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Jacques Le Goff, Os intelectuais na Idade Média, 2ª edição, Lisboa, Gradiva, s/d, p.

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112.

Perfil do século XIII

O século XIII é o século das universidades porque é o século das


corporações. Nas cidades em que existe um ofício que agrupe um
número importante de membros, eles organizam-se para a defesa dos
seus interesses e instauração de um monopólio em seu benefício. É a
fase institucional do surto urbano, que materializa em comunas as
liberdades políticas conquistadas e em corporações as posições
adquiridas no domínio económico. Liberdade é aqui uma palavra
equívoca: independência ou privilégio? Encontraremos esta mesma
ambiguidade na corporação universitária. A organização corporativa
cristaliza aquilo que consolida. Consequência e sanção de um
progresso, deixa transparecer um esgotamento, anuncia uma
decadência. O mesmo se passa com as universidades no século XIII, de
acordo com o contexto geral. O surto demográfico atingiu o seu
máximo mas vai abrandar; e a população da cristandade depressa ficará
estacionária. A grande vaga de arroteamentos que conquistou as terras
necessárias à alimentação desse excesso de população decai e pára. O
impulso que leva a construir ergue, para este povo cristão mais
numeroso, uma rede de igrejas novas, com um sentido novo; mas a era
das grandes catedrais góticas terminará com o século. A conjuntura
universitária apresenta a mesma curva: Bolonha, Paris, Oxford

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nunca conhecerão um tão elevado número de mestres e estudantes e o
método universitário — a escolástica — não construirá monumentos
mais resplandecentes do que as sumas de Alberto o Grande, Alexandre
de Halès, Roger Bacon, S. Boaventura, S. Tomás de Aquino.
O intelectual, que conquistou o seu lugar na cidade, revela-se
contudo incapaz de optar pelas soluções de futuro, perante as
hipóteses que se lhe deparam. Mergulhado numa série de crises que
poderíamos julgar de crescimento, e que anunciam afinal a maturidade,
não consegue optar pelo rejuvenescimento, instala-se em estruturas
sociais e em hábitos intelectuais em que se enredará.
As origens das corporações universitárias são frequentemente
para nós tão obscuras como as dos outros corpos de ofícios.
Organizam-se lentamente, à custa de conquistas sucessivas, ao sabor de
incidentes que se transformam em outras tantas oportunidades. Em
geral, os estatutos só tardiamente sancionam essas conquistas. Nunca
temos a certeza de que aqueles que possuímos sejam os primeiros.
E não há que estranhar. Nas cidades em que se formam, as
universidades manifestam, pelo número e qualidade dos seus membros,
uma força que inquieta os demais poderes. É lutando, ora contra os
poderes eclesiásticos ora contra os poderes laicos, que as
universidades adquirem a sua autonomia.

Contra os poderes eclesiásticos

Antes de mais, contra os poderes eclesiásticos. As universidades são dos


clérigos. O bispo local exige a sua submissão. O ensino é função
eclesiástica. O bispo, chefe das escolas, de há muito delegou os
poderes que lhe assistem nessa matéria num dos seus oficiais,
geralmente designado inspector (scolasticus) no século XIII e que
começa a chamar - se chanceler, de preferência. Este mostra-se
renitente em

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abandonar o seu monopólio. Quando esse monopólio já não é
absoluto, nos locais em que as abadias detêm uma posição escolar
forte, são elas o adversário da corporação universitária. A cultura é de
facto um assunto de fé; o bispo reivindica a manutenção do controlo.
Em Paris, o chanceler perde, na prática, em 1213 o privilégio de
conferir a licença, ou seja, a autorização para ensinar. Esse direito passa
para os mestres da Universidade. Em 1219, na altura da entrada de
membros das ordens mendicantes na Universidade, o chanceler tenta
impedir essa novidade. É aí que perde as últimas prerrogativas. Em
1301 deixará mesmo de ser o chefe oficial das escolas. Durante a
grande greve de 1229-1231 a Universidade foi subtraída à jurisdição do
bispo.
Em Oxford, o bispo de Lincoln, a 120 milhas da Universidade, a
ela preside oficialmente por intermédio do seu chanceler, enquanto o
abade do mosteiro de Oseney e o prior de S. Frideswide apenas
têm posições honoríficas. Mas o chanceler será rapidamente absorvido
pela Universidade, eleito por ela; passará a ser oficial dela e não do
bispo.
Em Bolonha a situação é mais complexa. Durante muito tempo a
Igreja tinha-se desinteressado do ensino do Direito, considerado
actividade laica. Só em 1219 a Universidade recebe como chefe o
arcediago de Bolonha, que parece desempenhar a função de chanceler,
sendo por vezes assim designado. Mas a sua autoridade é, de facto,
exterior à Universidade. Contenta-se em presidir às promoções e
absolver as ofensas feitas aos seus membros.

Contra os poderes laicos

Contra os poderes laicos e antes de mais contra o poder real. Os


soberanos procuravam apoderar-se das corporações que traziam
riqueza e prestígio ao reino, que constituíam um viveiro onde iam
recrutar oficiais e funcionários. Aos

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habitantes de seus estados que eram os universitários das cidades do
reino pretendiam eles impor uma autoridade que, com os progressos da
centralização monárquica do século XIII, tornavam cada vez mais
pesada aos seus súbditos.
Em Paris, a autonomia da Universidade é definitivamente adquirida
após os acontecimentos sangrentos de 1229, que envolveram os
estudantes e a polícia real. Num recontro, vários estudantes são
mortos pelos agentes reais. A maior parte da Universidade entra em
greve e retira-se para Orléans. Durante dois anos não há praticamente
aulas em Paris. Só em 1231. S. Luís e Branca de Castela reconhecem
solenemente a independência da Universidade, renovando e alargando os
privilégios que Filipe-Augusto lhe reconhecera em 1200.
Em Oxford, é graças ao eclipse do poder de um João sem Terra,
excomungado, que a Universidade obtém as suas primeiras liberdades
em 1214. Uma série de conflitos, em 1232, 1238 e 1240, entre os
universitários e o rei, termina com a capitulação de Henrique III,
assustado pelo apoio dado por uma parte da Universidade a Simon
de Montfort.
Mas também lutas contra o poder comunal. Os burgueses da
comuna irritam-se ao verem a população universitária escapar à sua
jurisdição, inquietam-se com a agitação, as rapinas, crimes praticados
por alguns estudantes, toleram mal que mestres e alunos limitem o
seu poderio económico ao fazerem tabelar as rendas, ao imporem
preços máximos para as mercadorias, ao fazerem respeitar a justiça
nas transacções comerciais.
Em Paris, é no seguimento de rixas entre estudantes e burgueses
que a polícia real intervém brutalmente em 1229. Em Oxford, é depois
do enforcamento arbitrário de dois estudantes pelos burgueses,
exasperados pelo assassinato de uma mulher em 1209, que a
Universidade dará, em 1214, os primeiros passos no sentido da
independência. Finalmente em Bolonha, o conflito entre a
Universidade e os burgueses é tanto mais violento quanto a Comuna
governa até 1278 a cidade, praticamente sem partilhar o poder, sob a
suserania

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longínqua do Imperador que, em 1158, na pessoa de Frederico Barba-
Roxa, concedera privilégios a mestres e estudantes. Mas a Comuna
impusera residência permanente aos professores, fizera deles
funcionários, passara a intervir na atribuição de graus. A nomeação do
arcediago limita a ingerência nos assuntos universitários. Uma série de
conflitos seguidos de greves e da partida de universitários que se
refugiam em Vicência, Pádua, Arécio e Siena, obriga a Comuna à con-
ciliação. A última luta teve lugar em 1321. A Universidade não mais
teve de suportar intervenções comunais.
Como é que as corporações universitárias sairam vitoriosas destes
combates? Antes de mais, pela sua coesão e determinação. Ameaçando
empregar e utilizando efectivamente essa arma terrível: a greve e a
retirada. Os poderes civis e eclesiásticos reconheciam demasiadas
vantagens na presença dos universitários — que representavam uma
clientela económica não desprezível, um viveiro insubstituível de
conselheiros e de funcionários, uma fonte resplandecente de
prestígio — para resistirem a tais meios de defesa.

Apoio e assalto do Papado

Mas a verdade é que os universitários haviam encon trado um


aliado todo-poderoso: o papado.
A Paris, é Celestino III quem assegura, em 1194, os primeiros
privilégios à corporação e são sobretudo Inocêncio III e Gregório IX que
lhe asseguram a autonomia. Em 1215, o cardeal Robert de Courson,
legado pontifício, dá à Universidade os seus primeiros estatutos
oficiais. Em 1231, Gregório IX, que condenou o bispo de Paris pela
sua incúria e forçou o rei de França e sua mãe a cederem, concede
novos estatutos à Universidade com a famosa bula Parens scientia-

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rum, considerada por alguns a Magna Carta da Universidade. Já em
1229 o pontífice escrevera ao bispo:
«Se um homem sabedor em teologia é semelhante à
estrela da manhã que brilha por entre o nevoeiro e deve
iluminar a sua pátria com o resplendor dos santos e
apaziguar as discórdias, tu não só negligenciaste esse
dever como, segundo as afirmações de pessoas dignas de
crédito, foi por causa das tuas maquinações que o rio do
ensino das belas-letras que, com a graça do Espírito
Santo, irriga e fecunda o paraíso da Igreja universal, saiu
do seu leito, isto é, da cidade de Paris, onde até então se
espraiava vigorosamente. Desde então, dividido por
diversos lugares, está reduzido a nada, tal como um rio,
saído do leito e desmembrado em diversos regatos, acaba
por secar.»
Em Oxford, é também um legado de Inocêncio III, o cardeal
Nicolas de Tusculum, quem oferece à Universidade o começo da sua
independência. Contra Henrique III, é Inocêncio IV quem a coloca «sob
a protecção de S. Pedro e do papa» e encarrega os bispos de Londres e
de Salisburia de a protegerem contra as investidas reais.
Em Bolonha, é Honório III quem coloca à cabeça da Universidade
o arcediago, que a defende contra a Comuna. A Universidade
emancipa-se definitivamente quando, em 1278, a cidade reconhece o papa
como senhor de Bolonha.
Facto de importância capital, este apoio pontifício. A Santa Sé
reconhece, sem dúvida, a importância e o valor da actividade
intelectual; mas as suas intervenções não são desinteressadas. Se subtrai
os universitários às jurisdições laicas, é para os colocar sob a
jurisdição da Igreja: assim, para conquistarem esse apoio decisivo, os
intelectuais vêem--se obrigados a escolher a via da integração
eclesiástica, contra a força da fortíssima corrente que os empurra
para o

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laicado. Se o papa liberta os universitários do controlo local da Igreja
— e não completamente, porque teremos ocasião de ver a importância
das condenações episcopais no domínio intelectual, durante este século
—, é para os sujeitar à Santa Sé, para os integrar na sua política, para
lhes impor o seu controlo e os seus propósitos.
Daí que os intelectuais se encontrem submetidos, como as novas
ordens, à Santa Sé que os beneficia para os domesticar. Sabe-se
como a protecção pontifícia afastou, durante o século XIII, as ordens
mendicantes do seu carácter e fins primitivos. Sabe-se, inclusivamente,
das reticências e da dolorosa retirada de S. Francisco de Assis perante
esse desvio da sua Ordem, empenhada a partir de então nas intrigas
temporais, na repressão da heresia pela força, na política romana. Do
mesmo modo, terminarão para os intelectuais a independência, o
empenho desinteressado pelos estudos e pelo ensino. Sem chegar ao
caso extremo da Universidade de Tolosa, fundada em 1229 por exigência
expressa dos papas, para lutar contra a heresia, todas as Universidades
passarão a ser objecto desta captação. É verdade que através dela
ganham a independência relativamente às forças locais, muitas vezes
mais tirânicas, o alargamento dos seus horizontes e do seu reflexo até
aos confins da cristandade inteira, a sujeição a um poder que soube,
frequentemente, dar prova de largueza de vistas. Mas vão pagar caro
estas conquistas. Os intelectuais do Ocidente vão tornar-se, em certa
medida, mas inevitavelmente, agentes pontifícios.

Contradições internas da corporação universitária

É necessário ver, a partir de agora, o que existe de excepcional na


corporação universitária e que explica a sua ambiguidade fundamental
na sociedade bem como a tendência para crises de natureza
estrutural.

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Começa por ser uma corporação eclesiástica. Mesmo se os seus
membros estão longe de terem todos recebido ordens, mesmo se entre as
suas fileiras conta com um número cada vez mais elevado de puros
leigos, os universitários passam por serem todos clérigos, estão
abrangidos por jurisdições eclesiásticas, até mais: dependem de Roma.
Nascidos de um movimento que se encaminhava para o laicado, são da
Igreja, mesmo quando, institucionalmente, dela pretendem libertar-se.
Corporação cujo objectivo é o monopólio local e que beneficia
largamente com os desenvolvimentos locais ou nacionais (a
Universidade de Paris é inseparável do crescimento do poderio
capetíngio, a de Oxford está ligada à con solidação da monarquia
inglesa, a de Bolonha lucra com a vitalidade das comunas italianas), a
universidade é, de forma única, internacional, pelos seus membros —
mestres e estudantes vindos de todos os países —, pela natureza da sua
actividade — a ciência que não conhece fronteiras —, pelos seus
horizontes; sanciona a licentia ubique docenti, o direito de leccionar em
qualquer parte, de que beneficiam estatutariamente os graduados pelas
maiores universidades. Não tem, como as demais corporações, o
monopólio do mercado local. O seu terreno é a Cristandade.
Ultrapassa assim o quadro urbano em que nasceu. Mais: é levada
a opor-se, por vezes violentamente, aos habitantes das cidades, tanto no
plano económico como nos planos jurisdicional e político.
Parece portanto estar condenada a sobrepor-se às classes e grupos
sociais. Parece estar votada, relativamente a todos eles, a uma série de
traições. Para a Igreja como para o Estado ou a Cidade, pode tornar-se
um cavalo de Tróia. É impossível situá-la em termos de classe.

«A cidade de Paris — escreve, nos finais do século, o


dominicano Tomás da Irlanda - está, como Atenas,
dividida em três partes: uma, a dos merca-

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dores, artesãos e populares, a que se chama a grande
cidade; outra, a dos nobres, onde está a corte do rei e
a igreja catedral, a que se chama a Cidade [Cite]; a
terceira, a dos estudantes e dos colégios, a que se
chama a Universidade.

Organização da corporação universitária

A corporação universitária parisiense pode ser tomada como


modelo. Durante o século XIII, ela define simultaneamente a sua
organização administrativa e a sua organização profissional. Compõe-se
de quatro Faculdades (Artes, Decreto ou Direito Canónico — o papa
Honório III proibiu-lhe o ensino do Direito Civil em 1219 - , Medicina e
Teologia) que constituem outras tantas corporações no interior da
universidade. As Faculdades ditas superiores - Direito, Medicina e
Teologia - são dirigidas por mestres titulares ou regentes, tendo à cabeça
um deão. A Faculdade das Artes, de longe a mais frequentada, está
organizada segundo o sistema das nações. Nela se agrupam os mestres
e estudantes de acordo com uma repartição que corresponde
grosseiramente ao seu lugar de origem. Paris tem quatro nações: a
francesa, a picarda, a normanda, a inglesa. À cabeça de cada uma das
nações há um procurador, eleito pelos regentes. Os quatro procuradores
prestam assistência ao reitor, que dirige a Faculdade das Artes.
A Universidade possui contudo organismos comuns às quatro
Faculdades. Tais organismos apresentam, no entanto, grande
flexibilidade visto que as Faculdades têm poucos problemas para
debater em comum. Não há terrenos nem edifícios pertencentes ao
conjunto da corporação, à excepção do campo de jogos do Pré-aux-
clercs, extramuros. A Universidade, tal como as Faculdades e as nações,
reúne nas igrejas ou nos conventos, onde é acolhida como hóspede: em
Saint-
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-Julien-le-Pauvre, nos Dominicanos ou nos Franciscanos, na sala do
capítulo dos Bernardinos ou dos Cistercienses, mais frequentemente no
refeitório dos Maturinos. É aí que reúne a assembleia geral da
Universidade, composta por mestres--regentes e não-regentes.
Com o decorrer do século vai emergindo, finalmente, um chefe para
a Universidade: o reitor da Faculdade das Artes. Voltaremos ainda à
evolução que explica a liderança desta Faculdade relativamente à
Universidade. A sua proeminência ficará a dever-se ao número de
elementos que a compõem, ao espírito que os anima e sobretudo ao
papel financeiro que lhe cabe. O reitor dos artistas, que gere as
finanças da Universidade, preside à asssembleia geral. No final do
século é o chefe reconhecido de toda a corporação. Conquista defini-
tivamente essa posição no decurso das lutas entre seculares e
regulares, de que voltaremos a falar. A sua autoridade será, contudo,
sempre limitada no tempo. Embora reelegível, assegura as funções
apenas durante um trimestre.
É esta a organização das demais universidades, se bem que,
muitas vezes, com variantes consideráveis. Em Oxford não há um reitor
único. O chefe da Universidade é o chanceler, escolhido aliás desde
cedo pelos colegas, como já vimos. A partir de 1274 o sistema das nações
desaparece de Oxford. Facto explicável porventura pelo carácter
eminentemente regional do seu recrutamento. Desde então,
Setentrionais ou Boreais — incluindo os Escoceses— e Meridionais ou
Austrais — incluindo Galeses e Irlandeses— deixam de formar corpos
distintos.
Em Bolonha, a primeira originalidade: os professores não fazem
parte da Universidade. A corporação universitária agrupa apenas os
estudantes. Os mestres constituem o Colégio dos Doutores. De facto,
Bolonha compreende várias universidades. Cada faculdade forma uma
corporação distinta. Mas a preponderância das duas universidades
de juristas

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— a civil e a canónica — é quase total. Preponderância reforçada ao
longo do século pelo facto de se ter praticamente realizado a fusão dos
dois organismos. Há quase sempre um reitor único à cabeça da
instituição. Como em Paris, ele é uma emanação das nações, cujo
sistema é, em Bolonha, extremamente activo e complexo. As nações
estão agrupadas em duas federações, a dos Citramontanos e a dos
Ultramontanos. Cada uma se subdivide em múltiplas secções de
número variável (até dezasseis para os Ultramontanos), representadas
por conselheiros — consiliarii — que desempenham junto do reitor um
papel de importância considerável.
O poder da corporação universitária decorre de três privilégios
essenciais: a autonomia jurisdicional — no quadro da Igreja, com
determinadas restrições locais; possibilidade de apelar para o papa—, o
direito de greve e de retirada, o monopólio de atribuição dos graus
universitários.

Organização dos estudos

Os estatutos universitários também regulamentam a organização


dos estudos. Definem a sua duração, os programas dos cursos, as
condições de admissão aos exames.
As indicações relativas à idade dos estudantes e à duração dos
estudos são infelizmente imprecisas e muitas vezes contraditórias.
Variaram segundo as épocas e os lugares e somos levados a pressentir,
através de alusões dispersas, que muitas vezes a prática se afastava
substancialmente da teoria.
Para começar, com que idade e com que preparação se entrava na
universidade? Indubitavelmente, muito cedo; mas aqui coloca-se um
problema: o ensino da gramática fazia ou não parte da universidade, a
aprendizagem da escrita, por exemplo, era feita antes da entrada na
universidade ou, como pretende Istvan Hajnal, era uma das suas funções
essenciais? Uma coisa é certa: a Idade Média distinguia mal os graus
do ensino; as universidades medievais não são só estabele-

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cimentos de ensino superior. Os nossos ensinos primário e secundário
eram ministrados parcialmente na universidade ou por ela controlados.
O sistema dos colégios — de que voltaremos a falar— contribuiu para
aumentar a confusão, ao facultar ensino aos seus membros desde que
tivessem mais de oito anos de idade.
Pode dizer-se que, de modo geral, o ensino de base das
universidades — o das artes — durava seis anos e era ministrado entre
os catorze e os vinte anos de idade; era o que prescreviam os estatutos
de Robert de Courson em Paris. Compreendia duas fases: o
bacharelato ao cabo de cerca de dois anos, o doutoramento no final dos
estudos. Medicina e Direito eram certamente ensinados a seguir,
entre os vinte e os vinte e cinco anos. Os primeiros estatutos da
Faculdade de Medicina de Paris prescrevem seis anos de estudo para
a obtenção da licença ou doutoramento em medicina depois de obtido
o mestrado em artes. Finalmente a teologia era obra de vulto. Os
estatutos de Robert de Courson determinam oito anos de estudo e idade
mínima de trinta e cinco anos para a obtenção do doutoramento. Na
realidade, a duração da aprendizagem do teólogo parece ter sido de
quinze a dezasseis anos: simples ouvinte durante os seis primeiros
anos, era depois obrigado a fazer estágios, isto é, explicar
nomeadamente a Bíblia durante quatro anos e as Sentenças de Pedro
Lombardo durante dois.

Programas

Consistindo o ensino essencialmente num comentário de textos, os


estatutos mencionam também as obras no programa dos exercícios
universitários. Também aqui os autores variam segundo as épocas e os
lugares. Na Faculdade das Artes prevalecem a lógica e a dialéctica, pelo
menos em Paris, onde é comentada, quase na integra, a obra de
Aristóteles

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enquanto em Bolonha apenas são explicados excertos, insistindo-se na
retórica com a De Inventione de Cícero e a Retórica para Herennius e
nas ciências matemáticas e astronómicas, nomeadamente com Euclides e
Ptolomeu. Na Faculdade de Direito Canónico, o manual de base é o
Decreto de Graciano, a que se acrescentarão, em Bolonha, as Decretais
de Gregório IX, as Clementinas e as Extravagantes. No Direito civil, os
comentários iam de preferência para as Pandectas, divididas em três
partes, Digestum Vetus, Infortiatum e Digestum Novum, para o Código e
ainda para uma colecção de tratados chamados Volumen ou Volumen
Parvum, que compreendia as Institutiones e as Authentica, ou seja, a
tradução latina das novelas de Justiniano. Bolonha acrescentava--lhes
uma colectânea de leis lombardas, o Liber Feudorum. A Faculdade de
Medicina apoiava-se na Ars Medicinae, recolha de textos reunidos no
século XI por Constantino o Africano, incluindo obras de Hipócrates e
de Galiano, a que vieram juntar-se, mais tarde, as grandes sumas
árabes: o Canon de Avicena, o Colliget ou Correctorium de Averróis, o
Almansor de Rhazès. Os teólogos acrescentavam à Bíblia, como textos
fundamentais, o Livro das Sentenças de Pedro Lombardo e a Historia
Scholastica de Pedro o Glutão.

Exames

Finalmente, regulamentavam-se os exames e a obtenção dos


graus. Também relativamente a este aspecto cada universidade tinha os
seus usos e costumes que, com o tempo, modificou. Tomemos como
exemplo dois curricula escolares tipo: o do jurista bolonhês e o do
artista parisiense: O novo doutor bolonhês obtém o grau por duas
etapas: o exame propriamente dito (examen ou examen privatum) e o
exame público {conventus, conventus publicus, doctoratus) que era de
facto uma cerimónia de investidura.

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Algum tempo antes do exame privado o candidato era
apresentado pelo consiliarius da sua nação ao reitor, a quem jurava
preencher as condições exigidas pelos estatutos e que não tentaria
corromper os examinadores. Na semana que precedia o exame, um dos
mestres apresentava-o ao arcediago e respondia pela sua capacidade
para enfrentar a prova. Na manhã da mesma, depois de ouvir a missa
do Espírito Santo, o candidato comparecia perante o colégio dos
doutores e um deles entregava-lhe duas passagens para comentar. O
candidato retirava-se para sua casa, onde preparava o comentário que
apresentava à noite, num local público (quase sempre a catedral),
perante um júri de doutores, na presença do arcediago que não podia
intervir. Depois do comentário exigido, respondia às perguntas dos
doutores que seguidamente se retiravam e votavam. Obtida a decisão
por maioria, o arcediago tornava o resultado público.
Aprovado no exame, o candidato passava a licenciado, mas só
depois da prova pública adquiria o título de doutor e podia, de facto,
ensinar magistralmente. Nesse dia era conduzido com pompa até à
catedral, onde fazia um discurso e lia uma tese sobre uma questão de
direito, que defendia depois contra os estudantes que o atacavam,
desempenhando assim, pela primeira vez, o papel do mestre numa
disputa universitária. O arcediago concedia-lhe então, solenemente, a
licença para ensinar e as insígnias da sua função: uma cadeira, um livro
aberto, um anel de ouro, o gorro ou boina.
Ao jovem artista parisiense era imposto um grau preliminar. Sem
que se possa afirmá-lo com toda a certeza, prova-velmente só depois
desse primeiro exame, a determinatio, o estudante se tornava
bacharel. A determinatio era precedida por duas provas de acesso.
Primeiro, o candidato devia sustentar um debate com um mestre
durante as responsiones que tinham lugar no mês de Dezembro, antes
da Quaresma, altura em que decorreria o exame. Se fosse bem
sucedido na prova, era admitido ao exame determinantium ou baccala-
riandorum, em que devia provar que satisfazia as prescrições

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dos estatutos e manifestar, pelas respostas às perguntas formuladas por
um júri de mestres, que conhecia os autores inscritos no programa.
Ultrapassada esta barreira, surgia a determinatio: durante a Quaresma
dava uma série de aulas em que devia mostrar a sua capacidade para
prosseguir a carreira universitária.
Segunda etapa: o exame propriamente dito que conduzia à licença
para ensinar e ao doutoramento. Também aqui havia várias fases. A
mais importante consistia numa série de comentários e de respostas a
questões postas perante um júri formado por quatro mestres e
presidido pelo Chanceler ou pelo vice-Chanceler. O candidato admitido
recebia solenemente, alguns dias mais tarde, a licença para ensinar,
das mãos do chanceler, durante uma cerimónia em que devia fazer
uma conferência (collatio) que não passava de uma formalidade. Só
cerca de seis meses depois se tornava de facto doutor, no decurso da
inceptio que correspondia ao conventus de Bolonha. Na véspera tomava
parte numa discussão solene a que se chamava vésperas. No dia da
inceptio dava a lição inaugural perante toda a faculdade e recebia as
insígnias do grau.
Os estatutos universitários compreendiam finalmente toda uma
série de disposições que, tal como noutras corporações, definiam o
clima moral e religioso da corporação universitária.

Clima moral e religioso

Prescreviam — e simultaneamente limitavam — as festas e


divertimentos colectivos. Efectivamente os exames eram acompanhados
de presentes, de festividades e de banquetes — pagos pelo novo
graduado —, que selavam a comunhão espiritual do grupo e a admissão
do novo elemento no seu seio. Tal como nas patuscadas ou potaciones
das primeiras guildas, estas manifestações eram ritos em que a
corporação

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tomava consciência da sua profunda solidariedade. A tribo intelectual
manifestava-se nesses jogos, a que cada país trazia, por vezes, uma nota
característica: bailes na Itália, corridas de touros em Espanha.
Acrescentemos-lhes os ritos de iniciação não oficializados pelos
estatutos, que acolhiam o novo estudante no momento da chegada à
universidade: era um recruta, um caloiro, a que os nossos textos
chamam béjaune. Conhecêmo-lo por um documento curioso de época
posterior, o Manuale Scolarium, dos finais do século XV, onde é
possível entrever as origens remotas destes hábitos estudantis. A
iniciação do novo aluno é descrita como uma cerimónia de «purgação»
destinada a despojar o adolescente da sua rusticidade, quando não da
sua bestialidade, primitivas. Troçam do seu cheiro a animal selvagem,
do seu olhar perdido, das orelhas compridas, dos dentes que parecem
presas. Desembaraçam-no de cornos e de outras supostas
excrescências. Lavam-no e limam-lhe os dentes. Numa espécie de
confissão parodiada confessa enfim vícios extraordinários. O futuro
intelectual abandona assim a sua condição original que se aproxima
muito das imagens do camponês, do rústico da literatura satírica da
época. Da bestialidade à humanidade, da rusticidade a urbanidade, estas
cerimónias cuja origem primitiva aparece degradada e pro-
gressivamente esvaziada do conteúdo original, lembram que o
intelectual foi arrancado ao ambiente rural, à civilização agrária, ao
mundo selvagem da terra. O antropólogo teria alguma coisa a dizer
quanto à psicanálise dos clérigos.

A religiosidade universitária

Os estatutos determinam finalmente as obras de piedade, os actos


de beneficência que a corporação universitária terá de praticar. Exigem
aos seus membros a assistência a certas cerimónias religiosas, a
determinadas procissões, a prática de algumas devoções.

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Em primeiro lugar, evidentemente, devoção para com os santos
padroeiros e sobretudo para com S. Nicolau, patrono dos estudantes,
para com S. Cosme e Damião, patronos dos médicos, e para com
muitos outros. Encontra-se com singular frequência na imagética
universitária a tendência corporativa para ligar intimamente o mundo
sagrado ao mundo profano dos ofícios. Gosta de lembrar Jesus entre os
doutores, de representar os santos munidos dos atributos dos
mestres, de os vestir com as vestes magistrais.
A piedade universitária inscreve-se nas grandes correntes da
espiritualidade. É visível nos estatutos de um colégio parisiense do
século XV, o da Ave Maria, a participação de mestres e estudantes na
devoção eucarística, então no auge, e na procissão do Corpus Christi.
Voltamos a encontrar na religiosidade dos intelectuais aquela
tendência da espiritualidade para, a partir do século XIII, se inscrever
nos quadros profissionais da sociedade, definidos pelo mundo urbano. A
moral profissional torna-se um dos sectores privilegiados da religião.
Os manuais de confessores, interessados em se adaptarem às
actividades específicas dos grupos sociais, regulamentam a confissão e
a penitência segundo as categorias profissionais, classificam e definem
os pecados dos camponeses, dos mercadores, dos artesãos, dos juizes,
etc... Dedicam uma atenção especial aos pecados dos intelectuais, dos
universitários.
Mas à religião dos clérigos não basta seguir as correntes da
devoção. Procura por vezes orientá-las, definir entre elas um sector que
lhe seja específico. Relativamente a este aspecto seria interessante
estudar a devoção mariana entre os intelectuais. Foi muito viva. Nos
meios universitários circulavam, desde o início do século XIII, poemas e
orações dedicados em particular à Virgem, cuja colectânea mais célebre
é a Stella Maris, da autoria do mestre parisiense João de Garlande.
Não é de espantar esta devoção; traz consigo uma presença feminina a
um meio que, apesar da herança dos Goliardos, é essencialmente
composto por homens e celibatários. Mas

99
a devoção mariana dos intelectuais tem as suas características
próprias. Permanecerá impregnada de teologia e as discussões acerca da
Imaculada Conceição serão apaixonadas. Se um Duns Escoto se faz
passar pelo seu campeão inflamado, ela encontrará, por razões de
dogma, a oposição de um S. Tomás de Aquino, que aliás seguirá a
posição do grande devoto da Virgem que foi S. Bernardo, no século
anterior. Parece sobretudo terem os intelectuais tido a preocupação
de conservarem ressonâncias intelectuais no culto mariano. Dão a
impressão de desejarem evitar que caia numa prática excessivamente
afectiva e de pretenderem manter nele o equilíbrio entre as aspirações do
espírito e as expansões do coração. No prefácio da Stella Maris, João de
Garlande deixa transparecer ingenuamente essa tendência:

«Reuni milagres da Virgem — diz ele — extraídos de


narrativas que encontrei na biblioteca de Sainte-
Geneviève de Paris e pu-los em verso para os meus
estudantes parisienses, a fim de lhes fornecer um
exemplo vivo[...] A causa material deste livro são os
milagres da Virgem gloriosa. Mas inseri factos que
interessam à física, à astronomia e à teologia [...] A
causa final reside com efeito na fé permanente em Cristo.
Por isso supõe a teologia e mesmo a física e a
astronomia.»

Por aqui se vê que os universitários queriam que esta Estrela


do Mar fosse também luz da ciência.

Os utensílios

Homem de ofício, o membro da corporação universitária encontra-


se, no século XIII, munido de um conjunto completo de utensílios.
Escritor, leitor, professor, rodeia-se dos instru-

100
mentos exigidos pelas suas actividades. No Dicionário do mestre
parisiense João de Garlande lê-se:

«Eis os instrumentos necessários aos clérigos: livros, uma


secretária, uma lamparina com sebo e um candelabro, uma
lanterna, um recipiente com tinta, uma pena, um fio de
prumo e uma régua, uma mesa, uma palmatória, uma
cadeira, um quadro preto, uma pedra-pomes com um
raspador e o giz. A secretária (pulpitum) chama-se em
francês lutrin (letrum); é de notar que deve conter
encaixes graduados que permitam levantá-la até à altura
em que se lê porque é sobre ela que se coloca o livro.
Chama-se raspador (plana) a um instrumento de ferro
com o qual os pergaminheiros preparam o pergaminho.»

Descobriram-se mesmo outros instrumentos que, se não


utilizados por todos os clérigos, fazem parte do conjunto de
utensílios dos seus auxiliares, dos copistas por exemplo, nomeadamente
uma tira de pergaminho e um pequeno rolo que permitiam encontrar o
sítio da cópia em que se tinha parado.
Especialista, o intelectual acumula uma bagagem que o afasta
muito do clérigo da Alta Idade Média cujo ensino essencialmente oral
não exigia senão um número reduzido de apetrechos para a escrita de
raros manuscritos, cuja técnica tinha a ver sobretudo com
preocupações estéticas.
Se os exercícios orais continuam a ser essenciais na vida
universitária, o livro tornou-se a base do ensino. Quando atentamos na
bagagem de que se rodeia, a partir de então, um intelectual,
compreendemos que um S. Francisco de Assis, apóstolo do desapego,
seja, entre outras razões, hostil a essa actividade em que o aparato
material se torna necessário e cada vez ocupa mais espaço.

101
O livro como instrumento

O livro universitário é um objecto muito diferente do livro de


Alta Idade Média. Está ligado a um contexto técnico, social e económico
inteiramente novo. É a expressão de uma outra civilização. A própria
escrita muda e se adapta as novas condições, como muito bem viu
Henri Pirenne:

«A escrita cursiva responde a uma civilização em que a


escrita é indispensável à vida da colectividade como à dos
indivíduos; a minúscula (da época carolíngia) é uma
caligrafia apropriada à classe letrada à qual a instrução
se confina e na qual se perpetua. É altamente
significativo o constatar que a par dela reaparecerá a
cursiva, na primeira metade do século XIII, ou seja,
precisamente na época em que o progresso social e o
desenvolvimento da economia e da cultura laicas
generalizam de novo a necessidade da escrita.»

Os explêndidos trabalhos do Padre Destrez1 mostram em toda a sua


extensão a revolução operada no século XIII em matéria de técnica do
livro, cujo teatro é a oficina universitária.
Não apenas os autores do programa deviam ser lidos por mestres e
estudantes como as lições dos professores deviam ser conservadas. Os
estudantes anotavam-nas (relationes) e ainda hoje dispomos de um
certo número delas. Mais ainda; essas lições eram publicadas e deviam
sê-lo rapidamente para poderem ser consultadas no momento dos
exames, devendo, portanto, também ser reproduzidas num determinado
número

1
La pecia dans les manuscrita universitaires du XIII et du XIV S., 1935.

102
de exemplares. A base deste trabalho é a pecia. Leia-se a des-crição do
padre Destrez:

«Uma primeira cópia oficial da obra que se pretende pôr


em circulação é feita em cadernos de quatro folhas,
independentes uns dos outros. Cada um desses cadernos,
feito de uma pele de carneiro dobrada em quatro, tem o
nome de peça: pecia. Graças a estas peças, de que os
copistas se serviam uma após outra (e que reunidas
constituem aquilo a que se chama o exemplar), o tempo
que seria necessário a um só copista para fazer uma única
cópia passa a ser suficiente para que cerca de quarenta
escribas — no caso de uma obra constituída por umas
sessenta peças — possam fazer cada um a sua
transcrição, a partir de um texto corrigido sob o
controlo da Universidade e por isso de algum modo
considerado texto oficial.»

A publicação do texto oficial das lições teve nas universidades uma


importância fundamental. Os estatutos da Universidade de Pádua
declaram em 1264: «Sem exemplares não haveria Universidade».
A intensificação do uso do livro pelo universitário arrasta uma série
de consequências. Progressos realizados na confecção do pergaminho
permitem obter folhas menos espessas, mais maleáveis e menos
amarelecidas do que as dos manuscritos anteriores. Em Itália, onde a
técnica é mais avançada, as folhas são muito finas e duma brancura
espantosa.
O formato do livro altera-se. Anteriormente era sensivelmente o
dos nossos in-folios. É uma dimensão que só pode convir a manuscritos
elaborados em abadias e destinados a lá ficarem. A partir de então, o
livro será frequentemente consultado e transportado de um lado para o
outro. O seu formato torna-se mais pequeno e mais manuseável.
A minúscula gótica, mais rápida, substitui a antiga letra. Varia,
segundo os centros universitários; há a parisiense, a

103
inglesa, a bolonhesa. Também ela corresponde a um progresso técnico: o
abandono do fragmento de cana pela pena de ave, geralmente de pato,
que permite «maior agilidade e rapidez no trabalho».
A ornamentação dos livros diminui: as maiúsculas e as miniaturas
passam a ser feitas em série. Se os manuscritos de Direito continuam
em geral luxuosos, visto que os juristas pertencem quase todos a uma
classe rica, os livros dos filósofos e dos teólogos, quase sempre pobres,
só excepcionalmente contêm miniaturas. Muitas vezes o copista deixa
em branco o espaço para as maiúsculas e miniaturas, de forma que um
comprador modesto possa comprar o manuscrito assim mesmo,
enquanto um cliente mais rico poderá pintar os espaços reservados
para o efeito.
Acrescentemos a estes pormenores significativos a abundância
crescente de abreviaturas — é preciso produzir depressa —, os
progressos da paginação, da titulação, dos índices, a presença
esporádica de listas de abreviaturas, o recurso sempre que possível à
ordem alfabética na apresentação. Tudo se organiza para facilitar a
consulta rápida. O desenvolvimento do ofício de intelectual produziu
a era dos manuais — do livro manuseável e manuseado. Testemunho
evidente da aceleração da velocidade de circulação da cultura escrita
e da sua difusão. Fez-se uma primeira revolução: o livro deixa de ser
um objecto de luxo para passar a ser um instrumento. É um
nascimento, mais do que um renascimento, enquanto se espera pela
imprensa.
Instrumento, o livro torna-se um produto industrial e um
objecto comercial. À sombra das universidades cresce um povo de
copistas — são muitas vezes estudantes pobres que ganham assim a sua
subsistência — e de livreiros (stationarii). Indispensáveis à oficina
universitária, impõem a sua admissão como operários de pleno direito.
Obtêm o benefício de privilégios dos universitários, são abrangidos
pela jurisdição

104
da universidade. Engrossam os efectivos da corporação, alargam-na até
às margens dos artesãos auxiliares. A indústria intelectual comporta as
suas indústrias anexas e derivadas. Alguns desses produtores e
comerciantes são mesmo já personagens importantes. A par «dos
artesãos cuja actividade se reduzia à revenda de livros a bom preço»
outros «tomam a dimensão do editor internacional.»

O método: a escolástica

Além dos seus utensílios, o técnico intelectual dispõe de um


método: a escolástica. Sábios ilustres, entre os quais Mons.
Grabmann, contaram já a sua origem e a sua história. O Padre Chenu,
na Introduction à 1'Étude de Saint Thomas d'Aguin, faz sobre ela uma
exposição notável. Tentemos isolar o aspecto e o significado dessa
escolástica, vítima de ataques seculares e que tão difícil é compreender
sem a estudarmos a fundo, de tão rebarbativo que é o seu lado técnico.
As palavras do Padre Chenu devem servir-nos de guia: «Pensar é um
ofício cujas leis estão minuciosamente fixadas.»

Vocabulário

Leis da linguagem, antes de mais. Se as famosas controvérsias


entre realistas e nominalistas preencheram o pensamento medieval foi
porque os intelectuais da época atribuiam às palavras o devido valor e se
preocupavam com a definição do seu conteúdo. Era para eles essencial
saber que relações existem entre a palavra, o conceito, o ser. Nada de
mais oposto ao verbalismo do que essa preocupação, verbalismo de
que a escolástica tem sido acusada e em que, aliás, caiu por vezes
durante o século XIII e frequentemente depois. Os pensadores e
professores da Idade Média querem saber de que estão a falar. A
escolástica tem por base a gramática. Os escolásticos são os herdeiros
de Bernardo de Chartres e de Abelardo.

105
Dialética

Leis da demonstração, depois. O segundo andar da escolástica é a


dialéctica, conjunto de processos que problematizam o objecto do
saber, que o expõem, o defendem contra os atacantes, o desenredam e
convencem o ouvinte ou o leitor. O perigo aqui reside no raciocinar em
seco — não já o verbalismo mas a verborreia. À dialéctica é
necessário fornecer um conteúdo, não apenas de palavras mas de
pensamento eficaz. Os universitários são os descendentes de João de
Salisbúria que dizia:

«A lógica, só por si, é seca e estéril; não produz qualquer


fruto em matéria de pensamento se não passar para lá
de si mesma».

Autoridade

A escolástica alimenta-se de textos. É método de autoridade e


apoia-se no duplo contributo das civilizações precedentes: o
Cristianismo e o pensamento antigo enriquecido, como vimos, pelo
desvio árabe. É o resultado de um momento, de um renascimento.
Assimila o passado da civilização ocidental. A Bíblia, a Patrística,
Platão, Aristóteles e os Árabes são os elementos do saber e as matérias-
primas da obra. Aqui, o perigo é a repetição, o psitacismo, a imitação
servil. Os escolásticos herdaram dos intelectuais do século XII um sen-
tido agudo do necessário e inevitável progresso da história e do
pensamento. Com a matéria-prima de que dispõem constroem a sua obra.
Aos alicerces acrescentam novos andares, edifícios originais. Situam-se
na linha de Bernardo de Char-tres, içados aos ombros dos Antigos para
verem mais longe.

«Nunca encontraremos a verdade — diz Gilbert de


Tournai— se nos contentarmos com o que foi já
descoberto... Aqueles que escreveram antes de nós

106
não são para nós senhores mas guias. A verdade está ao
alcance de todos, não foi ainda integralmente conquistada».

Admirável manifestação do optimismo intelectual, reverso do triste


já se disse tudo, chegámos tarde demais...

Razão: a teologia como ciência

É que às leis da imitação, a escolástica acrescenta as leis da razão;


aos preceitos da autoridade, os argumentos da ciência. Melhor ainda
— e é um progresso decisivo deste século —, a teologia apela para a
razão, torna-se uma ciência. Os escolásticos respondem ao convite
implícito nas Escrituras que incita o crente a racionalizar a sua fé:
«Estai sempre prontos para satisfazer quem quer que vos interrogue,
para explicar a razão daquilo que em vós existe graças à fé e à
esperança» (I P. tr., 3,15). Respondem ao apelo de S. Paulo para quem a
fé é «o argumento das coisas invisíveis (argumentum non apparentium)
{Heb., XI,I). Depois de Guilherme de Auvergne, inovador neste
domínio, e até S. Tomás, que fará da ciência teológica a mais segura
das exposições, os escolásticos lançarão mão da razão teológica, razão
iluminada pela fé (ratio fide illustrata). A profunda fórmula de Santo
Anselmo fides quarens intellectus, a fé em busca da inteligência será
esclarecida no momento em que S. Tomás definir como princípio: «A
graça não faz desaparecer a natureza; completa-a (gratia non tollit
naturam sed perficit)».
Nada de menos obscurantista que a escolástica, para quem a
razão termina na inteligência, cujos clarões se fundem na luz.
Assim nascida, a escolástica desenvolve-se no seio do trabalho
universitário, com processos próprios de exposição.

107
Os exercícios: «quaestio», «disputatio», «quodlibet»

Na base, o comentário de texto, a lectio, análise em profundidade


que parte da análise gramatical — que permite apreender a letra (littera)
—, se eleva até à explicação lógica — que fornece o sentido (sensus) —
, termina na exegese — que revela o conteúdo de ciência e de
pensamento (sententia).
Mas o comentário dá origem à discussão. A dialéctica permite
ultrapassar a compreensão do texto para tratar as questões que ele
coloca, leva-o a apagar-se perante a busca da verdade. A exegese dá
lugar a toda uma problemática. Segundo processos apropriados, a lectio
transforma-se em quaestio. O intelectual universitário nasce a partir do
momento em que «põe em questão» o texto que passa a ser apenas
um suporte; nasce a partir do momento em que, de passivo, se torna
activo. O mestre deixa de ser um exegeta para ser um pensador.
Apresenta soluções, cria. A conclusão que retira da quaestio, a
ãeterminatio, é fruto da sua reflexão.
No século XIII, a quaestio liberta-se mesmo, completamente, do
texto. Tem existência em si mesma. Com a participação activa dos
mestres e dos estudantes, serve de matéria de discussão, transformou-se
em disputatio.
O Padre Mandonnet 2 faz dela uma descrição clássica:

«Quando um mestre encetava uma disputa, ces-savam


todas as aulas dadas nessa manhã pelos outros mestres ou
bacharéis; apenas o mestre que sustentava a disputa
dava uma breve lição para permitir que os assistentes
fossem chegando; depois começava a disputa. Ocupava
uma parte mais ou menos con-siderável da manhã.
Deviam estar presentes a este exercício todos os bacharéis
da faculdade e os alunos desse professor. Os outros
mestres e estudantes eram

2
Revue Thomiste, 1928, pp. 267-269.

108
livres de assistir ou não; [.....]. O clero parisiense, bem
como os prelados e outras personalidades eclesiásticas de
passagem pela capital, frequentavam muito estes
torneios que apaixonavam os espíritos. A disputa era,
de facto, o torneio dos clérigos.
A questão a debater era previamente fixada pelo
mestre que devia sustentar a disputa. Era anunciada e
marcada nas outras escolas da faculdade [...].
A disputa desenrolava-se sob a direcção do mestre;
mas na realidade não era ele quem discutia. O
bacharel que dele dependia é que assumia a
responsabilidade de responder e assim iniciava a sua
aprendizagem deste tipo de exercícios. Geralmente as
objecções eram apresentadas, em aspectos diferentes,
primeiro pelos mestres presentes, depois pelos bacharéis
e, finalmente, se se justificasse, pelos estudantes. O
bacharel respondia aos argumentos propostos e, quando
necessário, o mestre prestava-lhe assistência. Era esta
sumariamente a fisionomia de uma disputa vulgar; mas
isto não passava da primeira parte, embora fosse a
principal e a mais movimentada.
As objecções apresentadas e resolvidas no decurso
da discussão, sem ordem preestabelecida, apresentavam-se
no final como uma matéria doutrinal bastante
desordenada, menos semelhante no entanto aos destroços
de um campo de batalha do que aos materiais
semitrabalhados de um estaleiro de construções. A esta
sessão de elaboração se seguia por isso uma outra a que
se chamava decisão magistral.
No primeiro dia legível, como se dizia então, isto
é, no primeiro dia em que o mestre que tinha sustentado
a disputa podia dar aula, visto que um Domingo ou
feriado ou qualquer outro obstáculo
109
podia impedir que tivesse lugar precisamente no dia
seguinte ao da discussão, o mestre retomava na sua escola
o assunto discutido na véspera ou alguns dias antes.
Começava por ordenar, tanto quanto o assunto o
permitisse, segundo uma ordem ou uma sucessão lógica,
as objecções apresentadas contra a sua tese, dando-lhes
uma formulação definitiva. Após as objecções apresentava
alguns argumentos a favor da doutrina que ia propor.
Passava depois à exposição doutrinária, mais ou menos
extensa, sobre a questão debatida, exposição que fornecia
a parte central ou essencial da determinação. Terminava
respondendo a cada uma das objecções apresentadas
contra a doutrina da sua tese [...].
A acta de determinação, passada a escrito pelo mestre ou
por um ouvinte, constitui aqueles escritos a que
chamamos Questões disputadas e que são a última etapa
da discussão.»

Neste quadro se desenvolveu finalmente um género especial: a


disputa quodlibética. Os mestres podiam organizar duas vezes por ano
uma sessão em que se ofereciam para tratar um problema posto por
qualquer pessoa sobre qualquer assunto (de quodlibet ad voluntatem
cujuslibet). O padre Glorieux 3 descreveu este exercício nos seguintes
termos:
«A sessão começa talvez cerca da hora terça ou sexta, de
qualquer modo muito cedo, porque corre o risco de se
prolongar durante muito tempo. O que a caracteriza é o
aspecto caprichoso, inesperado e a incerteza que sobre
ela paira. Sessão de discussão, de argumentação, como
tantas outras; mas que oferece a característica particular
de a iniciativa esca-

3
La littérature quodlibétique, 1936.

110
par ao mestre para passar a caber à assistência. Nas
disputas vulgares, o mestre anunciou com antecedência
os temas de que se irá ocupar, reflectiu acerca deles e
preparou-os. Na disputa quodlibética, qualquer pessoa
pode lançar qualquer questão. E é aí que reside o
grande perigo para o mestre que a orientar. As
perguntas e as objecções podem surgir de todos os lados,
hostis, curiosas ou malévolas, não importa. Podem
interrogá-lo de boa fé, para conhecerem a sua opinião;
mas podem tentar fazê-lo cair em contradição consigo
mesmo ou obrigá-lo a pronunciar-se sobre temas
escaldantes que preferiria nunca abordar. Às vezes é um
estrangeiro curioso ou um espírito inquieto; às vezes é
um rival despeitado ou um mestre curioso que tentará
colocá-lo em situação pouco airosa. Por vezes os
problemas são claros e interessantes; outras vezes as
perguntas são ambíguas e o mestre tem muita dificuldade
em captar o seu exacto alcance e verdadeiro sentido.
Alguns refugiam-se candidamente no domínio puramente
intelectual; outros alimentam suspeitas de natureza
política ou de ataque pessoal... Aquele que pretender
sustentar uma disputa quodlibética terá, portanto, de
possuir uma presença de espírito pouco vulgar e uma
competência quase universal».

Assim se desenvolve a escolástica, mestra de rigor, estimuladora


do pensamento original adentro da obediência às leis da razão. O
pensamento ocidental iria ficar para sempre por ela marcado, pois com
ela fizera progressos decisivos. Evidentemente que se trata da
escolástica do século XIII, em plena pujança, manejada por espíritos
perspicazes, exigentes, cheios de vigor. A escolástica flamejante do
fim da Idade Média poderá excitar, justamente, o desprezo de um
Erasmo, de um Lutero, de um Rabelais. A escolástica barroca suscitará a
legítima repulsa de um Malebranche. Mas a inspiração e

111
hábitos da escolástica passaram a fazer parte dos novos progressos do
pensamento ocidental. Seja como for, Descartes deve-lhe muito. Na
conclusão de um livro profundo, Etienne Gilson pôde escrever:
«Não é possível compreender o cartesianismo
sem o confrontar continuamente com essa escolástica
que desprezou, no seio da qual contudo se
instala e da qual se pode afirmar que o alimenta,
visto que a assimila».

112

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