Você está na página 1de 33

Michel Banniard, A Génese Cultural da Europa (séculos V-VIII),

Lisboa, Terramar, 1995, p. 57-89

Salvaguardas culturais

Tipologia

Façamos um primeiro balanço daquilo que são os traços


característicos da civilização do Tardoantico sob um ponto de vista
essencialmente cultural. Acrescentemos-lhe imediatamente os traços
pertinentes do domínio linguístico, adiantando-nos ao que iremos
expor no capítulo 6, consagrado a estas questões:

• Civilização do escrito;
• Existência de escolas públicas: litterator, grammaticus, rhetor;
• Existência de um ensino privado;
• Itinerário intelectual obrigatório; exercícios escolares típicos;
• Cânone das leituras: Cícero, Virgílio;
• Bibliotecas públicas e privadas;
• Códices, uolumina, tabulae;
• Cálamo, estilete;
• Abundância da produção escrita usual, de consumo imediato;
• Regularidade da produção escrita nobre, destinada a ser
conservada;
• Importantes centros de ensino e de cultura (Roma, Cartago,
Córdova, Lião);
• Actividade epigráfíca contínua e geograficamente disseminada;

57
• Administração escrita;
• Direito escrito; escolas de direito;
• Universalidade das leis;
• Noção de cidadania e de res publica;
• Cultura erudita disseminada; prioridade à retórica;
• Persistência da tradição literária;
• Prestígio das artes liberais;
• Prestígio do passado imperial;
• Unidade interdialectal do latim falado;
• Coerência intercultural do latim falado;
• O latim, língua de comunicação geral;
• Ausência de scripta das linguas bárbaras.

3.1. Legitimação do legado


Enraizamento latino

Como é natural, os factores de manutenção e as causas da


dissolução desta estrutura cultural e linguística são antinómicos,
numerosos e, por vezes, difíceis de definir. Se, no entanto, a parte
helenófona do império — como sublinhámos na conclusão do
precedente capítulo com Clemente de Alexandria — se dotou muito
cedo dos fundamentos ideológicos que conduziram à duradoura
sobrevivência da cultura antiga, a parte latinófona não tardou a seguir
as mesmas pegadas. Tertuliano, Cipriano, Ambrósio, Jerónimo e
Prudêncio (para só citarmos os maiores nomes) provaram, na prática
da sua escrita, que assumiam plenamente a herança antiga. Ainda que
alguns, como Jerónimo, tivessem tido certas dificuldades para porem
em ordem o seu sistema de pensamento e para conciliarem o
cristianismo com o ciceronismo, a sua educação e a sua cultura não
podem dar lugar à mínima dúvida. São homens do Tardoantico, isto
é, de uma antiguidade que, embora tardia, nem por isso é menos
autenticamente fiel aos seus valores.

58
Passaporte agostiniano
Caberia, contudo, ao maior — e último na história literária do
império — de todos dar às belas-letras o passaporte de que
necessitavam para que o seu destino se fixasse de modo positivo.
É certo que Agostinho não crê que a cultura antiga, de que é herdeiro
clarividente e resoluto, esteja a ponto de perder a peanha histórica
sobre a qual sempre viveu; se não alimenta ilusões sobre a eternidade
do império, também não tem o sentimento de que os seus dias estejam
contados. As suas tomadas de posição são, consequentemente,
adoptadas na perspectiva de uma continuidade. É importante ter em
conta este factor externo, pois não restam dúvidas de que, se tivesse
compreendido que o sistema escolar plurissecular que conhecia ia
ser posto em perigo de morte devido ao desaparecimento da cidade
terrena que o albergava, o seu desejo de salvaguardar o essencial
ter-se-ia estendido a um maior número de disciplinas e teria incluído
algumas mais humildes. No entanto, a profissão de fé em matéria de
educação cristã, consubstanciada na sua De doctrina christiana,
justifica a imagem do passaporte, pois traz a legitimação, não já
unicamente prática, mas também teórica, da manutenção da tradição
cultural antiga.

Obrigações e angústias do orador cristão

Tudo depende, em definitivo, da eficácia da comunicação oral.


Convencer não crentes ou instruir, morigerar e guiar fiéis pressupõe,
com efeito, uma poderosíssima acção da palavra. Esta necessidade
absoluta foi exposta com clareza e espírito por Agostinho num
pequeno tratado protréptico ao De doctrina christiana, que
comporta um único livro, o De catechizandis rudibus, ou, por outras
palavras, Sobre a instrução dos neófitos. Recordemos que, em
linguagem cristã, os neófitos designam aqueles que se sentem
atraídos pela fé e vêm procurar um primeiro ensino elementar, uma
catequese, uma preparação para a admissão no seio da comunidade
dos baptizados.

59
Ora, ficamos a saber que um padre de Cartago, belamente apelidado
de Deogratias (Graças a Deus), se dirigiu a Agostinho a fim de
resolver um problema que o atormentava: tem a sensação de que,
quando fala aos fiéis no quadro da catequese, a sua palavra não tem
o poder convincente que devia ter.
Agostinho responde-lhe primeiro confessando-lhe a própria
sensação de insatisfação e de insegurança quando escuta as
palavras que ele próprio pronuncia. Também ele tem a
impressão de que é impotente para fazer compreender ao
auditório tudo quanto pensa e para imprimir a sua palavra no
molde exacto do seu pensamento.
Assim, depois de ter tranquilizado em parte este peticionário,
Agostinho satisfaz-lhe o pedido, analisando demoradamente as
diversas razões que podem suscitar o enfado dos auditores e
apresentando-lhe métodos distintos para remediar o mal. E conclui
compondo para um tema idêntico dois modelos diferentes de
homilias: um, extenso, outro, breve.

Para uma teoria cristã da cultura

Esta reflexão pertence já plenamente ao exercício em que


Agostinho se treinou demoradamente — ensinar —, pois foi
professor de retórica até ao momento da sua conversão. Toda a
sua experiência de pedagogo pagão (melhor dizendo,
neoplatónico) alimenta a exposição sobre o ensino cristão.
Exprime-se de modo mais acabado numa longa meditação que
lhe tomou trinta anos de vida, de 396 a 427. Aí estabelece os
fundamentos de uma verdadeira educação cristã nos quatro livros
de De doctrina christiana. A obra está dividida em duas partes:
primeiro, como adquirir um saber cristão (livros 1 a 3); depois,
como transmitir este saber (livro 4). Sem esquecer a especificidade
cristã deste ensino, os estudiosos têm sublinhado o facto de ser
posto em prática com base nos ensinamentos antigos, assim
colocados ao serviço da nova religião.

60
É esse o caso dos três primeiros livros, que exaltam o
conhecimento do livro por excelência como fundamento da cultura
cristã e definem os meios para conseguir tal desiderato. De facto,
reconhecem-se aí a cada instante os métodos caros ao grammaticus.
Reconhecendo que a Bíblia é um texto que, pelo facto de ser
inspirado, não deixa de ser literário, Agostinho faz com que na
aquisição de um saber bíblico que conduza a uma exegese do texto
sagrado se sucedam as etapas perfeitamente tradicionais da lectio,
da emendatio e da enarratio.

Técnicas do grammaticus

De facto, há que aprender primeiro a ler correctamente o texto


sagrado, mas para isso é necessário saber pontuá-lo (distinguere) e
recitá-lo em voz alta (pronuntiatio) de modo simultaneamente
inteligível e conforme com a fé.
Além disso, os manuscritos são múltiplos e, por vezes, dão lições
contraditórias: há que fazer um esforço para fixar o texto o mais
satisfatoriamente possível (aqui as considerações éticas substituem
os antigos critérios estéticos). É a tarefa tradicional da emendatio.
Esta pressupõe, nomeadamente, o domínio, pelo menos, das duas
línguas em que assentava a tradição clássica, pois a versão latina de
que Agostinho dispõe deve ser comparada com o original grego, a
fim de suprimir as ambiguidades. Neste ponto, o bispo demonstra
um grande conservadorismo, em comparação com Jerónimo, que,
ousadamente, descartou o intermediário grego do Antigo Testamento
em benefício do original hebraico.
Finalmente, convém comentar e explicar o texto fixado deste modo
e compreendido neste primeiro nível: o aluno procede, a partir de
então, à explanatio. Esta terceira fase faz apelo em primeiro lugar aos
recursos da análise gramatical: o género de uma palavra, a conjugação
de um verbo, o caso de um pronome, eram objecto de um
esclarecimento. A continuidade da exegese cristã com a explicação
clássica é ainda mais profunda. É que uma parte do texto sagrado não

61
se lê apenas no sentido estrito (ad literam), mas também num sentido
figurado (translatum). Ora o conhecimento das figuras faz parte do
arsenal dos intelectuais, habituados há séculos ao estudo dos tropos.

Desminagem dos clássicos

Esta exploração racional da ciência pagã é acompanhada de uma


verdadeira revolução mental, por ocasião da qual Agostinho procede
a uma verdadeira desminagem da tradição clássica. É que os
primeiros apologistas cristãos viram-se obrigados a combater
tenazmente — e com horror — as crenças pagãs. A sua presença na
literatura tornava esta mais do que suspeita e os intelectuais cristãos
do Ocidente viam-se, deste modo, dilacerados entre a sua formação
cultural e a força da sua fé. Parte do conflito foi solucionada com
opções radicais: tanto no Oriente como no Ocidente criou-se um
certo extremismo cristão hostil a todo e qualquer compromisso com
as tradições clássicas. O quase analfabetismo de alguns anacoretas
foi a manifestação mais radical deste fenómeno.
Esta dramatização, tão sensível no pensamento de Jerónimo, apaga-
-se no ensino de Agostinho. Este banaliza a religião e as crenças pagãs,
mostrando-as como puro produto da acção humana. Retira o carácter
sagrado de certos hábitos, que já não têm motivo para significarem seja
o que for de divino e podem ser integrados num comportamento cristão:
os brincos das mulheres, símbolos mágicos odiados pelos ascetas (tanto
pelos pagãos como pelos cristãos!), obtêm o perdão do pastor quando
passam a representar apenas uma busca humana do belo.

Orator christianus

Assim, Agostinho constrói as bases ideológicas que legitimam a


salvaguarda da cultura clássica antiga. O ensino cristão, inteiramente
baseado no estudo da Bíblia, estabelece uma osmose com os métodos
da exegese pagã. Mas Agostinho tem igualmente uma consciência
aguda da necessidade e da dificuldade da transmissão deste ensino.

62
Teve já ocasião de responder às angústias de um catequista, apesar
de tudo, talentoso, Deogratias. Só uma técnica apropriada pode dar
ao pastor os meios conceptuais, literários e psicológicos para se
libertar destas angústias.
E, assim, no livro 4 — escrito cerca de vinte anos depois dos
outros três — encerra De doctrina christiana com uma exposição
consagrada à maneira de ensinar o saber cristão (De rebus
exprimendis). Previne o leitor de que não deve esperar dele um curso
de retórica profana, pois esta ars deve ser aprendida nas escolas
especializadas, isto é, nos rhetores, quando se tem a idade juvenil
adequada para tal aprendizagem. Não poderia reservar-se melhor
um lugar legítimo a esta escola clássica: preparado, talhado, formado
nela, o orador, quando sai, está dotado dos meios de que necessita
para patentear o seu talento no quadro da fé.

Armas da persuasão

O orador cristão não deve defrontar os adversários desarmado:


estes disporiam de meios de persuasão muito mais poderosos, pois
as técnicas da eloquência antiga permitem equipar a palavra de uma
maneira muito eficaz. Os longos combates que Agostinho teve de
travar contra os maniqueístas, contra os donatistas, contra os pelágios,
no interior da sociedade cristã, mas também contra os vigorosos
ressurgimentos pagãos (lembremos que um dos objectivos de A
Cidade de Deus é combater estes ressurgimentos), mais o
convenceram dessa necessidade. Até à velhice, quando se vê obrigado
a medir-se com o jovem e sábio bispo de Éclane, Julião, o bispo de
Hipona tem de fazer apelo a toda a sua ciência escolar.
Agostinho afirma veementemente que a sabedoria está acima da
palavra e que a eloquência cristã deve estar ao serviço da verdade. Esta
escolha ética — que confere uma posição subordinada à forma —
não leva de modo algum o bispo a desinteressar-se dos tesouros de
eloquência que enchem os textos sagrados. Afirma que o seu estudo
reforçará no pastor não só a fé, mas também as qualidades de orador.

63
O mestre, por uma série de análises estilísticas, demonstra as
qualidades literárias e oratórias de textos bíblicos escolhidos, que
vasculha com olho de professor de retórica.

As três funções do orador cristão

Esta fidelidade assente no raciocínio não se deve a uma ilusão


de óptica. Na última parte do livro são resumidas as tarefas da
eloquência cristã, afirmando-se que ela deve «instruir, encantar e
convencer» os auditores. São os próprios termos dos tratados de
retórica de Cícero que aparecem assim em pleno século V (docere/
delectare/flectere), em condições sociais, culturais, linguísticas,
de tal natureza que não podemos pôr em dúvida que a sua reposição
na ordem do dia obedece a razões bem concretas e realistas. Uma
análise cerrada de diversas passagens de S. Paulo serve de ilustração
a esta regra clássica, que recebe assim, de certo modo, o seu
baptismo.
Estas três funções são associadas a três categorias de estilo, que
Agostinho enumera: o orador cristão utilizará o estilo humilde (sermo
submissus) para instruir, o médio para encantar (sermo moderatus)
e o sublime para convencer (sermo grandis). Deste modo, encontram--
se aqui os três níveis da eloquência ciceroniana, adaptados e
transfigurados nos três níveis da eloquência cristã.

Retórica bíblica e patrística

Voltando aos Evangelhos e a Paulo, Agostinho mostra como estes


três registos estilísticos são utilizados pelo apóstolo. Depois, inspira--
se na obra moderna dos Padres da Igreja para fazer entender ao seu
público como estes preceitos permaneceram vivos e eficazes em tal
obra. A um exemplo de estilo humilde em Cipriano sucede uma
amostra do mesmo em Ambrósio. A operação recomeça no caso do
estilo médio. Finalmente, apresentam-se amostras de estilo sublime
no Cartaginês e no Milanês.

64
Assim definidos e claramente ilustrados, consoante os quadros
do pensamento tradicional, os modos estilísticos são objecto de uma
série de conselhos práticos, através dos quais o mestre estimula o
orador cristão a recorrer a um dos processos favoritos da retórica
antiga, a uariatio. Por outras palavras, a fim de manter o público
atento, o pastor esforçar-se-á por passar bastantes vezes de um estilo
para outro. Evitará, nomeadamente, abusar do registo sublime, que
só deve aparecer excepcionalmente, quando se adapte a circunstâncias
ou a um tema dramáticos.

Estruturas preparatórias

No pensamento de Agostinho não se condensa a totalidade da


mentalidade cristã na época do Tardoantico. A sua fortíssima
personalidade e o seu poder criador fazem dele um homem à parte.
Mas o prestígio no Ocidente da obra do mestre é tal que ela
desempenha um papel decisivo na evolução da cultura dos séculos
seguintes. Agostinho está para a cultura como Donato para a gramática;
além disso, a sua influência como doutor da Igreja acaba por impor
as suas opções. Agostinho está em parte adiantado ao seu tempo: só
a partir do século VII, precisamente graças à renascença carolíngia,
é que homens como Alcuíno, Teodulfo ou Paulo Diacre, antes de
Loup de Ferrières e Smaragde de Saint-Michel, aceitarão em bloco
a herança antiga.
Entretanto, Agostinho lançou a primeira pedra, as estruturas
preparatórias, que darão a uma parte dos intelectuais a justificação
para os seus esforços de salvaguarda da herança pagã, isto é, para
assegurarem a manutenção e cópia dos manuscritos de obras pagãs.
Contudo, as convulsões da segunda metade do século V e a tormenta
do século seguinte foram acompanhadas de opções muitas vezes
contraditórias em relação à cultura e à educação antigas. Quais foram,
pois, os factores de dissolução, de manutenção e de transformação
da cultura antiga na entrada da alta Idade Média?

65
3.2. Factores de desmembramento

Forças centrífugas: impacto das invasões

A miscigenação étnica iniciada no século IV com a chegada


dos Germanos constitui um importante factor de deslocação, não
só social, mas também cultural. A língua materna dos recém-
chegados não pertence ao orbis romanus. O seu modo de educação
e de cultura pouca relação tem com as características da
civilização romana. Tácito, Amiano Marcelino, Salviano, Gregório
de Tours, assinalaram esta diferença com uma precisão que as
investigações arqueológicas confirmaram largamente. É um
truísmo afirmar que a irrupção dos Visigodos, dos Vândalos,
dos Ostrogodos, dos Francos e dos Lombardos convulsionou o
mundo antigo. Sem aplicar o esquema, um pouco rígido, que
pretende que as superstruturas culturais sejam totalmente
dependentes das infra-estruturas sociais, a presença indiscreta
dos bárbaros germanos desempenha um papel perturbador na
continuidade cultural do Ocidente.
Poremos de lado o efeito dos invasores que se limitaram a passar
— mesmo deixando ruínas à sua passagem —, como os Hunos: o
impacto da sua cavalgada não é mensurável, a não ser na
literatura! Aliás, uma das consequências francamente positivas
desta invasão foi a de acelerar a interpenetração romano-visigoda.
Também nada diremos dos primeiros raids normandos: afloram a
Gália no fim do século VIII e só representam um perigo
verdadeiramente real no século seguinte, após o período aqui
tratado. A invasão muçulmana tem um papel diferente: tardia e
lateral na história do Ocidente, será evocada a propósito da
Espanha.

Usos e costumes bárbaros


Sublinhemos algumas diferenças particularmente sensíveis. Além
da diferença linguística que revelam em relação aos autóctones,
estes povos são desenraizados: habituados a grandes
migrações, têm

66
notável capacidade de adaptação geográfica. Já, por sua vez, as
massas que habitam o império estão fixas à terra, seja nas grandes
cidades, seja nos campos (caso dos colonos). Depois, são etnias livres;
a estrutura social é pouco diferenciada verticalmente, verificando-
se oposição sobretudo entre o chefe e os seus súbditos. Trata-se de
uma grande clivagem com a sociedade romana, que distingue entre
potentes e humiliores, arrasta milhões de escravos e se esforça por
submeter os próprios homens livres a tarefas hereditárias
(corporações, cúrias).
Os Bárbaros são indivíduos treinados no combate e que usam
livremente as suas armas: assim o testemunham os túmulos, onde
os guerreiros são enterrados com as respectivas armas. Esta
promoção da coragem individual é associada a uma valorização
da força física e das actividades desportivas de toda a espécie para
militares. Em compensação, no império o exército «popular» já
desapareceu há muito para ser substituído por um exército
profissional (começada no tempo de Mário, acelerada sob Sila e
César, esta substituição fica completa a partir dos primeiros
imperadores júlio-claudianos). E, assim, as resistências armadas
organizadas fora das defesas previstas pelanotitia dignitatum (lista
dos comandos) são raras: o exemplo de Edício, que se colocou à
cabeça de uma milícia local para libertar Clermont cercada pelos
godos de Eurico, é excepcional.

Mosaico étnico-jurídico

Estas etnias não constituem, além disso, um todo homogéneo;


são antes agregados de tribos que formam conjuntos,
simultaneamente móveis, indisciplinados e pouco fiáveis. A
autoridade do soberano é sempre susceptível de se ver confrontada
com o irredentismo de um chefe. Esta fragmentação é agravada pela
multiplicidade dos costumes, a qual, por sua vez, se reflecte na
unidade do povo ou da tribo considerados. Finalmente, a codificação é
inteiramente oral: a mais célebre das tradições bárbaras — a da

67
composição em função do wergeld (tarifa) de um indivíduo —
pertence, provavelmente, a uma prática absolutamente não escrita.
Basta uma palavra para recordar até que ponto estas estruturas são
estranhas ao mundo antigo. O direito romano é, antes de tudo, um
direito da tradição escrita. É universal: todos os cidadãos do império
lhe estão submetidos, encontrem-se onde se encontrarem (ainda que,
na prática, as punições variem segundo o estrato social). Por fim, a
sua aplicação assenta no funcionamento preciso de tribunais, que têm
sede em todas as províncias. O choque entre a civilização romana e o
mundo bárbaro talvez conheça a sua amplitude máxima a este nível
de oposição entre as culturas de povos sem escrita e uma sociedade
que investe na escrita os valores mais importantes.

Um cristianismo marginal

Finalmente, os Vândalos, os Visigodos, os Ostrogodos e os


Lombardos são povos já cristianizados há muito tempo, mas cujo
cristianismo é marginal. O bispo Vúlfilas, fugindo ao império e às
perseguições antiarianas, atravessa o Danúbio no século IV para lhes
levar a palavra cristã na sua versão ariana. A poderosa personalidade
deste bispo implanta um cristianismo muito vivo entre os Bárbaros,
cristianismo que substitui crenças pagãs instáveis, mas que ameaça
aumentar, a partir de então, a violência do conflito entre a civilização
romana católica e estes ocupantes germanos arianos.
Recordemos quanta hostilidade tinha já oposto católicos e arianos
aquando do célebre caso da catedral de Milão, que, contra ventos e
marés, se manteve fiel à Igreja tradicional graças à resistência
obstinada de Ambróso no fim do século IV.
Ora, este confronto era entre cidadãos romanos: que pensar então
dos recontros entre crentes de nacionalidades diferentes? O tecido
social do antigo império encontra-se, assim, submetido por todo o
lado a tensões que atingem uma forma extrema em África, sob o
domínio vândalo, o que não surpreende, visto que esta província,
que havia sido a glória da literatura e da cristandade latinas, envereda
por uma resistência passiva, que conduz a perseguições.

68
As oposições são muitas vezes mais suaves, como acontece no
reinado de Teodorico na Itália ostrogoda. A Espanha apresenta um
caso intermédio, onde algumas arremetidas violentas alternam com
uma luta de influências larvar.

Deslocação territorial do império

Esta agitação religiosa é acompanhada de outros factores


desfavoráveis à manutenção da cultura tardoântica. É que o debate
efervescente de ideias que agita o século V pressupõe uma intensa
circulação dos homens e dos manuscritos. Pelágio desloca-se da
Irlanda a Roma a fim de transmitir a sua nova concepção
— considerada herética — do destino cristão. Da cidade partem
informadores e cópias dos textos incriminados, que chegam às mãos
de Agostinho, o qual desencadeia, sem sair de África, o combate, na
forma de tratados, cartas, mensagens, que, por sua vez, alcançam a
península. Acrescente-se que todo o mundo cristão latino participa
no debate.
Tudo isto assenta numa circulação rápida, que exige que as
estradas sejam cuidadas e protegidas e que as vias marítimas não se
vejam muito obstruídas por expedições contra os portos ou contra
as embarcações, o que, por sua vez, implica que os estaleiros de
manutenção dos meios de transporte marítimo e terrestre continuem
também a funcionar normalmente. A eficácia dos correios imperiais
resume e simboliza esta situação.

Regionalização da administração

A continuidade cultural está também ameaçada pela regionalização


da administração. Na sua organização esta dependia inteiramente da
vontade imperial. Centralizada de maneira burocrática desde
Diocleciano, a administração funcionava graças a um sistema
complexo de leis e a um pessoal abundante. Para darmos um exemplo
preciso, cada cidade dispunha de arquivos jurídicos mantidos por

69
um profissional, o defensor ciuitatis. Este obedecia à cúria local,
que, por sua vez, prestava contas ao prefeito, etc. Seguia-se uma
certa continuidade no espaço e no tempo, pois tudo decorria, ao
fim e ao cabo, da aplicação das leis redigidas pelos juristas da
corte, promulgadas pelos soberanos e, em seguida, copiadas e,
posteriormente, transmitidas às instâncias regionais (nomeadamente
às dioceses).
A deslocação espacial sofrida pelo império no Ocidente ameaça,
pois, ser acompanhada por um desmembramento institucional total.
A massa de documentação escrita que assegura o funcionamento
regular das instâncias administrativas locais encontra-se subitamente
ameaçada, tanto mais que os recém-chegados, apoiando-se nos
próprios costumes, podem encontrar expedientes para não
assegurarem a sua perenidade. A partilha das terras entre os grandes
proprietários, desejosos de salvaguardarem a sua riqueza, e os
recém-chegados, ávidos de explorarem o seu poderio, é uma
ocasião bem propícia para o completo desmantelamento do sistema
tradicional.

Falhas internas

Seria, naturalmente, errado crer que as forças de deslocação são


inteiramente exteriores. A civilização antiga tardia está corroída por
conflitos internos que introduzem outras tantas falhas no campo da
sua continuidade. As consequências nefastas das tensões sociais,
políticas, dinásticas, que desempenham um papel importante na
desagregação e queda do império, devem ser evocadas aqui pelo
menos sumariamente, pois estes factores negativos que actuam antes
da queda não deixam de exercer a sua influência depois dela.
A instalação dos reinos bárbaros não veio resolver magicamente os
conflitos passados. Foi a sua causa, mas não o seu remédio, pelo
menos a curto prazo.
No domínio estritamente cultural, o mundo antigo foi
tempestuoso. Por um lado, a oposição entre a cristandade triunfante

70
e o paganismo em declínio não conduziu a uma evaporação das forças
conservadoras: em pleno século VI um arauto do paganismo da «nova
vaga», Zósimo, ainda escreve uma crónica em que cobre o imperador
Julião de elogios. As doutrinas rivais do cristianismo, sobretudo o
neoplatonismo, estão longe de terem cedido: é necessária uma medida
jurídica em 529 para encerrar à força as escolas de Atenas: os filósofos
irão refugiar-se na Pérsia! Por fim, a cristandade não encontrou a
segurança. Se a herança ariana divide o Ocidente, o Oriente envolve--
se na terrível querela monofisita, a qual, antes da querela das
imagens, contribuirá para alienar ao império uma parte importante
das suas províncias no momento em que chega a ameaça islâmica.

Roma contra Constantinopla

Para não darmos uma imagem incompleta, temos de insistir, uma


vez mais, na rivalidade surda — que degenera facilmente em
hostilidade aberta — que opõe o mundo latino ao mundo grego.
É que a noção de civilização greco-romana não tem sentido unívoco.
A Grécia não esquece que foi submetida por Roma em 168 antes da
nossa era e pilhada aquando do levantamento de 151 (saque de
Corinto). Os Romanos mantêm um certo grau de suspeita em relação
aos vencidos de ontem, ainda que lhes admirem a cultura.
Esta tensão interétnica agrava-se no fim do império: um dos
últimos imperadores do Ocidente, Antémio, suscita as graçolas da
aristocracia romana. Os soldados que vêm reconquistar a Itália por
ordem de Belisário não são recebidos pelas populações italianas como
romanos do Oriente, mas sim como gregos bárbaros. A instalação
dos exarcados no século VII acentua o sentimento nacionalista latino.
As querelas pela primazia entre a sé apostólica de Roma e o
patriarcado bizantino, que estalam no século VI, preparam as roturas
do século IX, nas quais este antagonismo será revelado com toda a
sua crueza. De certo modo, a conquista de Constantinopla (1204)
pelos Latinos representará uma longínqua vingança contra a
supremacia bizantina nos tempos de miséria para a antiga grandeza
romana (séculos VI-VIII).

71
3.3. Vectores de continuidade

Forças de conservação: atracção dos Bárbaros

Há, no entanto, outras forças que actuam poderosamente no


sentido da conservação. Isto é verdade em relação a domínios
exteriores a questão tratada, mas é-o também em pontos já levantados.
Primeiro, os povos bárbaros recém-chegados já sofreram durante
muito tempo uma pré-assimilação. Os Godos estavam desde o século
III em contacto com as marcas orientais (Panónia, Mésia, Dácia) do
império. Outros povos, menos importantes então, ocupavam as
famosas florestas germânicas. Os Francos, em especial, faziam
comércio, a partir da margem direita do Reno, com os acampamentos
do limes renano, etc. Eles próprios entraram muito cedo nas fileiras
do exército romano e os melhores chegaram mesmo, por vezes em
duas ou três gerações, a elevar-se ao posto de general, leal servidor
do imperador. O oficial germânico mais célebre não foi um franco,
mas sim um vândalo, o generalíssimo Estilicão.
Esta assimilação individual não deve surpreender-nos: os
melhores cavaleiros de César durante a conquista da Gália foram os
aliados germânicos. Trata-se de um fenómeno sem nada de
excepcional, pois a verdade é que a assimilação foi acompanhada
de uma assimilação colectiva. Esta começa quase sempre por
violências, muitas vezes terríveis, quando as etnias surgem pela força
no interior da Romania. Mas prossegue depois quase sempre por
demoradas etapas transitórias, durante as quais os Bárbaros recebem
um estatuto jurídico-legal no interior do império, sob a forma de um
foedus, que é constituído mediante um tratado em devida forma entre
o rei bárbaro e o imperador.

Foederati e assimilação

Em geral, os recém-chegados recebem uma zona de residência e


terras, assim como o direito de se administrarem no quadro da sua

72
justiça tradicional, e, em troca, os cidadãos romanos continuam a
depender da justiça romana. Assim, as leis bárbaras e as leis romanas
começam a coabitar num mesmo solo. Por outro lado, a estes
guerreiros é rapidamente atribuído um papel policial no interior das
próprias fronteiras. O exército, que, sob as ordens do magister
utriusque militiae Aécio, detém Átila às portas de Troyes é composto
por metade de legionários romanos e de federados visigodos
conduzidos pelo próprio rei, o qual perde a vida em combate.
Naturalmente, estes foedera não impedem uma expansão
contínua do espaço ocupado e controlado pelos Bárbaros à custa
daquele que é regido por uma autoridade dependente do imperador.
Numerosos conflitos locais, opondo os soldados do império às
agitações dos federados, assinalam esta história. Mas a disseminação
— a mitage* — completa pelo espaço romano estende-se
definitivamente, pelo menos, sobre duas gerações, dos anos 400 a
467-470. Daqui resulta que o enraizamento e a aculturação dos povos
germânicos progridem mais depressa do que o seu acesso à soberania
completa. Quando os reinos bárbaros se instalam na viragem dos
séculos V-VI, estão nas mãos de homens que são já muito menos
estranhos à civilização romana tardia.

Pequeno número de invasores

Os Vândalos constituem uma excepção, porque a sua progressão


é rápida e a sua fixação mais brutal em África do que em qualquer
outro ponto. A personalidade do seu soberano, o corsário Genserico,
talvez explique, em parte, esta particularidade. De qualquer modo,
são apenas umas dezenas de milhares. Este número, porém, em si,
nada tem de excepcional: todos os estudos recentes mostram que os
invasores nunca formam mais do que uma fraquíssima minoria, que
não alcança, nem sequer nas zonas mais germanizadas, mais de 5%

* Mitage é a dispersão de construções ou de lotes realizada no meio rural (cf.


Petit Larrouse). (N. da T.)

73
da população romana. Uma percentagem de 10% talvez seja
representada pelo contributo franco, muito concentrado no Norte da
Gália, no território que irá ser o reino de Clóvis. Bem entendido, o
impacto militar não tem medida comum com o número dos invasores,
pois é um ponto aceite que são todos treinados no ofício das armas.
Seja como for, estes recém-chegados são sempre muito minoritários
em relação ao povoamento dos territórios que, a bem ou a mal, os
acolhem. É certo que se concentram em maior ou menor densidade:
no coração da Espanha em direcção a Toledo, no caso dos Visigodos;
na África pró-consular e em Cartago, no caso dos Vândalos; no Norte
da Itália e no Lácio, no caso dos Ostrogodos; depois no Norte da Itália
(daí o nome de Lombardia) e em Benevento, no caso dos Lombardos.

Osmose

Todos os índices arqueológicos e históricos coincidem em fazer-


mos chegar à conclusão de que a lei da osmose jogará inelutavelmente
contra eles. Esta lei, aplicada em física, indica que um meio mais
concentrado atrai sempre para si os elementos de um meio menos
concentrado, desde que não se encontrem separados de maneira
absolutamente estanque. É esse justamente o caso destes invasores,
que só durante pouco tempo conseguem preservar a sua identidade
completa. Os mais obstinados neste esforço são os Vândalos (mas a
sua existência é efémera) e os Visigodos.
O fenómeno da pré-assimilação, que já preparou a sua integração
no mundo antigo, reforça o poderoso efeito de desequilíbrio causado
pela disparidade numérica entre eles e as populações romanas. Por
outro lado, se a sua identidade cultural faz deles indivíduos distintos,
a sua diferença não é tanta que o efeito de osmose não possa actuar.
Este joga, na verdade, no sentido de uma importante aculturação,
não no sentido da barbarização da Romania, mas sim no da
romanização da Barbaria. Esta última regra não implica, de modo
algum, que a identidade étnico-cultural dos invasores não tenha tido
também reflexos na dos anfitriões. Mas, se esta última identidade
foi transformada, não foi apagada.

74
Mentalidade religiosa

Os povos germânicos, exceptuando os Francos, estão todos já


conquistados pelo cristianismo. Mesmo dissidente, esta fé obriga--
os a certas estruturas mentais e culturais que há muito pertencem
de pleno direito à civilização cujo quadro ameaçam fazer explodir.
O cristianismo é a religião de Roma, dos seus bispos, dos seus
imperadores, das suas cidades. Ser cristão significa então entrar na
continuidade desta história religiosa e espiritual. Além disso, esta
adesão pressupõe que se tome partido na querela cristológica, ou,
por outras palavras, que se entre num debate que só pode ser
concebido através dos utensílios intelectuais forjados pelo império.
São precisos padres, livros, traduções, sínodos, concílios... Todo este
aparelho é inconcebível fora dos quadros mentais e culturais do
Tardoantico.
O caso dos Francos só em parte constitui excepção. Chegados
tardiamente ao solo romano, nem por isso estão menos preparados
já para a aculturação: como é que uma aristocrata como Clotilde
teria obtido tão facilmente a conversão do marido se o mecanismo
de assimilação cultural e mental não tivesse também funcionado em
pleno nesse caso?

Consonâncias aristocráticas

A estrutura tribal dos primeiros germanos também não pode já


causar ilusões. A sua sociabilidade deve-se, em grande parte, a
estruturas aristocráticas em que os chefes dominam os súbditos. Os
mais poderosos têm a mesma categoria que a elite senatorial do
império. Os chefes germânicos encontram o equivalente e, de certo
modo, o modelo nos potentes, esses grandes proprietários romanos,
senhores de imensos domínios e eles próprios chefes de milícias
privadas. O gosto pela independência territorial que caracteriza os
chefes bárbaros não deixa de encontrar eco nas novas mentalidades
que caracterizam as famílias poderosas, das quais depende a unidade

75
imperial. A partir da segunda metade do século V, os pródromos,
surgidos já esporadicamente no século III, reaparecem, adivinhando--
se que uma parte dos potentes romanos, cansados das opções
imperiais, pensa cada vez mais em desenvolver o próprio poder de
modo puramente regional, ainda que com o apoio (justamente com
esse apoio) dos bárbaros federados... A elevação do senador arvérnio
Avito ao império faz-se por pressão da aristocracia galo-romana,
mais ou menos aliada à diplomacia borguinhã. Um senador como
Aravando aprende, para surpresa de Sidónio Apolinário, o germânico
a fim de poder lidar directamente com os recém-chegados, muitas
vezes contra a autoridade do pretório das Gálias. A corte de Teodósio
II em Toulouse é-nos descrita por Sidónio na viragem do século em
termos que patenteiam as convergências indicadas.

Fascínio romano

Esta mudança de mentalidade dos aristocratas romanos regionais,


que prepara a fusão ulterior, tem o seu equivalente no espírito dos
soberanos e dos chefes germânicos. A atracção exercida pelo espaço
romano tem a ver, antes de mais, com razões de sobrevivência.
A cupidez não é estranha às exacções, as mais graves das quais são,
sem dúvida, os dois saques de Roma. Todavia, a aristocracia
germânica interessa-se igualmente pelo império e pelas suas
instituições por razões subjectivas, nas quais o fascínio desempenhou
um importante papel. Em 414 o soberano godo Ataúlfo fala de
salvaguardar a civilização e a tradição romanas (desposa a princesa
Gala Placídia) num vocabulário que revela uma forte impregnação
ideológica antiga. O soberano do reino de Toulouse, Teodorico II, é
até 451 um fidelíssimo aliado de Aécio.
O herdeiro mais fiel e mais fascinado é, sem dúvida, o ostrogodo
Teodorico, que garante à Itália do século VI uma continuidade perfeita
com a Antiguidade. O seu discurso dirigido ao Senado de Roma em
500 é significativo a este respeito. Não menos eloquentes são a estima
e a confiança que concede ao chanceler Cassiodoro, membro

76
eminente do patriciado romano. Mas, mesmo na Gália do século VI,
os modelos imperiais nunca estão longe dos corações: recordemos o
episódio das tábuas consulares concedidas a Clóvis, a admiração de
um rei (ariano, note-se) como o borguinhão Gondebaldo por um
letrado do calibre de Avito, bispo católico de Viena, e, finalmente,
os índices, mais probatórios do que se afirmou (com uma ironia
despropositada), da vontade que os soberanos do fim do século têm
de se rodearem de um aparelho áulico cujos modelos remontam,
evidentemente, à corte romana ou bizantina.

Eficácia administrativa romana

Dizer que um dos mais belos ornamentos da administração


romana foi o fisco imperial é ficar aquém da verdade. O Baixo
Império produziu uma jurisdição extremamente complexa que lhe
permitiu «espremer» o mais possível os seus súbditos (lembremos
os belos debates que suscitou na historiografia moderna a
interpretação dos documentos fiscais do século IV e dos termos
capitatio e iugera). Esta maquinaria implica numerosos gabinetes,
uma multidão de intermediários, mas sobretudo uma contabilidade
escrita muito bem montada, cujos vestígios mais célebres são os
cadastros (cf o de Orange). Daqui segue-se que a entrada de divisas
só pode verificar-se com este concurso técnico essencial.
Os soberanos germânicos não pensam tocar-lhe. Todos os
documentos indicam, pelo contrário, que o fisco, se deixa,
progressivamente, de alimentar os cofres do império, começa,
proporcionalmente, por ser desviado em proveito das arcas bárbaras,
com tanta melhor consciência quanto é certo que os Germanos, na
sua qualidade de foederati, prestam serviço ao império e têm,
portanto, direito a ficar com uma parte dos lucros.
Dois factores concorrem para esta continuidade institucional.
Primeiro, a Igreja dispõe de vastas terras isentas, cuja extensão vai
aumentando. O fisco real encontrar-se-ia desprovido de recursos
perante os contabilistas eclesiásticos, de grande saber, se ele próprio

77
não dispusesse dos dossiers jurídicos. E a conversão dos povos
recém-chegados ao cristianismo não deixa toda a liberdade aos
soberanos para infringirem abertamente a lei. Por outro lado, convém
cunhar moeda. O desmoronamento do império cria um vazio e uma
necessidade: as oficinas de moeda da capital e da Itália são
substituídas por oficinas locais ao serviço dos novos soberanos. Mas
todo um saber e uma cultura que lhes estão ligados encontram-se,
assim, parcialmente preservados.

A Igreja pega no testemunho

Outras estruturas concorrem para a salvaguarda dos saberes da


Antiguidade tardia. Os novos senhores do espaço imperial
encarregam-se, pois, de uma herança técnica e administrativa pelas
razões indicadas. Os outros elementos que jogam a favor desta
preservação têm desta vez origem no próprio seio de uma das
componentes mais importantes da civilização romana, a Igreja. Esta
viveu uma evolução interna que a levou a combater nos primeiros
tempos da sua história, do século I ao século V, uma cultura sem fé
para se ver de seguida na obrigação de recusar, a partir do século
VI, uma fé sem cultura. Em resultado desta evolução, a sociedade
eclesial constitui-se como centro de manutenção essencial da
tradição antiga. Três causas agiram poderosamente de maneira
positiva.
Primeiro, o destino da Igreja não está organicamente ligado
ao do império; em seguida, o interesse pessoal da Igreja quer que
se assegure a perenidade dos saberes antigos; por fim, a conversão
dos invasores ao cristianismo limita, apesar de tudo, algumas
das suas tendências destrutivas. Além disso, nos períodos de
grande tormenta a sociedade eclesial sabe inventar as formas
novas que lhe garantirão a sobrevivência: o aparecimento e o
desenvolvimento do monaquismo no Ocidente são, ao mesmo
tempo, o sinal mais inequívoco e a consequência mais duradoura
dessa capacidade.

78
Ciuitas ecclesiastica

Esta capacidade de adaptação, de renovação e, ao mesmo tempo,


de conservação e de fidelidade a si mesma é um dos dados mais
importantes da história da cristandade. Tendo como alicerce o judeo-
cristianismo, modelou-se depois na forma do helenismo, seu vizinho
imediato, para formar aquilo que seria legítimo designar por uma
cultura latino-cristã, a nossa. Esta lenta migração do Oriente para o
Ocidente imperiais, acompanhada de enormes trabalhos de
reestruturação, deu à cristandade o sentimento da sua identidade, da
sua durabilidade e também da sua independência parcial, que lhe
confere autonomia e liberdade em relação às estruturas de
acolhimento que dependem das sociedades e da sua evolução.
Esta relativização das relações com o quadro histórico é
aumentada pelo próprio estatuto que o cristianismo e a sua Igreja
têm no seio do império. De facto, diremos pouco se nos limitarmos
a afirmar que, mesmo apesar de si próprio, o cristianismo foi, nos
seus começos, uma religião contra o Estado e que a Igreja foi uma
instituição a-social. Ora, a passagem do Alto para o Baixo Império
foi acompanhada por uma transformação radical desta situação
conflitual, pois o cristianismo acabou por ser a religião do Estado e
a Igreja uma instituição plenamente oficial (embora tal não exclua
conflitos violentos com a administração imperial). A memória
histórica arvorada pelos intelectuais cristãos tem de ter em conta
esta instabilidade: a Igreja está em casa no império, mas não é um
substituto nem um produto deste. A cidade eclesiástica é uma
entidade autónoma.

Autonomia e continuidade
Santo Agostinho estabelece — também neste ponto — os
fundamentos teóricos da evolução. Ora, depois de ter implicado certos
riscos antes da paz da Igreja, esta autonomia mostra-se,
progressivamente, uma garantia da continuidade cultural no momento

79
em que o império já não está em condições de a assegurar. Verificou-
se há muito que o desmoronamento do sistema militar-administrativo
imperial é acompanhado por uma espantosa promoção do episcopado.
A evolução é particularmente notória na Gália, onde figuras como
Cesário de Arles ou Gregório de Tours a simbolizam e resumem ao
mesmo tempo. A promoção do episcopado apresenta um interesse
essencial para o nosso tema, na medida em que, a partir do século V,
o cursus ecclesiasticus (carreira eclesiástica) vem oferecer às grandes
famílias senatoriais a possibilidade de investirem as suas qualidades
em funções que a sociedade civil vai deixando, pouco a pouco, de
oferecer.
Portanto, quando o império se apaga, uma parte importante das
sedes episcopais do Ocidente encontra-se naturalmente nas mãos de
personagens para as quais a tradição cultural está ligada à própria
tradição familiar. A autonomia da hierarquia e da administração
eclesiásticas em relação às correspondentes laicas abre a possibilidade
de uma sólida continuidade cultural, pois preserva uma certa
estabilidade social. Se acrescentarmos que a preocupação com uma
formação completa encontrou direito de cidade junto dos intelectuais
cristãos, na esteira do De doctrina christiana, e recordarmos que era
no seio da elite senatorial que o nível de instrução tinha todas as
hipóteses de ser mais elevado, compreenderemos como é que a
autonomia eclesial dos séculos IV-V condiciona a permanência
cultural dos séculos VI-VII.

Episcopado e cultura

Recentemente foram estudados os epitáfios dos bispos da época


merovíngia, concluindo-se que as formas utilizadas para descrever
as suas uirtutes são um decalque das expressões repetidas para conservar
a memória dos membros da aristocracia senatorial da época de
Teodósio. Ora, estas expressões da Antiguidade tardia devem, elas
mesmas, muito à tradicional laudatio maiorum (elogio dos antepassados),
a qual remonta à época republicana. Contributos novos, como o

80
elogio das virtudes ascéticas — ainda que as virtudes estóicas antigas
lhes tenham formado a prefiguração em mais de um ponto —,
modificam esta filiação, mas sem a desfigurarem. Não causará
surpresa saber que, de qualquer modo, alguns dos membros
eminentes do episcopado merovíngio assim louvados descendem
de grandes famílias romanas.
Evolução semelhante se produziu no Norte da Itália, onde o culto
dos bispos locais, iniciado desde as origens, assume uma amplitude
maior a partir do século VI, altura em que a regra antiga, segundo a
qual os mortos deviam ser enterrados fora dos muros da cidade,
desaparece e surgem as primeiras inumações intra muros. Esta
revolução generaliza-se a partir do século VII. É igualmente por esta
época que começa o culto da recordação do bispo defunto. Cada
grande cidade (Ravena, Milão, Pavia) dota-se, assim, de um padroeiro
local, digno sucessor dos antigos protectores: o bispo torna-se o
padroeiro de toda a cidade.

3.4. Monaquismo e latinidade


Tendências a-sociais

Estas transformações, compensando os efeitos do processo de


decomposição que afecta o enquadramento da sociedade no último
século do império, conferem à instituição eclesial a responsabilidade
de guiar as estruturas culturais antigas através da selva das mutações
altimedievais. Ela assume, pois, o duplo papel, um tanto contraditório,
de motor e travão da evolução histórica. Contudo, outras forças agem
no seio da cristandade num sentido que teria podido agravar a solução
de continuidade cultural.
De facto, à medida que a Igreja se instala no século, vão-se
desenvolvendo tendências opostas que conduzem à recusa do século.
Tudo começa no Oriente, que se adianta, como sempre. A partir do
século IV surgem os fenómenos concomitantes do anacoretismo e

81
do monaquismo. Fora de toda a organização eclesial, surgem nos
desertos do Egipto personagens tão fartas e fortes em virtudes cristãs
como débeis e fracas em cultura erudita. O «pai dos frades», Santo
António, camponês egípcio de origem muito humilde, era quase
analfabeto. Ao isolamento em relação às multidões correspondeu
um encerramento numa cultura pessoal assente na tradição oral, na
oração e na ascese mais exigente. O menor paradoxo não é, com
efeito, o da glória de António se ter ficado a dever à obra de
propaganda escrita por um dos maiores sábios do tempo, S. Jerónimo.

Dos kellia às florestas

O Egipto constituiu, assim, um modelo paradoxal para a


cristandade. A partir do século IV instalam-se — e por vários séculos,
pois irão sobreviver à conquista árabe e só desaparecerão no século
VIII — vários mosteiros em pleno deserto, povoados de monges
coptas, designados pelo nome grego de kellia (celas). Tanto as
indicações livrescas que os contemporâneos nos deram (Vida de
António, História lausíaca) como as escavações arqueológicas feitas
nos sítios de implantação revelam que a ruptura com a tradição
cultural antiga foi muito profunda: a austeridade material caminha
de braço dado com o despojamento cultural. Existe, pois, um perigo
real de o cristianismo se reduzir a um estado selvagem.
Estas tendências surgem esporadicamente no Ocidente.
Personagens espantosas mergulham nas florestas, que são o
equivalente ao deserto egípcio. Sabemos que no século VI — pelos
Diálogos do papa Gregório Magno — existem em Itália eremitas
analfabetos que vivem retirados de tudo. O papa fala com afeição de
um certo sanctulus (o santinho!), que conhece pessoalmente e que
mal sabe ler (é de desconfiar que esta expressão seja apenas um
eufemismo). Mas estas personagens são excepcionais. Tudo as opõe
à cristandade do Ocidente, mesmo à marginal. É que o espírito
romano marcou a implantação do monaquismo em terras latinas: a
mística um tanto desencarnada e a ascese por vezes angélica dos

82
Orientais não satisfazem os conuersi. Uma mentalidade de legislador
não desaparece assim tão facilmente.

Salvaguardas monacais

Convém ter aqui em consideração as funções históricas e sociais


do monaquismo no Ocidente, que, de certo modo, representou outra
forma de resistência ao desmoronamento da cidade antiga. Vimos
como o episcopado oferece aos membros das grandes famílias
senatoriais a oportunidade de uma carreira que se furta às vicissitudes
da política. Esta conjunção entre afastamento do século e
afundamento do império transforma os bispos em substitutos
involuntários, mas bem eficazes, da antiga administração.
O monaquismo vem reforçar e completar esta evolução. É certo
que as suas estruturas iniciais não correspondem, de modo algum, a
tal papel: trata-se apenas de procurar a vida perfeita, e não de se
colocar ao abrigo dos abalos de uma história atormentada da
humanidade. As descrições antigas são unânimes: o eremitismo e o
monaquismo constituem, em si mesmos, uma aventura, mas é a
aventura do homem em luta contra a sua imperfeição. Não se trata,
de modo nenhum, de combater os males do século nem sequer de se
proteger deles.
Como tantas vezes acontece, também neste caso o resultado foge
às intenções iniciais. A partir do século IV, o Ocidente latino abastece--
se, assim, de uma espantosa reserva humana e intelectual, posta
parcialmente ao abrigo dos choques mais destrutivos e adequada
para servir de viveiro intelectual de um novo tipo. Este espaço
privilegiado irá mudar o curso dos acontecimentos.

Regula magistri

Deixando de lado os prelúdios do monaquismo, vamos debruçar--


nos mais de perto sobre duas das regras mais importantes elaboradas
nesse quadro e que chegaram aos nossos dias: a Regula magistri

83
(a Regra do mestre) e a Regula Benedicti (a Regra Beneditina),
sobretudo esta última, pois tornou-se uma das instituições
fundamentais do Ocidente cristão.
Recordemos, numa palavra, que já no século IV o fundador do
monaquismo no Ocidente, Martinho, nascido no Norte da Itália,
antigo soldado da Panónia, previra imediatamente que o trabalho de
copista faria parte obrigatória da regra de vida em comunidade. Esta
prescrição vai ser encontrada de modo muito preciso num dos textos
que durante muito tempo foi dos mais misteriosos da história literária
e religiosa, a Regula magistrl
A obra constitui um monumento importante, porque é muito mais
extensa do que todas as outras regras suas contemporâneas. O
redactor, que se fazia tratar por «mestre» e era, portanto, o abade da
comunidade, conseguiu manter um anonimato impenetrável. Mas
foram desvendados alguns mistérios da obra: sabe-se hoje que é
anterior à Regra Beneditina, à qual serviu de modelo, e que a
composição foi redigida no 1° quartel do século VI, muito
provavelmente a sueste de Roma, e que se dirigia a uma comunidade
de algumas dezenas de frades.

Disciplina

O texto, que contém 95 capítulos de extensão desigual, trata, por


exemplo, das espécies de irmãos (1), do abade (2), da obediência
dos discípulos (7), do silêncio (8), da alimentação (26), da bebida
(27), dos jejuns (53), do repouso dominical (75), da eleição de um
novo abade (93). Estes exemplos têm por fim demonstrar como se
estabelece uma verdadeira legislação, não na forma de artigos de lei
propriamente ditos, mas de recomendações formuladas segundo a
tradição regulamentar. A comunidade é, assim, tomada a cargo em
tudo quanto é material no espaço e no tempo. A disposição física do
local separa com rigor o espaço comunitário dos espaços seculares e
sublinha, no ordenamento cerrado dos edifícios (aliás, modestos), a
densa textura deste grupo humano.

84
O mais importante, porém, é o domínio do tempo. Do ano e do
dia. O frade vive a um determinado ritmo, que reduz as horas de
sono, alarga as da oração e garante um mínimo de trabalho manual.
Mínimo, na verdade, porque os trabalhos mais rudes — que são os
agrícolas — estão proibidos aos membros da comunidade: as
privações exigidas aos frades são consideradas incompatíveis com
esse tipo de investimento físico. O legislador obriga, por fim, a um
máximo de tarefas intelectuais, isto é, à leitura e à meditação das
Escrituras.

Cultura

Os monges são classificados consoante a sua antiguidade, a sua


virtude, as suas competências particulares, mas também o seu grau
de cultura. Os irmãos dividem-se, pois, em analfabetos, litterati (os
que sabem ler) e psalterati (os que sabem o saltério). Os últimos são
os únicos que têm o privilégio de poderem ser convidados para a
mesa do abade, assim como o direito às sessões de leitura colectiva
durante as horas fixadas pela regra. Os que não são alfabetizados
estão obrigados, durante o tempo da leitura colectiva, a aprender a
leitura e os salmos.
A lectio decorre no princípio do dia, no Inverno, ou no fim deste,
no Verão. É um exercício comunitário. Reúnem-se em grupos de
dez para ouvirem um leitor. Cada um, por sua vez, lê o mesmo codex.
As crianças e os analfabetos trabalham ao mesmo tempo para se
instruírem, e aqueles que a desconhecem treinam-se na salmodia.
Este labor, a opus spirituale, é tão importante que ninguém está
dispensado dele, nem sequer um viajante de passagem. Além disso,
a leitura pode substituir o trabalho manual em caso de doença.
Acrescentemos que estas recomendações não devem ser
consideradas como votos piedosos. A comunidade monástica é
colocada sob a autoridade de um abade de uma maneira efectiva,
zelando este escrupulosamente pela observância da regra. São
numerosos os meios de punição utilizados. Os monges recalcitrantes

85
arriscam-se a uma excomunhão, da qual só sairão à custa de uma rude
penitência. Estas considerações significam que o programa cultural
traçado para os frades tinha todas as hipóteses de ser respeitado.

Regula Benedicti

Se o monaquismo ocidental e latino envereda pela via da


conciliação entre o serviço divino, a ascese física e os exercícios
culturais, a modéstia dos seus começos e a relativa debilidade da
sua implantação antes da segunda metade do século VI, não lhe
permitem desempenhar um papel determinante na história cultural
da alta Idade Média. Há que aguardar o desenvolvimento da Regra
de S. Columbano, no fim deste mesmo século, e, sobretudo, da Regra
de S. Bento, surgida entre 530 e 560, para mudar profundamente
estes dados históricos. A Regra irlandesa, vinda do Norte, apenas
confirma e amplia aquilo que era já um dado adquirido no Sul pela
Regra italiana. Esta, diferentemente da Regra do mestre, dirige-se a
uma comunidade importante de monges, instalados numa das
capitais da história do cenobitismo, o monte Cassino. É, pois,
elaborada para se alargar a um círculo humano muito mais vasto do
que o reduzido e escolhido grupo que o modelo visava.
Vai ser esse o seu destino, magnificamente exaltado no livro II
dos Diálogos, onde, no fim do século, o papa Gregório Magno dará
à obra do fundador o aspecto lendário que será coroado pelo seu
êxito europeu. Assim, esta estrutura de salvaguarda é essencial,
porque goza da estabilidade, do prestígio e do número. A primeira
função dos monges é, evidentemente, a de dizerem, cantarem e
escutarem as Sagradas Escrituras. Mas a realização dessa missão
passa obrigatoriamente por uma instrução pertinente.

Presença da escrita colectiva

Alguns exemplos concretos ilustram o rigor com que devem ser


praticados os diferentes exercícios espirituais assentes nas Escrituras.

86
A liturgia é acompanhada de cantos e de leituras: «Ao domingo
levantar-se-ão mais cedo para as vigílias. Nestas vigílias manterão a
medida, isto é, após terem modulado seis salmos e o versículo, todos
se sentarão, em boa ordem e segundo a respectiva categoria, nos
bancos e lerão num livro quatro lições com os seus responsos [...]
[XI].»
As leituras são novamente obrigatórias durante as refeições
tomadas em comum: «A leitura nunca deve faltar à mesa dos irmãos
[...] Far-se-á silêncio completo, de tal modo que na sala não se ouça
ninguém a murmurar ou a erguer a voz, a não ser unicamente o leitor.
Quanto àquilo que é necessário para comer e beber, os irmãos servir-
se-ão um de cada vez, de tal modo que ninguém tenha de pedir
nada. Se, no entanto, alguém precisar de alguma coisa, pedi-la-á,
fazendo soar um sinal, em vez de levantar a voz [XXXVIII].»
Por fim, decorrem as leituras das vésperas: «Logo que se levantem
da ceia, todos se sentarão juntos e um lerá as Conferências, ou as
Vidas dos Padres, ou qualquer outra leitura que edifique os ouvintes
[...] se é dia de jejum, uma vez lidas as vésperas, após um curto
intervalo, passarão à leitura das Conferências. Lerão quatro ou cinco
folhas [XLII]

Contactos individuais com o escrito

Estas incessantes solicitações literárias devem ser sublinhadas:


a organização, nomeadamente da salmodia, pressupõe horas diárias
de escuta e recitação pessoais. Mas esta tarefa colectiva não fica por
aqui. S. Bento previu um trabalho manual diário. Salta à vista o
facto de o trabalho agrícola desta vez ser autorizado e, inclusivamente,
encorajado para os monges. Ao mesmo tempo, o regime dos jejuns
é moderado em relação à regra-modelo. É um sinal dos tempos: o
empobrecimento da Itália nos meados do século VI explica, sem
dúvida, esta mudança de atitude. É certo que os monges eram mais
numerosos e provinham de meios mais modestos: mais bocas para
alimentar.

87
Isso ainda torna a injunção da leitura individual mais surpreendente.
Todas as manhãs durante a estação do Verão (desde a Páscoa até
Outubro), todas as noites durante a estação do Inverno, cada monge
deve consagrar-se à leitura pessoal durante, pelo menos, duas horas.
Prevê-se uma sesta no Verão, durante a qual a leitura é igualmente
aconselhada, mas respeitando o repouso dos outros. É durante o período
da Quaresma que se distribuem os livros: «Cada um receberá um livro
da biblioteca e deverá lê-lo de seguida e na íntegra.»

Rigor do exercício

Estas prescrições não são recomendações gerais que fiquem sem


efeito. A organização social do mosteiro garante a aplicação rigorosa
destes preceitos. Exige-se e controla-se o silêncio e a atenção durante
a leitura colectiva, sendo a falta a estas obrigações severamente
castigada. Mas há mais. Para a leitura fora da refeição, o leitor é
cuidadosamente escolhido todas as semanas. Contudo, as competências
exigidas são meramente passivas. Com efeito, Bento ordena que, se
alguém se enganar ao recitar um salmo, um responso, uma antífona
ou uma lição e não se humilhar imediatamente diante de todos, dando
uma satisfação, sofrerá uma punição mais severa por não ter querido
reparar pela humildade a falta que cometeu por negligência. Bater-se--
á nas crianças que tiverem cometido uma falta destas [XL].»
A leitura individual é igualmente vigiada: «Deve ser designado
um ou dois anciãos que circulem no mosteiro nas horas em que os
irmãos estão entregues à leitura. Eles velarão por que não haja
nenhum irmão entregue à divagação, ou esteja ocioso, ou se mostre
tagarela, em vez de se aplicar na leitura, e que não só cause dano a si
próprio, mas também aos demais, por distraí-los [XLVIII].»

Litterae

No fim desta análise cabe perguntar: quais são, pois, as


componentes principais que abrem as portas a uma continuidade

88
cultural a despeito dos choques e das destruições que assinalam o
desmoronamento do Império Romano no Ocidente e a sua
substituição por reinos bárbaros? A primeira é o papel preponderante
que a expansão da cristandade desempenha: tanto os Romanos como
os Bárbaros vêem-se confrontados com os mesmos problemas de
domínio de um saber essencialmente livresco e erudito.
A segunda é a profundidade da influência romana sobre os
soberanos bárbaros. Estes desejam muito mais retirar vantagens das
consequências da deslocação do império do que levar ao seu termo
lógico a demolição das estruturas do antigo império.
A terceira reside decerto no facto de os próprios intelectuais
cristãos terem aberto as portas a uma cultura e a uma fé cristãs
eruditas, isto é, que se alimenta de todos os contributos da tradição
antiga. A obra de Agostinho De doctrina christiana resume e coroa
esta evolução e prepara as revoluções mentais do século VII na
Inglaterra e do século VIII no continente.
No entanto, o destino da cultura do Tardoantico não se jogou no
século V nem no século VI. Para ser possível uma fusão étnica
romano-bárbara convém que o Ocidente guarde suficientes reservas
de forças vivas. As terríveis convulsões sociais destes séculos V-VI
podem pôr em perigo a massa crítica indispensável para uma
reconquista cultural europeia. Paradoxalmente, é aos lugares de
oração e contemplação que compete a constituição destas reservas
de forças vivas, onde o saber e os manuscritos muitas vezes
encontram refúgio: é a quinta e última componente.
Como se vê, estes factores são contraditórios. Observando de
perto as convulsões do século, tão bem descritas por P. Courcelle, o
historiador não juraria a priori que as descontinuidades não levariam
a melhor sobre as permanências. Conhecemos o fim desta história,
mas tal não deve impedir-nos de estudarmos as suas etapas a fim de
discernirmos quais os vectores que nos levarão do desastre inicial
aos florescimentos carolíngios.

89

Você também pode gostar