eles tam-
suporte externo à moralidade, e o que é bém pensassem em argumentos morais
um auxílio da moralidade não é por si para a existência de uma revelação, per-
mesmo, mas porque e na medida em que ceberam que a realidade deste conceito
desejamos. Neste sentido, porém, pro- repousaria sobre pilares demasiado fra-
vavelmente não haverá nada no mundo cos, caso não pudessem conferir a ele
que não possa tornar-se um suporte da uma legitimidade teórica.
moralidade. Mas se a revelação (e esta é Além disso, essa mesma filosofia
a segunda coisa que se pressupõe) é um (se me permitem empregar aqui este
auxílio anterior e preferencial a todos os nome tantas vezes mal-empregado),
outros, ela deve ser por sua própria natu- que mantém a revelação como um pos-
reza e em si mesma de modo a não de- tulado prático, deve ter conceitos com-
pender de nossa boa vontade (de nossa pletamente errados sobre a natureza e a
liberdade); deve ser tal porque existe; e essência dos postulados práticos. Uma
tem que ser tão absolutamente necessá- vez que grande parte desses filósofos
ria para nossa moralidade quanto é res- confessa abertamente que a realidade
pirar para nossas funções vitais, porque teórica desse conceito parece muito em-
se o seu uso como suporte depender da baraçosa [mißlich], que é inconstrutível
nossa livre decisão, então este uso para pela razão teórica, ou seja, que é abso-
fins morais pressupõe a própria morali- lutamente irracional, e uma vez que es-
dade; onde, portanto, tal remédio pode ses mesmos filósofos sonham com uma
atuar, não deve ser aplicado e, quando realidade prática desse conceito, eles
aplicável, já não é mais necessário. devem estar na ilusão de que o que é
Assim, o defensor da necessidade teoricamente irracional pode ser prati-
moral de uma revelação é finalmente le- camente racional (o que eles poderiam
vado por si próprio a demonstrar, antes pensar?). De acordo com meus pró-
de tudo, a existência de uma revelação; prios princípios, seria inútil investigar
pode-se forçá-lo a trazer este conceito algo aqui: seu único fundamento é que
dos esconderijos dos postulados práti- eles acreditam que a essência do kan-

422 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 419-427
ISSN: 2317-9570
SOBRE REVELAÇÃO E INSTRUÇÃO DO POVO

tismo (não querem parecer obsoletos) rico (de um saber de um existente).


consiste em reintroduzir pela porta dos Ao mesmo tempo - permitam-me
fundos (dos postulados práticos) o que acrescentar isso por minha conta - eles
foi retirado da filosofia pela porta prin- pressupõem no espírito humano uma
cipal. Neste contrabando introduzido receptividade contrária a toda a sua na-
pelas costas esses filosofástros [Philo- tureza. Pois, como a essência do es-
sophastern] também incluem o conceito pírito consiste em atividade, ela só é
de revelação. Por um fim a esse tráfico suscetível àquele sofrimento que em ou-
ilícito, sobre o qual só um acordo entre tros aspectos é ao mesmo tempo um fa-
homens que pensam de forma máscula zer, ou seja, não se pode pensar em ne-
e ávida, tem sido, parece-me, o princi- nhuma passividade absoluta no espírito
pal objetivo do tratado acima referido. humano, e todo conceito que pressupo-
Hoje, uma construção teórica do nha uma passividade absoluta no espírito
conceito de postulado prático não pode humano é falso por natureza. – (Qual-
mais ser evitada. Na verdade, é muito quer afirmação transcendente tem aqui
fácil analisar este conceito e distinguir sua pedra de toque em geral) - Mas
as características que lhes foram colo- uma revelação, conforme determinada
cadas, mas essa manobra só pode adiar naquela filosofia, como uma ação real
por um curto espaço de tempo a ques- do ser supremo no espírito humano,
tão acerca do fundamento da realidade não deixa para este último nada além
deste conceito arbitrariamente sinteti- da passividade absoluta; pois o ser su-
zado. Este último fundamento, no en- premo é absolutamente ativo, mas o
tanto, não pode ser outro senão uma correlato necessário da atividade abso-
construção sintética (ou produção ori- luta é a passividade absoluta. Portanto,
ginária) deste conceito. A este respeito, o conceito de revelação, de acordo com
o mesmo diz que ocorre uma influência os próprios princípios desta filosofia, é
individual de Deus no mundo dos sen- completamente falso, pois, do ponto de
tidos e no espírito humano, tal qual, se vista teórico, eles mesmos confessam
pressupõe que o conceito de Deus en- que ele é tão pouco construtível quanto
quanto ser pessoal e individual - e de o conceito de feitiçaria, por exemplo;
fato um ser que é eficaz no mundo sen- mas do ponto de vista prático (em re-
sível - é evidente por si mesmo, onde lação à liberdade) ele se destrói porque
então esses filósofos caem na maior não pode coexistir com a liberdade.
inconsistência, uma vez que anterior- Mas agora esses filósofos querem
mente estabeleceram a ideia da divin- que ele coexista com a liberdade pois
dade possuindo apenas realidade prá- eles estatuem um uso da razão nos as-
tica, isto é, como o objeto de fazer e agir, suntos da revelação. Que isso é im-
não como o objeto de um saber categó- pensável de acordo com seus conceitos,

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 419-427 423
ISSN: 2317-9570
FRIEDRICH WILHELM JOSEPH SCHELLING

eles deveriam ter aprendido há muito que cada um pudesse razoavelmente


tempo com o escrito Sobre religião como pensar sobre religião? Eu me detesta-
ciência, deste mesmo autor [Nietham- ria se, mesmo nos meus escritos, eu ti-
mer], se fossem capazes de um pen- vesse outra finalidade além de realizar
samento consequente contínuo. Não é aquele grande projeto. Mas me deixe
de admirar, portanto, que aqueles que fazer do meu jeito, tal como creio po-
ainda eram capazes de pensar de forma der fazer. E o que é mais simples do
razoavelmente consequente tiveram en- que isso? Não quero que saibas con-
tão que chegar [kommen] a um conceito servar água impura que não possa mais
de revelação mediata. Este conceito, no ser usada. Só não quero que derrames
entanto, já não contém um traço sequer até que saibas onde encontrá-la pura.
do que o conceito de revelação signifi- Com a ortodoxia se estava, graças a
cava originariamente, e é uma hipocri- Deus, bastante à margem. Uma pa-
sia indigna da filosofia querer manter e rede divisória tinha sido desenhada en-
eternizar o nome de uma coisa depois tre ela e a filosofia, por trás da qual cada
que seu conceito desapareceu faz muito uma podia seguir o seu próprio cami-
tempo. nho sem prejudicar a outra. Mas o que
Eles, é claro, agora tentaram em- é feito agora? Derruba-se esta parti-
belezar este procedimento. Mas, como ção e faz-nos, sob o pretexto de nos tor-
de costume, o embelezamento era pior narmos cristãos racionais, filósofos al-
que a coisa embelecida. Lessing tinha tamente irracionais. Concordamos so-
a revelação como um meio de educar o bre o que é falso nos velhos sistemas
gênero humano. O que ele queria di- religiosos; mas não posso dizer contigo
zer com isso bem sabe quem está fa- que estes foram uma miscelânea de es-
miliarizado com o seu espírito. Cer- túpidos e semifilósofos. Eu não conheço
tamente esse imenso e radical espírito nada no mundo onde a engenhosidade hu-
estava infinitamente distante dessa se- mana foi tão praticada e fortalecida do que
mifilosofia depreendida a partir de tal nessa miscelânea de estúpidos e semifilóso-
ideia. Em sua Biografia há muitas pas- fos que agora querem colocar um sistema
sagens de suas cartas que deveriam ser religioso no lugar dos antigos, e, além
como uma espada na alma daqueles ilu- disso, com muito mais influência sobre
minadores que se vangloriavam de ter a razão e a filosofia do que o antigo se
vivido no tempo de Lessing e daque- atribuía”.
les seus descendentes que hoje em dia É bem sabido em que tempo esta
apagam suas fracas luzinhas. “Deve- passagem foi escrita. Lessing escreveria
ria eu invejar o mundo”, escreve ele, de forma muito diferente agora. Porque
“que tentaram iluminar? Eu não de- é que não se deve estar satisfeito agora
veria desejar do fundo do meu coração com o que se passou? Se aquela partição

424 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 419-427
ISSN: 2317-9570
SOBRE REVELAÇÃO E INSTRUÇÃO DO POVO

tivesse permanecido, os supersticiosos signa um público que não tem capa-


poderiam ter desenvolvido silenciosa- cidade ou disposição [Muße] suficiente
mente sua essência. Agora que foi des- para se elevar aos princípios? - Mas a
truída, deve permanecer assim e é pre- que princípios? Ao vosso? Mas con-
ciso assegurar que o caminho duplo que fessais, por exemplo, e não tendes isso
conduz a ambos os lados se torne uma em segredo, que não podeis elevar-vos
estrada real para qual todo mundo des- aos princípios que os outros, em seu
viará. Por que não retiramos a máscara mais perfeito direito, consideram ser os
dos charlatões do povo? Não devemos mais elevados. Portanto, eles calculam
nos deixar levar pelo bando de meias o povo tendo em conta seus princípios
cabeças que amaldiçoam o dia que ama- com o mesmo direito que vós calculais
nhece porque termina o seu negócio de outros tendo em conta os vossos prin-
velas.6 Ou o sol não deveria se levantar cípios. Indignai-vos contra isso - vo-
a fim de que os pirilampos continuem cês infinitamente mais cegos do que o
a brilhar ou a fim de que ainda brilhe cego que conduzem! O que vos dá o di-
uma madeira podre qualquer? reito de elevares acima dos teus irmãos?
Já se falou de enganação. Pois é - Talvez não tenham estado nas acade-
aqui que estão aqueles que escavam o mias, ou não tenham aprendido de me-
conceito de revelação, concordando que mória as línguas orientais ou qualquer
ele ainda tem de ser usado – se não compêndio filosófico? Quereis conduzi-
como espantalho [Popanz] - como uma los sob rédea, vocês que mal tens força
autoridade para o povo. Mas é e con- para conduzir a si mesmos?
tinua sendo uma enganação – engana- Toda a sociedade de propósito re-
ção com coisa santa – utilizar uma au- ligioso é uma sociedade completamente
toridade da qual se está convencida a de iguais. Na verdade, por mais que isso
nulidade. Ao supor que tal uso tivesse possa ferir os padres orgulhosos, não há
inicialmente alguma utilidade (embora nenhum professor e nenhum aluno aqui.
isso seja impossível, pois elimina a for- Apenas as verdades que se presume
mação da autonomia), o fim sacraliza ser da crença de todos serão revigora-
os meios, e não se tornará este falso das pela confissão comunitária (onde
meio, por consequência, destrutivo em mesmo um fala em nome de todos), e
relação ao seu objetivo mais elevado? as sensações nas quais todos se dizem
Agora, além disso, esse conceito de povo penetrados, mais fortemente evocadas.7
é um conceito muito relativo. “Ele de- O Estado não pode impedir os cidadãos

6 Na grande Sala de Concertos de Leipzig, decorada com pinturas do Sr. Oeser, especialista em alegorias, entre outros, o impulso
[trieb] iluminista é representado mediante o quadro de um menino alegre que - purifica a chama com uma tesoura, “para que”, diz o
explicador, “a luz do conhecimento brilhe mais sobre todos os olhos” (Cf. Leipzig. um manual para viajantes, de Claudius).
7 Refiro-me aqui inteiramente a Doutrina dos costumes de Fichte (p. 475), onde o mesmo é dito e comprovado.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 419-427 425
ISSN: 2317-9570
FRIEDRICH WILHELM JOSEPH SCHELLING

de se entregarem a essa unificação [Ve- diversas em que essa síntese originária


reinigung]. Mas pode evitar que nesta se desenvolve sucessivamente. Ou, na
sociedade surjam conflitos, desacordos medida em que a razão, inversamente,
e, portanto, escândalos. Por isto apenas, vai da evolução particular à involução
não porque se acredite que seja mais sá- mais originária, sua função é empírica.
bio do que aquilo a que se chama o povo, O produto da razão em sua função ab-
os princípios não podem ser objeto de soluta é o mundo efetivo, em sua função
investigação numa sociedade como esta. empírica é o [mundo] ideal.
O que é ensinado aqui é assumido como Então, uma vez que tudo o que
reconhecido. No entanto, toda instru- ocorre na realidade efetiva é apenas
ção que não é baseada em princípios é o desenvolvimento de uma razão abso-
de natureza histórica. Presume-se que luta, devemos encontrar em toda parte
existam as ideias que revigoram a as- da história, e especialmente na histó-
sembleia religiosa enquanto um poder ria do espírito humano, o rastro dessa
moral (desde os tempos antigos) entre a razão absoluta que se manifestará a nós
humanidade; e é uma fortuna peculiar do ponto de vista empírico (meramente
até para os povos mais cultos se hou- prático) como providência que organizou
ver um documento religioso do mundo tudo previamente, tal como o encontra-
antigo no qual essas ideias estão re- mos na realidade efetiva.
gistradas historicamente. A história da É por isso que nas filosofias e reli-
religião é então uma espécie de reve- giões do mundo antigo ainda vamos en-
lação ou representação simbólica des- contrar inconscientemente e não com-
sas ideias, assim como toda a história pletamente desenvolvido, por assim di-
do nosso gênero não é nada mais que zer, o que se desenvolveu em nós cons-
o desenvolvimento do plano moral do ciente e de modo completo, e será fá-
mundo que devemos aceitar como pre- cil reconhecer nesses monumentos (se
destinado pela razão (na medida em forem documentos da religião popular)
que é absoluto). Então – o que digo nossas ideias (i.e. a razão universal).
aqui também serve para explicar ou- Também não compreendo de outro
tras afirmações - a razão pode em ge- modo o que é dito sobre o uso racional
ral ser considerada numa dupla fun- da revelação no tratado referido acima
ção. Ou é considerada [em sua fun- (como resultado da investigação).
ção] absoluta, onde, neste sentido, não Uma vez provada que as condi-
é nada mais do que a síntese originá- ções de construção de um conceito são
ria da qual em séries infinitas o parti- falsas ou impossíveis, este deve desa-
cular evolui e, assim, todos os fenôme- parecer do sistema dos conceitos. -
nos do mundo exterior e todos os even- Além disso, o conceito de revelação não
tos da história são nada mais que séries pode reivindicar sua dignidade cientí-

426 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 419-427
ISSN: 2317-9570
SOBRE REVELAÇÃO E INSTRUÇÃO DO POVO

fica. Isso o autor acima mencionado rido escrito e mostrou que se esse já não
já havia afirmado de modo irrefutável encontra mais um lugar em nenhum
anteriormente no escrito “Sobre a Reli- sistema do saber, encontrará, por outro
gião como Ciência”, mostrando que este lado, um lugar seguro na doutrina do
conceito, elevado a um princípio, des- método da instrução do povo.
trói todo o uso da razão. Mas este é o Daí será sempre dever de um pas-
teste de realidade científica de um con- tor do povo evitar que ele se desvie
ceito; pois cada conceito deve ser capaz reduzindo-se negligentemente à dou-
de ser estendido sem perigo ao princí- trina positiva das ideias religiosas de
pio universal do saber (bem como toda que era o veículo. Por outro lado, em
máxima jurídica à lei universal da ação) seu zelo, (ne quid deprimenti etc) ele não
se for um conceito verdadeiro e real. vai ao ponto de tentar inibir a investi-
Mas será que, por esse motivo, o gação culta dos ignorantes, mantendo-
conceito de revelação deve agora desa- se modestamente dentro de seus limi-
parecer completamente do mundo? O tes; pois, como diz Lessing, uma coisa é
autor respondeu a esta questão no refe- ser pastor e outra é ser bibliotecário.8

8 Quantas vezes ainda se tenta parodiar estas palavras! - Quando ele, que foi mencionado várias vezes neste tratado, tinha sido
consagrado à Maçonaria por instigação de amigos, foi confortado ao ouvir dizer que não tinham encontrado nada nele contra o Estado
e a Igreja. “Se Deus quisesse”, disse o inesquecível, “eu teria encontrado alguma coisa”. É diferente com outros. Por exemplo com
o pregador da corte, Sr. Reinhard de Dresden que lamenta amargamente ter encontrado na nova filosofia muito contra o Estado e a
Igreja. Isso é natural pois aquele fora um homem distinto.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 419-427 427
ISSN: 2317-9570
DOI: https://doi.org/10.26512/rfmc.v8i2.34285

O Marrocos ou a Prescrição em Termos de Rouboi

Simone Weil

Tradução
Philippe Claude Thierry Lacourii ;
Felipe Matos Lima Meloiii ;
Jade Oliveira Chaiaiv ;
Mariana Mendes Sbervelheriv ;
Manuella Mucury Teixeiravi ;
Michelly Alves Teixeiravii

Revisão Técnica
Filipe Ceppasviii

Tradução

O início do ano de 1937 nos trouxe se ergueu orgulhosamente em defesa


um sério alerta. O território da pá- deste solo sagrado. As dissensões civis
tria estava ameaçado. Toda a imprensa foram apagadas diante daquele magní-
diária, sem exceção nenhuma, unânime fico impulso.
como naqueles quatro anos tão belos, Sim, o território da pátria estava
passados tão rapidamente, durante os ameaçado. A propósito, que porção do
quais o coração de todos os franceses território? A Alsácia-Lorena? Sim, pre-
batia em uníssono, toda a imprensa cisamente. Ou melhor, não, não foi

i Texto originalmente publicado no Vigilance, nº 48-49, 10 de fevereiro de 1937.


ii Professor do Departamento de Filosofia da Universidade de Brasília (UnB). Doutor em Filosofia pela Universidade de Provence
Aix Marseille I. E-mail: unb@philippelacour.net. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3226-584X.
iii Mestrando em Filosofia da UnB. E-mail: felipemelounb@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9257-405X.
iv Mestranda pela UCDB e Graduanda em Filosofia pela UnB. E-mail: jade.joc@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-
7615-5610.
v Graduanda em Psicologia pela UnB. E-mail: marisbervelheri@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4923-0160.
vi Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UnB, com período sanduíche na Université Paris-Diderot (Paris VII
-Sorbonne). Mestra em Filosofia pela UnB e graduada em psicologia pelo Instituto de Educação Superior de Brasília - IESB. E-mail:
mucuryrev@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0320-2113.
vii Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UnB. Graduada (Bacharelado e Licenciatura) em Filosofia pela UnB.
E-mail: michellyteixeira@hotmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0842-8824.
viii Professor Doutor da Faculdade de Educação da UFRJ. E-mail: filcepps@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2499-
9210.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 429-433 429
ISSN: 2317-9570
SIMONE WEIL

exatamente a Alsácia-Lorena, mas algo rial. Sim, exatamente desde dezembro


equivalente. Era o Marracos. Sim, de 1911. Para qualquer espírito impar-
o Marracos, esta província tão essen- cial, é evidente que um território que
cialmente francesa. Coisa incrível, a está na França desde 1911 é francês de
Alemanha parecia manifestar o desejo direito para toda a eternidade.
de colocar as mãos sobre a população É o que aparece, aliás, ainda mais cla-
marroquina, de arrancá-la das tradições ramente se nos reportarmos à história
herdadas de seus antepassados, os gau- do Marrocos. Essa história deve fazer
leses, de cabelos louros, de olhos azuis. sentir aos mais indiferentes que o Mar-
Pretensão absurda! O Marrocos sempre rocos é, para a França, uma segunda Lo-
fez parte da França. Se não sempre, ao rena, de certa maneira.
menos desde um tempo quase imemo-

***

Até 1904, a independência do Marro- a França é sempre leal, essa partilha


cos nunca tinha sido colocada em ques- foi inscrita apenas nas cláusulas secre-
tão, pelo menos nos textos diplomáti- tas do tratado. Quanto as cláusulas pú-
cos. Foi apenas acordado pelo Tratado blicas, elas garantiam solenemente a in-
de Madrid (1880) que todas as potên- dependência do Marrocos.
cias teriam, com o país, direito ao trata- A Alemanha estava ciente de alguma
mento de nação a mais favorecida para coisa? Em todo o caso, esse tratado
seus comércios. franco-inglês não lhe dizia nada de
Em 1904, a França e a Inglaterra sen- bom. Ela queria ter sua parte do Mar-
tiram a necessidade de ajustar as con- rocos. Pretensão insustentável! A partir
tas, depois do fracasso imposto à França daquele momento, o Marrocos perten-
em Fachoda. A França, até esse mo- cia, por direito, à França. Ela não havia
mento, havia defendido nobremente, pago por ele? Ela havia pago com a li-
em nome dos direitos humanos, a inde- berdade dos egípcios.
pendência do povo egípcio. Em 1904, Guilherme II fez um discurso retum-
autorizou a Inglaterra a espezinhar essa bante em Tanger. A Alemanha pediu
independência. Em troca, a Inglaterra uma conferência internacional para re-
lhe entregou o Marrocos. solver a questão marroquina. Delcassé,
Um tratado foi assinado, incluindo a ministro das Relações Exteriores, resis-
apropriação imediata do Egito pela In- tiu. Estávamos exatamente à beira da
glaterra e a partilha eventual do Marro- guerra, quando Delcassé foi afastado.
cos entre a França e a Espanha. Como Podemos dizer, foi por pouco. O suces-

430 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 429-433
ISSN: 2317-9570
O MARROCOS OU A PRESCRIÇÃO EM TERMOS DE ROUBO

sor de Delcassé cedeu. solução se revelou impraticável.


O Tratado de Algeciras (1906), assi- Finalmente, em 1911, a França sen-
nado por todas as potências europeias, tiu que era tempo de agir. Ela pura e
não dava nenhum privilégio à França, simplesmente enviou tropas à Fez, capi-
exceto aquele de fornecer ao sultão, por tal do Marrocos. Ela alegou que haviam
cinco anos, algumas dezenas de instru- inícios de agitações que colocavam em
tores para a sua polícia local. Não deve- perigo a vida dos europeus e prometeu
ria haver nenhuma força militar euro- retirar as tropas tão logo a segurança
peia no Marrocos, e as diversas potên- fosse restabelecida. Nunca soubemos
cias deveriam gozar de direitos econô- se houve de fato perigo. De qualquer
micos iguais. modo, a ocupação militar de Fez, reali-
Por conseguinte, a questão que se co- zada sem consulta formal das potências
locava era: como violar o Tratado de Al- signatárias do Tratado de Algeciras, ras-
geciras? Na verdade, esse tratado era garam, enfim, esse documento ridículo.
nulo de pleno direito, dado que ele não Uma vez instalada em Fez, é obvio
concedia o Marrocos à França. Esse que a França nunca mais saiu de lá. O
ponto deve ser claro para toda inteli- problema do prestígio, bem mais im-
gência mediana. portante – quando se trata da França –
Apenas os inocentes poderiam apro- do que o direito internacional, proibia
ximar a violação do Tratado de Algeci- isso.
ras e a violação do Tratado de Versalhes. Após alguns meses, a Alemanha,
Esses dois casos não têm nenhuma re- vendo que as tropas francesas estavam
lação. O Tratado de Algeciras desfavo- ainda em Fez, enviou um navio de
recia a França, sendo, portanto, caduco guerra à costa marroquina, à Agadir.
desde sua criação. O Tratado de Versa- Ela insistiu em reclamar sua parte.
lhes devia ser eterno pela razão contrá- Caillaux, que acabara de chegar ao
ria. poder, iniciou as negociações. Estas
Depois de 1906, tentamos diferentes findaram em 1911. Entretanto, nesse
acordos com a Alemanha, também de- intervalo, a guerra esteve várias vezes
sejosa de violar o Tratado de Algeciras, prestes a estourar. Por fim, um tra-
mas – avidez monstruosa! – à condição tado franco-alemão reconheceu o pro-
de encontrar nisso um lucro. Chega- tetorado francês no Marrocos, contra a
mos a oferecer até um porto com terras cessão de uma pequena parte do Congo
(Hinterland) no interior do Marrocos. francês ao Camarões alemão.
Experimentamos compartilhar o poder O governo alemão se deixou manipu-
econômico no Marrocos, mas como, ao lar. A Alemanha o sentiu. A explosão
mesmo tempo, a França queria se reser- de agosto de 1914 foi, sem dúvida, para
var a totalidade do poder político, essa uma parte, uma sequela da expedição

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 429-433 431
ISSN: 2317-9570
SIMONE WEIL

militar à Fez. Ao menos esta foi a opi- O melhor é que, após a vitória, nós
nião exprimida por Jaurès em seu úl- recuperamos o pedaço do Congo cedido
timo discurso (em Vaise, 28 de julho de em 1911, ganhamos o Camarões e guar-
1914). damos o Marrocos.

***

Atualmente, a Alemanha pretende notícias, parece não ter havido tropas


questionar as cláusulas coloniais do alemãs no Marrocos. Que importa?
Tratado de Versalhes. Ela pode fazê-lo A presença de engenheiros alemães no
de duas maneiras. Ela pode reivindi- Marrocos espanhol é incontestável; o
car o Camarão tal como ela o fez em envio para a Alemanha de minério de
1914 ou ela pode considerar o tratado ferro marroquino também. É evidente
de 1911 como anulado por Versalhes e que qualquer dominação econômica da
reclamar os direitos sobre o Marrocos, Alemanha em uma porção do Marro-
que ela havia trocado pela ampliação de cos seria intolerável. Nenhum tratado o
Camarões. proíbe, mas essa interdição está suben-
Felizmente, isso não está em questão. tendida.
Todos sabemos que o Tratado de Ver- Falta à Alemanha o sentido mais ele-
salhes é intangível. Ademais, Marro- mentar das conveniências. Essa histó-
cos se tornou a própria carne da França, ria de concessões econômicas nas colô-
em função dos sacrifícios realizados por nias portuguesas o comprova. Claro,
ele. Sacrifícios não apenas de homens e nenhum tratado proíbe a Portugal e à
dinheiro, mas de uma ordem bem mais Alemanha acordos dessa ordem. Mas
importante. Com relação ao Marrocos, uma interdição deveria ser necessária?
a França se comportou como verdadeira Já que a Alemanha precisa que colo-
“potência colonial”: ela vendeu as li- quemos os pingos nos is, nós o faremos.
berdades egípcias, assinou um tratado Nós quisemos, por polidez, poupá-la
cujas cláusulas secretas contradiziam as de certas verdades desagradáveis, espe-
cláusulas públicas, violou abertamente rando que ela soubesse manter-se em
outro tratado. Tais sacrifícios morais, seu lugar.
para a nação mais leal do mundo, con- Já que ela não o faz, que nosso go-
ferem direitos sagrados. verno convoque uma conferência inter-
Ademais, que a Alemanha saiba bem, nacional para completar o Tratado de
um único desembarque das tropas ale- Versalhes com dois aditivos:
mães no Marrocos nos encontraria deci- – Um no preâmbulo, comportando
didos a matar e a morrer! a seguinte definição: “Toda situação
É verdade que, segundo as últimas internacional na qual a Alemanha é

432 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 429-433
ISSN: 2317-9570
O MARROCOS OU A PRESCRIÇÃO EM TERMOS DE ROUBO

econômica, militar e politicamente in- direito internacional. Derrogações ape-


ferior à França constitui um estado de nas serão possíveis com a autorização
paz. Tudo aquilo que faça tensionar as formal da França.”
forças alemães para igualar-se ou ultra- Se o governo da Frente Popular, se os
passar as da França, constituirá um cha- partidos da Frente Popular não compre-
mado à guerra.” enderem ainda que o dever está aqui, o
– E uma cláusula nova, cuja legitimi- comitê de vigilância saberá lembra-los
dade salta aos olhos: “Toda expansão disso.
econômica da Alemanha, seja em rela- E, em torno de uma política tão justa,
ção aos portos de destino, seja em rela- se realizará, finalmente, a união da na-
ção as matérias-primas, é contrária ao ção francesa!

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 429-433 433
ISSN: 2317-9570
Normas para Publicação

Todas as submissões devem ser efetuadas exclusivamente através


do site da Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea (RFMC), no
menu "SOBRE"/ "SUBMISSÕES ONLINE".

A RFMC publica apenas trabalhos filosóficos inéditos, que estejam


de acordo com as suas normas, na forma de artigos, resenhas ou tra-
duções, de autoria de doutores e/ou mestres em filosofia (ou áreas
afins).

A RFMC publica textos redigidos em português, espanhol, francês,


italiano, inglês ou alemão. Se for necessário, o editor recomendará
a revisão linguística dos textos.

Todos os textos serão submetidos à avaliação cega por pares.

A publicação de originais implicará, automaticamente, a cessão dos


direitos autorais à RFMC.

O autor deve informar os seguintes dados pessoais: titulação acadê-


mica máxima; vínculo profissional e/ou acadêmico atual; endereço
de e-mail; e número do ORCID.

Normas específicas para Artigos

1. O artigo deve ter no mínimo 5.000 e no máximo 15.000 palavras.

2. O texto do artigo deverá observar a seguinte sequência: título, título


em inglês (ou português, caso o texto não tenha sido redigido em
português), nome do autor ou autores, dados pessoais, resumo (no
mínimo 50 e no máximo 150 palavras), palavras-chave (no mínimo
3 e no máximo 5), abstract (resumo em inglês), keywords (palavras-
chave em inglês), texto, e bibliografia.

435
NORMAS

Normas específicas para Traduções

1. As traduções devem ter no máximo 20.000 palavras.

2. O texto da tradução deverá observar a seguinte sequência: título


do texto traduzido, nome do autor do original, nome do tradutor,
dados pessoais do tradutor, apresentação da tradução (no mínimo
500 e no máximo 5.000 palavras), e texto traduzido.

3. Serão aceitas apenas traduções, para a língua portuguesa, acompa-


nhadas dos originais, de textos de reconhecida relevância filosófica.

4. Podem ser publicados, na íntegra ou em partes, traduções de textos


que já estejam no domínio público ou que ainda possuam direitos
autorais, desde que seja apresentada, por escrito, AUTORIZAÇÃO
do detentor dos DIREITOS AUTORAIS. A obtenção da autorização
é de exclusiva responsabilidade do tradutor, e deverá ser enviada
juntamente com a tradução.

Normas específicas para Resenhas

1. As resenhas devem ter entre 1.500 e 5.000 palavras.

2. O texto da resenha deverá observar a seguinte sequência: referência


completa sobre o texto resenhado, nome do autor da resenha, dados
pessoais do resenhista, e texto.

3. Serão aceitas apenas resenhas de livros, cuja publicação tenha ocor-


rido há no máximo dois anos (caso o texto seja nacional) ou três anos
(caso o texto seja estrangeiro).

Normas para Apresentação dos Originais

1. Todos os textos devem ser encaminhados em arquivo do MS Word,


em formato "DOC"ou "DOCX", e editados com fonte "Times New
Roman", tamanho 12, espaçamento "1.5".

436 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 435-438
ISSN: 2317-9570
2. Os textos devem empregar itálico ao invés de sublinhado (exceto em
endereços URL), especialmente para destacar palavras estrangeiras
ao idioma do texto.

3. As notas explicativas devem aparecer ao pé da página e ser ordenadas


numericamente. A chamada das notas de rodapé deve ser colocada
no corpo do texto, antes do sinal de pontuação.

4. As citações e referências devem obedecer à norma NBR 10520 da


ABNT:

a) As citações diretas com até 3 linhas devem estar no corpo do texto


"entre aspas", e as com mais de 3 linhas devem se destacar do
corpo do texto, "sem aspas";
b) As referências de citações diretas devem ser colocadas no corpo do
texto no formato autor-data (SOBRENOME DO AUTOR, Ano,
p.);
c) As citações indiretas devem estar no corpo do texto, independen-
temente do tamanho, "sem aspas", e as suas referências devem
ser colocadas no corpo do texto no formato autor-data.

5. As referências bibliográficas devem obedecer à norma NBR 6023 da


ABNT, aparecer no final do artigo e ser ordenadas alfabeticamente
em ordem ascendente:

a) Livro (monografia no todo): SOBRENOME DO AUTOR, demais


nomes abreviados, com ponto. Título da obra em itálico: subtítulo.
Nome do tradutor (se houver). Edição. Local da edição: Editora,
ano da publicação;
b) Artigo ou capítulo de livro (coletânea): SOBRENOME DO AUTOR,
demais nomes abreviados, com ponto. "Título do artigo ou capí-
tulo entre aspas", com ponto. Nome do tradutor (se houver). In:
SOBRENOME DO ORGANIZADOR OU EDITOR, Nome (abre-
viado). (Org. ou Ed.) Título da obra em itálico: subtítulo. Edição.
Local da edição: Editora, ano da publicação, páginas que o artigo
ocupa na obra;

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 435-438 437
ISSN: 2317-9570
NORMAS

c) Artigos em periódicos: SOBRENOME DO AUTOR, demais nomes


abreviados, com ponto. "Título do artigo entre aspas". Nome
do tradutor (se houver). Título do periódico em itálico, local de
publicação (quando houver), ano do periódico (quando houver),
volume e número do periódico, páginas que o artigo ocupa no
periódico, data ou período da publicação;
d) Artigo ou resenha em periódicos eletrônicos (documentos eletrôni-
cos): SOBRENOME DO AUTOR, demais nomes abreviados, com
ponto. "Título do artigo entre aspas". Nome do tradutor (se hou-
ver). Título do periódico em itálico, volume e número do perió-
dico, data da publicação, páginas que o artigo ocupa no perió-
dico (se houver). Disponível em [endereço eletrônico]: acessado
em [Data de acesso];
e) Teses, dissertações e outros trabalhos acadêmicos: SOBRENOME
DO AUTOR, demais nomes abreviados, com ponto. Título em
itálico: subtítulo. Local. Número total de páginas. Grau aca-
dêmico e área de estudos (Dissertação de mestrado ou Tese de
doutorado em [...]). Instituição em que foi apresentada, Ano.

6. Havendo mais de uma referência por autor, estas devem seguir or-
dem crescente de publicação (primeiro a mais antiga e, em seguida,
as mais recentes). No caso de mais de uma obra por ano, estas de-
vem ser diferenciadas por letras.

438 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.8, n.2, ago. 2020, p. 435-438
ISSN: 2317-9570

Você também pode gostar