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Salvaguardas culturais
Tipologia
• Civilização do escrito;
• Existência de escolas públicas: litterator, grammaticus, rhetor;
• Existência de um ensino privado;
• Itinerário intelectual obrigatório; exercícios escolares típicos;
• Cânone das leituras: Cícero, Virgílio;
• Bibliotecas públicas e privadas;
• Códices, uolumina, tabulae;
• Cálamo, estilete;
• Abundância da produção escrita usual, de consumo imediato;
• Regularidade da produção escrita nobre, destinada a ser
conservada;
• Importantes centros de ensino e de cultura (Roma, Cartago,
Córdova, Lião);
• Actividade epigráfíca contínua e geograficamente disseminada;
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• Administração escrita;
• Direito escrito; escolas de direito;
• Universalidade das leis;
• Noção de cidadania e de res publica;
• Cultura erudita disseminada; prioridade à retórica;
• Persistência da tradição literária;
• Prestígio das artes liberais;
• Prestígio do passado imperial;
• Unidade interdialectal do latim falado;
• Coerência intercultural do latim falado;
• O latim, língua de comunicação geral;
• Ausência de scripta das linguas bárbaras.
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Passaporte agostiniano
Caberia, contudo, ao maior — e último na história literária do
império — de todos dar às belas-letras o passaporte de que
necessitavam para que o seu destino se fixasse de modo positivo.
É certo que Agostinho não crê que a cultura antiga, de que é herdeiro
clarividente e resoluto, esteja a ponto de perder a peanha histórica
sobre a qual sempre viveu; se não alimenta ilusões sobre a eternidade
do império, também não tem o sentimento de que os seus dias estejam
contados. As suas tomadas de posição são, consequentemente,
adoptadas na perspectiva de uma continuidade. É importante ter em
conta este factor externo, pois não restam dúvidas de que, se tivesse
compreendido que o sistema escolar plurissecular que conhecia ia
ser posto em perigo de morte devido ao desaparecimento da cidade
terrena que o albergava, o seu desejo de salvaguardar o essencial
ter-se-ia estendido a um maior número de disciplinas e teria incluído
algumas mais humildes. No entanto, a profissão de fé em matéria de
educação cristã, consubstanciada na sua De doctrina christiana,
justifica a imagem do passaporte, pois traz a legitimação, não já
unicamente prática, mas também teórica, da manutenção da tradição
cultural antiga.
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Ora, ficamos a saber que um padre de Cartago, belamente apelidado
de Deogratias (Graças a Deus), se dirigiu a Agostinho a fim de
resolver um problema que o atormentava: tem a sensação de que,
quando fala aos fiéis no quadro da catequese, a sua palavra não tem
o poder convincente que devia ter.
Agostinho responde-lhe primeiro confessando-lhe a própria
sensação de insatisfação e de insegurança quando escuta as
palavras que ele próprio pronuncia. Também ele tem a
impressão de que é impotente para fazer compreender ao
auditório tudo quanto pensa e para imprimir a sua palavra no
molde exacto do seu pensamento.
Assim, depois de ter tranquilizado em parte este peticionário,
Agostinho satisfaz-lhe o pedido, analisando demoradamente as
diversas razões que podem suscitar o enfado dos auditores e
apresentando-lhe métodos distintos para remediar o mal. E conclui
compondo para um tema idêntico dois modelos diferentes de
homilias: um, extenso, outro, breve.
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É esse o caso dos três primeiros livros, que exaltam o
conhecimento do livro por excelência como fundamento da cultura
cristã e definem os meios para conseguir tal desiderato. De facto,
reconhecem-se aí a cada instante os métodos caros ao grammaticus.
Reconhecendo que a Bíblia é um texto que, pelo facto de ser
inspirado, não deixa de ser literário, Agostinho faz com que na
aquisição de um saber bíblico que conduza a uma exegese do texto
sagrado se sucedam as etapas perfeitamente tradicionais da lectio,
da emendatio e da enarratio.
Técnicas do grammaticus
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se lê apenas no sentido estrito (ad literam), mas também num sentido
figurado (translatum). Ora o conhecimento das figuras faz parte do
arsenal dos intelectuais, habituados há séculos ao estudo dos tropos.
Orator christianus
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Teve já ocasião de responder às angústias de um catequista, apesar
de tudo, talentoso, Deogratias. Só uma técnica apropriada pode dar
ao pastor os meios conceptuais, literários e psicológicos para se
libertar destas angústias.
E, assim, no livro 4 — escrito cerca de vinte anos depois dos
outros três — encerra De doctrina christiana com uma exposição
consagrada à maneira de ensinar o saber cristão (De rebus
exprimendis). Previne o leitor de que não deve esperar dele um curso
de retórica profana, pois esta ars deve ser aprendida nas escolas
especializadas, isto é, nos rhetores, quando se tem a idade juvenil
adequada para tal aprendizagem. Não poderia reservar-se melhor
um lugar legítimo a esta escola clássica: preparado, talhado, formado
nela, o orador, quando sai, está dotado dos meios de que necessita
para patentear o seu talento no quadro da fé.
Armas da persuasão
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O mestre, por uma série de análises estilísticas, demonstra as
qualidades literárias e oratórias de textos bíblicos escolhidos, que
vasculha com olho de professor de retórica.
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Assim definidos e claramente ilustrados, consoante os quadros
do pensamento tradicional, os modos estilísticos são objecto de uma
série de conselhos práticos, através dos quais o mestre estimula o
orador cristão a recorrer a um dos processos favoritos da retórica
antiga, a uariatio. Por outras palavras, a fim de manter o público
atento, o pastor esforçar-se-á por passar bastantes vezes de um estilo
para outro. Evitará, nomeadamente, abusar do registo sublime, que
só deve aparecer excepcionalmente, quando se adapte a circunstâncias
ou a um tema dramáticos.
Estruturas preparatórias
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3.2. Factores de desmembramento
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notável capacidade de adaptação geográfica. Já, por sua vez, as
massas que habitam o império estão fixas à terra, seja nas grandes
cidades, seja nos campos (caso dos colonos). Depois, são etnias livres;
a estrutura social é pouco diferenciada verticalmente, verificando-
se oposição sobretudo entre o chefe e os seus súbditos. Trata-se de
uma grande clivagem com a sociedade romana, que distingue entre
potentes e humiliores, arrasta milhões de escravos e se esforça por
submeter os próprios homens livres a tarefas hereditárias
(corporações, cúrias).
Os Bárbaros são indivíduos treinados no combate e que usam
livremente as suas armas: assim o testemunham os túmulos, onde
os guerreiros são enterrados com as respectivas armas. Esta
promoção da coragem individual é associada a uma valorização
da força física e das actividades desportivas de toda a espécie para
militares. Em compensação, no império o exército «popular» já
desapareceu há muito para ser substituído por um exército
profissional (começada no tempo de Mário, acelerada sob Sila e
César, esta substituição fica completa a partir dos primeiros
imperadores júlio-claudianos). E, assim, as resistências armadas
organizadas fora das defesas previstas pelanotitia dignitatum (lista
dos comandos) são raras: o exemplo de Edício, que se colocou à
cabeça de uma milícia local para libertar Clermont cercada pelos
godos de Eurico, é excepcional.
Mosaico étnico-jurídico
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composição em função do wergeld (tarifa) de um indivíduo —
pertence, provavelmente, a uma prática absolutamente não escrita.
Basta uma palavra para recordar até que ponto estas estruturas são
estranhas ao mundo antigo. O direito romano é, antes de tudo, um
direito da tradição escrita. É universal: todos os cidadãos do império
lhe estão submetidos, encontrem-se onde se encontrarem (ainda que,
na prática, as punições variem segundo o estrato social). Por fim, a
sua aplicação assenta no funcionamento preciso de tribunais, que têm
sede em todas as províncias. O choque entre a civilização romana e o
mundo bárbaro talvez conheça a sua amplitude máxima a este nível
de oposição entre as culturas de povos sem escrita e uma sociedade
que investe na escrita os valores mais importantes.
Um cristianismo marginal
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As oposições são muitas vezes mais suaves, como acontece no
reinado de Teodorico na Itália ostrogoda. A Espanha apresenta um
caso intermédio, onde algumas arremetidas violentas alternam com
uma luta de influências larvar.
Regionalização da administração
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um profissional, o defensor ciuitatis. Este obedecia à cúria local,
que, por sua vez, prestava contas ao prefeito, etc. Seguia-se uma
certa continuidade no espaço e no tempo, pois tudo decorria, ao
fim e ao cabo, da aplicação das leis redigidas pelos juristas da
corte, promulgadas pelos soberanos e, em seguida, copiadas e,
posteriormente, transmitidas às instâncias regionais (nomeadamente
às dioceses).
A deslocação espacial sofrida pelo império no Ocidente ameaça,
pois, ser acompanhada por um desmembramento institucional total.
A massa de documentação escrita que assegura o funcionamento
regular das instâncias administrativas locais encontra-se subitamente
ameaçada, tanto mais que os recém-chegados, apoiando-se nos
próprios costumes, podem encontrar expedientes para não
assegurarem a sua perenidade. A partilha das terras entre os grandes
proprietários, desejosos de salvaguardarem a sua riqueza, e os
recém-chegados, ávidos de explorarem o seu poderio, é uma
ocasião bem propícia para o completo desmantelamento do sistema
tradicional.
Falhas internas
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e o paganismo em declínio não conduziu a uma evaporação das forças
conservadoras: em pleno século VI um arauto do paganismo da «nova
vaga», Zósimo, ainda escreve uma crónica em que cobre o imperador
Julião de elogios. As doutrinas rivais do cristianismo, sobretudo o
neoplatonismo, estão longe de terem cedido: é necessária uma medida
jurídica em 529 para encerrar à força as escolas de Atenas: os filósofos
irão refugiar-se na Pérsia! Por fim, a cristandade não encontrou a
segurança. Se a herança ariana divide o Ocidente, o Oriente envolve--
se na terrível querela monofisita, a qual, antes da querela das
imagens, contribuirá para alienar ao império uma parte importante
das suas províncias no momento em que chega a ameaça islâmica.
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3.3. Vectores de continuidade
Foederati e assimilação
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justiça tradicional, e, em troca, os cidadãos romanos continuam a
depender da justiça romana. Assim, as leis bárbaras e as leis romanas
começam a coabitar num mesmo solo. Por outro lado, a estes
guerreiros é rapidamente atribuído um papel policial no interior das
próprias fronteiras. O exército, que, sob as ordens do magister
utriusque militiae Aécio, detém Átila às portas de Troyes é composto
por metade de legionários romanos e de federados visigodos
conduzidos pelo próprio rei, o qual perde a vida em combate.
Naturalmente, estes foedera não impedem uma expansão
contínua do espaço ocupado e controlado pelos Bárbaros à custa
daquele que é regido por uma autoridade dependente do imperador.
Numerosos conflitos locais, opondo os soldados do império às
agitações dos federados, assinalam esta história. Mas a disseminação
— a mitage* — completa pelo espaço romano estende-se
definitivamente, pelo menos, sobre duas gerações, dos anos 400 a
467-470. Daqui resulta que o enraizamento e a aculturação dos povos
germânicos progridem mais depressa do que o seu acesso à soberania
completa. Quando os reinos bárbaros se instalam na viragem dos
séculos V-VI, estão nas mãos de homens que são já muito menos
estranhos à civilização romana tardia.
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da população romana. Uma percentagem de 10% talvez seja
representada pelo contributo franco, muito concentrado no Norte da
Gália, no território que irá ser o reino de Clóvis. Bem entendido, o
impacto militar não tem medida comum com o número dos invasores,
pois é um ponto aceite que são todos treinados no ofício das armas.
Seja como for, estes recém-chegados são sempre muito minoritários
em relação ao povoamento dos territórios que, a bem ou a mal, os
acolhem. É certo que se concentram em maior ou menor densidade:
no coração da Espanha em direcção a Toledo, no caso dos Visigodos;
na África pró-consular e em Cartago, no caso dos Vândalos; no Norte
da Itália e no Lácio, no caso dos Ostrogodos; depois no Norte da Itália
(daí o nome de Lombardia) e em Benevento, no caso dos Lombardos.
Osmose
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Mentalidade religiosa
Consonâncias aristocráticas
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imperial. A partir da segunda metade do século V, os pródromos,
surgidos já esporadicamente no século III, reaparecem, adivinhando--
se que uma parte dos potentes romanos, cansados das opções
imperiais, pensa cada vez mais em desenvolver o próprio poder de
modo puramente regional, ainda que com o apoio (justamente com
esse apoio) dos bárbaros federados... A elevação do senador arvérnio
Avito ao império faz-se por pressão da aristocracia galo-romana,
mais ou menos aliada à diplomacia borguinhã. Um senador como
Aravando aprende, para surpresa de Sidónio Apolinário, o germânico
a fim de poder lidar directamente com os recém-chegados, muitas
vezes contra a autoridade do pretório das Gálias. A corte de Teodósio
II em Toulouse é-nos descrita por Sidónio na viragem do século em
termos que patenteiam as convergências indicadas.
Fascínio romano
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eminente do patriciado romano. Mas, mesmo na Gália do século VI,
os modelos imperiais nunca estão longe dos corações: recordemos o
episódio das tábuas consulares concedidas a Clóvis, a admiração de
um rei (ariano, note-se) como o borguinhão Gondebaldo por um
letrado do calibre de Avito, bispo católico de Viena, e, finalmente,
os índices, mais probatórios do que se afirmou (com uma ironia
despropositada), da vontade que os soberanos do fim do século têm
de se rodearem de um aparelho áulico cujos modelos remontam,
evidentemente, à corte romana ou bizantina.
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não dispusesse dos dossiers jurídicos. E a conversão dos povos
recém-chegados ao cristianismo não deixa toda a liberdade aos
soberanos para infringirem abertamente a lei. Por outro lado, convém
cunhar moeda. O desmoronamento do império cria um vazio e uma
necessidade: as oficinas de moeda da capital e da Itália são
substituídas por oficinas locais ao serviço dos novos soberanos. Mas
todo um saber e uma cultura que lhes estão ligados encontram-se,
assim, parcialmente preservados.
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Ciuitas ecclesiastica
Autonomia e continuidade
Santo Agostinho estabelece — também neste ponto — os
fundamentos teóricos da evolução. Ora, depois de ter implicado certos
riscos antes da paz da Igreja, esta autonomia mostra-se,
progressivamente, uma garantia da continuidade cultural no momento
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em que o império já não está em condições de a assegurar. Verificou-
se há muito que o desmoronamento do sistema militar-administrativo
imperial é acompanhado por uma espantosa promoção do episcopado.
A evolução é particularmente notória na Gália, onde figuras como
Cesário de Arles ou Gregório de Tours a simbolizam e resumem ao
mesmo tempo. A promoção do episcopado apresenta um interesse
essencial para o nosso tema, na medida em que, a partir do século V,
o cursus ecclesiasticus (carreira eclesiástica) vem oferecer às grandes
famílias senatoriais a possibilidade de investirem as suas qualidades
em funções que a sociedade civil vai deixando, pouco a pouco, de
oferecer.
Portanto, quando o império se apaga, uma parte importante das
sedes episcopais do Ocidente encontra-se naturalmente nas mãos de
personagens para as quais a tradição cultural está ligada à própria
tradição familiar. A autonomia da hierarquia e da administração
eclesiásticas em relação às correspondentes laicas abre a possibilidade
de uma sólida continuidade cultural, pois preserva uma certa
estabilidade social. Se acrescentarmos que a preocupação com uma
formação completa encontrou direito de cidade junto dos intelectuais
cristãos, na esteira do De doctrina christiana, e recordarmos que era
no seio da elite senatorial que o nível de instrução tinha todas as
hipóteses de ser mais elevado, compreenderemos como é que a
autonomia eclesial dos séculos IV-V condiciona a permanência
cultural dos séculos VI-VII.
Episcopado e cultura
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elogio das virtudes ascéticas — ainda que as virtudes estóicas antigas
lhes tenham formado a prefiguração em mais de um ponto —,
modificam esta filiação, mas sem a desfigurarem. Não causará
surpresa saber que, de qualquer modo, alguns dos membros
eminentes do episcopado merovíngio assim louvados descendem
de grandes famílias romanas.
Evolução semelhante se produziu no Norte da Itália, onde o culto
dos bispos locais, iniciado desde as origens, assume uma amplitude
maior a partir do século VI, altura em que a regra antiga, segundo a
qual os mortos deviam ser enterrados fora dos muros da cidade,
desaparece e surgem as primeiras inumações intra muros. Esta
revolução generaliza-se a partir do século VII. É igualmente por esta
época que começa o culto da recordação do bispo defunto. Cada
grande cidade (Ravena, Milão, Pavia) dota-se, assim, de um padroeiro
local, digno sucessor dos antigos protectores: o bispo torna-se o
padroeiro de toda a cidade.
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do monaquismo. Fora de toda a organização eclesial, surgem nos
desertos do Egipto personagens tão fartas e fortes em virtudes cristãs
como débeis e fracas em cultura erudita. O «pai dos frades», Santo
António, camponês egípcio de origem muito humilde, era quase
analfabeto. Ao isolamento em relação às multidões correspondeu
um encerramento numa cultura pessoal assente na tradição oral, na
oração e na ascese mais exigente. O menor paradoxo não é, com
efeito, o da glória de António se ter ficado a dever à obra de
propaganda escrita por um dos maiores sábios do tempo, S. Jerónimo.
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Orientais não satisfazem os conuersi. Uma mentalidade de legislador
não desaparece assim tão facilmente.
Salvaguardas monacais
Regula magistri
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(a Regra do mestre) e a Regula Benedicti (a Regra Beneditina),
sobretudo esta última, pois tornou-se uma das instituições
fundamentais do Ocidente cristão.
Recordemos, numa palavra, que já no século IV o fundador do
monaquismo no Ocidente, Martinho, nascido no Norte da Itália,
antigo soldado da Panónia, previra imediatamente que o trabalho de
copista faria parte obrigatória da regra de vida em comunidade. Esta
prescrição vai ser encontrada de modo muito preciso num dos textos
que durante muito tempo foi dos mais misteriosos da história literária
e religiosa, a Regula magistrl
A obra constitui um monumento importante, porque é muito mais
extensa do que todas as outras regras suas contemporâneas. O
redactor, que se fazia tratar por «mestre» e era, portanto, o abade da
comunidade, conseguiu manter um anonimato impenetrável. Mas
foram desvendados alguns mistérios da obra: sabe-se hoje que é
anterior à Regra Beneditina, à qual serviu de modelo, e que a
composição foi redigida no 1° quartel do século VI, muito
provavelmente a sueste de Roma, e que se dirigia a uma comunidade
de algumas dezenas de frades.
Disciplina
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O mais importante, porém, é o domínio do tempo. Do ano e do
dia. O frade vive a um determinado ritmo, que reduz as horas de
sono, alarga as da oração e garante um mínimo de trabalho manual.
Mínimo, na verdade, porque os trabalhos mais rudes — que são os
agrícolas — estão proibidos aos membros da comunidade: as
privações exigidas aos frades são consideradas incompatíveis com
esse tipo de investimento físico. O legislador obriga, por fim, a um
máximo de tarefas intelectuais, isto é, à leitura e à meditação das
Escrituras.
Cultura
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arriscam-se a uma excomunhão, da qual só sairão à custa de uma rude
penitência. Estas considerações significam que o programa cultural
traçado para os frades tinha todas as hipóteses de ser respeitado.
Regula Benedicti
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A liturgia é acompanhada de cantos e de leituras: «Ao domingo
levantar-se-ão mais cedo para as vigílias. Nestas vigílias manterão a
medida, isto é, após terem modulado seis salmos e o versículo, todos
se sentarão, em boa ordem e segundo a respectiva categoria, nos
bancos e lerão num livro quatro lições com os seus responsos [...]
[XI].»
As leituras são novamente obrigatórias durante as refeições
tomadas em comum: «A leitura nunca deve faltar à mesa dos irmãos
[...] Far-se-á silêncio completo, de tal modo que na sala não se ouça
ninguém a murmurar ou a erguer a voz, a não ser unicamente o leitor.
Quanto àquilo que é necessário para comer e beber, os irmãos servir-
se-ão um de cada vez, de tal modo que ninguém tenha de pedir
nada. Se, no entanto, alguém precisar de alguma coisa, pedi-la-á,
fazendo soar um sinal, em vez de levantar a voz [XXXVIII].»
Por fim, decorrem as leituras das vésperas: «Logo que se levantem
da ceia, todos se sentarão juntos e um lerá as Conferências, ou as
Vidas dos Padres, ou qualquer outra leitura que edifique os ouvintes
[...] se é dia de jejum, uma vez lidas as vésperas, após um curto
intervalo, passarão à leitura das Conferências. Lerão quatro ou cinco
folhas [XLII]
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Isso ainda torna a injunção da leitura individual mais surpreendente.
Todas as manhãs durante a estação do Verão (desde a Páscoa até
Outubro), todas as noites durante a estação do Inverno, cada monge
deve consagrar-se à leitura pessoal durante, pelo menos, duas horas.
Prevê-se uma sesta no Verão, durante a qual a leitura é igualmente
aconselhada, mas respeitando o repouso dos outros. É durante o período
da Quaresma que se distribuem os livros: «Cada um receberá um livro
da biblioteca e deverá lê-lo de seguida e na íntegra.»
Rigor do exercício
Litterae
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cultural a despeito dos choques e das destruições que assinalam o
desmoronamento do Império Romano no Ocidente e a sua
substituição por reinos bárbaros? A primeira é o papel preponderante
que a expansão da cristandade desempenha: tanto os Romanos como
os Bárbaros vêem-se confrontados com os mesmos problemas de
domínio de um saber essencialmente livresco e erudito.
A segunda é a profundidade da influência romana sobre os
soberanos bárbaros. Estes desejam muito mais retirar vantagens das
consequências da deslocação do império do que levar ao seu termo
lógico a demolição das estruturas do antigo império.
A terceira reside decerto no facto de os próprios intelectuais
cristãos terem aberto as portas a uma cultura e a uma fé cristãs
eruditas, isto é, que se alimenta de todos os contributos da tradição
antiga. A obra de Agostinho De doctrina christiana resume e coroa
esta evolução e prepara as revoluções mentais do século VII na
Inglaterra e do século VIII no continente.
No entanto, o destino da cultura do Tardoantico não se jogou no
século V nem no século VI. Para ser possível uma fusão étnica
romano-bárbara convém que o Ocidente guarde suficientes reservas
de forças vivas. As terríveis convulsões sociais destes séculos V-VI
podem pôr em perigo a massa crítica indispensável para uma
reconquista cultural europeia. Paradoxalmente, é aos lugares de
oração e contemplação que compete a constituição destas reservas
de forças vivas, onde o saber e os manuscritos muitas vezes
encontram refúgio: é a quinta e última componente.
Como se vê, estes factores são contraditórios. Observando de
perto as convulsões do século, tão bem descritas por P. Courcelle, o
historiador não juraria a priori que as descontinuidades não levariam
a melhor sobre as permanências. Conhecemos o fim desta história,
mas tal não deve impedir-nos de estudarmos as suas etapas a fim de
discernirmos quais os vectores que nos levarão do desastre inicial
aos florescimentos carolíngios.
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