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VII - O período áureo da patrística (325-451)

Estende-se do concílio de Niceia (325) ao concílio de Constantinopla I (381), de


Éfeso (431) e de Calcedônia (451).
De fato, a partir da virada constantiniana, grande transformação ocorre na vida
dos cristãos. Não só cessam as perseguições. No campo da produção teológica já não há
necessidade de uma produção apológética como a do primeiro período. A Igreja torna-se
estável. O Evangelho já era conhecido quase por todo o mundo de então. O nosso já
conhecido Orígenes de Alexandria viaja muito pelo império e por todo o Oriente e em
sua obra De Pricipiis faz o seguinte balanço:

Se considerarmos os progressos imensos em alguns anos, apesar da perseguição e dos


suplícios, da morte e do confisco, e a despeito do pequeno número de pregadores, a
palavra foi anunciada por toda a terra. Gregos e bárbaros, sábios e insensatos aderiram à
religião de Jesus. Não podemos duvidar de que tal coisa supera as forças do homem, pois
Jesus ensinou com toda a autoridade e com toda a persuasão necessária para que a palavra
se impusesse1.

Por ser um período marcado pelas grandes controvérsias religiosas,


particularmente pelo arianismo e pelagianismo, estas heresias obrigaram os pensadores
católicos a se dedicarem sobretudo à defesa do dogma e, por conseqüência, à teologia.
É importante frisar que os debates teológicos deste período não se limitavam aos
teólogos, ou ao âmbito interno das escolas teológicas, mas era assumido pela população
cristã em âmbito polpular. Não nos esqueçamos dos artifícios populares utilizados por
Ário que compunha músicas para difundir sua doutrina. Gregório de Nissa (+ 385) nos
dá a seguinte informação:

Todos os lugares da cidade estão tomados por esses propósitos, as ruelas, as


encruzilhadas, as praças, as avenidas. Elas foram incorporadas pelos comerciantes de
roupas, pelos cambistas e pelos merceeiros. Se perguntas ao cambista o valor de uma
moeda, ele te responde com uma dissertação sobre o gerado e o não gerado.
Se te informas sobre a qualidade e o preço do pão, o padeiro responde: “O Pai é
maior e o Filho lhe será submetido”. Quando perguntas, nas termas, se o banho está
pronto, o gerente declara que o Filho se originou do nada. Não sei de que nome chamar
esse mal, se de loucura ou de raiva [...].2

A produção teológica em si torna-se mais apurada. Como vimos, a exegese bíblica


herda técnicas minuciosas postas em dia pela escola do gramático para a explicação dos
poetas clássicos; de forma semelhante, o sermão recupera a herança da retórica, a
controvérsia, da dialética, e a teologia todo o arsenal da filosofia.

1
Orígenes, De Princ. IV, 1,2
2
Gregório de Nissa, Sobre a divindade do Filho e do Espírito Santo, V, citado por Comby, J., Para
ler a história da Igreja,Tomo I, São Paulo, Loyola, 1993, p. 95.
1
Temos que afirmar mais: diante de um paganismo empobrecido pela usura do
tempo ou comprometido pelas suas complacências com o ocultismo, tocará ao
cristianismo representar o seu setor ativo, o elemento ascendente, o princípio diretor da
atmosfera cultural do século. Temos que sublinhar por outro lado o laço que se estreita
sempre entre sociologia e cultura: estatisticamente falando, o cristianismo é o dado
crescente; como pois estranhar que o ideal novo da cultura cristã reúna a maioria dos
melhores espíritos3?
A idade de ouro do período patrístico foi a época em que viveram os maiores entre
os escritores da antiguidade cristã. Grandes homens marcam este período de ouro:
Atanásio, os três Capadócios (Basílio Magno, Gregório Naziazeno e Gregório de Nissa)
e João Crisóstomo no lado oriental; Hilário de Portiers, Ambrósio, Jerônimo e Agostinho
no lado ocidental. Neste período a Igreja assumiu uma organização estável e estabeleceu
a ortodoxia como fórmula de fé. Verifica-se ainda o desenvolvimento da vida heremítica
e cenobítica na Igreja cristã.
Os Padres do século IV e do início do século V representam um momento de
equilíbrio particularmente precioso entre uma herança antiga, ainda pouco atingida pela
decadência e perfeitamente assimilada, e de outra parte uma inspiração cristã, também ela
chegada a sua plena maturação.
São eles, todos, grandes e fortes personalidades por mais claramente
individualizadas que sejam; seus destinos apresentam tantos pontos comuns, que
podemos arriscar-nos a esboçar deles uma imagem global, um tipo ideal do Padre da
Igreja:
a) Frutos que são dos progressos realizados pelo cristianismo dentro da sociedade
romana, os Padres da Igreja pertencem por sua origem à elite desta sociedade
e por vezes destas camadas mais elevadas da sociedade: Santo Ambrósio é
filho de um prefeito do pretório, São João Crisóstomo de um mestre de milícia,
os dois cargos mais elevados, civil e militar, da hierarquia imperial. A exceção
notável é a de Santo Agostinho, nascido numa família de curiales ou seja, de
notáveis municipais, esmagados pelo fisco impiedoso do Baixo-Império meio
social que já definiram, em termos modernos, como pequena burguesia em
vias de proletarização.
b) Mesmo essa exceção é reveladora: a ambição e a dedicação de seus pais
permitiram ao moço genial que recebesse a educação de qualidade que era da
elite; Santo Agostinho pôde desta forma aceder à carreira professoral que lhe
abria o caminho da ascensão social: este “novo rico” da cultura subiu pela
cultura. Por aí entra ela na categoria geral: oriundos da aristocracia ou mais
geralmente de boa família provincial, os Padres da Igreja todos fizeram sólidos
e bons estudos. São Basílio e seu amigo São Gregório de Nazianzo deixaram
a Capadócia natal e foram seguir por longos anos de ensino dos mais célebres
professores da Universidade de Atenas; São Jerônimo, nascido na Dalmáticia,
em algum lugar ao norte de Trieste, ouvirá em Roma as lições do gramático
Donato; Crisóstomo em Antioquia as do retor Libânio, – mestres pagãos, sem

3
Cf. Daniélou, J., Nova história da Igreja, Tomo I, Petrópolis, Vozes, 1984, p. 307.
2
dúvida, porem, ilustres: por mais que proteste Juliano Apóstata, o ensino
superior nesta época é mesmo neutro, os estudantes escolhem os mestres sem
se importarem da religião de uns e outros.
Esta educação é essencialmente literária e tem por coroa o estudo paciente,
obstinado, de técnica oratória: estamos na época da “segunda Sofística”, que atinge o
apogeu da retórica clássica. Todos os Padres da Igreja serão grandes escritores, sobretudo
se os julgarmos em função do ideal de sua época; todos, em todo caso, saberão pôr a
serviço de seu pensamento o domínio insuperável da sua língua4.
Jerônimo, especialista em filologia sagrada e estudo bíblicos, aprenderá melhor o
grego do que maior parte de seus contemporâneos latinos; Santo Agostinho, por exemplo
acrescentará a isso, proeza mais rara, o hebraico. Todos os letrados deste tempo vinham
mais ou menos envernizados de filosofia, apenas São Gregório de Nissa entre os gregos
foi autêntico filósofo, tanto de temperamento quanto de cultura; Santo Agostinho, entre
os latinos, tem certamente o direito de reivindicar para si o primeiro destes títulos, mas
sua vocação excepcional de pensador não pôde aproveitar-se de uma formação de base
que ombreasse coma de Gregório: em filosofia, santo Agostinho foi autodidata.

c) Todos os Padres da Igreja encontraram a fé cristã instalada em seu berço, ou


porque a família toda se tinha convertido, e por vezes já fora cristã por
gerações como no caso de São Basílio e seus irmãos, ou ao menos na pessoa
da própria mãe. O papel desempenhado por estas cristãs fervorosas na
formação e na evolução espiritual de cada um deles foi muitas vezes
considerável: todo mundo conhece o de Santa Mônica junto a Santo
Agostinho, mas teríamos muitos outros exemplos para citar: a mãe de Santo
Ambrósio, a de São João Crisóstomo, Antusa, que enviuvou aos vinte anos e
se recusou a contrair novas núpcias – o que suscitou a admiração e o espanto
de um pagão como Libânio – , para consagrar-se toda inteira à educação do
filho; ou Santa Macrina, a irmã mais velha de Sã Basílio, que se esmerou de
forma semelhante junto ao irmão mais novo Gregório de Nissa: permanecendo
solteira, acabará os dias no mosteiro.

d) A maioria, após os estudos, começou uma carreira profana, quase sempre a de


professor, como covinha a tão bons alunos: assim Basílio, os dois Gregórios,
Santo Agostinho; curioso o destino de Gregório de Nissa e de Teodoro de
Mopsuéstia que, após terem primeiro experimentado a vida eclesiástica ou
religiosa, se deixaram reconquistar pelo século; Gregório de Nissa, o futuro
teólogo da virgindade, chegou a casar-se. Casos particulares, os de São
Martinho, que fora filho de veterano e por isso mesmo obrigado à carreira das
armas, ou de Santo Ambrósio que pela origem vinha orientado para os altos
cargos da administração: encontramo-lo no momento da eleição ao episcopado

4
Idem, p. 309
3
como consularis, quer dizer, governador civil da província de Ligúria de
Milão, residência imperial, era a capital5.

e) Para os homens do IV século a vida perfeita se professava no deserto: todos


os Padres da Igreja foram monges por um tempo mais ou menos longo e se
exercitaram na prática de uma ascese muitas vezes rigorosa, em contato com
mestres da vida espiritual e na escola deles; diversos deles desempenharam
papel importante na história da instituição monástica.
A única exceção, de fato notável, da lei geral é a de Santo Ambrósio: vindo, como
bom magistrado romano, restabelecer a ordem na assembleia tumultuada que devia
promover a sé vacante de Milão, impôs-se à multidão com tanta autoridade, que criou
unanimidade em torno de seu nome; aclamado bispo, a autorização imperial lhe foi
concedida; batizou-se e, oito dias mais tarde, foi sagrado a despeito das regras canônicas
que proibiam o episcopado a um “neófito”. O caso de Gregório de Nissa também é
marginal: casado, não podia começar por ser monge e só se fez tal depois de viúvo e
quando já era bispo fazia treze anos.

f) Formados na solidão, da qual guardarão a nostalgia durante toda a vida, dela


saem no entanto muito cedo ao cabo de três ou cinco anos e, respondendo ao
apelo da Igreja, aceitam consagrar-se daqui por diante totalmente a seu
serviço.
Podemos afirmá-lo até de um São Jerônimo que não acenderá ao episcopado,
continuando a ser simples monge a vida toda: também ele fez de início um
primeiro ensaio de vida eremítica muito breve (374-376) no deserto de Cálcis
perto de Antioquia; deixa-o ao depois para ir completar sua formação científica
em Antioquia mesma, Alexandria, Constantinopla, volta a Roma, onde
desempenha papel ativo junto ao Papa Dâmaso, antes de retirar-0se
definitivamente para o mosteiro de Belém (385-6, 419-20)6. Ordenado sacerdote
em 393 por Paulinho de Antioquia, jamais se considerou ele vinculado a alguma
igreja particular: reflexo de defesa de um intelectual preocupado em preservar a
liberdade de seus queridos estudos? Pode ser. No entanto estes mesmos estudos –
traduções, comentários, polêmicas – no-lo mostram consciente de servir às
necessidades da Igreja universal; na ordem de sua vocação específica, obedeceu
também totalmente ao mesmo apelo.
g) Os Padres da Igreja, quando chamados ao episcopado, não se esquivaram,
fizeram-se bispos e foram grandes bispos. Tentaremos ainda evocar a difícil
função de bispo; afinal foi na qualidade de bispos que desdobraram a maior
parte de suas atividades, embora a maiores dentre eles tenha começado por
fazer um estágio assaz longo no nível do sacerdócio; mas no conceito
tradicional de Padres da Igreja, é o elemento propriamente cultural que, unido

5
Idem.
6
Idem, p. 310.
4
à santidade de vida, ocupa lugar preponderante: estes bispos foram também, e
em primeiro lugar, escritores, oradores, pregadores, pensadores religiosos.7
Estes homens, cujas características foram apresentados, além de homens dotados
de uma inteligência singular, eram homens sábios, isto é, místicos, homens de oração;
pessoas que deixavam-se guiar pelo Espírito Santo sempre na busca da verdade revelada
e interpretada na fidelidade da sagrada tradição. Depararam-se com grandes heresias que,
não fosse a inspiração desta luz divina buscada na mística da oração e no espírito de
unidade, o cristianismo teria se esfacelado.
Neste período tão controverso da história do cristianismo, em que a religião
revelada pelo Deus criador, semeada por Jesus de Nazaré, o Verbo de Deus encarnado na
ação do Espírito Santo é ameaçada pela mudança de época provocada pela “virada
constantiniana” e pelas grandes heresias cristológicas, os Padres da Igreja, nessa busca de
mais clareza, erraram e acertaram, como todo homem que busca, mas o Espírito Santo os
acompanhou para que chegassem a proposições fiéis à verdade revelada.
Os Padres desta época, colheram toda a verdade que ao longo dos séculos foi
experimentada, celebrada na liturgia, professada com convicção pelos mártires que
derramaram seu sangue por ela e elaboraram sistematicamente as bases da teologia que
foi sancionada nos grandes concílios ecumênicos da antiguidade cristã, que
providencialmente foram instigados pelos hereges. Esta fé se perpetuará como luz a
iluminar os cristãos de todos os tempos.

7
Idem, p. 313.
5
VIII – Os Padres capadócios

São Gregório Magno, São Gregório Naziazeno e São Gregório de


Nissa, originários da região da Capadócia, são por isso chamados os três
grandes Padres Capadócios.
Talvez possa nos parecer estranho o fato de passarmos, sem transição,
de Orígenes aos três grandes Capadócios. Não quer isso dizer que ignoramos
a atividade intelectual que medeia entre estes grandes expoentes do
pensamento cristão. Tal atividade, porém, respeita principalmente ao
domínio da teologia, que se logra, entre outras coisas, um notável progresso
na elucidação das doutrinas trinitárias e cristológicas. Os Capadócios
marcam o término destas controvérsias teológicas; neles, a tradição vai-se
cristalizando gradativamente em direções particularmente propícias ao
desdobramento da cultura cristã.
Como vimos, eles viveram numa época particularmente propícia ao
desdobramento da cultura cristã. O Edito de Milão (313) pusera fim às
grandes perseguições. O povo afluía em massa à Igreja, que começou a tomar
consciência da sua missão de mestra dos povos. A filosofia grega, embora
continuasse a ser cultivada nas escolas, perdera a sua vitalidade. Em lugar de
despenderem suas energias na refutação das investidas e dos preconceitos
pagãos, os pensadores cristãos passam a dedicar-se, neste período
relativamente tranqüilo, à tarefa da sistematização da doutrina cristã.
Há uma segunda razão que justifica a passagem direta aos grandes
capadócios. Animados do mesmo amor de Orígenes, e de posse de uma
tradição mais estabilizada e mais rigorosamente formulada, além de um
senso mais seguro da norma da fé, os três mestres de empenham em fornecer
uma interpretação ortodoxa do grande alexandrino Orígenes. A importância
deste empreendimento é inegável, visto ter conduzido à madureza os

6
melhores elementos da doutrina origenista e traçado as linhas mestras para a
evolução futura da patrística grega8.

8.1 – A Capadócia cristã

A Capadócia foi uma província romana, uma grande região interior na


parte oriental da Ásia Menor, com um clima predominantemente frio e com
poucas florestas. Ocupa um planalto com altitude média de 900 m. Embora
os seus limites tenham variado ao longo da história, eram basicamente o
Ponto a Norte, a Galácia e a Licónia a Oeste, a Cilícia e os Montes Tauro a
Sul, e a Arménia e o alto Rio Eufrates, a Leste. Havia muita criação de
ovelhas, e também eram abundantes o gado bovino e bons cavalos. O trigo
era o principal cereal cultivado.
O Imperador Tibério pôs fim aos reinos tributários do Ponto e da
Capadócia, em 17 d.C., e a Capadócia torna-se uma província romana, sob a
administração de um procurador. Vespasiano ampliou a província em 70
d.C., combinando-a com a Arménia, formando assim uma importante
província fronteiriça no Leste. A região da Capadócia tinha importância
estratégica por causa das estradas que atravessavam a região, uma das quais
ia de Tarso, junto ao Mar Mediterrâneo, através do desfiladeiro conhecido
como Portas Cilicianas, na Cordilheira do Tauro, seguindo pela Capadócia
até à província do Ponto e aos portos do Mar Negro.
Segundo a Bíblia, os judeus da Capadócia estavam presentes em
Jerusalém, na Festividade dos Pentecostes de 33 d.C.. (Atos 2,9). A
comunidade cristã da Capadócia estava entre aqueles a quem o apóstolo
Pedro se dirigiu na sua 1.ª epístola. (I Pedro 1,1)9.
Os cristãos eram números no país, desde que Gregório Taumaturgo,
discípulo e amigo de Orígenes, aí pregara o Evangelho. Desde o século IV,
Cesaréia, a capital da Capadócia, atual Turquia, era uma cidade culta.
Possuía, como as outras cidades, seus teatros, suas termas e suas festas. As
famílias aristocráticas enviavam às escolas seus filhos mais dotados. Foi o
caso de Basílio e de Gregório Naziazeno. Se a Capadócia precisava de mais
tempo para se tornar culta, em compensação produzia resultados em dobro.
Forneceu à Igreja simultaneamente três homens de valor excepcional:

8
Cf. Gilson, Etiene, História da filosofia cristã, 9ª edição, Petrópolis, Vozes, 2004, p.80.
9
http://www.google.com.br/search?hl=ptBR&source=hp&q=a+capad%C3%B3cia&btnG=Pesqui
sa+Google&meta=&aq=f&oq= acesso 01 de novembro de 2009 às 13:55h.
7
Basílio, seu irmão Gregório de Nissa, e o amigo de Basílio. Gregório de
Nazianzo.

8.2 – São Basílio Magno

8.2.1 – Um cristão de família cristã

Basílio teve o privilégio de pertencer a uma família de profundas


convicções cristãs; seu avô materno sofrera o martírio; sua avó paterna
Macrina, sua mãe Emélia, sua irmã mais velha Macrina e seus irmãos
Gregório e Pedro são venerados como santos.
Nasceu Basílio por volta de 330 em Cesaréia na capadócia.
Freqüentou as escolas de retórica da cidade natal e de Constantinopla. Em
seguida, cursou medicina e humanidades em Atenas, onde, coadjuvado de
Gregório de Nazianzo, formou uma espécie de associação de acadêmicos
idealistas . Voltando a Cesaréia, recebeu o batismo a instância de sua irmã
Macrina (c.457), renunciou ao magistério e à propriedade, e visitou os mais
famosos ascetas da Síria, da Palestina e do Egito. Retirou-se depois à solidão,
nas margens do Íris, onde fundou uma colônia monástica.

8.2.2 – Um monge

As regras para a direção dos monges, compostas em colaboração de


seu amigo Gregório, serviram de modelo e base para todas as futuras
instituições monacais do Oriente. Na verdade, são Basílio criou um
monaquismo muito particular: não estava fechado à comunidade da Igreja
local, mas aberto a ela. Seus monges faziam parte da Igreja local, eram o
núcleo animador que, precedendo os demais fiéis no seguimento de Cristo e
não só da fé, mostrava sua firme adesão a ele, o amor por ele, sobretudo nas
obras de caridade.
Estes monges, que tinham escolas e hospitais, estavam ao serviço dos
pobres e deste modo mostraram a vida cristã de uma maneira completa. O

8
servo de Deus João Paulo II, falando do monaquismo, escreveu: «muitos
opinam que essa instituição tão importante em toda a Igreja, a vida
monástica, ficou estabelecida, para todos os séculos, principalmente por São
Basílio ou que, ao menos, a natureza da mesma não teria ficado tão
propriamente definida sem sua decisiva contribuição» 10 .

8.2.3 – Um bispo social

Por volta de 362 foi chamado para Cesaréia pelo bispo Eusébio, que
lhe conferiu a ordenação sacerdotal e o tomou por auxiliar na administração
da diocese. Em 370 foi eleito sucessor de Eusébio. Feito assim metropolita
da Capadócia e exarca imperial da província do Ponto.
Como bispo e pastor de sua estendida diocese, Basílio se preocupou
constantemente pelas difíceis condições materiais nas quais os fiéis viviam;
denunciou com firmeza o mal; comprometeu-se com os pobres e os
marginalizados; interveio ante os governantes para aliviar os sofrimentos da
população, sobretudo em momentos de calamidade; velou pela liberdade da
Igreja, enfrentando os potentes para defender o direito de professar a
verdadeira fé11. Deu testemunho de Deus, que é amor e caridade, com a
construção de vários hospitais para necessitados12 , uma espécie de cidade
da misericórdia, que tomou seu nome, «Basiliade» 13. Nela fundem suas
raízes os modernos hospitais para a atenção dos doentes.
Havia aí um albergue, um abrigo para pessoas idosas, um hospital,
com uma ala reservada às doenças contagiosas; uma igreja erguia-se no meio
das construções. Alojamento para os empregados e operários vieram a ser
acrescentados depois. Finalmente, a obra transformou-se em uma verdadeira
cidade operária onde havia até a sopa popular. Basílio escreve aos prelados
do campo, pedindo-lhes que façam o mesmo nas regiões rurais.
Basílio é o modelo de pastor, constantemente preocupado em discernir
o aspecto prático da mensagem cristã. É, no sentido nobre do termo, um
moralista, sempre disposto a abrir luta contra os vícios individuais e sociais,
e de forjar costumes cristãos na escola do Evangelho.

10
carta apostólica «Patres Ecclesiae» 2.
11
cf. Gregório Nazianzeno, «Oratio 43, 48-51 in laudem Basili»: PG 36, 557c-561c
12
cf. Basílio, Carta 94: PG 32, 488bc
13
cf. Sozomeno, «História Eclesiástica». 6, 34: PG 67, 1397ª
9
A atividade de Basílio não se limita à cidade de Cesaréia. Apesar de
sua saúde precária, ele visita as paróquias afastadas, isoladas na montanha.
Zala pela disciplina de seus padres, corrige os abusos e as excentricidades
dos monges.
Em seu amor por Cristo e seu Evangelho, o grande capadócio se
comprometeu também por sanar as divisões dentro da Igreja, 14 buscando
sempre que todos se convertessem a Cristo e à sua Palavra15.

Este bispo missionário é um psicólogo. “Conhecia a fundo as


moléstias do homem e foi um grande mestre no tratamento das almas”
escreveu Fenélon com precisão.
O bispo de Cesareia possuía experiência dos homens. Sabe que os
ricos são muitas vezes piedosos e sóbrios, raramente caridosos. E observa:
“As virtudes que deveria ser mais fácil para eles, a caridade, parece-lhes a
mais difícil”16.
Em tempos de carestias e de calamidades, com palavras apaixonadas
o Santo Bispo exortava os fiéis a "não se mostrarem mais cruéis que as
feras..., apropriando-se do que é comum, e possuindo sozinhos o que é de
todos"17. O pensamento profundo de Basílio sobressai bem nesta frase
sugestiva: "Todas os necessitados olham para as nossas mãos, como nós
próprios olhamos para as de Deus, quando estamos em necessidade". É
muito apropriado o elogio feito por Gregório de Nazianzo, que depois da
morte de Basílio disse: "Basílio persuadiu-nos de que nós, sendo homens,
não devemos desprezar os homens, nem ultrajar Cristo, cabeça comum de
todos, com a nossa desumanidade para com os homens; antes, nas desgraças
dos outros, devemos beneficiar nós próprios, e fazer empréstimo a Deus da
nossa misericórdia, porque temos necessidade de misericórdia"18.
O Papa Bento XVI, comentando este texto de Gregório Naziazeno
sobre São Basílio assim conclui: “São palavras muito atuais. Vemos como
São Basílio é realmente um dos Padres da Doutrina Social da Igreja”19.
As questões morais e sociais não o impedem de abordar assuntos
especificamente teológicos. As disputas arianos exigiam-no. Basílio conhece
o gosto dos capadócios, e até das pessoas do povo, pela controvérsia e pela

14
cf. Carta 70 e 243,
15
cf. «De iudicio» 4: PG 31, 660b-661c
16
Hom.7,3)
17
Hom. tempore famis: PG 31, 325a
18
Gregório Nazianzeno, Oratio 43, 63; PG 36, 580b
19
Audiência pública, 29 de dezembro de 2008.
10
argumentação; observa ele: “Todos os ouvidos estão abertos para escutar
falar de teologia, e, nunca se satisfazem plenamente com esta espécie de
discurso20. O bispo trata de questões teológicas com clareza, perspicácia e
precisão.
Basílio se entregou totalmente ao fiel serviço da Igreja no multiforme
serviço do ministério episcopal. Segundo o programa que ele mesmo traçou,
converteu-se em «apóstolo e ministro de Cristo, dispensador dos mistérios
de Deus, arauto do reino, modelo e regra de piedade, olho do corpo da
Igreja, pastor das ovelhas de Cristo, médico piedoso, pai, cooperador de
Deus, agricultor de Deus, construtor do templo de Deus»21.
No ano 379, Basílio, sem ter completado os cinqüenta anos, esgotado
pelo cansaço e a ascese, voltou para Deus, «com a esperança da vida eterna,
através de Jesus Cristo, nosso Senhor»22. “Foi um homem que viveu
verdadeiramente com o olhar dirigido a Cristo, um homem do amor pelo
próximo. Repleto de esperança e da alegria da fé, Basílio nos mostra como
ser realmente cristãos.

8.2.4 – O teólogo

Como bispo ainda, Basílio transmitiu a doutrina em suas homilias,


especialmente nas homilias sobre Gênesis. Mais ainda, foi um verdadeiro
teólogo, a seu modo, jamais puramente especulativo ou sistemático, mas fez
teologia sob a pressão da crise doutrinal e essencialmente em matéria de fé
trinitária. Com zelo e coragem, Basílio soube opor-se aos hereges, que
negavam que Jesus Cristo fosse Deus como o Pai23. Analogamente, contra
aqueles que não aceitavam a divindade do Espírito Santo, ele afirmou que
também o Espírito é Deus e "deve ser com o Pai e com o Filho igualmente
numerado e glorificado"24 . Por isso, Basílio é um dos grandes Padres que
formularam a doutrina sobre a Trindade: o único Deus, precisamente porque
é amor, é um Deus em três Pessoas, que formam a unidade mais profunda
que existe, a unidade divina.

20
Hom 15,1.
21
cf. «Moralia» 80, 11-20: PG 31, 846b-868b
22
«De Batismo» 1, 2, 9
23
cf. Basílio, Ep. 9, 3: PG 32, 272a; Ep. 52, 1-3: PG 32, 392b-396a; Adv. Eunomium 1, 20: PG 29,
556c
24
cf. De Spiritu Sancto: SC 17bis, 348
11
No seu amor a Cristo e ao seu Evangelho, o grande Santo da
Capadócia comprometeu-se também em recompor as divisões dentro da
Igreja25 , empenhando-se para que todos se convertessem a Cristo e à sua
Palavra26, força unificadora à qual todos os crentes devem obedecer27.

8.3 – São Gregório Naziazeno

Gregório nasceu de uma família nobre. A mãe consagrou-o a Deus


desde o nascimento, que aconteceu por volta de 330. Depois da primeira
educação familiar, freqüentou as mais célebres escolas da sua época:
primeiro foi a Cesaréia da Capadócia, onde estreitou amizade com Basílio,
futuro Bispo daquela cidade, e deteve-se em seguida noutras metrópoles do
mundo antigo, como Alexandria do Egito e sobretudo Atenas, onde
encontrou de novo Basílio28. Reevocando a sua amizade, Gregório escreverá
mais tarde:
"Então não só eu me sentia cheio de veneração pelo meu grande Basílio devido à
seriedade dos seus costumes e à maturidade e sabedoria dos seus discursos, mas induzia
a fazer o mesmo também a outros, que ainda não o conheciam... Guiava-nos a mesma
ansiedade de saber... Esta era a nossa competição: não quem era o primeiro, mas quem
permitisse ao outro de o ser. Parecia que tínhamos uma só alma em dois corpos"29.

São palavras que representam um pouco o auto-retrato desta alma


nobre. Mas também se pode imaginar que este homem, que estava
fortemente projetado para além dos valores terrenos, tenha sofrido muito
pelas coisas deste mundo.
Tendo regressado a casa, Gregório recebeu o Batismo das mãos de seu
pai, que outrora havia sido membro de uma seita judeu-pagã, mas que uma
vez convertido foi eleito bispo de Nazianzo. Este já era de idade avançada e
achava-se um pouco ultrapassado para sua tarefa. Experimentava a
necessidade de se apóias numa força mais jovem. A comunidade também
desejava isto. Por este motivo, Gregório foi ordenado padre por seu pai.
Como escreve na sua autobiografia,30 recebeu a ordenação presbiteral com

25
cf. Epp. 70 e 243
26
cf. De iudicio 4: PG 31, 660b-661a
27
cf. ibid., 1-3: PG 31, 653a-656c citado por bento XVI em audiência de 29 de dezembro de 2008.
28
cf. Oratio 14-24: SC 384, 146-180
29
Oratio 43, 16.20: SC 384, 154-156.164
30
cf. Carmina [historica] 2, 1, 11 De vita sua 340-349: PG 37, 1053
12
uma certa resistência, porque sabia que depois teria que ser Pastor, ocupar-
se dos outros, das suas coisas, e portanto já não podia recolher-se só na
meditação. Contudo aceitou depois esta vocação e assumiu o ministério
pastoral em total obediência, aceitando, como com freqüência lhe aconteceu
na sua vida, ser guiado pela Providência aonde não queria ir (cf. Jo 21, 18).
Posteriormente orientou-se para uma vida monástica: a solidão, a
meditação filosófica e espiritual fascinavam-no. Ele mesmo escreverá:

"Nada me parece maior do que isto: fazer calar os próprios sentidos, sair da carne do
mundo, recolher-se em si mesmo, não se ocupar mais das coisas humanas, a não ser das
que são estritamente necessárias; falar consigo mesmo e com Deus, levar uma vida que
transcende as coisas visíveis; levar na alma imagens divinas sempre puras, sem misturar
formas terrenas e erróneas; ser verdadeiramente um espelho imaculado de Deus e das
coisas divinas, e tornar-se tal cada vez mais, tirando luz da luz...; gozar, na esperança
presente, o bem futuro, e conversar com os anjos; ter já deixado a terra, mesmo estando
na terra, transportado para o alto com o espírito "31.

Quando, por volta de 371, o imperador Valente (ariano) dividiu a


Capadócia em duas partes, Basílio para consolidar sua autoridade,
multiplicou os sufragantes e criou para Gregório o bispado de Sássima.
Gregório mais uma vez não ousou dizer não. Foi sagrado por seu amigo, mas
nunca assumiu o seu posto, “povoado de estrangeiros e vagabundos”. Não se
recusa a ir defender “as galinhas e porquinhos” escreve numa carta a Basílio
de Cesaréia. Quando disto se lembra, dez anos mais tarde, sua amargura
ainda não se acha curada.
No momento, Gregório permanece junto a seu pai, em Nazianzo.
Prega nas festas litúrgicas e dos santos. Desta época, temos um sermão
admirável em favor dos pobres32: “Somos todos pobres diante de deus...” O
debate riqueza-pobreza inscreve-se no movimento do homem para Deus. O
pobre é a imagem de nossa condição, no seio do mundo e do seu mistério. O
homem não pode escapar ao nada e à ilusão a não ser encontrando o deus
vivo33.
Por volta de 379, Gregório foi chamado a Constantinopla, a capital,
para guiar a pequena comunidade católica fiel ao Concílio de Niceia e à fé
trinitária. A maioria aderia ao contrário ao arianismo, que era "politicamente

31
Oratio 2, 7: SC 247, 96
32
Publicado em Os Padres da Igreja e a Questão Social – Basílio Magno, Gregório de Nissa,
Gregório de Nazianzo, João Crisóstomo.- Petópolis, Vozes, 1986,PP.35-63.
33
Cf. Hamman A., Os Padres da Igreja, São Paulo, Paulinas, 1980, p. 147.
13
correto" e considerado pelos imperadores útil sob o ponto de vista político.
Deste modo ele encontrou-se em condições de minoria, circundado por
hostilidades.
Na pequena igreja de Anastasis pronunciou cinco Discursos
teológicos34, precisamente para defender e tornar também inteligível a fé
trinitária, a habilidade do raciocínio, que faz compreender realmente que esta
é a lógica divina. E também o esplendor da forma os torna hoje fascinantes.
Gregório recebeu, devido a estes discursos, o apelativo de "teólogo". Assim
é chamado na Igreja ortodoxa: o "teólogo". E isto porque para ele a teologia
não é uma reflexão meramente humana, ou muito menos apenas o fruto de
especulações complicadas, mas deriva de uma vida de oração e de santidade,
de um diálogo assíduo com Deus. E precisamente assim mostra à nossa razão
a realidade de Deus, o mistério trinitário. No silêncio contemplativo,
imbuído de admiração diante das maravilhas do mistério revelado, a alma
acolhe a beleza e a glória divina.
Enquanto participava no segundo Concílio Ecumênico de 381, Gregório foi
eleito Bispo de Constantinopla, e assumiu a presidência do Concílio. Mas
desencadeou-se imediatamente contra ele uma grande oposição, e a situação
tornou-se insustentável. Para uma alma tão sensível estas inimizades eram
insuportáveis. Repetia-se o que Gregório já tinha lamentado anteriormente
com palavras ardentes: "Dividimos Cristo, nós que tanto amávamos Deus e
Cristo! Mentimos uns aos outros devido à Verdade, alimentamos
sentimentos de ódio devido ao Amor, dividimo-nos uns dos outros!"35 .
Chega-se assim, num clima de tensão, à sua demissão. Na catedral apinhada
Gregório pronunciou um discurso de despedida com grande afeto e
dignidade36. Concluía a sua fervorosa intervenção com estas palavras:
“Adeus, augusta basílica... Adeus, Santos Apóstolos... Adeus, cátedra pontifical.
Adeus, cidade célebre, distinguida pelo fulgor de sua fé e de seu amor a Jesus Cristo.
Adeus Oriente e Ocidente, por quem tanto combati e que me foi confiado. Lembrai-vos
dos meus sofrimentos; que a graça de nosso Senhor Jesus Cristo permaneça
convosco”.37.

Regressou a Nazianzo, mas, antes de partir, fez seu testamento, cujo


texto foi preservado. Legava toda a sua fortuna “à Igreja Católica de

34
Orationes 27-31: SC 250, 70-343
35
Oratio 6, 3: SC 405, 128
36
cf Oratio 42: SC 384, 48-114
37
cf. Oratio 42, 27: SC 384, 112-114
14
Nazianzo, para o cuidado dos pobres, que são da alçada da Igreja”. Por
cerca de dois anos dedicou-se ao cuidado pastoral daquela comunidade
cristã. Depois retirou-se definitivamente em solidão na vizinha Arianzo, a
sua terra natal, dedicando-se ao estudo e à vida ascética. Nesse período
compôs a maior parte da sua obra poética, sobretudo autobiográfica: o De
vita sua, uma releitura em versos do próprio caminho humano e espiritual,
um caminho exemplar de um cristão sofredor, de um homem de grande
interioridade num mundo cheio de conflitos. É um homem que nos faz sentir
a primazia de Deus e por isso fala também a nós, a este nosso mundo: sem
Deus o homem perde a sua grandeza, sem Deus não há verdadeiro
humanismo. Por isso, ouçamos esta voz e procuremos conhecer também nós
o rosto de Deus38. Numa das suas poesias escrevera, dirigindo-se a Deus: "Sê
benigno, Tu, o Além de tudo" 39. E em 390 Deus acolheu nos seus braços este
servo fiel, que com inteligência perspicaz tinha defendido nos escritos, e com
tanto amor o tinha cantado nas suas poesias.

38
Bento XVI, audiência de
39
Carmina [dogmatica] 1, 1, 29: PG 37, 508
15

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