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FACULDADE DE SÃO BENTO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU


EM FILOSOFIA

SÉRGIO ADRIANO DIAS LUIZ

A RELAÇÃO ENTRE VERDADE E FELICIDADE SEGUNDO SANTO


AGOSTINHO NO DIÁLOGO CONTRA OS ACADÊMICOS, LIVRO I

Dissertação a ser apresentada ao Programa de


Pós-Graduação Stricto Sensu em Filosofia da
Faculdade de São Bento, para obtenção do título
de Mestre em Filosofia.

Orientador: Prof. Dr. Joel Gracioso

SÃO PAULO
2015
A Dúvida é o começo da sabedoria.
Ségur
1

DEDICATÓRIA

Para minha mãe Diva.


2

AGRADECIMENTOS

Mesmo sem saber, meu caminho foi marcado por Divas; Divas na versão de
Amigos que são muito mais que amigos; Amigos que são parte de minha família;
Família que faz por laço e afetos; A Busca pela Verdade tem um nome, Diva! E
todas as Divas da minha vida só posso saber que são especiais, pois, tenho em
minha memória a doçura do carinho, a capacidade de se reinventar, a garra da
superação, o amor ao próximo, a gentileza...
Para minha mãe Diva. Para as Luzes que iluminam o meu viver.
À minha família e amigos, que estiveram ao meu lado apoiando,
incentivando, instigando e vibrando positivamente na conquista deste resultado, e
consequentemente tornando minha vida muito mais significativa.
A todo o corpo docente do Departamento de Filosofia da Faculdade São
Bento, pessoas que transformam a vida de seus alunos esclarecendo com saber as
dúvidas que surgem na busca do conhecimento.
Ao Prof. Dr. Joel Gracioso, orientador, que com muita paciência soube guiar-
me na escuridão até que pudesse enxergar a luz, minha mais profunda gratidão.
3

RESUMO

O objetivo desta pesquisa é discutir a estrutura do livro Contra os Acadêmicos I, que,


como o nome revela, é uma refutação do ceticismo dos Novos Acadêmicos, no qual,
afirmavam que o homem era incapaz de conhecer a verdade, pois o conhecimento é
baseado nos sentidos e os sentidos são variáveis, fornecendo dados imprecisos,
não podendo fornecer base para a certeza. Os pontos expostos por Santo Agostinho
no diálogo Contra os Acadêmicos I, ou, a raiz da doutrina agostiniana têm em seu
fundamento que nesta vida o homem pode ter certezas incondicionais, desta forma,
propõe um aprofundamento sobre a relação entre Verdade e Felicidade, refutando
veementemente os embasamentos dos céticos da Nova Academia. Para isso,
analisaremos aspectos do pensamento agostiniano no que se refere à verdade, à
felicidade, ao erro e à sabedoria, assuntos fundamentais que estão apresentados na
obra em forma de diálogo, no desafio de esclarecer determinados aspectos sobre o
desejo de Agostinho provar que o homem poderia sim conhecer a verdade, a
sabedoria e chegar à vida feliz.

PALAVRAS-CHAVE: Santo Agostinho - Contra os Acadêmicos – Sabedoria –


Verdade - Felicidade
4

ABSTRACT

The objective of this research is to discuss the structure of the book Against the
Academicians I, which, as the title implies, is a refutation of skepticism of the New
Scholars in which, said the man was unable to know the truth, since knowledge is
based on the senses and the senses are variable, providing inaccurate data that
cannot provide a basis for sure. The points made by St. Augustine in dialogue
Against the Academicians I, or the root of the Augustinian doctrine has in their
foundation that in this life man can have unconditional certainties thus proposes a
deepening of the relationship between Truth and Happiness, strongly refuting the
soffits of the skeptics of the New Academy. For this, we analyze aspects of
Augustinian thought with regard to the truth, to happiness, to error and wisdom,
fundamental issues that are presented in the work in dialogue form, the challenge to
clarify certain aspects of the Augustine desire to prove that the man would rather
know the truth, wisdom and reach the happy life.

KEY WORDS: St. Augustine - Against the Academicians - Wisdom - Truth –


Happiness.
5

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 6

1. AGOSTINHO CONTRA OS ACADÊMICOS.......................................................... 11


1.1 Santo Agostinho: vida e obra .............................................................................. 11
1.2 Origem e contexto do Livro “Contra os Acadêmicos” .......................................... 16

2 SURGIMENTO E DESENVOLVIMENTO DO CETICISMO ACADÊMICO ............. 23


2.1 A origem do Ceticismo Acadêmico ...................................................................... 23
2.2 O Ceticismo Acadêmico de Arcesilau ................................................................. 29
2.3 O Ceticismo Acadêmico de Carnéades ............................................................... 34

3 A VERDADE COMO CAMINHO PARA A FELICIDADE ........................................ 40


3.1 Incitação à Filosofia: o Prólogo a Romaniano ..................................................... 40
3.2 É preciso a verdade para ser feliz? ..................................................................... 45
3.3 A questão do erro ................................................................................................ 51
3.4 A definição de sabedoria ..................................................................................... 58

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 66

BIBLIOGRAFIA ......................................................................................................... 73
6

INTRODUÇÃO

Minha pesquisa começou no ano de 2003 sobre o que é a morte, e


passou por constantes transformações visuais e teóricas. Diva, minha mãe, faleceu
no ano de 2006; ela acreditava que o corpo de uma pessoa morta deveria ser velado
um dia e uma noite inteira, não importando a hora de seu falecimento. No velório de
minha mãe, realizo uma série de fotografias de detalhes sutis de sua morte com o
título: Portador da Verdade. Começa aí uma longa discussão e a pesquisa sobre o
que Era a Verdade...
No ano de 2013, a pesquisa, ainda voltada para o que ‘Era a Verdade’, é
tomada por um novo olhar: não deveria buscar somente o que ‘É a Verdade’, mas
compreender como o ‘Sistema da Verdade’ opera no indivíduo e rege a si mesmo.
Os novos estudos levam ao encontro de Santo Agostinho e a relação entre Verdade
e Felicidade.
Pesquisando a vasta obra do referido autor selecionei como referência e
objeto de estudo a obra “Contra os Acadêmicos” livro I, traduzido por Frei Agustinho
Belmonte, introdução de Bento Silva Santos (coleção Patrística; 24 - 2008), onde
encontramos a discussão sobre a relação entre felicidade e o conhecimento da
verdade para ser feliz. Este recorte faz-se necessário, pois no livro II e III encontra-
se a discussão da doutrina dos Acadêmicos.
A busca pela felicidade e pelo que é importante na vida para obtê-la
sempre fascinou o Homem; desta forma, conhecer e determinar se podemos obter
verdades constitui-se como algo essencial. O problema da verdade pressupõe, para
o homem, o problema do conhecimento, caso se aceite que é possível alcançar a
certeza.
A filosofia caminha sobre um dilema, a possibilidade de conhecer a
verdade, existindo correntes que a defendem, e correntes que a negam, que
defendem que o homem possa conhecer, e o que negam que se possa chegar ao
conhecimento da verdade.
Um dos defensores de que o homem poderia conhecer a verdade é
Agostinho, que ao conceber o caminho para a Sabedoria como uma busca,
questionou de que forma ela poderia ser empreendida, sendo que os Novos
Acadêmicos negavam que a mente humana poderia atingir a verdade.
7

Desta forma, a comprovação da verdade funda-se como ponto chave nas


etapas de superar o ceticismo acadêmico; a luta de Agostinho contra o ceticismo é a
luta pela beatitude, pois, enquanto a verdade absoluta não for acessível aos
homens, não haverá a beatitude para os mesmos. Esta é a raiz da doutrina
agostiniana: que nesta vida o homem pode ter certezas incondicionais, logo, que
existe a possibilidade da Verdade absoluta e beatificadora, sendo esta não um fim,
mas um meio para a sabedoria.
Logo, é preciso a Verdade para ser Feliz? Esta pergunta encontra-se na
obra Contra os Acadêmicos I de Santo Agostinho, analisada na presente
dissertação. No texto, o filósofo propõe um aprofundamento sobre a relação entre
Verdade e Felicidade, refutando veementemente os fundamentos dos céticos da
Nova Academia. Para os fins desta pesquisa, analisaremos os pontos fundamentais
que estão apresentados em forma de diálogo, no desafio de esclarecer
determinados aspectos, algumas vezes repletos de mistérios, o que torna muito
complexo o seu entendimento. Existe sempre algo de desafiador em Agostinho no
que diz respeito à sua visão de mundo.
No primeiro capítulo, apresentamos um breve histórico da vida de
Agostinho, desde seus primeiros estudos: a leitura de Cícero, que mudou seu
caminho, destacando a importância do livro Hortensius, que consiste não somente
no fato de que a obra descreve o ‘querer a verdade’, mas também por redirecionar
Agostinho e aguçar seu desejo na busca pela sabedoria e pela Felicidade. Agostinho
adota algumas das ideias de Cícero, que prescrevem a atitude do sábio diante dos
bens materiais e da fortuna, que incide na felicidade pela razão.
Nesta busca pela Sabedoria e pela Felicidade, seu caminho foi marcado
por grandes fatos: o relacionamento com uma mulher, o nascimento de seu filho,
Adeodato, a adesão e a desilusão com o maniqueísmo, o encontro com Fausto de
Mileno, o conhecimento das principais escolas da filosofia helenística, a atração pelo
ceticismo da Nova Academia e pelo neoplatonismo, a influência do Bispo Ambrósio,
que se tornaria um mestre e seu orientador, a revelação nos jardim na residência em
Milão, a conversão ao cristianismo, e, por fim, a nomeação como Bispo de Hipona.
Nesse sentido, ao acompanharmos a saga de Agostinho, o que se
observa é um homem em constante transformação, tanto no que concerne ao
campo intelectual quanto ao campo moral: da condição de leitor de Cícero na
juventude até a condição de Bispo interessado pelo neoplatonismo, na busca
8

almejada pelo bem que, satisfazendo o seu desejo, traria paz ao seu coração. A
felicidade como algo a ser buscado motivou todo o seu pensamento filosófico; suas
experiências de vida se tornaram um rico material que deu origem aos seus escritos.
Na sequência analisaremos a estrutura do livro I Contra os Acadêmicos,
que, como o nome revela, é uma refutação do ceticismo dos Novos Acadêmicos. A
obra foi escrita depois da revelação nos jardins na casa em Milão, quando Agostinho
inicia uma nova etapa em sua vida, dedicando-se aos princípios do Cristianismo,
afastando-se, consequentemente, de sua vida passada. Ele se retira para uma casa
de campo em Cassicíaco, juntamente com sua mãe, Mônica; seu único filho,
Adeodato; seu irmão mais velho, Navígio; seus discípulos Licêncio e Trigécio. Nos
seis meses que permaneceram neste local, preenchiam o tempo com estudos,
orações, meditações, trabalhos agrícolas, afazeres domésticos, com a contemplação
da verdade e a busca pela sabedoria.
Após sua conversão, Agostinho dedicou-se primeiramente à verificação
da possibilidade de o homem conhecer a verdade. Para isso, teve que superar o
ceticismo dos Novos Acadêmicos, os quais apropriavam-se de uma definição de
Zenão de Cítio segundo a qual a verdade seria aparecer de modo a que não possa
parecer uma falsidade. Esta definição é a base para os diálogos e argumentações
que Agostinho constrói com seus discípulos, que dão origem a três livros,
constando, ainda, um prólogo à Romaniano.
O caminho inicial para refutar o ceticismo era apoiar as argumentações na
própria doutrina dos Acadêmicos, e desta forma provar que o homem poderia sim
conhecer a verdade e chegar à vida feliz. Logo, o método de exposição do
pensamento utilizado por Agostinho não poderia ser outro que não o dialético, onde
pretende entender o mundo como aquilo que lhe parece ser o mundo, determinando,
desta forma, poder saber que o mundo existe, ratificando a essência de seus
pensamentos sobre as coisas que podem ser conhecidas.
O segundo capítulo trata de questões inerentes ao Ceticismo Acadêmico,
compreendendo que nessa denominação estão incluídas diversas correntes
filosóficas que despontaram no decorrer da História. Por este motivo, optamos por
estabelecer um marco histórico, situando o Ceticismo (skeptikós) como uma corrente
filosófica fundada na Grécia Antiga (III e IV a.C.), cuja denominação, em grego,
significa investigar, olhar atentamente, examinar. Seus fundadores foram Pirro e seu
discípulo Tímon. Os céticos não estabelecem qualquer opinião sobre a natureza das
9

coisas, pois tanto o sentido como a razão não permitem conhecer as coisas tais
como elas são. Para eles, o homem chega a definições por cansaço, desgosto da
vida prática e das disputas dialéticas infinitas. Com a sua filosofia, buscam uma vida
feliz e tranquila; ou seja, o objetivo fundamental da filosofia do Ceticismo Pirrônico é
atingir a ataraxia, ausência de perturbações ou inquietações da mente, alcançando,
deste modo, a felicidade, eudaimonia.
Seguimos para a origem do ceticismo acadêmico, corrente rechaçada por
Santo Agostinho no livro Contra os Acadêmicos. O nome dado a essa corrente
filosófica relaciona-se com o fato de que ela se desenvolveu na escola de Platão,
posteriormente conhecida como Nova Academia, que tem como seus grandes
representantes Arcesilau e Carnéades.
Os Novos Acadêmicos afirmavam que o homem era incapaz de conhecer
a verdade, pois o conhecimento é baseado nos sentidos, sendo, desta forma,
impossível o assentimento do homem ou do sábio. Para os céticos, todo
conhecimento está ligado à percepção do sensível, e os sentidos são variáveis,
fornecendo dados imprecisos, não podendo fornecer base para a certeza. Assim,
eles deveriam evitar assumir posicionamentos perante as coisas, mantendo-se em
dúvida. O posicionamento do cético é manter uma atitude crítica diante da pretensão
dogmática de ter descoberto a verdade, afirmando que a verdade não foi e não será
descoberta.
No terceiro capítulo, discutimos a Verdade, se ela é necessária para
chegar ao sonhado caminho da Felicidade, iniciando com uma exortação a
Romaniano, um homem destinado à virtude. Tentamos nos aproximar da expressão
usada por Agostinho, “porto da sabedoria”1 e seguimos para os bens materiais, os
quais trazem o temor da perda da fortuna.
Passamos ao questionamento de Agostinho, que apresenta uma reflexão
em forma de pergunta sobre a necessidade de conhecer a verdade para ser feliz:
“Pode-se viver de modo feliz somente procurando a verdade, sem encontrá-la?”2. E
o diálogo entre Licêncio, que defende os Acadêmicos, e Trigécio, que combate a
filosofia dos Acadêmicos, tendo Alípio e Santo Agostinho como juízes.

1
AGOSTINHO, Santo. Contra os Acadêmicos. Tradução Frei Agustinho Belmonte. Introdução Bento
Silva Santos. Coleção Patrística. São Paulo: Paulus, 2008, I, 1.
2
Idem, Ibidem, II, 5.
10

Esta questão se desdobrará em outras indagações filosóficas, pois não


basta responder apenas à pergunta, é necessário também dar vazão a diversos
outros questionamentos que se desenvolvem no diálogo. Em determinados
momentos, faremos emergir do texto as questões que estão insinuadas, ainda que
não plenamente abordadas. Tal recurso será necessário porque nosso objeto de
estudo é apenas o livro primeiro, no qual algumas questões são levantadas, mas
não há ainda nenhuma definição conceitual, embora o que Agostinho deseja já se
encontre de modo latente.
Nessa busca pela verdade, pelo conhecimento, pela sabedoria e pela
felicidade, existe um contexto histórico que Agostinho terá que superar com um jogo
de retórica capaz de desviá-lo das armadilhas do ceticismo, de maneira a sobrepujar
as ameaças e todas as falácias para depois tentar abraçar a verdade.
Assim, procuraremos, a partir do Primeiro Livro dos Acadêmicos, evocar
aspectos do pensamento agostiniano no que se refere à verdade, à felicidade, ao
erro e à sabedoria. Se recorremos a alguns outros livros, como A Vida Feliz e
Solilóquios, foi apenas de modo a preencher lacunas, por consideramos que, por
serem do mesmo período, não apresentam discrepâncias. O livro Confissões foi
utilizado apenas para dar fundamentação à biografia de nosso autor.
Por fim, desejando ter respondido aos questionamentos levantados,
chegamos às considerações finais deste estudo.
11

1. AGOSTINHO CONTRA OS ACADÊMICOS

1.1 Santo Agostinho: vida e obra

Aurélio Agostinho nasceu em Tagaste, cidade da Numídia, em 13 de


novembro de 354. Sua mãe, Mônica,3 uma cristã fervorosa, orgulhava-se do seu
filho e era admirada por todos os sacrifícios aos quais se sujeitava para conseguir
que terminasse sua educação4. Quanto a seu pai, Patrício, por ser pagão, não
alimentava para o filho as mesmas esperanças de uma vida melhor.
Agostinho realizou seus estudos iniciais em gramática e literatura na
cidade de Tagaste; era considerado um aluno mediano, e estava sendo educado
para se tornar um mestre da oratória. Ele descendia de uma família com poucos
recursos financeiros e permaneceu sem estudar por um ano, mas com a ajuda de
um amigo de seu pai, Romaniano, foi enviado à cidade de Cartago para o
aprofundamento de seus estudos. Em Cartago, estando longe da família, Agostinho
descobriu uma vida diferente, repleta de prazeres corpóreos e luxúria, desregrada,
cheia de vaidades, principalmente aos olhos da formação que recebera de sua mãe.
O confronto de sua formação com a moral daquele local levou-o a uma vida
contraditória. Viveu por 10 anos com uma mulher de nome desconhecido,
permanecendo com ela sem contrair matrimônio, relação cujo fruto foi um filho,
conhecido por Adeodato, que futuramente seguiria seus passos. No final de seus
estudos, em 373, Agostinho ensinou gramática em Tagaste e em Cartago,
constituindo-se como um sujeito de grande habilidade retórica.
Os estudos realizados por Agostinho até então não atendiam à sua
necessidade de resposta para algumas questões da vida. Nesse âmbito, sua
preocupação maior relacionava-se a entender a origem do mal5. Em sua busca

3
Sobre Mônica, Brown comenta que poucas são as mães que conseguem destaque quando são
apresentadas pelos seus filhos, em relação ao que significaram e do que passaram a significar. Ainda
mais frente à tamanha complexidade de ter um filho como Agostinho antes de sua conversão.
Ressalta que existe a necessidade de separar o que Agostinho fala sobre sua mãe, e o que o
mesmo, falando sobre a mãe, fala sobre si mesmo, que consiste em dois tipos de relação. As
palavras que Agostinho diz sobre Mônica, “lança tanta luz sobre seu próprio caráter quanto sobre o
de sua mãe”, na medida em que, o que Agostinho diz é menos importante do que a forma como o
mesmo diz. Um exemplo desta forma de apresentação de sua mãe ocorre quando Agostinho
descreve Mônica como uma mulher autenticamente impressionante. Esta é a forma como Agostinho
gostaria de ser visto pelas outras pessoas, um bispo digno, indiferente aos boatos e intrigo; um
pacificador atuante entre seus conhecidos. BROWN, Peter. Santo Agostinho Uma biografia, Rio de
Janeiro, São Paulo: Record, 2012, p. 34.
4
Idem, Ibidem, p.35.
5
MATTHEWS. Gareth. Santo Agostinho. Tradução Hugo Chelo. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 25.
12

constante pela Verdade, na falta de respostas para seus questionamentos, converte-


se ao maniqueísmo,6 que prometia um “despertar” aos seus seguidores. Estes
teriam controle sobre si, alcançando, dessa forma, sua libertação. Além disso, essa
doutrina estabelecia que todo pecado, todo mal, poderia ser explicado pela razão7.
Com o passar do tempo, sendo um maniqueísta, suas dúvidas e a busca
pela verdade ainda o atormentavam. No ano de 383, Agostinho encontra-se com um
dos homens mais sábios de todo maniqueísmo, Fausto de Mileva, oportunidade que
sempre havia esperado para que suas dúvidas sobre a verdade e a felicidade
fossem sanadas. Em suas palavras:

Durante cerca de nove anos, em que o meu pensamento errante


escutava a doutrina maniqueísta, ansiosamente esperava a vinda de
Fausto. Se por acaso encontrava alguns dos sequazes de Manés,
sentiam-se embaraçados com minhas objeções acerca daqueles
problemas. Mas asseguravam-me que, quando viesse Fausto,
facilmente me resolveria numa simples conversa todas estas
dificuldades, e ainda outras mais intrincadas que lhe propusesse8.

Ao ser questionado sobre determinados temas, Fausto não soube


responder, e, com isso, a desilusão tomou conta de Agostinho, abalando e
revelando a inconsistência do maniqueísmo9, que ele, após nove anos, abandona.
No livro A Vida Feliz, Agostinho ressalta que caiu sob a influência de homens que
sustentavam que a luz física, que percebemos com os olhos corporais, era digna de
culto supremo e divino10. Brown11 atesta que Agostinho já mantinha seus estudos
sobre o universo físico no período em que se afirmava como maniqueísta, e sabia
até que na obra Hortensius, lida por ele, havia estudos sobre natureza dos eclipses,

6
Do lat. manichaeus, do gr. Tardio manichaios, de Manichaios: Maniqueu, do persa Manes, o
fundador da seita. Doutrina criada por Manes (séc. III), que se difundiu pelo Império romano e pelo
Ocidente cristão, florescendo nesse período. Combina elementos do zoroastrismo, antiga religião
persa, e de outras religiões orientais, além do próprio cristianismo. Mantém uma visão dualista
radical, segundo a qual se encontram no mundo as forças bem ou da luz, e do mal, ou da escuridão,
consideradas princípios absolutos, em permanente e eterno confronto. O maniqueísmo teve grande
influência nos primórdios do cristianismo, sendo combatido por Santo Agostinho, que inicialmente o
havia adotado. JAPIASSÚ, Hilton. MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de filosofia, Rio de
Janeiro: Zahar, 2006, p. 177.
7
C.f. BROWN, Peter, Santo Agostinho Uma Biografia, 2008, p. 59.
8
AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução In. J. Oliveira santos, S.J., e A. Ambrósio de Pina, S.J.
Angelo Ricci. Introdução José Américo Motta Pessanha. São Paulo: Abril Cultural, 1980. V, 6, 10.
9
BOYER, Charles. L’idée de Vérité Dans La Philosophie de Saint Augustin, Paris: Beauchesne et ses
fils, 1939, p. 25.
10
AGOSTINHO, Santo. A Vida Feliz. Tradução Nair Assis de Oliveira. Introdução, notas, Roque
Frangiotti. São Paulo: Paulinas, 1993, I, 4.
11
C.f. BROWN, Peter. Santo Agostinho Uma Biografia, 2008, p. 68.
13

cujos argumentos contradiziam as teorizações maniqueístas12. Frustrado com o


maniqueísmo, Agostinho viaja para Roma na busca de reconhecimento, glória,
ganhos financeiros e uma vida decente. Permanecendo pouco tempo na capital
italiana, muda-se para Milão, onde é nomeado pelo prefeito Símaco como orador.13
O desespero de Agostinho por não encontrar respostas sobre a verdade o faz ir ao
encontro do academicismo de Cicero,14 tornando-se um cético.
Neste período, conhece o Bispo Ambrósio e se impressiona por sua
capacidade de defender o Velho Testamento dos julgamentos maniqueístas 15. O
apreço pelas palavras do bispo passou a produzir efeito em Agostinho, mobilizando-
o para o cultivo de sentimentos positivos. Por isso escreve:

Ardorosamente o ouvia quando pregava ao povo, não com o espírito


que convinha, mas como que a sondar a sua eloquência para ver se
correspondia à fama, ou se realmente se exagerava ou diminuía a
sua reputação oratória. Estava suspenso das suas palavras,
extasiado, porém indiferente e até mofando do que ele dizia.
Deleitava-me com a suavidade do discurso, bem mais erudito do que
o de Fausto, porém menos humorístico e sedutor na apresentação.
Pelo que se refere ao assunto, não se podem comparar, pois um
vagabundeava pelos enganos dos maniqueístas, e o outro ensinava
com a máxima segurança a salvação. Mas "dos pecadores", tal qual
eu era nesse tempo, "está longe a salvação". Todavia,
insensivelmente e sem o saber, me ia aproximando dela16.

Posteriormente, Ambrósio se tornaria um mestre e orientador de


Agostinho, ajudando-o a superar e abandonar por completo o maniqueísmo,
conseguindo aliviá-lo do desespero em sua busca pela Verdade e superando o
ceticismo da Academia17.
Agostinho, em seus estudos iniciais, havia se deparado com a obra
Hortensius, de Cícero, na qual a filosofia é apresentada como amor à sabedoria18. A
importância maior de Hortensius para sua vida consiste no fato de que o livro não
somente descreve o “querer a verdade”, como também o redireciona, aguçando seu

12
C.f. BROWN, Peter. Santo Agostinho Uma Biografia, 2008, p. 68.
13
Idem, Ibidem, p. 83.
14
GILSON, Étienne. Introdução ao estudo de Santo Agostinho. Tradução Cristiane Negreiros Abbud
Ayoub. São Paulo: Paulus, 2006, p. 438.
15
C.f. BROWN, Peter. Santo Agostinho Uma Biografia, 2008, p. 100.
16
C.f. AGOSTINHO, Santo. Confissões, 1980, V, 23.
17
C.f. MATTHEWS Gareth. Santo Agostinho, 2008, p. 27.
18
MARTINS, Maria Mansela Brio. Deus como beatitude e outras felicidades, Centro de Formação e
Cultura Diocese de Leiria-Fatima. Actas do Congresso. 11 a 15 de Novembro de 2004. Disponível
em: <http://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/4688/1/2004_TEOLOGIA_Brito_Manuela-
dig4.PDF>. Acesso em: 15. 11. 2014.
14

desejo pela busca da sabedoria19. Esta se inicia nas Sagradas Escrituras, mas sua
decepção com a forma de escrita o leva a argumentar que a elegância de estilo
ciceroniana chamou mais a sua atenção. Relata este momento no livro Confissões:

Determinei, por isso, dedicar-me ao estudo da Sagrada Escritura,


para a conhecer. Vi então uma coisa encoberta para os soberbos,
obscura para as crianças, mas humilde ao começo, sublime à
medida que se avança e velada com mistérios. Não estava ainda
disposto a poder entrar nela ou inclinar a cerviz à sua passagem. O
que senti, quando tomei nas mãos aquele livro, não foi o que acabo
de dizer, senão que me pareceu indigno compará-lo à elegância
ciceroniana. A sua simplicidade repugnava ao meu orgulho e a luz da
minha inteligência não lhe penetrava no íntimo20.

A busca pela felicidade foi provavelmente engendrada em Agostinho pela


leitura de Hortensius, o que se confirma em seu livro A Vida Feliz, no qual relata que
a obra de Cícero o despertou para a busca da verdadeira felicidade, ou seja, da
verdade e da sabedoria. Para Cícero, existia um conceito pelo qual a filosofia se
transforma em sabedoria, desta forma adquirindo a arte de viver e levando à
felicidade21. Agostinho adota suas ideias, crendo que elas prescrevem a atitude do
sábio diante dos bens materiais e da fortuna, levando à felicidade pela razão22.
Agostinho foi influenciado pelas principais escolas da filosofia helenística,
atraído pelo ceticismo da Nova Academia e pelo neoplatonismo23. As leituras feitas
dos livros platônicos contribuíram para a conversão de uma vida sustentada na
filosofia, a ligação e a fundamentação que serviria como ponte, permitindo a ele ter
conhecimento suficiente para modificar sua vida. Brown expõe que a dificuldade de
Agostinho, sendo um filósofo sem contato com obras originais por não falar grego,
não o impediu de ser um dos únicos pensadores a dominar os autores
neoplatônicos, impondo-se sobre os temas24.
A conversão definitiva de Agostinho aconteceu por meio de uma
revelação das palavras do apóstolo Paulo25. No jardim na residência em Milão, ouviu

19
NOVAES, Moacyr; SOUZA NETO, Francisco Benjamin de; NASCIMENTO, Carlos Arthur Ribeiro
do; MAMMÌ, Lorenzo. Linguagem e verdade nas Confissões. In: PALACIOS, Pelayo Moreno (org.).
Tempo e razão: 1600 anos das Confissões. São Paulo: Loyola, 2002, pp. 29-54.
20
C.f. AGOSTINHO, Santo. Confissões, 1980, III, 5, 9 .
21
C.f. FRANGIOTTI, Roque. Introdução. In: AGOSTINHO, Santo. A Vida feliz. São Paulo, 1993, p.
112.
22
Idem, Ibidem, p. 112.
23
C.f. MATTHEWS. Gareth B. Santo Agostinho, 2008, p. 23.
24
C.f. BROWN, Peter. Santo Agostinho Uma biografia, 2012, p.113.
25
C.f. PESSANHA, José Américo. Introdução. In: AGOSTINHO, Santo. Confissões, 1980, p. VI.
15

a voz de uma criança que cantava de modo que parecia uma reflexão, repetindo
diversas vezes: "Tolle, lege, tolle, lege"26. Após este acontecimento, desligou-se do
cargo de professor municipal. Na Páscoa foi batizado seguindo os dogmas do
cristianismo para a santificação da alma27.

“Em Milão, num dia qualquer de agosto de 386 da era


cristã, um homem de 32 anos de idade chorava nos
jardins de residência. Deprimido e angustiado estava à
procura de uma resposta definitiva que lhe desse sentido
para a vida. Nesse momento ouviu uma voz de criança a
cantar como se fosse um refrão: “Toma e lê, toma e lê”.
Levantou-se bruscamente, conteve a torrente de
lágrimas, olhou em torno para descobrir de onde vinha o
canto, mas não viu mais que um livro sobre uma pequena
mesa. Abriu e leu a página caída por acaso sob seus
olhos: “Não caminheis em glutonarias e embriaguez, não
nos prazeres impuros do leito e em leviandades, não em
contendas e emulações, mas revesti-vos de Nosso
Senhor Jesus Cristo, e não cuideis da carne com
demasiado desejos”.
Não quis ler mais. Uma espécie de luz inundou-lhe o
coração, dissipando todas as trevas da incerteza e ele
correu à procura da mãe para lhe contar o sucedido. Ela
exultou e bendisse ao Senhor, pois o filho estava
convertido pelas palavras de Paulo de Tarso, e as portas
da bem-aventuradas eterna abriam-se finalmente para
recebe-lo”28

No ano de 391, aos 36 anos, Agostinho é nomeado presbítero, e pouco


tempo depois se torna Bispo de Hipona, permanecendo no cargo por cerca de 40
anos - até o final da vida - dividindo-se entre os afazeres administrativos e o
pensamento filosófico. Morre no dia 28 de agosto de 430, aos 75 anos de idade29.

Agostinho tornou-se bispo de Hippo Regius (Hipona, próxima de


Bone, ou Annaba, na Argélia), uma povoação na costa do Norte de
África com uma história ancestral, mas particularmente pouco
notável. Nos tempos de Agostinho, Hipona era uma cidade bastante
próspera. Mas não existem outras figuras de renome e certamente
nenhum outro filósofo ou teólogo que possam ser associado à
Hipona30.

26
Toma e lê, tome e lê.
27
C.f. PESSANHA, José Américo. Introdução. In: AGOSTINHO, Santo. Confissões, 1980, p. X.
28
Idem, Ibidem, p. VI.
29
PADOVANI, Humberto; CASTAGNOLA, Luís. História da Filosofia, São Paulo: Melhoramentos,
1954, p. 200.
30
C.f. MATTHEWS. Gareth. Santo Agostinho, 2008, p. 22.
16

Viveu seus dias em uma busca permanente por respostas para alcançar
uma vida feliz. A questão da felicidade como algo a ser solucionado motivou todo o
seu pensamento filosófico; suas experiências de vida se tornaram um rico material
que deu origem aos seus escritos. Agostinho surpreende pela sua biografia, assim
como pela sua escrita, podendo ser considerado um homem à frente de seu
tempo31.
Assim, ao acompanhar a saga de Agostinho, o que se vê é um homem
em constante transformação, tanto no que concerne ao campo intelectual quanto ao
campo moral. Parte da condição de leitor de Cícero na juventude até chegar a Bispo
interessado pelo neoplatonismo. Ele almejava o bem que, satisfazendo o seu
desejo, traria a paz ao seu coração32. Logicamente, para isso, o conhecimento sobre
o seu destino era um desafio a ser elucidado.

1.2 Origem e contexto do Livro “Contra os Acadêmicos”

Depois da revelação nos jardins na casa em Milão, Agostinho inicia uma


nova etapa em sua vida. Dedica-se aos princípios do Cristianismo, afastando-se,
consequentemente, de sua vida passada. Ele se retira para uma casa de campo em
Cassicíaco, juntamente com sua mãe, Mônica; seu único filho, Adeodato; seu irmão
mais velho, Navígio; seus discípulos Licêncio e Trigécio33.
Nos seis meses que permanecem neste local, preenchiam o tempo com
estudos, orações, meditações, trabalhos agrícolas, afazeres domésticos, com as
preparações para o batizado, a contemplação da verdade e a busca pela sabedoria.
Neste período, escreve, primeiramente, Contra os Acadêmicos, e dedica-se, depois,
a Sobre a Vida Feliz, Sobre a Ordem, e Solilóquios.
A primeira questão tratada por Agostinho após sua conversão foi se o
homem poderia conhecer a verdade; desta forma, o santo doutor busca devolver ao
homem a esperança de poder chegar à verdade, e consequentemente à vida feliz34.
Gilson aponta:

31
C.f. MATTHEWS. Gareth. Santo Agostinho, 2008, p. 23.
32
C.f. GILSON, Étienne. Introdução ao estudo de Santo Agostinho, 2006, p. 17.
33
C.f. BROWN, Peter. Santo Agostinho Uma biografia, 2012, p. 144.
34
C.f. BOYER, Charles. L’idée de Vérité Dans La Philosophie de Saint Augustin, 1939, p. 10.
17

O que inquieta Agostinho é o problema de seu destino; para ele, esta


é toda a questão: procurar se conhecer para saber o que é preciso
fazer a fim de ser melhor e, se possível, a fim de bem ser. Para
Santo Agostinho, portanto, pode haver, e há, uma grande
abundância de especulação, mas ela sempre visa fins práticos e seu
ponto de aplicação imediata é o homem35.

Santo Agostinho queria limpar sua mente dos vestígios deixados pelos
erros que cometeu36, e libertar todos do “pirronismo” do qual ele mesmo sofreu37,
sabendo que o ceticismo é o obstáculo que bloqueia o caminho para a filosofia38. Ou
seja, para que ele pudesse evoluir com seus pensamentos e com a sua filosofia,
seria preciso superar o ceticismo.

A finalidade do Contra Acadêmicos parece ser dupla, pois além de


combater os argumentos dos acadêmicos para removê-los do seu
ânimo, pensa e cita expressamente as pessoas que ainda eram
presas destes mesmos argumentos, tirando-lhes a esperança de
encontrar a verdade. Insinuando com esta dupla preocupação que
poderia chamar-se individual ou própria e coletiva ou comum, o que
através da obra mostrará como dois grandes movimentos: um
interior, em direção a si mesmo e outro exterior, em direção aos
outros. O movimento em direção aos outros o levará para fora de si,
se bem que não para afastar-se de si, mas para chamar os outros a
esse encontro consigo. Na prática Agostinho está colocando em
pauta um itinerário filosófico, através do encontro consigo mesmo
poder chegar ao encontro com a verdade que habita no interior do
homem39.

O livro Contra os Acadêmicos, como o próprio nome revela, é uma


refutação ao ceticismo dos Novos Acadêmicos, que se apropriam de uma definição
de Zenão de Cítio, segundo a qual a verdade seria aparecer de modo a que não
possa parecer uma falsidade. Esta afirmação é a base para os diálogos e
argumentações que Agostinho construirá com seus discípulos contra os
Acadêmicos, dando origem a três livros, no primeiro livro encontramos a discussão
sobre a relação entre felicidade e o conhecimento da verdade para ser feliz, no

35
C.f. GILSON, Étienne. Introdução ao estudo de Santo Agostinho, 2006, p. 17.
36
C.f. BOYER, Charles. L’idée de Vérité Dans La Philosophie de Saint Augustin, 1939, p. 23.
37
C.f. GILSON, Étienne. Introdução ao estudo de Santo Agostinho, 2006, p. 84.
38
C.f. Idem, Ibidem, p. 90.
39
PALACIOS, Pelayo Moreno. O estamento da verdade no Contra Acadêmicos de Agostinho. 2006.
Tese (Doutorado em Filosofia) – Universidade de São Paulo. Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas - Departamento de Filosofia. Disponível em:
www.teses.usp.br/teses/.../TESE_PELAYO_MORENO_PALACIOS.pdf. Acesso em: 10. 10. 2014. p.
10.
18

segundo e terceiro encontra-se a discussão da doutrina dos Acadêmicos, além de


um prólogo à Romaniano.
Sobre a definição de Zenão de Cítio, a mesma é apresentada por
Agostinho no diálogo Contra os Acadêmicos de diferentes modos, o que leva o leitor
a ter dificuldade em determinar com precisão o que Agostinho compreende a
respeito deste preceito. Com efeito, “o que aparece pode ser apreendido, se
aparecer de modo a que não possa parecer uma falsidade”40. Ora, é difícil saber o
que significa “aparecer de modo a que não possa parecer uma falsidade”, logo
poderíamos tomar esta expressão pela seguinte: “aparece de um modo que o falso
não pode aparecer”41.
O caminho inicial trilhado por Agostinho para refutar o ceticismo consistiu
em apoiar as argumentações da própria doutrina dos Acadêmicos, e desta forma
provar que o homem poderia sim conhecer a verdade e chegar à vida feliz. O
método de escrita utilizado por Agostinho não poderia ser outro, dialético, por meio
do qual, segundo ele, se ensina a ensinar e posteriormente se ensina a aprender42.
A dialética permite estabelecer formulações e conclusões43, além de fundamentar
tanto seus pensamentos filosóficos pautados pela força da razão, quanto uma
ordem, pois sem ordem não se estabelece a confiabilidade para felicidade.
Este modo dialógico era frequentemente aplicado na Antiguidade
Clássica, um artifício pedagógico44 de um professor de retórica para expandir seus
pensamentos, transformar sua doutrina em um método que pudesse ser replicado,
e, dessa forma, poder refutar as argumentações dos céticos, tendo discípulos bem
treinados para o bom combate.

Agostinho como rétor que era, sabia muito bem, como a força
persuasiva da retórica se transforma numa arma usada com maestria
pelos acadêmicos, para convencer as pessoas da impossibilidade de
encontrar a verdade, e o que pretende é ajudar a aqueles que como
ele podem ter caído na sua rede, valendo-se para isto dos seus
conhecimentos, para que, ao lado de uma destreza literária,
adquiram uma destreza dialética através do exercício, que lhes

40
MATTHEWS. Gareth. Santo Agostinho, 2008, p. 35.
41
Idem, Ibidem, p. 36.
42
C.f. PESSANHA, José Américo. Introdução. In: AGOSTINHO, Santo. Contra os Acadêmico, 2008,
p. 18.
43
AGOSTINHO, Santo. Solilóquios. Tradução Adaury Fiorotti. Coleção Patrística. São Paulo: Paulus,
1998, XIII, 22.
44
C.f. SOUZA, José Zacarias. Agostinho Buscador inquieto da verdade, Coleção Filosofia, n. 124.
Porto Alegre: EDIPURS, 2001, p. 39.
19

ensine a pensar, a descobrir os erros e a saber articular as razões,


para poder adquirir um rigor lógico e uma coerência na reflexão.45

Bento Silva Santos, na introdução da referida obra, afirma que a dialética


de Agostinho era baseada em um procedimento rígido que deveria ser seguido para
atingir seu propósito, disputatio (disputa), quaestio (questão) e inventio
(invenção/descoberta)46. Neste sentido, apresenta-se um problema, uma pergunta,
e, pelo diálogo, há a busca de uma solução para o problema ou pergunta47. No
diálogo Solilóquios, Agostinho ratifica o uso da dialética afirmando não existir melhor
método para a busca da verdade48.
No livro Contra os Acadêmicos I, Agostinho apresenta uma reflexão em
forma de pergunta sobre a necessidade de conhecer a verdade para ser feliz: “pode-
se viver de modo feliz somente procurando a verdade, sem encontrá-la?”49. Para
tentar responder à pergunta de Agostinho, inicia-se um diálogo entre Licêncio, que
defende os Acadêmicos, e Trigécio, que combate a filosofia dos Acadêmicos; os
dois jovens são de temperamento impetuoso e arredio, e no papel de juiz
estabelece-se Alípio e Santo Agostinho.
Esta reflexão se desdobrará, gerando outras questões filosóficas. A busca
pela resposta à pergunta que norteia a obra leva não somente à sua própria
resposta, como também serve para levantar diversos outros tópicos, entre os quais,
o erro dos acadêmicos, as possibilidades de uma vida feliz, as condições da posse
da verdade, do conhecimento das coisas divinas e humanas, da sabedoria50.
Questões que conduzirão a uma série de definições de conceitos, para Agostinho
então determinar se é preciso possuir a verdade para ser feliz. Como aponta Boyer,
a filosofia agostiniana ilumina muitas outras questões além da certeza 51.

45
PALACIOS, Pelayo Moreno. O estamento da verdade no Contra Acadêmicos de Agostinho. 2006.
Tese (Doutorado em Filosofia) – Universidade de São Paulo. Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas - Departamento de Filosofia. Disponível em:
www.teses.usp.br/teses/.../TESE_PELAYO_MORENO_PALACIOS.pdf. Acesso em: 10. 10. 2014. p.
24.
46
C.f. SANTOS, Bento Silva. Introdução. In: AGOSTINHO, Santo. Contra os Acadêmicos, 2008, p.
14.
47
C.f. Idem, Ibidem, p. 14.
48
C.f. AGOSTINHO, Santo. Solilóquios, 1998, VII, 4.
49
C.f. AGOSTINHO, Santo. Contra os Acadêmicos, 2008, I, II,
50
C.f. SANTOS, Bento Silva. Introdução. In: AGOSTINHO, Santo. Contra os Acadêmicos, 2008, p.
28.
51
C.f. BOYER, Charles. L’idée de Vérité Dans La Philosophie de Saint Augustin, 1939, p. 10.
20

O próprio Agostinho acreditou em determinado período de sua vida que o


homem não poderia alcançar qualquer verdade52 mas tendo conhecimento dos
ensinamentos dos Acadêmicos, ele precisava provar que é possível estabelecer
certezas, e para tanto refutar o ceticismo usando o seu pensamento filosófico, a
partir de procedimentos dialógicos fundamentados na força da razão53.
Agostinho pretende entender o mundo como aquilo que lhe parece ser o
mundo, determinando, desta forma, poder saber que o mundo existe, concentrando
todo seu esforço para construir uma oposição ao ceticismo da Academia, ratificando
a essência de seus pensamentos sobre as coisas que podem ser conhecidas54.
Desta forma, “a contemplação da verdade é, para santo Agostinho, a
condição sine qua non da Beatitude”55, ou seja, a comprovação da verdade funda-se
como ponto chave nas etapas para superar o ceticismo acadêmico; a luta de
Agostinho contra o ceticismo é a luta pela beatitude, pois, enquanto a verdade
absoluta não for acessível aos homens, não haverá a beatitude para os mesmos.
Esta é a raiz da doutrina agostiniana: que nesta vida o homem pode ter certezas
incondicionais, logo, que existe a possibilidade da Verdade absoluta e
beatificadora56.
A felicidade esteve sempre presente nos pensamentos e na escrita de
Agostinho, o que pode ser notado em toda a sua extensa carreira. Sua
fundamentação da felicidade é acrescida de uma reflexão com aspectos cristãos,
que transforma os temas pagãos. Nesta lógica:

[...] Agostinho, para falar da felicidade, fez uma transformação das


ideias pagãs para uma forma cristã. A sabedoria estoica e a medida
grega são identificadas por ele com Deus, que é considerado fonte
da verdade. É genuinamente cristã a ideia de Agostinho quando
afirma que a felicidade humana está no pleno conhecimento de
Deus, mas de início se acomoda à doutrina platônica, segundo a
qual, a felicidade consiste no conhecimento do bem supremo57.

A busca pela felicidade aparece desde a primeira obra, Contra os


Acadêmicos, existindo nela uma abordagem da verdade e da felicidade,

52
C.f. GILSON, Étienne. Introdução ao estudo de Santo Agostinho, 2006, p. 36.
53
C.f. SANTOS, Bento Silva. Introdução. In: AGOSTINHO, Santo. Contra os Acadêmicos, 2008, p.
14.
54
C.f. MATTHEWS. Gareth. Santo Agostinho, 2008, p. 45.
55
C.f. GILSON, Étienne. Introdução ao estudo de Santo Agostinho, 2006, p. 25.
56
C.f. Idem, Ibidem, p. 28.
57
C.f. SOUZA, José Zacarias. Agostinho Buscador inquieto da verdade, 2001, p. 44.
21

estabelecendo a necessidade de uma sobre a outra,58 pela verdade se alcança o


caminho para o conhecimento, ao fim do qual encontramos a sabedoria; por sua
vez, a sabedoria é condição para a felicidade. Logo, o sábio é aquele que conhece a
sabedoria e é, portanto, feliz.
No livro Sobre a Vida Feliz, Agostinho argumenta que “todo o que
encontrou a Deus e o tem benévolo é feliz (sábio). Todo o que ainda busca a Deus
tem-no benévolo, mas ainda não é feliz (homem)”.59 Cabe esclarecer que o termo
“benévolo”, segundo o autor, é quem tem Deus como amigo e, a fundamentação da
ideia de felicidade ligada diretamente a Deus como beatitude tendo em sua base a
verdade. Isto constitui a doutrina agostiniana para a contemplação da vida feliz, o
que implica que a própria doutrina tendo a verdade como base é a condição
necessária para se alcançar a felicidade, logo, o conhecimento da verdade não é o
fim, mas requisito para o homem a título de qualidade imprescindível para a
60
obtenção da felicidade e, para alcançar a Deus e tê-lo como benévolo.
Prontamente, a refutação do ceticismo não ocorre somente no plano do
conhecimento, mas também vê como outro, o destino da alma. No entendimento de
Agostinho, a beatitude:

[...] é uma alegria perfeita, ela está isenta de temor e, muito


particularmente, daquele de perder o objeto que a beatifica; ora,
existe apenas um único bem que nenhum temor pode perturbar a
posse, é a verdade, precisamente porque, para tê-la, basta àquele
que a quer, conhecê-la61.

Dessa forma, a doutrina de Agostinho contrapõe-se ao que pregavam os


Acadêmicos, para os quais a busca pela felicidade era um fim em si mesmo.
Também, ao abordar o tema da felicidade, ele aparece como sucessor da tradição
filosófica clássica, uma vez que pensadores como Pitágoras, Platão, Cícero,
Sêneca, estóicos e neoplatônicos também refletiram sobre esta questão62.
Brown destaca que no período passado em Cassicíaco, Agostinho se
dedicou a um programa intelectual, que se afigura a seus admiradores como “uma

58
C.f. MATTHEWS. Gareth. Santo Agostinho, 2008, p. 220.
59
C.f. AGOSTINHO, Santo. A Vida feliz, 1993, III, 21.
60
C.f. GILSON, Étienne. Introdução ao estudo de Santo Agostinho, 2006, p. 27.
61
Idem, Ibidem, p. 27.
62
C.f. SOUZA, José Zacarias. Agostinho Buscador inquieto da verdade, 2001, p. 38.
22

visão verdadeiramente grandiosa do trabalho de uma vida”63. A produção do Contra


os Acadêmicos resultou dessa dedicação e é apontada por Matthews como uma
obra complexa, sendo o seu entendimento muito misterioso e de difícil
compreensão64. Por outro lado esse autor destaca que Agostinho foi o “primeiro
pensador da filosofia ocidental que efetivamente fez filosofia a partir de um genuíno
ponto de vista da primeira pessoa”65. Ressaltamos ainda a relevância atribuída por
Bermon à obra de Agostinho como aquela que influenciou profundamente a
compreensão do ceticismo66.

63
C.f. BROWN, Peter. Santo Agostinho Uma biografia, 2012, p. 147.
64
C.f. MATTHEWS. Gareth. Santo Agostinho, 2008, p. 34.
65
Idem, Ibidem, p. 236.
66
BERMON, Emmanuel. Le Cogito Dans La Pensée de Saint Augustin. Paris: J. Vrin, 2001, p. 108.
23

2 SURGIMENTO E DESENVOLVIMENTO DO CETICISMO ACADÊMICO

2.1 A origem do Ceticismo Acadêmico

A busca pela felicidade sempre fascinou ao Homem. Sucedendo à


pergunta sobre o que é a felicidade, surge o questionamento do que é a verdade;
desta forma, determinar se podemos conhecer a verdade constitui-se como
essencial. O problema da verdade estipula para o homem o problema do
conhecimento, da possibilidade de alcançar a certeza.
A filosofia caminha sobre o dilema da possibilidade de conhecer a
Verdade, existindo os que defendem que o homem a possa conhecer, e os que
negam que se possa chegar ao seu conhecimento. Um dos defensores da ideia de
que o homem poderá conhecer a verdade é Agostinho. Ao perceber o caminho para
a Sabedoria como uma busca, questionou-se de que forma ela poderia ser
empreendida, uma vez que os Acadêmicos negam que a mente humana possa
atingir a verdade67.
Santo Agostinho viveu em um período de derrocada do domínio da
filosofia antiga, das correntes helenísticas do ceticismo, do estoicismo e do
neoplatonismo68.
Para um entendimento do que Agostinho questiona e como ele
fundamenta suas críticas contra o Ceticismo Acadêmico, faz-se necessário
primeiramente conhecer os seus fundamentos, uma vez que as questões que se
apresentam são variáveis e o período histórico em que ele se desenvolveu é incerto.
Existem várias vertentes no ceticismo clássico. Por este motivo, optou-se por
estabelecer como contexto histórico seu início na Grécia Antiga até o período tratado
no livro Contra os Acadêmicos, que corresponde, respectivamente, ao denominado
Ceticismo Acadêmico.
O Ceticismo (skeptikós) é uma corrente filosófica que tem seus pilares
na Grécia Antiga (III e IV a.C), cuja denominação significa “investigar, olhar
atentamente, examinar”. O propagador do ceticismo foi Pirro de Élis (c.365-275
a.C.), que nasceu em Élis de uma família pobre, pintava para sobreviver e pertenceu
ao exército de Alexandre, acompanhando-o até à Índia onde deparou com os

67
C.f. BROWN, Peter. Santo Agostinho Uma biografia, 2012, p. 96.
68
C.f. MATTHEWS. Gareth. Santo Agostino, 2012, p. 21.
24

gimnosofistas, “uma espécie de sábios da Índia, que levavam uma vida de tipo
monástico”69. Um fato que marcou sua viagem foi observar um gimnosofista, de
nome Calano, voluntariamente jogar-se entre labaredas, e calmamente suportar as
queimaduras até morrer. Logo, Pirro no testemunho de Calano, assistiu à
demonstração ao vivo da ideia que o sábio pode suportar todo o tipo de dor e ser
70
feliz, “mesmo em meio a tormentos” . Frequentou a escola de Fédon, seguidor de
Platão, e posteriormente a escola de Megárica. Lá, afirma: “descobri a
impossibilidade do discurso e do pensamento para apreender o ser”,71 em seguida,
tem aulas com Anaxarco de Abdera que o introduziu aos pensamentos de
Demócrito. Brochard comenta:

A filosofia de Pirro na verdade não deriva de nenhuma filosofia


anterior: é uma doutrina original. A educação de Pirro, suas viagens,
especialmente suas relações na Ásia, com os gimnosofistas, haviam-
no preparado para que não se interessasse por nada. O espetáculo
das discórdias dos filósofos e os acontecimentos políticos de que foi
testemunha acabaram por apartá-lo de toda crença. Ele pôde, então,
expressar sobre alguns temas as mesmas ideias que seus
predecessores; é uma simples coincidência. Sua doutrina é um
primeiro começo: traz uma ideia nova, uma nova maneira de resolver
os problemas filosóficos72.

Pirro argumentava sobre o ceticismo baseado no testemunho de sua


conduta e de seu modo de vida e fundou um discurso cético que tinha em sua base
a suspensão sobre todas as coisas do juízo, não devendo afirmar ou negar, pois
tudo está baseado nos sentidos73.

Pirro afirmava que nada é honroso ou vergonhoso, nada é justo ou


injusto, e aplicava igualmente a todas as coisas o princípio de que
nada existe realmente, sustentando que todos os atos humanos são

69
REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. V.3. Os Sistemas da era helenística. Tradução de
Marcelo Perine, 1994, p. 394.
70
Idem, Ibidem, p. 395.
71
CHAUI, Marilena. Introdução à história da filosofia: as escolas helenísticas - Volume II, São Paulo:
Companhia das Letras, 2010, p. 52.
72
BROCHARD, Victor. Os Céticos Gregos. Tradução Jaimir Conte, 2009, p. 65. Odysseus, 2009, I, II.
73
Pirro não fundou uma verdadeira escola, não acolheu discípulos e não quis nem mesmo fixar por
escrito a sua palavra. Quis, ao contrário, retomar o exemplo de Sócrates, convencido de que através
da palavra e, antes, nem mesmo através da palavra, mas sobretudo pelo testemunho da vida, dever-
se-ia e poder-se-ia comunicar a mais autêntica mensagem de sabedoria filosófica. REALE, Giovanni.
História da Filosofia Antiga. V.3. Os Sistemas da era helenística. Tradução de Marcelo Perine, p. 391.
25

determinados pelos hábitos e pelas convenções, pois cada coisa não


é mais isto que aquilo74.

Com efeito, segundo o cético, não existiria nenhum fundamento para o


conhecimento ou mesmo para a crença, levando à impossibilidade de que o homem
75
pudesse ter certezas sobre a vida baseado na razão , ou seja, “as coisas não
possuem qualquer diferença, nem medida, nem discriminação”76. Há, assim, uma
renúncia a toda esperança e a toda ambição.

A filosofia cética, isto é, o modo de vida, a escolha de vida dos


céticos, é a da paz, da tranquilidade da alma. Como todos os outros
filósofos da época helenística, o cético fornece “por amor aos
homens”, um diagnóstico sobre as causas da infelicidade dos
homens e propõe um remédio para o sofrimento, uma terapêutica de
cura77.

Na impossibilidade do conhecimento, o homem deveria exercer uma


abstenção de juízo, que posteriormente foi expressa pelo termo epoche78,
reconhecendo sua incapacidade perante as questões, recolhendo-se em si e
confirmando sua total ignorância perante as alegações. Na prática, era uma filosofia
que buscava a sonhada paz ou tranquilidade, pois pela ausência do assentimento
não existiriam perturbações, e, consequentemente, a felicidade não estaria mais
ligada ao saber, mas poderia ser alcançada simplesmente negando-o79. O objetivo
fundamental da filosofia do Ceticismo Pirrônico é o de atingir a ataraxia, ausência de
perturbações ou inquietações da mente, alcançando, deste modo, a felicidade,
eudaimonia. A respeito da vida do cético, Russel comenta:

[...] afirmava que jamais poderia haver qualquer fundamento racional


para se preferir uma maneira de agir à outra. Na prática, isso
significa que o homem se conformava com os costumes de qualquer
74
LAÊRTIOS, Diôgenes. Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres. Tradução do grego, introdução e
notas de Mario da Gama Kury. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1988. V, 11, 61.
75
C.f. JAPIASSÚ, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de filosofia, 2006, p. 217.
76
C.f. REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. V.3. Os Sistemas da era helenística, 1994, p.
399. Aristócles, Fr. 6. Heiland (= Declava Caizzi, test. 53).
77
HADOT, Pierre. O que é Filosofia Antiga. Tradução Dion Davi Macelo. São Paulo: Loyola, 1999, p.
209. Sexto Empírico, Hipotiposes, I, 27-30, Dumont, pp.13-14.
78
. O termo “epoché”, posteriormente retomado pelo neopirroniano Enesídemo para exprimir o
conceito de abstenção do juízo, tornou-se técnico, que, depois, foi referido também a Pirro. Parece
correto, portanto, concluir que Pirro falava de “ausência de juízo” ou “abstenção de juízo” e que o
termo “epoche” é posterior. REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. V.3. Os Sistemas da era
helenística, 1994, p. 391.
79
C.f. PADOVANI, Humberto; CASTAGNOLA, Luís. História da Filosofia,1954, p. 102.
26

país em que vivesse. Um discípulo moderno iria à igreja aos


domingos e realizaria as genuflexões corretas, mas sem
experimentar qualquer das crenças religiosas corretas que, segundo
se supõe, inspiram essas ações80.

Pirro dava maior importância à vida prática do que aos debates, pois
respondia aos questionamentos com: “eu não sei nada”; alegando que nada sabia
por ser impossível o conhecimento ou o acesso à verdade, justamente porque não
existe conhecimento da natureza das coisas. A doutrina pirroniana é antes de tudo
“uma reação contra a dialética”81.
Logo, para o pirrônico, tudo é indiferente, não consegue estipular se uma
coisa é boa ou má, não existindo nada que não seja “indiferença à própria
indiferença” como comenta Hadot82. Chaui83 ratifica esse entendimento ao afirmar
que esta fase estabeleceu-se como o momento mais radical do ceticismo, que
negava tudo, inclusive os próprios fenômenos que estariam ligados ao sensível.
Esses dois autores esclarecem assim o conceito de adiaforia, tão importante na obra
de Pirro.
Pirro não escreveu nenhum texto filosófico sobre o ceticismo, mas o modo
de vida que havia estabelecido garantiu seguidores; discípulos que estavam ligados
ao mestre diferentemente dos esquemas clássicos, eram apreciadores, admiradores
e imitadores, “homens que buscavam no mestre, sobretudo um novo modo de vida,
um paradigma existencial ao qual referir-se constantemente”, na busca da felicidade
e serenidade. O que diferencia Pirro dos outros filósofos antigos consiste no fato de
que ele não buscava soluções para os problemas existenciais e da vida, logo, o
homem poderia viver “‘com arte’ uma vida feliz, mesmo sem a verdade e sem
valores”84. Com sua morte, a escola continua com seu discípulo Timon, nascido em
325 a. C., em Fliunde. Como Pirro, sua família tinha poucos recursos, e ele
sobrevivia como dançarino. Posteriormente, Timon foi estudar filosofia em Megara
com Estilpão, retornou a Fliunte, e seguiu para Élis, onde se torna discípulo de Pirro.
Morre em Atenas em 235 A.C..

80
RUSSEL, Bertrande. História da filosofia ocidental. Tradução Breno Silveira. São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1957, p. 272.
81
C.f. BROCHARD, Victor. Os Céticos Gregos, 2009, p. 81.
82
C.f. HADOT, Pierre. O que é Filosofia Antiga, 1999, p. 196.
83
C.f. CHAUI, Marilena. Introdução à história da filosofia: as escolas helenísticas - Volume II, 2010, p.
52.
84
C.f. REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. V.3. Os Sistemas da era helenística, 1994, p.
392.
27

Foi Timon o responsável por manter vivos os ideais de Pirro, de


transcrever sua filosofia, sistematizando-a e tentando colocá-la em confronto com as
outras doutrinas filosóficas, e, desta forma, fazendo circular os pensamentos do
mestre. A doutrina cética está baseada em três questionamentos que conduzem o
homem à felicidade: primeiramente, como são as coisas por natureza? Em seguida,
que posição deveria tomar em relação a estas coisas? E, finalmente, o que acontece
para quem assume esta posição? São pontos aparentemente simples, mas sua
interpretação os torna difíceis. A partir dos estudos de Pirro, Timon relata que quem
deseja ser feliz deve considerar três coisas:

1) em primeiro lugar, qual a natureza das coisas; 2) em segundo


lugar, de que modo devemos nos dispor diante delas; 3) em terceiro
lugar, o que resultará aos que se encontram nessa disposição. 1)
Ora, ele diz que Pirro mostra que as coisas são igualmente
indiferentes, imensuráveis e indiscrimináveis e por isso, nem as
nossas sensações nem as nossas opiniões podem ser verdadeiras
ou falsas. 2) Por consequência, não se lhes deve dar confiança, mas
é preciso ser sem opinião, sem inclinação, sem agitação, afirmando
de cada coisa que é não mais do que não é, ou que é e que não é,
ou ainda que nem é nem não é. 3) Os que se põem nessa disposição
conseguirão, diz Timom, em primeiro lugar, a afasia e depois a
ataraxia85.

Entende-se por afasia, onde ‘fasi’ significa afirmação ou negação, o


equivalente a renunciar à fasi. Logo, o homem deixa de se posicionar afirmando ou
negando um fato, logo, a afasia será uma atitude peculiar do ceticismo86. As
questões que compõem o núcleo problemático do ceticismo podem ser
condensadas em dois princípios: o conhecimento, katalepsis, que é impossível;
seguido da atitude prescrita ao sábio, com efeito, de se abster de formular juízos,
mantendo-se num estado de suspensão, epoché87.
Timon escreveu ainda uma vasta obra entre poemas épicos, tragédias,
sátiras e comédias. Destas obras restaram somente alguns fragmentos.

Timon, discípulo de Pirro, apresentou alguns argumentos intelectuais


que, do ponto de vista da lógica grega, eram muito difíceis de

85
REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. V.3. Os Sistemas da era helenística, 1994, p 402.
Aristócles, fr. 6 Heiland ( = Decleva Caizzi, test. 53).
86
Idem, Ibidem, p 412.
87
CARVALHO, Mário Santiago de. Vieira de Almeida e a ‘Tranchée’ de Agostinho: sobre a história da
filosofia. Revista Filosófica de Coimbra, v.19, n.38, 2010. Disponível em: <https://digitalis.uc.pt/pt-
pt/node/106201?hdl=29645>. Acesso em: 12 de out. de 2014, p. 254.
28

responder. A única lógica admitida pelos gregos era dedutiva, e toda


dedução tinha de partir, como em Euclides, de princípios gerais
considerados como evidentes por si mesmos. Tudo, portanto, terá de
ser provado por meio de alguma coisa, e todo argumento será
circular ou uma cadeia infinita pendente do nada88.

O posicionamento de Pirro sobre como viver em relação às coisas, sobre


o bem e o mal, mantendo-se num estado de suspensão, epoché, para chegar à
sonhada ataraxia, levou-o a ser considerado como um modelo de vida. O próprio
Timon, homem que não era de se admirar facilmente, que escreveu críticas a ponto
de ridicularizar diversos filósofos, inclusive Platão, no entanto, admirava-o e tinha
por ele simpatia89.
Com a morte de Timon termina a escola, mas não a doutrina. Sem as
escritas do discípulo de Pirro não conheceríamos o ceticismo, sua história desta
forma, “é quase impossível estabelecer se entre Timon e Pirro existem diferenças de
pensamento e quais são”90, mas, “se Timon não tivesse existido, a história do
ceticismo, provavelmente, não seria a que foi, e o patrimônio pirroniano, em grande
parte, ter-se-ia perdido”91. Com efeito, “conhecemos o discurso cético também
graças a Sexto Empírico, médico que escrevia no fim no século II a.C. e nos deu
preciosas indicações sobre a história do movimento cético”92.
Para Pirro, sua doutrina não era um fim, mas um meio de vida, que tem
por base a epoché e a adiaforia, esta última compreendida como a indiferença
completa em face de coisas e acontecimentos já apontada por Hadot e Chaui como
o ponto mais importante na sua teoria. Os sucessores do ceticismo, Arcesilau e
Carnéades, que compõem a Nova Academia, apropriam-se desta filosofia, mas
modificam a sua ordem, atribuindo papel central à dúvida, tornando a indiferença e
ataraxia secundárias, como veremos a seguir93.

88
C.f. RUSSEL, Bertrande. História da filosofia ocidental, 1957, p. 273.
89
C.f. BROCHARD, Victor. Os Céticos Gregos, 2009, p. 85.
90
C.f. REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. V.3. Os Sistemas da era helenístic,. 1994, p.
416.
91
Idem, Ibidem, p. 418.
92
C.f. HADOT, Pierre. O que é Filosofia Antiga, 1999, p. 210. Hipotiposes, I, 36-39, Dumont, p. 49; D.
L., IX, 79-88.
93
C.f. BROCHARD, Victor. Os Céticos Gregos, 2009, p. 89.
29

2.2 O Ceticismo Acadêmico de Arcesilau

O ceticismo, mesmo com a morte de seu fundador, Pirro, e de seu


seguidor, Timon, continuaria sendo uma doutrina praticada pelos filósofos,
reaparecendo com força no século III a.C., mantendo sua essência, mas com
algumas modificações. Ela também é adotada por Arcesilau de Pitama, e
posteriormente seguida por Carnéades de Cirene no século II a.C., ambos filósofos
da Academia platônica. Brochard comenta as diferenças entre a Nova Academia e
os pirrônicos:

Há, porém, algumas diferenças entre o fundador da nova Academia e


os pirrônicos. Em primeiro lugar; Arcésilas não estabelecia como fim
último da conduta a adiaforia nem a ataraxia, ele se atinha à
suspensão do juízo; [...] Em segundo lugar, enquanto os pirrônicos
puros exigiam da razão uma abdicação completa e submetiam-se
cegamente ao costume e às leis estabelecidas, Arcésilas toma a
razão por juiz em cada caso particular: por aí se pode dizer que ele
se eleva muito acima do pirronismo, pois conserva algo da tradição
socrática e platônica. Ele é, em resumo, tão cético quanto Timon,
mas o seu é o ceticismo de um homem instruído e esclarecido: ele
permanece filosofo no ceticismo, enquanto os pirrônicos puros
renunciavam até ao nome de filósofos94.

Tanto os Pirronicos como os Acadêmicos partilham do mesmo princípio:


de que nenhuma coisa tem força própria e natureza, o que temos são aparências
sobre as coisas, que são criadas quando atingem nossos sentidos, mas não “junto a
si mesma[s] donde partiram”. A diferença entre as duas escolas está no fato de que
os Pirronicos não afirmam nada, enquanto os Acadêmicos tomam que nada pode
ser verdadeiro95. Os Pirronicos limitavam-se a dizer que a verdade ainda não foi
encontrada, mas não afirmavam que ela é inacessível. Já Arcesilau admite que a
verdade não foi encontrada ainda, assim como nega a possibilidade de encontrá-la,
pois, para ele, não existe representação verdadeira a qual não corresponda uma
semelhantemente falsa96. Reale aponta outra diferença: “O Ceticismo de Arcesilau
difere notavelmente do pirroniano, seja pelos motivos dos quais nasce, seja pela sua
consistência especulativa, seja pela têmpera espiritual que cria em torno de si”. Para

94
C.f. BROCHARD, Victor. Os Céticos Gregos, 2009, p. 125.
95
GÉLIO, Aulo. Noites Áticas. Londrina: EDUEL, 2010, p. 379.
96
C.f. BROCHARD, Victor. Os Céticos Gregos, 2009, p.111.
30

Pirro o ceticismo aflora para solucionar as questões da vida e felicidade, enquanto


para Arcesilau se torna um meio para atingir seus adversários estoicos97.
Arcesilau de Pítana nasceu em 315 a.C., na cidade de Pítana, na Eólia, e
acredita-se que tenha chegado a Atenas no início do século III a.C. Sua formação
iniciou-se ouvindo Perípato, posteriormente Teofrasto. Entrou também como
discípulo da Academia, na qual, neste período, lecionava Crântor, Crates e
Pólemon. Estudou dialética com os megáricos, os quais lhe apresentaram a filosofia
de Pirro. Com a morte de Crates, torna-se diretor da Academia. Morre em 241 a.C.
O ceticismo é denominado Acadêmico por ser desenvolvido na escola
fundada pelo filosofo Platão em 388 a.C., em Atenas. A Academia manteve-se por
quase um milênio, até o final do século VI d.C. Até a chegada do ceticismo, nada
havia sido acrescentado a filosofia difundida pelo mestre Platão, apenas expostos
didaticamente seus pensamentos como uma doutrina. Não mais se investigava a
verdade, pois ela já havia sido descoberta nas palavras de Platão98.
Com efeito, a Nova Academia “declarou que era necessário pôr-se de
novo em busca da verdade”, argumentando que a verdade ainda não havia sido
encontrada e, muito mais intransigentemente, afirmou que a verdade nunca seria
encontrada99. Ela toma como nova orientação o ceticismo. A mudança foi feita por
Arcesilau, o primeiro a modificar os fundamentos deixados por Platão. Os preceitos
de Arcesilau foram posteriormente seguidos por Carnéades. A Academia
sobreviveria à fase cética, e teria uma última fase neoplatônica100.

Arcésilas, portanto, inspirou-se nas instâncias do ceticismo pirroniano


e fundiu-as com os elementos do socratismo e do platonismo das
quais agora falamos, fazendo-os perder completamente o seu
significado original. E é muito indicativo o fato de Arcésilas considerar
dever rejeitar até mesmo a única certeza da qual Sócrates se
gloriava, isto é, o saber de que não sabia: Arcésilas negava até o
saber de que não sabia. Tal inversão de rota era o preço que a
Academia pagava para entrar no cerne das discussões filosóficas da
nova era, mas era também a renúncia à fidelidade com relação ao
próprio passado101.

97
C.f. REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. V.3. Os Sistemas da era helenísti,. 1994, p. 427.
98
C.f. BROCHARD, Victor. Os Céticos Gregos, 2009, p.113.
99
Idem, Ibidem, p. 113.
100
C.f. PADOVANI, Humberto; CASTAGNOLA, Luís. História da Filosofia, 1954, p. 71.
101
C.f. REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. V.3. Os Sistemas da era helenístico, 1994, p.
421. Cícero, Acad. Post. I, 12, 45.
31

Os comentadores costumam dividir a história da Academia em três partes:


antiga, média e nova. Contudo, Santo Agostinho faz referência somente a dois
períodos: à Antiga Academia, que se estende até 260 a.C., e foi governada por
discípulos, reitores e sucessores de Platão; e à Nova Academia, dirigida por
Arcesilau e Carnéades. Sobre a divisão que Agostinho propõe, Palacios ressalta a
fala de Alípio no diálogo do livro Contra os Acadêmicos:

Seguramente com o propósito de simplificar e ressaltar as diferenças


entre Platão e Arcesilau, seguindo de Carnéades, Alípio fala somente
de duas Academias, a antiga e a nova, na qual se reconhecia. Mas
sabemos que pelo menos têm sido cinco até Antíoco de Ascalão,
com as suas características, como as descreve o próprio Agostinho
no capítulo dezoito da obra, e onde chama de terceira, à de
Carnéades, embora não especifique o nome das outras, que se sabe
forma: a primeira, evidentemente, a fundada por Platão; a segunda, a
do escolarca Arcesilau e, a terceira, a de Carnéades, caracterizada
pela fase cética; a quarta de Filão de Larissa, com o ecletismo, e a
última a de Antíoco, que apresenta um ecletismo mais estoico e
dogmático102.

Enquanto conduziu a academia, Arcesilau legitimou o ensino do


ceticismo, introduzindo a dúvida frente à verdade. Ele foi o primeiro a suspender o
juízo por causa de contradições opostas, usando um método de ensino baseado no
discurso filosófico na forma crítica, interrogativo e aporético, para refutar as
argumentações das teses que os ouvintes são convidados a expor, demonstrando
que a tese oposta também pode ser provada. Consequentemente, não havendo
possibilidade de ter certezas ou verdade absolutas, sua crítica se estende antes de
tudo ao falso saber e às falsas certezas dos filósofos dogmáticos.

A maneira de ensinar de Arcesilau teria sido muito de elogiar-se, se


os jovens a quem ensinava houvessem sido capazes de evitar de
ver-se paralisados por ela. Não defendia tese alguma, mas refutaria
qualquer tese estabelecida por um aluno. Apresentava, às vezes,
duas proposições contraditórias em ocasiões sucessivas, mostrando
a maneira de argumentar-se convincentemente a favor de qualquer
uma delas. Um aluno suficientemente vigoroso para rebelar-se
poderia haver aprendido destreza e a evitar o que fosse falso;
nenhum deles, com efeito, parece haver aprendido qualquer outra
coisa exceto habilidade intelectual e indiferença pela verdade103.

102
PALACIOS, Pelayo Moreno. O estamento da verdade no Contra Acadêmicos de Agostinho. 2006.
Tese (Doutorado em Filosofia) – Universidade de São Paulo. Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas - Departamento de Filosofia. Disponível em:
www.teses.usp.br/teses/.../TESE_PELAYO_MORENO_PALACIOS.pdf. Acesso em: 10. 10. 2014. p.
94.
103
C.f. RUSSEL, Bertrande. História da filosofia ocidental, 1957, p. 275.
32

O posicionamento da Nova Academia estava mais pautado por uma


contraposição aos estoicos do que por uma rejeição aos ensinamentos da antiga
Academia. Arcesilau utilizou o método principalmente contra o dogmatismo dos
estoicos, que sustenta o conhecimento como passível de prova pela experiência do
sensível104. Refutou os estoicos, em especial Zenão, ou seja, sua teoria estoica:

A teoria estoica do conhecimento tem duplo aspecto. De uma parte,


afirma que os objetos marcam com seu sinal nossa faculdade de
sensação e que não podemos absolutamente duvidar de certas
representações que levam uma marca de evidência indiscutível; são
as denominadas representações compreensivas ou objetivas. Elas
não dependem absolutamente de vontade. Mas nosso discurso
interior enuncia e descreve o conteúdo dessas representações e
damos ou não nosso assentimento a esse enunciado. É aí que se
situa a possibilidade do erro105.

O sistema filosófico do ceticismo acadêmico estava baseado no


argumento de que a certeza é impossível e, desta forma, devemos suspender nosso
juízo sobre as coisas, ao contrário dos estoicos, que eram vistos como dogmáticos
por terem em seu fundamento na possibilidade de alcançar a certeza. Arcesilau
concentrou suas críticas, em especial, no critério de verdade denominado pelos
estoicos como “representação catalética”106. A base de sua critica consistia em:

Se a apreensão é o assenso (assentimento) da representação


catalética, ela é insustentável, em primeiro lugar porque o assenso
não se dá com relação à representação, mas com relação á razão
(de fato, os assensos são juízos), em segundo lugar porque não se
encontra nenhuma representação Verdadeira que seja tal, de modo a
não poder ser falsa107.

Arcesilau propõem que “quando assentimos, corremos o risco de assentir


alguma coisa que também pode ser falsa”, ou seja, o assentimento é uma opinião
sobre algo, nunca uma certeza ou verdade, não existindo uma representação
compreensível, visto que o assentimento se faz sobre a compreensão da
representação108. Desta forma, a suspensão de juízo que os estoicos utilizavam

104
CORBISIER, Roland. Enciclopédia Filosófica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1987, p.82.
105
C.f. HADOT, Pierre. O que é Filosofia Antiga, 1999, p. 194. SVF, II, § 91 Sexto Empírico, Contra os
lógicos, II, 397, traduzido in P. Hadot, La Citadelle intérieure, p. 124.
106
C.f. REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. V.3. Os Sistemas da era helenística, 1994, p.
422.
107
Idem, Ibidem, p. 422.
108
Idem, Ibidem, p. 422.
33

somente no caso da falta de evidência, transforma-se em total falta de evidência,


negando que possam ser conhecidos e percebidos os indícios de cada coisa e sua
propriedade integra “uma existência de coisas que têm por si mesmas a
característica de serem fidedignas”109.
Desta maneira, não temos como determinar e distinguir as
representações verdadeiras das representações falsas, levando o Homem à
suspensão do assentimento, e, com efeito, à suspensão do juízo. Logo, a dúvida e a
“suspensão de juízo” (epoché) torna-se o pilar principal da filosofia de Arcesilau
frente à Academia.
Todo o núcleo problemático dos filósofos naquela época era a questão de
obter resposta sobre como se viver. A negação do assentimento, proposta por
Arcesilau, levou a uma reação dos estoicos, os quais argumentavam que este
posicionamento levava a incapacidade e a impossibilidade de se viver frente à busca
de resposta e soluções para a vida. Arcesilau respondeu com o argumento de
eulogon ou do “razoável”, ou seja, “quem suspende o seu assenso sobre tudo
regulará suas escolhas e suas rejeições e, em geral, suas ações, com o critério do
razoável ou plausível”110.
Zenão, um estoico, estabeleceu que um sábio deixaria de merecer esse
nome se em algum momento oferecesse seu assentimento a representações que
não fossem compreensíveis. Entretanto, pela definição de Arcesilau, todas as
representações compreensíveis são baseadas em uma opinião sobre algo. Desta
forma, o filósofo estoico estaria dando seu assentimento à opinião e não à verdade,
e, neste caso, não poderia ser sábio111. Arcesilau evidencia sua posição sobre a
definição de sábio de Zenão em duas escolhas:

Admitia plenamente a dedução de Zenão: o sábio, se é digno desse


nome, não tem opiniões, mas certezas. Só que não há certeza ou
ciência, pois não há representação compreensiva. Por conseguinte, a
única postura que resta ao sábio é não afirmar nada, ou suspender
seu juízo. Arcesilau aferra-se à mesma opinião de Zenão, mas para
levá-lo mais seguramente a seu ceticismo. Quer encerrá-lo neste
dilema: ou o sábio tem opiniões, ou não deve afirmar nada112.

109
C.f. LAÊRTIOS, Diôgenes. Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres, 1988, p. 275.
110
C.f. REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. V.3. Os Sistemas da era helenística, 1994, p.
424.
111
C.f. BROCHARD, Victor. Os Céticos Gregos, 2009, p. 119.
112
Idem, Ibidem, p. 119.
34

Contudo, Arcesilau visava demonstrar que o sábio estoico, assim como o


homem comum, regulava-se pelo mesmo princípio, pelo critério de razoável. Negava
o que seus adversários pregavam, que o homem comum regulava-se por ações
morais que têm o plausível e o razoável como justificativa e, possuindo o sábio a
capacidade de ação “moral superior”113.
A influência de Arcesilau sobre a Academia permaneceria por mais de
duzentos anos, e, assim como Sócrates, ele nada escreveu, mas um discípulo em
especial manteve a continuidade do ceticismo na Academia, Carnéades.

2.3 O Ceticismo Acadêmico de Carnéades

Com o acadêmico Carnéades de Cirene, filósofo grego nascido em 214


a.C., em Cirene, “dotado de notável inteligência e excepcional capacidade dialética
unida a uma habilidade retórica surpreendente”,114 discípulo do estoico Crisipo,
seguidor de Arcesilau, estabelece-se uma nova fase, ou melhor, um novo impulso na
Academia, engendrando ainda mais o ceticismo na escola platônica.
Carnéades não concordava com estoicos, assim como Arcesilau, indo,
todavia, mais longe, criticando todos os filósofos que o precederam, refutou a
filosofia da certeza baseado no conhecimento do sensível, passando pela lógica,
pelas representações apreensivas, pela dialética e por suas teorias de
adivinhação115. Logo:

O ponto de partida da crítica à lógica estoica é, evidentemente, o


critério da verdade. Radical, Carnéades declara que não há critério
de verdade: sensações, impressões, representações, pensamentos e
as próprias coisas nos enganam. A apresentação e a representação
apreensiva não são garantias de verdade, pois como já dissera
Arcesilau, nenhuma representação pode assegurar sua
correspondência ao representado, como atestam os enganos dos
sentidos, os sonhos e as alucinações116.

113
C.f. REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. V.3. Os Sistemas da era helenística, 1994, p.
424.
114
Idem, Ibidem, p. 429.
115
Idem, Ibidem, p. 431.
116
C.f. CHAUI, Marilena. Introdução à história da filosofia: as escolas helenísticas - Volume II, 2010,
p. 173.
35

A definição de que a verdade é impenetrável, inacessível, assim como o


critério de conhecimento117 utilizado pelos Acadêmicos, é uma apropriação da
doutrina do estoico Zenão de Cítio, que nasceu em 333/332 a.C.118 na cidade de
Cício, na ilha de Chipre. Seu pai mercador traz de Atenas alguns tratados de
Sócrates, despertando seu entusiasmo pela sabedoria. Chega a Atenas, em 314/311
a.C., e recebe o título de fundador do estoicismo pelo lugar onde era ensinada a sua
doutrina, o pórtico (stoá), pois como estrangeiro não poderia adquirir terras ou
edifícios em Atenas.
Dos textos dos grandes nomes do estoicismo antigo, Zenão, Crispo e
Cleando, restaram apenas alguns fragmentos ou títulos.119 Para o estoicismo, a
filosofia tem o papel de solucionar as questões da vida; a lógica é dividida em
dialética e retórica, e o conhecimento é limitado aos sentidos120. Zenão argumentava
sobre o critério de verdade com base em sua teoria, que chamava de
“representação compreensiva”, e que pode ser definida da seguinte forma: “entre
nossas diversas representações há aquelas que nos causam uma impressão tão
particular, tão clara e tão precisa, que se gravam tão vivamente na alma que é
impossível confundi-las com as outras”. Desta forma, nada aparece como falso, e,
automaticamente tudo é tomado como verdadeiro.121 Sobre a definição de Zenão:

Os acadêmicos negam que se possa saber o que quer que seja. O


que os conduz a essa conclusão é a definição de verdade posta por
Zenão: uma coisa é compreendida e percebida como verdadeira
quando nela não se encontra qualquer característica que pertença ao
erro; de onde Carnéades conclui que, por nenhum conhecimento ser
assim, nenhuma certeza é possível122.

Os fundamentos que Carnéades apresentou seguiam as bases do


Ceticismo de Arcesilau, que em parte seguia Pirro, e propõe que não existe verdade,
mas opiniões; desta forma, dever-se-ia seguir o plausível, o razoável, pois somente
da razão depende a verossimilhança. Mas Carnéades não se satisfaz somente com
esta característica, logo estipulando que as representações advêm em parte da

117
C.f. MATTHEWS. Gareth. Santo Agostinho, 2008, p. 34.
118
C.f. REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. V.3. Os Sistemas da era helenística, 1994, p.
261.
119
C.f. HADOT, Pierre. O que é Filosofia Antiga, 1999, p. 187.
120
C.f. PADOVANI, Humberto; CASTAGNOLA, Luís. História da Filosofia, 1954, p. 95.
121
C.f. BROCHARD, Victor. Os Céticos Gregos, 2009, p. 118.
122
C.f. GILSON, Étienne. Introdução ao estudo de Santo Agostinho, 2006, p. 84.
36

razão, sendo que “sua verdadeira fonte é a experiência: a razão não faz mais que
exercer um controle”. Ou seja, para Arcesilau o racional transforma-se em critério
prático da conduta. Já para Carnéades, significa o “provável”.123 Desta forma:

1. A representação, com relação ao objeto é verdadeira ou falsa;


ao invés, com relação ao sujeito, aparece como verdadeira ou falsa.
Posto que a verdade objetiva escapa ao homem, não resta senão
ater-se ao que aparece como verdadeiro. Portanto, a representação
que aparece como verdadeira com suficiente evidência é critério de
verdade. Ora, a representação que aparece como verdadeira é o
provável.
2. Porque as representações são sempre relacionadas e ligadas
entre si, um grau mais elevado de probabilidade oferece a
representação que é acompanhada de outras que lhe são conexas,
de maneira a não ser contradita por nenhuma delas[...]
3. Enfim, a representação persuasiva não contradita e examinada
´por todas as partes é a que, às características das duas
precedentes, acrescentada também a garantia de um metódico
exame completo de todas as representações conexas [...] temos um
grau ainda maior de probabilidade 124.

Logo, às coisas de baixa importância deve-se utilizar o critério de


provável, elevando o grau de importância deve-se utilizar o contraditório, e para
alcançar a felicidade deve-se examinar “todas as partes”. Nota-se assim um grau
ainda maior de probabilidade, o “provável” que Carnéades estipula é uma forma de
resolver a falta de critério absoluto e geral da verdade na condução da vida prática,
para o homem ter a possibilidade de solucionar questões em sua vida cotidiana, já
que não restou absolutamente nada em que se possa apoiar na descoberta da
verdade.125 Ora, “a necessidade de sobreviver e as exigências da vida prática
sempre foram a grande dificuldade que os céticos encontraram, o calcanhar de
Aquiles do ceticismo”126, seu ponto fraco e onde sempre foram atacados. Com
efeito, poderíamos analisar como a primeira formulação do probabilismo.

Admite-se que, se não se pode alcançar a verdade, pode-se ao


menos atingir o verossímil, isto é, soluções que se pode
racionalmente aceitar tanto no domínio cientifico como, sobretudo, no
da prática moral. Essa tendência filosófica teve grande influência
sobre a filosofia moderna graças ao imenso sucesso, no

123
C.f. BROCHARD, Victor. Os Céticos Gregos, 2009, p. 124.
124
C.f. REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. V.3. Os Sistemas da era helenística, 1994, p.
432.
125
Idem, Ibidem, p. 433.
126
C.f. BROCHARD, Victor. Os Céticos Gregos, 2009, p. 135.
37

Renascimento e nos tempos modernos, das obras filosóficas de


Cícero. Põe-se em obra essa filosofia acadêmica que dá ao indivíduo
a liberdade de escolher, em cada caso concreto, a atitude que ele
julgue a melhor conforme as circunstâncias127.

A filosofia deixa, assim, seu papel na busca por conhecimento e passa a


ser matéria de responsabilidade individual. Desta forma, é o indivíduo que escolhe a
melhor forma de conduzir sua vida, independentemente de quais sejam as questões
filosóficas; mesmo as questões morais encontram respostas em si mesmas.
Prontamente, essa atitude era uma renúncia moral à filosofia128.
O Homem, não conseguindo alcançar a verdade, deveria seguir o
provável, a verossimilhança; este posicionamento dos Acadêmicos ocasiona uma
problemática para o sábio, que sendo sábio não poderia dar seu assentimento a
nada, mantendo-se num estado de suspensão.
Tanto os estoicos como os acadêmicos compartilhavam da mesma
posição frente à incapacidade, ou seja, opunham-se à capacidade da ciência de
propor verdades estáveis. Para eles, é impossível para o homem conseguir chegar a
este ponto.
Hadot afirma que o modo de vida do cético “é uma escolha de vida
filosófica de um modo de vida não-filosófico”129. Russel segui a mesma afirmação
pois, o cético conduz a vida por semelhanças, ponderando que poderá ser feliz
somente no ato de buscar a verdade. Ora, um filósofo cético, se questionado sobre
um determinado assunto, responderia: “ninguém sabe, e ninguém poderá jamais
saber”. Desta forma como expõem Brochard, as bases do ceticismo tornam-se
vulneráveis, pela negação do poder conhecer130: “Não se pode evitar pronunciar-se
sobre as coisas da vida prática, e recusar-se a decidir ainda seria decidir”131.
A evidência de determinadas percepções comporta naturalmente o
assentimento, e sem estes toda a memória e experiência de vida estariam
comprometidas. Percebemos que não existe uma filosofia cética, mas um modo de
vida, que não prioriza a busca pelo conhecimento, nem tampouco a busca pela
felicidade, somente tem por fim a tranquilidade da alma.

127
C.f. HADOT, Pierre. O que é Filosofia Antiga, 1999, p. 207.
128
C.f. BROCHARD, Victor. Os Céticos Gregos, 2009, p. 122.
129
C.f. HADOT, Pierre. O que é Filosofia Antiga, 1999, p. 212.
130
C.f. RUSSEL, Bertrande. História da filosofia ocidental, 1957, p. 273.
131
C.f. BROCHARD, Victor. Os Céticos Gregos, 2009, p. 121.
38

O ceticismo pós Carnéades começa a declinar progressivamente,


chegando até o período em que Cícero viveu em 106-43 d.C.. Contudo, segundo
Sexto Empírico (séc. II d.C.), é possível que a tradição cética nunca tivesse
esmorecido.132
A doutrina da Nova Academia apareceu para Santo Agostinho na forma
de leitura de Cícero, que nasceu em Arpino. O arsenal de argumentação de Cícero
pertence à Nova Academia e, dois princípios resumem o sistema acadêmico: o
primeiro é que não se pode saber com certeza nenhuma verdade, nem mesmo este
princípio; consequentemente, não se deve dar assentimento, seguindo a
probabilidade133.

Ao chegar em Milão, no outono de 384, Agostinho era um homem


desiludido. As certezas de sua juventude haviam se desfeito. Nesse
estado de espírito, mais uma vez ele se voltou pra Cícero. Em seus
diálogos filosóficos, Cícero tornara disponíveis em latim as
concepções céticas da “Nova Academia”. Essas doutrinas tinham
sido elaboradas no século II a. C. por Carnéades, um admirável
lógico grego, em oposição aos estoicos. Os estoicos haviam
afirmado que o homem era capaz de conhecer com exatidão a
natureza do mundo que o cercava e, desse modo, agir sabiamente e
com perfeita certeza, à luz desse conhecimento. Os céticos –
chamados de academici, “os acadêmicos” haviam negado que o
conhecimento pudesse ser conquistado com tamanha facilidade. O
sábio, na opinião de Cícero, deveria aprender a andar com mais
cautela: sua maior virtude estava na suspensão do juízo, e seu
maior perigo, na adesão desatenta a qualquer opinião isolada134.

Ainda dialogando com a Academia, Cícero ressaltava que há


representações falsas, sendo que não existe lugar para o conhecimento certo, não
sendo possível distinguir a verdade da falsidade135. Sobre o encontro de Agostinho
com as escritas de Cícero, Matthews comenta:

Mais do que filósofo original, Cícero foi alguém que apresentou de


forma cativante as ideias filosóficas de terceiros. Foi principalmente
através de Cícero que Agostinho conheceu o ceticismo da Nova
Academia, a sucessora da Academia de Platão, e as perspectivas
estoicas e epicuristas136.
132
CARVALHO, Mário Santiago de. Vieira de Almeida e a ‘Tranchée’ de Agostinho: sobre a história
da filosofia. Revista Filosófica de Coimbra, v.19, n.38, 2010. Disponível em: <https://digitalis.uc.pt/pt-
pt/node/106201?hdl=29645>. Acesso em: 12 de out. de 2014. p. 254.
133
C.f. BOYER, Charles. L’idée de Vérité Dans La Philosophie de Saint Augustin, 1939, pp. 27-28.
134
C.f. BROWN, Peter. Santo Agostinho Uma biografia, 2012, p. 95.
135
C.f. BROCHARD, Victor. Os Céticos Gregos, 2009, p. 140.
136
C.f. MATTHEWS. Gareth. Santo Agostinho, 2008, p. 25.
39

Analisando o posicionamento dos Novos Acadêmicos, Agostinho se


admira que filósofos tão ilustres possam conceber um sistema que se demonstra
claramente insustentável137. Ou seja, ele analisava o ceticismo, a Nova Academia,
do ponto de vista de Arcesilau - Carnéades, segundo os quais, nenhum
conhecimento poderia ser atingido pelo homem . Laêrticos ratifica este pensamento:
“o fim dos céticos é a suspensão do juízo[...]”138.

[...] a dissolução de todas as coisas na pura aparência, sem deixar


qualquer resíduo, levaria, não à dúvida absoluta, mas à absoluta
certeza, porque, se tudo se dissolve no aparecer, as coisas são
assim, justamente, como aparecem, e não diferente139.

Para poder evoluir em seus pensamentos e em sua filosofia, Santo


Agostinho precisava descobrir se era possível ao homem estabelecer certezas, se
era preciso conhecer a verdade para chegar à felicidade. Com efeito, para isso ele
precisaria superar o ceticismo acadêmico.

137
C.f. BOYER, Charles. L’idée de Vérité Dans La Philosophie de Saint Augustin, 1939, p. 58.
138
C.f. REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. V.3. Os Sistemas da era helenística, 1994, p.
389. LAÊRTIOS, Diógenes, IX, 107.
139
Idem, Ibidem, p. 405.
40

3 A VERDADE COMO CAMINHO PARA A FELICIDADE

3.1 Incitação à Filosofia: o Prólogo a Romaniano

Contra os Acadêmicos livro I inicia-se com Agostinho fazendo uma


exortação a Romaniano, um homem destinado à virtude, mas que aparentemente
ainda não a possui plenamente. A partir dessa exortação, o filósofo considera que,
por culpa nossa ou necessidade natural, a alma não atinge o porto da sabedoria
sem que seja conduzida pelo favor ou pela desgraça da fortuna.

Oxalá, Romaniano, pudesse a virtude, assim como não permite que


a fortuna lhe arrebate alguém, por sua vez arrebatar à fortuna
resistente o homem feito para ela! Certamente ela já se teria
apoderado de ti, proclamando que és seu de direito e dando-te posse
dos bens mais seguros, te libertaria até da submissão aos acasos
felizes. Mas acontece que, seja por nossa culpa, seja por uma
necessidade natural, a alma divina unida ao corpo mortal não
alcança o porto da sabedoria, onde não a agitam os ventos
prósperos ou adversos da fortuna, sem que para lá seja conduzida
pelo favor ou pela desgraça da mesma fortuna140.

A expressão “porto da sabedoria” aparece também no diálogo Sobre a


Vida Feliz, escrita no período passado em Cassicíaco. Conforme se pode analisar a
partir das suas próprias palavras, Agostinho busca exemplificar por metáfora a
viagem em direção ao porto seguro: “se fosse possível atingir o porto da filosofia –
único ponto de acesso à região e à terra firme da vida feliz [...] numa caminhada
exclusivamente dirigida pela razão”141. Ele expõe quais são os tipos de homens que
ocupam o leme do navio, navegantes em busca da filosofia ou não, e argumenta que
“com efeito, estamos lançados neste mundo como em mar tempestuoso, e por assim
dizer, ao acaso e à aventura”142.
O autor faz uma comparação entre “três espécies de navegadores”: os
primeiros vão se afastando da terra firme, mas como não vão muito longe, têm mais
facilidade de retornar; os segundos navegantes são os que se afastam cada vez
mais e vão adentrando para o mar, afastando-se da pátria, “iludidos pelo aspecto
falacioso do mar, optam por lançar-se ao longe [...] distante de sua pátria [...]

140
C.f. AGOSTINHO, Santo. Contra os Acadêmicos, 2008, I, I, 1.
141
C.f. FRANGIOTTI, Roque. Introdução. In: AGOSTINHO, Santo. A Vida feliz, 1993, p. 115.
142
Idem, Ibidem, p. 111.
41

esquecem-se [...] perdem-se nos mais profundos abismos da miséria”143. Estão


iludidos e consideram com alegria e orgulho a falsa serenidade dos prazeres e
honras. Com relação aos terceiros, o autor comenta:

[...] após terem sido longa e prudentemente balançados pelo mar,


não deixam de dar sinais de se recordarem da doce pátria, ainda que
no meio de vagalhões. Poderiam então recuperá-la. [...]
Frequentemente, porém, acontece que predem a rota em meio a
nevoeiros144.

Considerando as ondas e as tempestades como sendo a fortuna, os


navegantes devem lutar com os remos de todas as virtudes, e principalmente
implorar o auxílio divino com toda a devoção e piedade, para que com o propósito de
se dedicar ao estudo da sabedoria, desta forma, possam seguir o curso, sem
nenhum contratempo. O porto visado é a filosofia, mas há um rochedo próximo a
terra firme, que é comparado ao orgulho e vanglória, o qual afasta os navegadores
da pátria, não percebendo que estão iludidos145. Atingir a terra firme é atingir a
sabedoria, ou seja, a felicidade, como relembra Gilson, “Dom de Deus”146.

Vês assim em que filosofia navega, presentemente, como estando


dentro de ancoradouro. Todavia, é tão vasto este porto que sua
extensão não exclui de todo alguma possibilidade de extravio, ainda
que menos perigosamente. Pois ignoro, até agora, a que porção da
terra – que sem dúvida será a única ditosa – na qual poderei atracar
e desembarcar. Não piso ainda em terra firme. Sinto-me em meio à
dúvida e hesitações sobre a questão da natureza da alma147.

Por isso, Agostinho roga a Deus que devolva o amigo a si mesmo, e que
seu espírito se eleve à verdadeira liberdade, pois, “se a divina providência se
estende até nós”, o que está acontecendo ao amigo “é o que é necessário
143
C.f. AGOSTINHO, Santo. A Vida feliz, 1993, I, I, 1.
144
Idem, Ibidem, I, I, 2.
145
Idem, Ibidem, I, I, 2.
146
. “dos que assim tendem à felicidade pelo conhecimento, alguns têm a prudência de procurá-la
desde a juventude e têm a felicidade de atingirem logo; outros, ao contrário, têm a felicidade de a
atingirem logo; outros, ao contrário, tentam encontrá-la com paixão em vias falsas e só voltam a si
mesmo sob o golpe de provas por vezes trágicas; outros, enfim, sem mostrar nem tal prudência, nem
essa loucura, desde a juventude, fixam os olhos no fim a atingir e, ao mesmo tempo em que vagam
ao longe, voltam os olhos para ele; em meio a ondas, estes guardam as lembranças de tão doce
pátria onde terminarão por abordar um dia. Todos, quaisquer que sejam, estão ameaçados por um
temível obstáculo que guarda entrada do porto: o orgulho e a paixão da vanglória. Se algo merece ser
chamado ’dom de Deus’, é seguramente a vida feliz. Cumpre, portanto, busca-la com modéstia e
pedir para recebê-la. Aceitá-la é a verdadeira maneira de conquistá-la”. GILSON, Étienne. Introdução
ao estudo de Santo Agostinho, 2006, p. 18.
147
C.f. AGOSTINHO, Santo. A Vida feliz, 1993, I, 5.
42

acontecer”148. É, portanto, a maneira “divina” encontrada para que Romaniano


caminhe em direção à filosofia, e, desta forma, chegue à terra firme e à Sabedoria.
Logo:

[...] quando entraste na vida humana repleta de todos os erros, com


uma índole que não me canso de admirar, e isso desde o início da
adolescência numa idade em que ainda é tão fraco e vacilante o
passo da razão, cercou-te a abundância das riquezas, que
começaram a arrastar para seu abismo enganador aquela idade e
ânimo ávido de tudo quanto parecia belo e honesto149.

Ora, para o autor, quando o homem ama os bens materiais, reside neles
um temor, o medo da perda da fortuna material, que os leva a viver de um modo
perturbador para sempre, eternamente, em uma constante tempestade: “esses bens
sujeitos à mudança podem vir a ser perdidos. Por conseguinte, aquele que os ama e
possui não pode ser feliz de modo absoluto”150. Esses bens temporários não trazem
senão a ilusão da felicidade. Na sua visão, não haveria sentido falar a Romaniano
sobre outra vida feliz se a fortuna sempre lhe sorrisse; mas no momento em que
este amigo experimentar as agruras da vida presente, sua própria experiência
demonstrará que os bens que os mortais apreciam são frágeis, transitórios e cheios
de calamidades. Em suas palavras:

[...] se pela boca dos clientes, dos cidadãos, enfim de todas as


multidões, fosses exaltado como o mais humano, o mais generoso, o
mais puro, o mais feliz dos homens, quem Romaniano, ousaria falar-
te de outra vida feliz, a única verdadeiramente feliz? Quem poderia
persuadir-te de que não só eras feliz, mas tanto mais infeliz quanto
menos conhecesses a tua infelicidade? Agora, porém, quantas
advertências te deram em pouco tempo os grandes e numerosos
reveses que experimentasse! Não tens necessidade de exemplos
alheios para persuadir-te de quão transitório, frágil e cheio de
calamidade é tudo o que os mortais consideram como bens [...]151.

Assim, nesta exortação a Romaniano, podemos entrever que Agostinho


expõe o problema da infelicidade como a possibilidade de pensar em uma vida feliz
quando as dificuldades e adversidades sobrevêm. Ora, a infelicidade do homem é
não reconhecer que está infeliz, “que não só eras feliz, mas tanto mais infeliz quanto

148
C.f. AGOSTINHO, Santo. Contra os Acadêmicos, 2008, I, I, 1.
149
Idem, Ibidem, I, I, 1.
150
C.f. AGOSTINHO, Santo. A Vida feliz, 1993, I, 11.
151
C.f. AGOSTINHO, Santo. Contra os Acadêmicos, 2008, I, I, 2.
43

menos conhecesses a tua infelicidade?”152. Com efeito, a doença da alma não é ver
como ela está, mas imaginar como ela gostaria de estar. O remédio para esta
doença é um despertar da falsa consciência para a verdade, sendo o ato de filosofar
a cura da Alma.
O alimento para a Alma do homem consistiria em manter a virtude, a
permanência. As coisas são boas em si mesmas, porque foram criadas por Deus,
mas são mutáveis e transitórias153. Basta ao homem escolher o caminho que deseja,
e para Agostinho só existe um caminho, Deus. Logo, “Se algo merece ser chamado
“dom de Deus”, é seguramente a vida feliz. Cumpre, portanto, buscá-la com
modéstia e pedir para recebê-la. Aceitá-la é a verdadeira maneira de conquistá-
la”154.
Mais ao final do Prólogo, numa espécie de elogio a Romaniano,
Agostinho afirma que este tem a disposição de desejar o que é belo e honesto, além
de ser generoso, justo antes que poderoso, e que a Providência despertou nele,
graças às rudes provas pelas quais ele tem passado, um “quê” de divino. Por isso,
insiste: “crê que hás de congratular-te profundamente, porque quase não te
afagaram os bens deste mundo que seduzem os incautos”.155 Destaca que
Romaniano, com sua experiência de vida sobre os bens deste mundo e suas
desilusões, poderia persuadir outras pessoas para o caminho da verdade.
Ao falar da experiência de Romaniano, a quem aparentemente os bens
deste mundo não afagam no momento, remete à sua própria experiência, uma vez
que ele também, como sabemos, viu-se quase preso aos bens materiais e ao
maniqueísmo agora considerado por ele como superstição. Porem, em fase
posterior despertou para a filosofia que promete mostrar o “Deus verdadeiro”.

Esses bens também tentavam prender-me a mim, que todos os dias


repetia isso, se uma dor do peito não me tivesse obrigado a deixar a
minha vã profissão e refugiar-me no seio da filosofia. Agora, no ócio
que ardentemente desejávamos, ela me nutre e acalenta. Libertou-
me totalmente daquela superstição na qual te precipitara juntamente
comigo. É ela que me ensina, e ensina de verdade, que
absolutamente nada do que se vê com os olhos mortais ou se
alcança por qualquer outro sentido merece ser cultivado mas
totalmente desprezado. É ela que promete mostrar em toda claridade

152
C.f. AGOSTINHO, Santo. Contra os Acadêmicos, 2008, I, I, 2.
153
C.f. GILSON, Étienne. Introdução ao estudo de Santo Agostinho, 2006, p. 19.
154
Idem, Ibidem, p. 18.
155
C.f. AGOSTINHO, Santo. Contra os Acadêmicos, 2008, I, I, 3.
44

o Deus verdadeiro e secretíssimo e já o faz entrever como que


através de nuvens transparentes156.

Logo, percebe-se já aqui o problema do conhecimento da verdade, pois


sabemos que os estoicos pensavam-na como algo corpóreo e os acadêmicos
157
desconsideravam o valor dos sentidos para conhecê-la . Mas, para Agostinho, a
beatitude implica “o conhecimento da verdade como condição essencial, mas a
verdade só persegue a beatitude porque apenas ela é beatificadora e somente no
tanto que ela é”158. Desta forma, a verdade é um conhecimento permanente, eterno,
que leva ao caminho da sabedoria. E que leva a conclusão de que quem poderia
conter este predicado seria somente o “Deus verdadeiro”.
Ora, a sabedoria estaria atrelada a Deus, e, automaticamente, a vida feliz
seria Deus159. Nas palavras de Agostinho no livro A Vida Feliz: “quem possui a Deus
é feliz”160. Souza argumenta que, para Agostinho, “a felicidade não está no
conhecimento e na sabedoria adquiridos pelas ciências e todo tipo de conhecimento
que a razão humana pode possibilitar, mas está no próprio Deus que é o
conhecimento e a sabedoria perfeita”161. Logo, “nada pode faltar a quem possui a
sabedoria162.
Agostinho finaliza a dedicatória do livro revelando a grande alegria em ter
Licêncio, filho de Romaniano, em sua companhia:

Dela compartilha comigo com grande ardor o nosso Licêncio.


Renunciando às seduções e os prazeres da juventude, consagrou-se
totalmente à filosofia, de tal modo que não tenho receio de propô-lo
como exemplo a seu pai. Esta é, efetivamente, a filosofia de cujo seio
nenhuma idade pode queixar-se de excluída. Para te incitar a possuí-
la e hauri-la mais avidamente, embora conheça bem a sede que dela
tens, resolvi enviar-te uma prova. Rogo-te que não frustres minha

156
C.f. AGOSTINHO, Santo. Contra os Acadêmicos, 2008, I, I, 3.
157
PALACIOS, Pelayo Moreno. O estamento da verdade no Contra Acadêmicos de Agostinho. 2006.
Tese (Doutorado em Filosofia) – Universidade de São Paulo. Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas - Departamento de Filosofia. Disponível em:
www.teses.usp.br/teses/.../TESE_PELAYO_MORENO_PALACIOS.pdf. Acesso em: 10. 10. 2014, p.
32.
158
C.f. GILSON, Étienne. Introdução ao estudo de Santo Agostinho, 2006, p. 18.
159
“o preceito fundamental do socratismo é, num sentido, o ponto de partida se Santo Agostinho;
entretanto, ele o adota somente para fazê-lo sofrer uma transformação cuja profundidade aparecerá
melhor à medida que precisará o sentido da doutrina”. GILSON, Étienne. Introdução ao estudo de
Santo Agostinho, 2006, p. 18.
160
C.f. AGOSTINHO, Santo. A Vida feliz, 1993, II, 11.
161
C.f. SOUZA, José Zacarias. Agostinho Buscador inquieto da verdade, 2001, p.45.
162
C.f. AGOSTINHO, Santo. A Vida feliz, 1993, V, 27.
45

esperança de que te será muito agradável e, por assim dizer, um


aperitivo163.

Como prova dos estudos de Licêncio, Agostinho envia por escrito a


Romaniano a “disputa que travaram entre si Trigécio e Licêncio”,164 para instigar o
amigo para a verdadeira vida feliz e orientá-lo para um despertar no caminho da
filosofia.
Com efeito, este exórdio poderia ser analisado da seguinte forma: a
filosofia leva homem a conhecer a verdade, esta o conduz a se deligar dos bens
materiais e se conectar com seu Eu interior, levando-o à sabedoria. A sabedoria guia
o homem em direção a Deus, e, encontrando Deus, encontra-se a vida feliz.
Entretanto, é imprescindível ao homem manter a virtude, pois “ninguém pode ser
feliz sem possuir o que deseja e, por outro lado, não basta aos que já possuem ter o
ambicionado para serem felizes”165. Logo, a tomada de consciência do homem sobre
si mesmo que leva ao conhecimento de sua existência não é uma busca externa que
guia o mesmo ao encontro da verdade, mas uma descoberta a respeito de si e do
outro, e, por meio desta descoberta, transforma-o em sábio. Com efeito, a sonhada
felicidade está atrelada ao que o homem deseja e ao que o mesmo deve fazer para
adquiri-la. Vejamos como esta análise é tratada no diálogo a seguir.

3.2 É preciso a verdade para ser feliz?

Agostinho sabia que o homem, contando apenas com seus próprios


recursos, seria incapaz de alcançar a certeza plena, e, desta forma, não haveria
nem repouso, nem felicidade para ele166. Por este motivo, provar que a verdade é
possível, converte-se no primeiro passo para a sonhada felicidade. Com efeito, o
problema da beatitude inclui saber o que o homem pode desejar e como pode
possuir a felicidade,167 pontos analisados anteriormente no Prólogo a Romaniano.
A discussão que o Mestre propõe a seus discípulos, Trigécio e Licêncio,
versa exatamente sobre a necessidade de encontrar a verdade para ser feliz.

163
C.f. AGOSTINHO, Santo. Contra os Acadêmicos, 2008, I, I, 4.
164
Idem, Ibidem, I, I, 4.
165
C.f. AGOSTINHO, Santo. A Vida feliz, 1993, II, 10.
166
C.f. GILSON, Étienne. Introdução ao estudo de Santo Agostinho, 2006, p. 449.
167
Idem, Ibidem, p. 449.
46

Porque, fundamentalmente, se a felicidade fosse possível sem a verdade, não


haveria necessidade alguma de procurá-la. A esta questão somou-se outra, a de
que talvez a felicidade estivesse não na posse da verdade, mas apenas na sua
busca, de modo que aquele que procura pela verdade já poderia ser considerado
feliz - esta foi opinião apresentada e defendida por Licêncio, que coincide com a
opinião dos acadêmicos, como vimos anteriormente. Em suas palavras:

A meu convite estávamos todos reunidos num lugar apropriado.


Assim que pareceu oportuno, comecei:
- Duvidais de que devemos conhecer a verdade?
- De maneira alguma, disse Trigécio.
Os outros deram sinal de que concordavam com ele.
- Mas se, continuei, mesmo sem a posse da verdade podemos ser
felizes, ainda julgais necessário conhecer a verdade?
[...] disse Trigécio:
- Certamente queremos ser felizes e se pudermos sê-lo sem a
verdade, não precisamos procurá-la168.

A pergunta inicial do diálogo poderia ser formulada de outra maneira:


“Duvidais de que precisamos desconhecer a verdade? (...) Como se a pergunta
inicial fora: Duvidais, com os Acadêmicos, de que possamos atingir a verdade?”169.
A indagação apresenta o real desafio feito por Agostinho: superar a incerteza e o
impedimento dos Acadêmicos, que estipularam um paradigma na procura pela
verdade.
Com efeito, Boyer, ao falar da doutrina da Nova Academia, relacionando-
a com o pensamento de Santo Agostinho, afirma que este estava convencido de que
o conhecimento leva à verdade, a qual, por sua vez, é a condição para a felicidade,
sendo esta acessível ao homem:

O que a filosofia ensina aos homens conhecerem é, portanto, o que


pode torná-los felizes. [...] Se, por um lado, o conhecimento humano,
enquanto se ordena em direção à felicidade, é filosofia, e se, por
outro lado, a filosofia é o amor da sabedoria, então segue-se que a
sabedoria é o conhecimento beatificador que a filosofia busca170.

Outro ponto que está relacionado à pergunta poderia ser colocado da


seguinte forma: como é possível que os acadêmicos busquem a verdade a fim de
168
C.f. AGOSTINHO, Santo. Contra os Acadêmicos, 2008, I, II, 5.
169
AGOSTINHO, Santo. Contra os Acadêmicos. Tradução e prefacio de Vieira de Almeida. Coimbra:
MCMLVII. Disponível em: <https://ebrael.files.wordpress.com/2014/05/contra-os-acadc3aamicos-
santo-agostinho.pdf>. Acesso em: 2 de out. de 2014, p. 14.
170
C.f. GILSON, Étienne. Introdução ao estudo de Santo Agostinho, 2006, p. 224.
47

serem felizes, uma vez que a consideram inacessível?171 Segundo Almeida, a


análise da tese dos Acadêmicos é o ponto de partida para a constituição de uma
teoria do conhecimento:

O esquema poderia assim enunciar-se: a) Ninguém pode ser feliz


sem achar a verdade (condicionalismo ético do conhecimento) - b)
Mas o homem é capaz de achar a verdade - c) Podem refutar-se os
que o negaram, em especial os sectários da Nova Academia172.

Agostinho apresenta, logo no início do diálogo, a ideia de que a melhor


coisa que há no homem é aquela parte da alma à qual deve obedecer todo o resto,
isto é, a mente ou a razão. De modo que viver feliz é viver conforme o que há de
melhor no homem173. Neste caso:

[...] Interveio Navígio:


- Impressionou-me o que disse Licêncio. Talvez viver feliz consiste
em viver em busca da verdade.
Disse Trigécio:
- Define, então, o que é vida feliz, para que eu possa concluir o que
responder.
Disse eu:
- Pensas que viver feliz é outra coisa que viver conforme o que há de
melhor no homem?
Replicou Trigécio:
- Não falarei levianamente. Acho que deves definir o que é esse
melhor.
- Quem dúvida, disse eu, de que haja outra coisa melhor no homem
do que aquela parte da alma à qual deve obedecer todo o resto do
homem? Para que não peças nova definição, acrescento que esta
parte da alma pode ser chamada de mente ou razão174.

Ora, é pela razão que o homem obtém o conhecimento, pela razão que
consegue guiar sua vida, logo, buscar conhecer é, antes de tudo, buscar o objeto
cujo encontro apaziguará nosso apetite de conhecer e, por isso, estabelecer nosso
estado de beatitude175. Com efeito, a definição de Agostinho contradiz os
argumentos dos Acadêmicos, pois, segundo os mesmos, não existe como ter razão
se não se chega a obter conhecimentos, o que leva à impossibilidade de o homem
171
C.f. BOYER, Charles. L’idée de Vérité Dans La Philosophie de Saint Augustin, 1939, p. 37.
172
AGOSTINHO, Santo. Contra os Acadêmicos. Tradução e prefacio de Vieira de Almeida. Coimbra:
MCMLVII. Disponível em: <https://ebrael.files.wordpress.com/2014/05/contra-os-acadc3aamicos-
santo-agostinho.pdf>. Acesso em: 2 de out. de 2014, p. 13.
173
C.f. AGOSTINHO, Santo. Contra os Acadêmicos, 2008, I, II, 5.
174
Idem, Ibidem, I, II, 5.
175
C.f. BOYER, Charles S. J. L’idée de Vérité Dans La Philosophie de Saint Augustin, 1939, p. 224.
48

ter certezas sobre a vida baseado na razão, como já analisamos.


Contraditoriamente, Agostinho reitera: “a filosofia é produto da razão e, enquanto tal,
é uma dedicação até a felicidade, permitindo descobrir uma verdade. Então
podemos ver que a filosofia é entendida como um questionamento do homem à
procura da vida feliz, da beatitude”176.
O diálogo vai se desenvolver no sentido de refletir se seria possível viver
feliz com base nos exemplos dos antepassados que foram sábios e procuraram a
verdade, ainda que não lhes fosse dado encontrá-la. Agostinho pergunta:

[...] parece-te que se pode viver feliz sem ter encontrado a verdade,
mas com a condição de procurá-la?
[...] Licêncio:
- A mim me parece que sim, pois os nossos antepassados, que a
tradição apresenta como sábios e felizes, viveram bem e felizes só
porque procuravam a verdade177.

No entanto, a oposição a esta ideia reside no fato de que é feliz apenas


aquele que é sábio, e, portanto, perfeito em tudo. Mas quem ainda procura não está
de posse da perfeição e, consequentemente, não pode ainda ser feliz. Palácios
comenta:

O discurso sobre a sabedoria é importante, e não tem nenhum


adversário, porque não é impugnada, ambos a desejam, o problema
está em que, dependendo de quem seja o verdadeiro sábio, se
deverá aceitar ou não o seu sistema de vida, pois a discussão entre
eles não é apenas a propósito de certos aspectos, mas sobretudo se
a felicidade ou o bem consiste em passar a vida buscando a verdade
ou em encontrá-la e poder abraçá-la178.

Licêncio evocará a autoridade de Cícero para convencer seus


interlocutores que já é feliz quem busca a verdade. Uma vez que não se pode saber
nada ao certo, pois dar seu assentimento a coisas incertas deixa o sábio sujeito ao
erro, nada mais resta ao sábio senão buscar diligentemente a verdade. Nas palavras
de Cícero:

176
C.f. SOUZA, José Zacarias. Agostinho Buscador inquieto da verdade, 2001, p.38.
177
C.f. AGOSTINHO, Santo. Contra os Acadêmicos, 2008, I, II, 6.
178
PALACIOS, Pelayo Moreno. O estamento da verdade no Contra Acadêmicos de Agostinho. 2006.
Tese (Doutorado em Filosofia) – Universidade de São Paulo. Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas - Departamento de Filosofia. Disponível em:
www.teses.usp.br/teses/.../TESE_PELAYO_MORENO_PALACIOS.pdf. Acesso em: 10. 10. 2014, p.
46.
49

Não somos dos que negam em absoluto a existência da verdade:


limitamo-nos a sustentar que a cada verdade une-se algo que não é
verdadeiro, mas tão semelhante a ela, que não pode nos oferecer
qualquer sinal distintivo que permita formular um juízo e dar o nosso
assento. Daí deriva a existência de muitos conhecimentos prováveis
que, mesmo não sendo plenamente certificados, se mostram tão
nobres e elevados a ponto de poderem servir de guia para o sábio179.

Em seu livro Hortensius, Cícero relata que “o sábio é feliz em vista da


procura da verdade porque não pode conhecer a verdade completa”180.

Licêncio:
[...] O nosso Cícero pensava que é feliz quem busca a verdade,
ainda que não consiga encontrá-la.
Trigécio:
- Onde Cícero disse isso?
Licêncio:
- Quem ignora que ele afirmou enfaticamente que o homem não
pode saber nada ao certo e que a única coisa que resta ao sábio é
buscar diligentemente a verdade, pois se der seu assentimento às
coisas incertas, ainda que talvez sejam verdadeiras, não pode estar
livre de erro, o que para o sábio é a falta máxima. Portanto, se, por
um lado, devemos crer que o sábio é necessariamente feliz e, se por
outro, só a procura da verdade constitui na sua perfeição o ofício da
sabedoria, por que hesitaríamos em pensar que a felicidade da vida
possa resultar da simples busca da verdade?
[...] Trigécio:
- Quero que tu, nosso juiz, te lembres como há pouco definiste a vida
feliz. Disseste que feliz era aquele que vive conforme aquela parte da
alma que deve comandar todas as outras. Quanto a ti, Licêncio,
quero que me concedas – pois em nome da liberdade que a filosofia
promete dar-nos já sacudi o julgo da autoridade – que não é perfeito
quem ainda procura a verdade181.

Neste caso, a autoridade de Cícero é colocada em questão por Trigécio,


ao menos no que se refere à busca da verdade, pois o homem que ainda busca não
pode ser considerado perfeito. Mas Licêncio não concorda com Trigécio e
argumenta: “Concedo que quem não chegou ao fim não é perfeito. Mas a verdade
acho que só Deus a conhece ou talvez também a alma humana, depois que deixou
o corpo, este cárcere tenebroso”182. Esta objeção pode ser levantada, pois se é
verdade que aquele que não chegou ao fim não é perfeito, também se pode afirmar
que a verdade só pode ser conhecida por Deus ou pela alma humana depois da
179
C.f. REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. V.3. Os Sistemas da era helenística, 1994, p.
451. Cícero, De natura deorum, I, 5,12.
180
C.f. SOUZA, José Zacarias. Agostinho Buscador inquieto da verdade, 2001, p.40.
181
C.f. AGOSTINHO, Santo. Contra os Acadêmicos, 2008, I, II, 8.
182
Idem, Ibidem, I, II, 9.
50

morte, embora a finalidade do homem seja procurar perfeitamente a verdade, se


admitirmos a argumentação de Licêncio:

[...] esta é a felicidade do homem: buscar perfeitamente a verdade.


Isso é chegar ao fim, além do que não se pode passar. Portanto,
quem busca a verdade com menos esforço do que deve, não alcança
o fim do homem, mas quem se aplica à sua busca com todo o
esforço possível e necessário, mesmo que não a encontre, é feliz,
pois age totalmente segundo o fim para o qual nasceu. Se não o
consegue, a falta vem da natureza, que não o permitiu. Finalmente,
se todo homem é necessariamente feliz ou infeliz, não será loucura
chamar infeliz aquele que dia e noite com todo o afinco procura a
verdade? Logo é feliz. Além disso, creio que nossa definição
confirma a minha opinião, pois se é feliz, como de fato é, quem vive
segundo aquela parte da alma que deve governar as outras e esta
parte se chama razão. Pergunto: não vive segundo a razão quem
com perfeição busca a verdade? Seria absurdo negá-lo. Por que,
então, hesitaremos em afirmar que basta a busca da verdade para
tornar o homem feliz?183

Analisando o discurso de Licêncio sobre o sábio e a busca perfeita da


verdade como condição de já ser feliz, do ponto de vista agostiniano e da sua teoria
do porto da sabedoria apresentada anteriormente, podemos estabelecer uma
relação entre o homem, o filósofo, o sábio e a sabedoria, adotando o seguinte
raciocínio: o homem, na busca de certezas e de sua existência procura respostas;
esta tomada de consciência ocasiona a adoção de uma vida filosófica. Ele
transforma-se em um filósofo que tem por objetivo uma vida orientada pela razão e
pela reflexão sobre a verdade. Tal atitude o faz seguir em direção ao porto,
superando as incertezas, o orgulho, os rochedos. Chegando ao porto, encontra a
verdade, mas ainda precisa ir à terra firme para desfrutar da sabedoria. Em terra
firme transforma-se em sábio, desfrutando da plenitude em sua alma, e, conhecendo
a sabedoria, torna-se feliz. Com efeito, ser sábio é vivenciar sua filosofia, praticando-
a:

O sábio, do ponto de vista dos Antigos, não é apenas o homem que


dominou suas más inclinações, que chegou a uma forma de saber
último e de renúncia a tudo o que é prejudicial ou inútil. Ele é, em
primeiro lugar, aquele que atingiu o fim do caminho184.

183
C.f. AGOSTINHO, Santo. Contra os Acadêmicos, 2008, I, II, 10.
184
DROIT, Roger-Pol. Um Passeio pela Antiguidade: na companhia de Sócrates, Epicuro, Sêneca e
outros pensadores. Rio de Janeiro: Difel, 2012, p. 53.
51

Desta forma, não basta somente a busca perfeita da verdade, é preciso


encontrar a verdade, e o mais importante, ter a virtude para manter a verdade.
“Portanto, primeiro se deve conhecer a verdade, pela qual possam ser conhecidas
as outras”185. Por imediato, chega-se a estas definições como analisamos
anteriormente: “todo o que encontrou a Deus e o tem benévolo é feliz. Todo o que
ainda busca a Deus tem-no benévolo, mas ainda não é feliz”186. Nestas passagens,
Agostinho está elaborando suas argumentações contra o “Sábio Acadêmico”, as
quais aqui somente foram apresentadas brevemente.

Para os filósofos antigos, todos desejam a felicidade. Estes filósofos


levam em conta somente a natureza humana e buscam esta
felicidade no corpo e na alma. Mas Santo Agostinho demonstrou que
somente a busca da verdade não é suficiente para a felicidade187.

Com efeito, de início, Agostinho não tenta estabelecer uma perspectiva


positiva, agarrando-se a certas verdades objetivas. Na realidade, busca, utilizando
uma argumentação negativa, as contradições internas, utilizando as brechas de
seus adversários, os Acadêmicos para combatê-los188, neutralizando suas
argumentações em sua própria filosofia. Segundo o que o homem é incapaz de
conhecer a verdade, pois a verdade está baseada nos sentidos, levando ao erro.
Analisa o que seria o “erro” dos Acadêmicos, levantando questões sobre o falso,
procurando definir o que seria a sabedoria humana e divina e o papel do sábio. Na
continuidade do diálogo, analisaremos como estes pontos são abordados.

3.3 A questão do erro

Para abordar a questão do erro neste momento do diálogo, Trigécio


responde a Licêncio sobre por que o homem não é feliz somente buscando a
verdade: “Ora, está em erro quem sempre busca, e não encontra. Logo, deves
demonstrar-me uma destas duas coisas: ou quem está em erro pode ser feliz, ou
quem nunca encontrar o que procura não está em erro”. Mas, segundo Licêncio,

185
C.f. AGOSTINHO, Santo. Solilóquios, 1998, XV, 27.
186
C.f. AGOSTINHO, Santo. A Vida feliz, 1993, V, 21.
187
C.f. SOUZA, José Zacarias. Agostinho Buscador inquieto da verdade, 2001, p.40.
188
C.f. BOYER, Charles. L’idée de Vérité Dans La Philosophie de Saint Augustin, 1939, p. 33.
52

“quem é feliz não pode estar em erro”, logo, “quem procura não está em erro, pois
procura para não errar”189. Trigécio responde:

- Sem dúvida procura para não errar, mas como não encontra, não
deixa de estar em erro. Julgaste favorecer tua posição dizendo que o
homem não quer enganar-se, como se ninguém se enganasse sem
querer, ou como se só nos enganássemos contra nossa vontade190.

Agostinho, observando a demora de Licêncio em responder, argumenta


que o mesmo precisaria “definir o que é erro, pois podereis circunscrevê-lo tanto
mais facilmente quanto mais profundamente penetrardes em sua natureza”. Licêncio
responde que não sabe definir o que é o erro, “ainda que seja mais fácil definir o erro
que acabar com ele”191.
Com a falta de definição sobre o erro, Trigécio toma para si responder
argumentando, “será muito fácil fazê-lo, não graças a algum talento que eu tenha,
mas à excelência da causa. Logo, seu argumento fundamental é que “quem está em
erro não vive segundo a razão nem é totalmente feliz”192. Desta forma, “errar é, na
verdade, procurar sempre sem jamais encontrar”193. Licêncio responde:

[...] O erro, a meu ver, consiste em tomar o falso pelo verdadeiro.


Nele não pode cair de nenhum modo quem julga que sempre se
deve procurar a verdade, pois não pode aprovar o falso quem não
aprova nada. Logo não pode errar, mas pode facilmente ser feliz.
Para não ir muito longe, se pudéssemos viver os dias como ontem,
não vejo razão para não nos considerarmos felizes. Pois vivemos
numa grande tranquilidade de espírito, guardando a alma livre de
toda mácula corporal, bem longe do fogo das paixões, dedicando-
nos, quando é humanamente possível, à razão, isto é, vivendo
segundo aquela parte divina da alma, que, segundo a definição de
ontem, concordamos que constitui a vida feliz. Todavia, creio que
nada encontramos, mas apenas procuramos a verdade. Logo, o
homem pode alcançar a felicidade só pela busca da verdade, ainda
que não consiga encontrá-la194.

Licêncio procura estabelecer uma definição para o erro, segundo a qual


este “consiste em tomar o falso pelo verdadeiro”. O modo de vida descrito pelo
mesmo, no qual o homem encontra a felicidade apenas “procurando a verdade”,
189
C.f. AGOSTINHO, Santo. Contra os Acadêmicos, 2008, I, IV, 10.
190
Idem, Ibidem, I, IV, 10.
191
Idem, Ibidem, I, IV, 10.
192
Idem, Ibidem, I, IV, 10.
193
Idem, Ibidem, I, IV, 10.
194
Idem, Ibidem, I, IV, 11.
53

está pautado pela definição retirada dos Acadêmicos. Ainda que estas questões não
sejam apresentadas de modo explícito no Primeiro Livro, elas estão subjacentes às
discussões travadas pelos dois jovens discípulos de Agostinho. Procuraremos, pois,
na medida do possível, fazê-las emergir do texto. Dizer o que é falso é negar a
verdade, e como isso poderia ser feito uma vez que o homem não sabe qual é a
verdade?195 Gilson comenta sobre a origem do erro que Licêncio se baseia:

Tal erro, que é cometido continuamente, é a verdadeira origem e


aparente justificação do ceticismo, pois isso de que os acadêmicos
refutam a possibilidade é a sabedoria tal como a concebem os
estoicos. Ora, o sábio que Carnéades julga impossível é Zenão, cuja
ciência se funda no testemunho dos sentidos196.

Sabemos que os Acadêmicos não estabelecem nenhum assentimento ou


juízo, argumentando que tudo é baseado em sensações. A sensação unicamente
analisada como sensação não é falsa; desta forma, não devemos duvidar da
importância da percepção197. Mas, para eles, o erro está em basear o conhecimento
da verdade nos sentidos. Sobre os sentidos:

Quando se quer definir com precisão a atitude adotada por Santo


Agostinho em relação ao conhecimento sensível, podemos reduzi-la
às duas teses seguintes: considerando-o como uma simples
aparência, ou seja, tomando-o como isso que ele realmente é, o
conhecimento sensível é infalível; alçado a critério de verdade
inteligível do qual é especificamente diferente, ele necessariamente
nos induz ao erro198.

A ideia que novamente Licêncio preconiza é: “não erra quem busca


perfeitamente a verdade, ainda que não a encontre, é feliz porque vive de acordo
com a razão"199. Com efeito, não é possível que tome o falso pelo verdadeiro aquele
que julga que sempre se deve estar à procura da verdade, uma vez que não aprova
o falso aquele que não aprova nada, de modo que, não estando sujeito ao erro, terá
mais condições de ser feliz. Este raciocínio cria certa área de segurança, pois
protege o homem do erro quando este se abstém de dar seu assentimento.

195
C.f. BOYER, Charles. L’idée de Vérité Dans La Philosophie de Saint Augustin, 1939, p. 38.
196
C.f. GILSON, Étienne. Introdução ao estudo de Santo Agostinho, 2006, p. 89.
197
C.f. SOUZA, José Zacarias. Agostinho Buscador inquieto da verdade, 2001, p. 47.
198
C.f. GILSON, Étienne. Introdução ao estudo de Santo Agostinho, 2006, p. 88.
199
C.f. AGOSTINHO, Santo. Contra os Acadêmicos, 2008, I, IV, 12.
54

Logo, os Acadêmicos acreditavam que o conhecimento estava pautado


em uma percepção do sensível, o que levava à impossibilidade de que o homem
pudesse conhecer a verdade, não podendo este conhecer categoricamente coisa
nenhuma, sem poder, portanto, dar o assentimento, e, consequentemente sem
poder obter uma vida feliz. No entanto, para salvar a opinião dos Acadêmicos,
Licêncio concede que o homem possa alcançar a felicidade apenas buscando a
verdade, mesmo sem encontrá-la, de modo que errar, ao contrário do que afirmava
Trigésio, não é buscar sempre sem nunca encontrar, mas tomar o falso pelo
verdadeiro.
Notemos, no entanto, que, para Agostinho, todo o conhecimento do
homem em relação ao mundo exterior implica na sensação200. O sensível é também
pode ser alguma coisa pensada, chamada representação do sensível, mas o sentido
interior dirige e julga o sentido exterior, e aquele que julga é, pois, superior àquilo
que é julgado201. Assim, o erro está em querer informações além do legítimo dado
sensível, ou seja, desejando afirmar que as coisas são mais do que aparecem para
a pessoa202. Laêrtios comenta sobre os sentidos:

Segundo os céticos, as coisas não são na realidade como parecem


ser, mas são meras aparências. E diziam ainda que sua investigação
se dirigia não ao pensamento – pois o pensamento é evidentemente
pensamento – e sim ao que se percebe por meio dos sentidos203.

Agostinho considera, que não se deve procurar a verdade nos sentidos,


pois os mesmos só apresentam como as coisas aparecem ao homem, sem
estabelecer relações do que são e como são. Seguindo este princípio, os sentidos
não levam à falsidade e é por isso que Agostinho considera que “a busca da
verdade deve continuar para além daquilo que podemos controlar por meio das
evidências sensíveis”204. Em resumo , “O conhecimento que me faz saber como sou
feliz, ou como poderei vir a ser feliz é, segundo Agostinho, da ordem do inteligível e
não do sensível”205.

200
C.f. GILSON, Étienne. Introdução ao estudo de Santo Agostinho, 2006, p. 157.
201
Idem, Ibidem, p. 38.
202
Idem, Ibidem, p. 89.
203
C.f. LAÊRTIOS, Diôgenes. Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres, 1988, p. 272.
204
GRACIOSO, Joel. Matéria e espírito, São Paulo: Martins Fontes, 2012, p. 41.
205
MARTINS, Maria Mansela Brio. Deus como beatitude e outras felicidades. Centro de Formação e
Cultura Diocese de Leiria-Fatima. Actas do Congresso 11 a 15 de Novembro de 2004. Disponível em:
55

O filósofo segue com uma argumentação que toma como princípio a


análise de uma afirmação, verificando se ela é verdadeira ou falsa - Princípio da
Bivalência - aproveitando a própria definição de Zenão que os Novos Acadêmicos se
baseiam, segundo a qual, “o que aparece pode ser apreendido se aparecer de modo
a que não possa parecer uma falsidade, desejando saber se a definição estabelece-
se como verdadeira ou falsa”206. Qualquer que seja a resposta, a definição existe, e
determinando algo como certo, sabemos algo.

Contraditório em sua pretensão de possuir a sabedoria, a posição do


Acadêmico também é contraditória em si mesma, pois a definição de
certeza que ele adota implica somente ela acrescida de uma certeza.
Se a considera como certa, isso que a propósito ela é, então ele tem,
por isso mesmo, ao menos uma verdade; se a considera apenas
como provável, deve ao menos admitir que ela é ou verdadeira ou
falsa, e essa proposição disjuntiva é também em si mesma uma
certeza207.

De fato, a própria escolha da palavra “provável” pelos Acadêmicos insinua


uma intenção. Seguindo a sua forma de raciocínio, a indagação sobre o que é
semelhante à verdade (falso) já leva a pensar que existe uma verdade208 ou seja,
estipula um princípio filosófico que se pode duvidar ou aceitar.

Com efeito, o princípio fundamental deles é que nunca se chega a


saber nada em filosofia. Quando se observa que por conta disso um
homem não poderia saber se é um homem ou uma formiga,
Carnéades responde prudentemente que sua dúvida se limita aos
problemas filosoficos e às soluções que lhes propõem os diversos
sistemas; mas esse princípio é, ele mesmo, um princípio filosófico e,
consequentemente, é necessário duvidar dele – o que coloca em
perigo a existência da escola -, ou aceitá-lo como uma verdadeira
filosofia – o que a arruína209.

O filósofo Jolivet também comenta como o probabilismo poderia ser um


criterio de verdade:

O probabilismo não pode justificar-se melhor do que o ceticismo total.


Porque, o instante em que admita que há coisas mais prováveis do

http://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/4688/1/2004_TEOLOGIA_Brito_Manuela-dig4.PDF.
Acesso em: 15 de Nov. de 2014, p. 185.
206
C.f. MATTHEWS. Gareth. Santo Agostinho, 2008, p. 37.
207
C.f. GILSON, Étienne. Introdução ao estudo de Santo Agostinho, 2006, p. 86.
208
C.f. BOYER, Charles. L’idée de Vérité Dans La Philosophie de Saint Augustin, 1939, p. 59.
209
C.f. GILSON, Étienne. Introdução ao estudo de Santo Agostinho, 2006, p. 86.
56

que outras, reconhece que há um critério de verdade segundo o qual


se estabelecem os diversos graus de probabilidade. Ora, se existe
um critério de verdade, é possível chegar à verdade. Deve-se então
concluir de tôda esta discussão que o ceticismo não pode defender-
se validamente e, até, que ele se destroi ao se afirmar210.

Segundo Gilson “o remédio contra a dúvida universal é essa evidência


que não pode ser negada sem que seja provada pelo ato mesmo que a põe em
dúvida: eu sou e sei que sou”211. Quando as coisas são chamadas de verdade, pois
consiste que são verdadeiras212 a sua essência não pode ser negada.
Assim, ao duvidar da própria existência, a dúvida já é baseada em alguma
certeza213, logo qualquer pessoa que duvida da existência da verdade tem em si
uma coisa verdadeira214. O ato de duvidar já presupõe a certeza de estar em dúvida.
Por isso, Boyer comenta que entre as verdades utilizadas por Santo
Agostinho para contestar os Acadêmicos, está o fato de pensar, o Cogito. Esta
argumentação do Contra os Acadêmicos não é usada com toda sua força, somente
apresentando o caminho de forma breve e sem grande expressão. Aparece
primeiramente no diálogo A Vida Feliz, poucos dias antes de ser escrito o segundo
livro dos Contra Acadêmicos215. Para melhor compreensão, segue a citação do
diálogo que Boyer relaciona no livro A Vida Feliz:

- Podes, pois, dizer-nos alguma coisa do que sabe?


- Sim, posso
- Se isso não te incomodar, dize-nos, pois.
E como ele hesitasse, interroguei:
- Sabes, pelo menos, que vives?
- Isso eu sei.
- Sabes, portanto, que tens vida, visto que ninguém pode viver a não
ser que tenha vida?
- Isso também sei.
- Sabes, igualmente, que possuis um corpo?
Ele concordou.
- Sabes, então, que constas de corpo e vida?
- Sim, todavia tenho dúvida se não existe alguma coisa a mais do
que isso.
- Assim, não duvidas destes dois pontos: possuis um corpo e uma
alma. Mas estás em dúvida se não existe outra coisa séria para
o homem um complemento de perfeição216.
210
JOLIVET, Régis. Curso de Filosofia. Tradução de Eduardo Prado de Mendonça, 1965, p. 248.
211
C.f. GILSON, Étienne. Introdução ao estudo de Santo Agostinho, 2006, p. 36.
212
Idem, Ibidem, p. 116.
213
C.f. BOYER, Charles. L’idée de Vérité Dans La Philosophie de Saint Augustin, 1939, p. 40.
214
Idem, Ibidem, p. 50.
215
Idem, Ibidem, p. 45.
216
C.f. AGOSTINHO, Santo. A Vida Feliz, 1993, II, 7.
57

O exemplo mais inovador e significativo de algo que afirma podermos


conhecer é aquilo que cada um de nós exprime individualmente ao declarar ‘eu
existo’217. Desta forma, estabelece-se uma ligação, na qual sabendo que o homem
existe, sua existência parece ser verdade de forma irrefutável, que não poderia ser
enganadora218 nem mesmo para os Acadêmicos. Agostinho apresenta como certeza
a existência do pensamento, sendo a primeira prova que não pode ser negada,
mesmo quando o pensamento estiver no erro.219 Com efeito, se eu estiver errado,
por estar errado, eu sou; quem não é, não pode confundir-se, é por isso que eu sou,
se eu estiver errando220.
Entretanto, o Cogito não é o princípio do qual parte a filosofia
agostinianao, uma verdade a partir da qual todas as outras verdades deveriam ser
inferidas221. Contudo, podemos observar que o Cogito é realmente o ponto de
partida para provar não só a existência da certeza e da verdade, mas também a
existência de Deus222, pressupondo que podemos ter a certeza de saber a verdade,
porque nós a percebemos por uma intuição intelígivel imediata223. Ora, o argumento
do Cogito carrega em si a essência da união entre a Felicidade e da Verdade, pois
na descoberta de um mundo intelígivel, possibilitado pela decoberta da verdade, é
possível superar a própria verdade caminhando em direção a Deus.
Retomando a definição de Trigécio, de que errar é buscar sempre sem
nunca encontrar, Licêncio propõe o exemplo do homem que, querendo ir a um lugar,
dispõe-se a fazê-lo, mas se for surpreendido pela morte e não chegar a atingir a
meta ele não erra, sendo, portanto feliz. Em suas palavras:

[...] Suponhamos um homem que nada procura. Alguém lhe


pergunta, por exemplo, se é dia. Sem refletir e precipitadamente,
responde que, a seu ver, é noite. Não te parece que ele erra. Esta
espécie de erro tão grosseiro não é abrangida pela tua definição. E
se incluir também os que não erram, pode haver definição mais
viciosa? Um homem quer ir a Alexandria e segue o caminho direto,
acho que não podes dizer que ele está errado. Mas, se, impedido por
vários obstáculos, levar muito tempo a percorrer o mesmo caminho e

217
C.f. MATTHEWS. Gareth. Santo Agostino, 2008, p. 61.
218
Idem, Ibidem, p. 70.
219
C.f. GILSON, Étienne. Introdução ao estudo de Santo Agostinho, 2006, p. 90.
220
C.f. BOYER, Charles. L’idée de Vérité Dans La Philosophie de Saint Augustin, 1939, p. 47.
221
Idem, Ibidem, p. 53.
222
Idem, Ibidem, p. 54.
223
Idem, Ibidem, p. 58.
58

for surpreendido pela morte, não é verdade que sempre procurou e


nunca encontrou e todavia não errou?224

Trigécio responde: “mas não procurou sempre”. Licêncio contrapõe:


“dizes bem e tua observação é correta, pois daqui se segue que a tua definição é
inadequada. Na verdade eu não disse que é feliz quem sempre busca a verdade”.
Desta forma, a ausência de erro não é consequência imediata da busca pela
verdade, o que seria impossível, porque o homem não existe sempre, e nem mesmo
em sua existência pode procurar imediatamente a verdade, uma vez que se
encontra impedido pela idade. A ausência de erro se encontra naquele que, desde o
momento que se torna capaz de procurar a verdade, começa a fazê-lo e não se
desvia desta meta. Com o objetivo de avançar sobre suas argumentações Contra os
Acadêmicos, Agostinho conduz o diálogo entre Trigécio e Licêncio para a definição
de sabedoria.

3.4 A definição de sabedoria

Tendo discutido as questões relativas à busca da verdade, da felicidade e


do erro, os contendores passam a analisar a questão da sabedoria. Nesta parte do
diálogo Agostinho opera com eficácia para tecer suas argumentações e fazer
conexões entre as definições estabelecidas anteriormente.
Trigésio argumenta que “a sabedoria é o caminho reto da vida”.225
Licêncio deseja que Trigécio defina o que é a sabedoria. Trigécio expõe que a
sabedoria é o caminho da vida, ao que Licêncio acrescenta que o caminho da vida
não é senão aquele que seguimos para evitar a morte. Licêncio propõe, então, a
metáfora do viajante que evita um atalho ao sabê-lo infestado de assaltantes e
segue pelo caminho reto a fim de evitar a morte; ora, a este caminho ninguém
chamaria de sabedoria, logo, “como então é sabedoria todo o caminho reto da
vida?”226.
Trigécio, então, novamente define a sabedoria como “o caminho reto que
conduz à verdade”227. Licêncio novamente contesta que a definição de Trigécio é

224
C.f. AGOSTINHO, Santo. Contra os Acadêmicos, 2008, I, IV, 11.
225
Idem, Ibidem, I, V, 13.
226
Idem, Ibidem, I, V, 13.
227
Idem, Ibidem, I, V, 14.
59

facilmente refutável228, porque a sabedoria, sendo um caminho, “quem este caminho


usa a sabedoria e quem usa a sabedoria é necessariamente sábio”229. Seguindo
com o raciocínio, diz que “sábio é aquele que busca perfeitamente a verdade,
mesmo que ainda não a tenha alcançado”. Nesta lógica, “o sábio é feliz, logo o que
faz feliz não é só a descoberta, mas a própria procura da verdade”230. Conclui:

[...] Pois, a meu ver, a melhor definição do caminho que conduz à


verdade é a diligente pesquisa da verdade. Consequentemente,
quem usa este caminho já será sábio. E nenhum sábio é infeliz. Ora
todo homem é infeliz ou feliz. Logo o que faz feliz não é só a
descoberta, mas a própria procura da verdade231.

O raciocínio se desenvolve da seguinte maneira: quem usa aquele


caminho usa a sabedoria, e é fato sabido que aquele que usa a sabedoria é
necessariamente sábio. Logo, sábio é aquele que busca perfeitamente a verdade,
embora não a tenha encontrado. Com efeito, o que Licêncio faz é usar a definição
de seu contendor para reafirmar sua opinião, segundo a qual a melhor definição de
felicidade é a diligente pesquisa da verdade.
Trigécio questiona Licêncio sobre sua forma de dialogar e refutar suas
respostas quando pede para definir algo, porque adotando este modo de proceder
seria necessária a definição de cada uma das palavras de uma determinada
sentença, o que levaria a uma disputa quase infinita. “Há, porventura, palavra da
qual a natureza quis que nossa alma tivesse uma noção mais clara que a da
sabedoria?”232. Para progredir sobre a significação de sabedoria, Trigécio solicita a
Agostinho, na função de juiz, sua definição. Agostinho, ao responder, lembra que
sua definição não é a mesma que a dele, mas também não é nova, estabelecida
pelos antigos233 que consideravam que a “sabedoria é a ciência das coisas humanas
e divinas”234. Para uma análise sobre a definição do que consiste a sabedoria e a
ciência, Gilson comenta:

A primeira resposta que se oferece ao pensamento é que a


sabedoria é uma espécie de ciência. Com efeito, nomeia-se ‘ciência’

228
C.f. AGOSTINHO, Santo. Contra os Acadêmicos, 2008, I, V, 14.
229
Idem, Ibidem, I, V, 14.
230
Idem, Ibidem, I, V, 14.
231
Idem, Ibidem, I, IV, 14.
232
Idem, Ibidem, I, V, 15.
233
Idem, Ibidem, I, V, 5.
234
Idem, Ibidem, I, VI, 16.
60

todo conhecimento certo e indubitável; a sabedoria não seria um


conhecimento digno desse nome se não apresentasse as
características de uma certeza absoluta e se, por consequência, não
fosse um conhecimento científico. Na realidade, é absolutamente
verdadeiro que a sabedoria é uma espécie da qual a ciência é o
gênero235.

Tendo ouvido a definição de Agostinho, Licêncio imediatamente considera


que, neste caso, os adivinhos podem ser considerados sábios, porque podem prever
com exatidão fatos ignorados, uma vez que é pelas coisas divinas que o homem
adivinha. Para tanto, Licêncio usa o exemplo de Albicério, espécie de mago que em
Cartago se entregava às práticas da adivinhação, e, dirigindo-se a Agostinho,
comenta:

- Não é verdade que, tendo-se perdido em casa uma colher, e sendo


ele consultado por ordem tua, rapidíssima e certissimamente
respondeu não só o que se procurava, mas também nominalmente a
quem pertencia e onde estava escondida. Deixo de lado o fato de
que não sofria absolutamente nenhum engano naquilo que se lhe
perguntava. Outra ocasião, presenciei o seguinte caso: um escravo,
que levava certa quantidade de moedas, roubara uma parte delas,
enquanto nos dirigíamos a Albicério. Este mandou que fossem
contadas as moedas e ante nossos olhos obrigou o escravo a
devolver aquelas que roubara, antes que ele mesmo tivesse visto as
moedas ou ouvido de nós quanto tinha sido roubado236.

A conclusão a que chega Licêncio é a seguinte: se consideramos a


definição de que “a sabedoria é a ciência das coisas humanas e divinas”, Albicério,
um sujeito aparentemente desregrado, foi sábio. Às argumentações de Licêncio,
Trigésio replicará que a ciência não consiste apenas em compreender, mas em
compreender de modo a que não venha a se enganar aquele que a possui, uma vez
que este não se deixa abalar por qualquer objeção, por isso só o sábio pode possuí-
la perfeitamente e mantê-la inabalavelmente. Trigésio comenta sobre Albicério:

Ora, sabemos que esse de que falaste disse muitas coisas falsas, o
que sei não só de ouvir dizer, mas também por havê-lo
testemunhado. Chamaria eu de sábio quem muitas vezes disse
coisas falsas? Não o chamaria por esse nome, mesmo que tivesse
dito a verdade, mas com hesitação. Aplicai o mesmo aos arúspices,
aos áugures e a todos os que consultam as estrelas e aos que
interpretam os sonhos. Ou então citai-me alguém dessa espécie de

235
C.f. GILSON, Étienne. Introdução ao estudo de Santo Agostinho, 2006, p. 225.
236
C.f. AGOSTINHO, Santo. Contra os Acadêmicos, 2008, I, VI, 17.
61

homens, que, consultado nunca tenha hesitado em suas respostas e


nunca tenha dado respostas erradas237.

Assim, Trigécio refuta a sabedoria dos adivinhos que também, fazem


previsões falsas. Considera que não se ocupará dos adivinhos, porque, ademais do
238
exposto, eles falam sob a influência de espíritos estranhos . Trigécio, então,
expõe o que ele acredita ser a ciência das coisas humanas: “é aquela que conhece
a luz da prudência, a beleza da temperança, a força da coragem, a santidade da
justiça. Estes são os bens que realmente podemos dizer nossos sem nenhum temor
do acaso”239.
A discussão entre Trigécio e Licêncio a respeito de Albicério, que,
segundo Licêncio, dava respostas admiravelmente corretas a quem o consultava,
como que unindo coisas humanas e divinas, já que é pelas coisas divinas que o
homem advinha, serve de matéria para Trigécio refutar Licêncio, afirmando que se
Albicério já conhecesse as coisas divinas e, por meio delas, adivinhasse, então ele
já possuía aquilo que o sábio não para de buscar. Trigécio percebe, assim, certa
incoerência na argumentação de Licêncio, que afirmava ser necessária apenas a
busca da verdade para ser sábio e feliz. Licêncio adverte que Albicério conhecia as
coisas divinas, mas não conhecia aquela que o sábio deve buscar, isto é, a verdade.
Ao ser perguntado por Trigécio se Albicério era então melhor do que o
sábio, Licêncio nega, porque o gênero de verdade que o sábio busca é inacessível
até mesmo para o sábio que vive no corpo. Assim, Trigécio propõe a definição
segundo a qual “a sabedoria é a ciência das coisas humanas e divinas, mas
daquelas que pertencem à vida feliz”.240 Ora, para Licêncio esta definição ainda não
está correta, pois a sabedoria é isto, mas não apenas isto; e propõe que “a
sabedoria não é só ciência, mas também a diligente busca das coisas humanas e
divinas referentes à vida feliz”.241 Esta afirmação pode ser dividida em duas partes, a
primeira se refere à ciência que convém a Deus, e a segunda diz respeito à busca
que convém ao homem. Segundo Licêncio, a primeira faz feliz a Deus e a segunda
ao homem. Para esclarecer melhor:

237
C.f. AGOSTINHO, Santo. Contra os Acadêmicos, 2008, I, VII, 19.
238
Idem, Ibidem, I, VII, 19.
239
Idem, Ibidem, I, VII, 20.
240
Idem, Ibidem, I, VII, 20.
241
Idem, Ibidem, I, VIII, 23.
62

A diferença entre a sabedoria divina e a sabedoria humana reside no


facto de que a primeira é a ciência que convém plenamente a Deus,
enquanto que a segunda limita-se a ser uma investigativa e, por isso,
própria do ser humano. Esta diferença é fundamental, pois ajuda-nos
a perceber melhor o valor e o lugar da sabedoria e da verdade.
Contra Acadêmicos expõe, nas suas grandes linhas, as diferentes
doutrinas filosóficas acerca do telos humano e divino. Nesta
discussão está o ideal do sábio que procura a verdade. Esta certeza
indubitável revela, por um lado, a verdade adquirida por um
assentimento dado quer pela fé quer pelo conhecimento e, por outro,
que a própria verdade está alicerçada numa ratio subtilissima, que se
identifica com o próprio Cristo242.

Trigésio quer argumentar que o sábio de Licêncio trabalha em vão, uma


vez que apenas está em busca, sem atingir a meta. É quando Licêncio afirma que
não pode trabalhar em vão aquele que já é recompensado pela busca, pois se busca
é sábio, e se é sábio é feliz. Em suas palavras:

Como trabalha em vão, se é tão bem recompensado pela sua busca?


Pois, pelo fato de buscar, é sábio, e, pelo fato de ser sábio, é feliz.
Liberta tanto quanto pode o seu espírito dos laços do corpo e se
recolhe em si mesmo; não se deixa dilacerar pelas paixões, mas,
sempre tranquilo, concentra-se em si mesmo e em Deus, para que já
aqui goze pela razão o que acima concordamos ser a felicidade e, no
último dia da sua vida, esteja preparado para alcançar o que desejou
e merecidamente goze da divina felicidade, depois de ter antes
gozado a felicidade humana243.

Agostinho lembra a Licêncio que ele havia sustentado que só o sábio é


feliz, que o sábio deve ser perfeito, mas, quem busca a verdade não pode ser
perfeito, sendo assim, quem procura a verdade não pode ser feliz244. Ainda a este
respeito no diálogo da Vida Feliz, Agostinho destaca que:

Se é evidente, como a razão nos demonstrou há pouco, não poder


ser feliz quem não possui o que deseja; e de outro lado ninguém
procurar o que não deseja encontrar; como então se explica que os
acadêmicos estejam sempre à procura da verdade? Porque eles a
querem encontrar, mas por método infalível, a fim de poder
descobrir. E, contudo não a descobrem! Segue-se, portanto, que não

242
MARTINS, Maria Mansela Brio. Deus como beatitude e outras felicidades. Centro de Formação e
Cultura Diocese de Leiria-Fatima. Actas do Congresso 11 a 15 de Novembro de 2004. Disponível em:
http://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/4688/1/2004_TEOLOGIA_Brito_Manuela-dig4.PDF.
Acesso em: 15 de Nov. de 2014, p. 189.
243
C.f. AGOSTINHO, Santo. Contra os Acadêmicos, 2008, I, VIII, 23.
244
Idem, Ibidem, I, IX, 24.
63

são felizes. Ora, ninguém é sábio, se não for feliz. Logo, o acadêmico
não é sábio!245

Percebemos aqui referências do autor ao sábio Acadêmico, que segue a


definição de Zenão, e nega o assentimento a todas as coisas, não formula verdades,
sendo que, para Agostinho, a verdade é o caminho para sabedoria e a felicidade. O
sábio Acadêmico, não concedendo seu assentimento, não encontra a verdade, logo,
não é sábio e tampouco feliz, uma vez que a sabedoria, como destaca Boyer, é a
ciência da felicidade246. O sábio tem seu nome derivado da Sabedoria, e, para ser
chamado deste modo, deve conhecê-la. Desta forma:

Agostinho no fim do Livro I (Cap. IX) e o seu apoio a Trigécio


elucidam bem sobre o seu pensamento, sobre relações implícitas,
que tomam a conhecida forma de definições por postulados: 1) Só o
sábio é feliz. 2) O sábio deve ser perfeito. 3) Quem ignora a verdade
não é perfeito. 4) Logo não é sábio e portanto não é feliz247.

Por conseguinte, Agostinho salienta a diferença entre o homem e o sábio,


e a importância que o último atribui a isso. Quem procura a verdade não é ainda
feliz, e este é o homem em direção ao porto, enquanto o sábio possui a verdade e já
está em terra firme, tendo alcançado a felicidade que não pode ser refutada. Com
efeito, o sábio é aquele que dá o devido valor a cada fato e acontecimento,
reconhecendo seus limites, “a ideia de que o sábio pode ser feliz mesmo em meio a
tormentos”248 e, aprende a querer somente aquilo que lhe é possível, sabendo que a
virtude é o caminho da vida feliz. Agostinho no livro A Vida Feliz expõe as principais
características do sábio:

[...] não precisamos indagar se o sábio sofre de necessidades


corporais, pois essas coisas não se fazem sentir na alma – sede da
vida feliz. A alma do sábio é perfeita: ora, ao que é perfeito nada
falta. Ele se servirá de tudo o que for necessário a seu corpo, e
estiver a seu alcance. E, caso contrrio, a falta desses bens não
conseguirá abatê-lo. Posto que a característica do sábio é ser forte, e
o forte nada temer. Assim, o sábio não teme a morte corporal, nem
os sofrimentos que não consegue expulsar; evitar ou retardar, com a

245
C.f. AGOSTINHO, Santo. A Vida feliz, 1993, II, 14.
246
C.f. BOYER, Charles. L’idée de Vérité Dans La Philosophie de Saint Augustin, 1939, p. 33.
247
AGOSTINHO, Santo. Contra os Acadêmicos. Tradução e prefacio de Vieira de Almeida. Coimbra:
MCMLVII. Disponível em: <https://ebrael.files.wordpress.com/2014/05/contra-os-acadc3aamicos-
santo-agostinho.pdf>. Acesso em: 2 de out. de 2014, p. 18.
248
C.f. REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. V.3. Os Sistemas da era helenística, 1994, p.
395.
64

ajuda daqueles bens, de cuja posse pode acontecer ver-se privado.


Entretanto, não deixará de servir honestamente desses bens, caso
os possua249.

O sábio age sobre si mesmo com a verdadeira sabedoria, e desta forma é


feliz: “o sábio reconhecia quem era, onde se situava no universo, e de que modo sua
parcela divina, sua alma racional, poderia transcender a luxúria do corpo e as
ambições ilusórias da vida cotidiana”.250 Esse ponto foi abordado no Prólogo a
Romaniano, no qual é estabelecida a diferença entre o sábio e o homem.
Em Santo Agostinho, a importância da ciência na sua construção
filosófica sobre verdade e a felicidade é estabelecida tanto por uma ciência do
conhecimento dos homens, quanto pelo conhecimento das coisas divinas que
levariam ao “Deus verdadeiro”. Nesse sentido, a sabedoria ocupa um lugar especial,
somente podendo ser alcançada pelo sábio; com isto se sustenta sua importância.
Sendo assim, “a sabedoria passa a ser introduzida na interioridade humana através
da figura do sábio, pois o sábio é aquele que entende e conhece Deus”251.
Agostinho, em seu livro Solilóquios, ratifica o papel do sábio como quem conhece a
verdade, identificado com o “puro” e com a exaltação a Deus:

Deus, que não quiseste que conhecessem a verdade senão os


puros. Deus, Pai da verdade, Pai da sabedoria, Pai da verdade e
suprema vida, Pai da felicidade, Pai do que é bom e belo, Pai da luz
inteligível, pai do nosso desvelo e iluminação. Pai da garantia pela
qual somos aconselhados a retornar a ti252.

Com efeito, o sábio encontra-se ligado à concepção do caráter sagrado,


ou seja, um ser sobre-humano, fundido pela questão da sabedoria253: “tudo o que
ele faz será conforme as prescrições da virtude e da divina lei da sabedoria”, neste
caso, a divina lei inclui Deus”254. Contemplar tanto o mundo como a sabedoria é
filosofar, abrindo-se para uma evolução interior, um conhecimento sobre si. Logo, os
fundamentos da filosofia de Santo Agostinho constituem uma doutrina que se deve
praticar: existir, conhecer e amar 255.

249
C.f. AGOSTINHO, Santo. A Vida feliz, 1993, V, 25.
250
C.f. BROWN, Peter. Santo Agostinho Uma biografia, 2012, p. 48.
251
C.f. SOUZA, José Zacarias. Agostinho Buscador inquieto da verdade, 2001, p. 56.
252
C.f. AGOSTINHO, Santo. Solilóquios, 1998, I, 2.
253
C.f. HADOT, Pierre. O que é Filosofia Antiga, 1999, p. 327.
254
C.f. AGOSTINHO, Santo. A Vida feliz, 1993, V, 25.
255
Idem, Ibidem, V, 328.
65

Ao final deste Primeiro Livro, Agostinho retoma os pontos centrais da


discussão, na qual provou que o homem pode determinar certezas, conseguindo
chegar à verdade através da razão do conhecimento, obtendo a sabedoria que é o
meio para a vida feliz, seguindo a máxima: “conhece-te a ti mesmo e a Deus”256.
Podemos analisar ainda a sabedoria, definida como a ciência das coisas humanas e
divinas, como o primeiro passo para Agostinho afirmar a existência de um Mundo
dos homens, de um Mundo sensível. A superação deste mundo se faz necessária
para acessar o Mundo divino, o qual seria o objeto de seus próximos diálogos e
livros.
Agostinho elogia, ainda, cada um dos contendores, tendo considerado
que a questão foi tratada de maneira suficiente, dando por encerrada a discussão. O
objetivo de Agostinho era exercitar os jovens discípulos no estudo e exortá-los na
busca pela verdade, uma vez que a filosofia faz-se relacionar com perguntas,
enquanto o cotidiano faz-se relacionar com respostas. E tanto interesse eles
mostraram que satisfizeram o mestre, o qual conclui: “Pois desejamos a felicidade.
Quer esta consista em encontrar a verdade, quer em buscá-la diligentemente,
devemos em todo caso, se quisermos ser felizes, fazer passar antes de tudo a
busca da verdade”257.

256
C.f. AGOSTINHO, Santo. Solilóquios, 1998, VIII, 15.
257
C.f. AGOSTINHO, Santo. Contra os Acadêmicos, 2008, I, IX, 24.
66

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta pesquisa propôs uma reflexão sobre a relação entre verdade e


felicidade no livro Contra os Acadêmicos I escrito por Santo Agostinho. A primeira
questão tratada por Agostinho após sua conversão foi se o homem poderia conhecer
a verdade. Buscou devolver ao homem a esperança de poder chegar à verdade, e,
consequentemente, à vida feliz. Sabia que os homens, contando apenas com seus
próprios recursos, seria incapaz de alcançar a certeza perante a filosofia do
ceticismo acadêmico, e assim a comprovação da verdade funda-se como ponto
chave nas etapas de superar o ceticismo acadêmico.
Desta forma, “a contemplação da verdade é, para santo Agostinho, a
condição sine qua non da Beatitude”258. A luta de Agostinho contra o ceticismo é a
luta da filosofia que deseja levar o homem a conhecer a verdade, sendo que esta
conduz ao desligamento dos bens materiais e à conexão com o Eu interior, levando
à sabedoria e a Deus. Em Deus encontra-se a vida feliz, para a qual é
imprescindível manter a virtude. Logo, a luta de Agostinho não é somente pelo
conhecimento, mas pela devolução ao homem da esperança de poder encontrar a
verdade e a felicidade na alma.
Com efeito, é pela razão que o homem obtém o conhecimento, pela razão
que consegue guiar sua vida, logo, buscar conhecer é, antes de tudo, buscar o
objeto cujo encontro apaziguará nosso apetite de conhecer e, por isso, estabelecerá
nosso estado de beatitude259. Nesse sentido, a definição de Agostinho contradiz os
argumentos dos Acadêmicos, pois não existe como ter razão quando não se chega
a obter conhecimentos. Ora, “a filosofia é produto da razão e, enquanto tal, é uma
dedicação até a felicidade, permitindo descobrir uma verdade. Então podemos ver a
filosofia como um questionamento do homem à procura da vida feliz, da
beatitude”260.
Salientamos que, para o pensamento agostiniano, a beatitude implica “o
conhecimento da verdade como condição essencial, mas a verdade só persegue a
beatitude porque apenas ela é beatificadora e somente no tanto que ela é”261. Desta
forma, a verdade é um conhecimento permanente, ou seja, eterno, que leva ao

258
C.f. GILSON, Étienne. Introdução ao estudo de Santo Agostinho, 2006, p. 25.
259
C.f. BOYER, Charles. L’idée de Vérité Dans La Philosophie de Saint Augustin, 1939, p. 224
260
C.f. SOUZA, José Zacarias. Agostinho Buscador inquieto da verdade, 2001, p. 38.
261
C.f. GILSON, Étienne. Introdução ao estudo de Santo Agostinho, 2006, p. 18.
67

caminho da sabedoria. Neste caso, quem poderia conter este predicado seria
somente o “Deus verdadeiro”, pois a verdade é um meio, não o fim.
O sistema filosófico do ceticismo acadêmico estava baseado no
argumento de que a certeza é impossível e, desta forma, devemos suspender nosso
juízo sobre as coisas, pois todo o conhecimento está ligado à percepção sensível, e
os sentidos são variáveis, fornecendo dados imprecisos, não podendo encontrar
bases para a certeza. Estas definições impedem Agostinho de avançar com seus
pensamentos sobre o “Deus verdadeiro”. Desta forma, a doutrina agostiniana tem
em seu fundamento princípios contrários aos preconizados pelos Acadêmicos, os
quais justificavam que a busca pela verdade já bastava para ser feliz.
Ainda que algumas questões que foram tratadas na pesquisa não tenham
sido apresentadas de modo explícito no primeiro livro, elas estão subjacentes às
discussões travadas pelos dois jovens discípulos de Agostinho. Procuramos, pois,
na medida do possível, fazê-las emergir do texto, questões que se desdobraram em
outras indagações filosóficas, evocando aspectos do pensamento agostiniano no
que se refere à verdade, à felicidade, ao erro e à sabedoria.
Analisando o posicionamento dos Novos Acadêmicos, Agostinho se
admira que filósofos tão ilustres possam conceber um sistema que se demonstra
claramente insustentável. Um filósofo cético, se questionado sobre um determinado
assunto, responderia: “Ninguém sabe, e ninguém poderá jamais saber”262, mas,
como salienta Reale, “sobre o credo do nada, nada se sustenta”263. Desta forma, a
base do ceticismo torna-se vulnerável, pela negação de poder conhecer. “Não se
pode evitar pronunciar-se sobre as coisas da vida prática, e recusar-se a decidir
ainda seria decidir”264. A evidência de determinadas percepções comporta
naturalmente o assentimento e, sem esses assentimentos toda a memória e
experiência de vida estariam comprometidas:

O cético, com a sua dúvida sobre as nossas representações (isto é,


sobre o critério da verdade), inverte aquilo sobre o qual se apoia a
existência humana. De um lado, negado o valor da representação,
fica comprometido também o valor da memória e da experiência (que
dependem das representações) e, portanto, fica comprometida a
própria possibilidade das diferentes artes (que nascem da memória e

262
C.f. BROCHARD, Victor. Os Céticos Gregos, 2009, p. 121.
263
C.f. REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. V.3. Os Sistemas da era helenística. 1994, p.
436.
264
C.f. BROCHARD, Victor. Os Céticos GregosI, 2009, p. 121.
68

da experiência). De outro lado, negado o valor do critério, desmorona


qualquer possibilidade de determinar o que é o bem, desaba a
possibilidade de estabelecer o que é a virtude e, portanto, cai a
possibilidade de fundar uma autêntica vida moral. Sem uma firme
certeza e uma sólida convicção sobre o fim da vida humana e sobre
as tarefas essenciais a cumprir, o empenho moral torna-se vão265.

Ao se voltar contra o ceticismo, Agostinho apoiou-se nas argumentações


da própria doutrina dos Acadêmicos, a qual afirmava que “quando assentimos,
corremos o risco de assentir alguma coisa que também pode ser falsa” 266, logo, o
assentimento é uma opinião sobre algo, nunca uma certeza ou verdade, não
existindo uma representação compreensível, visto que o assentimento se faz sobre
a compreensão da representação e propõe que não existe verdade, mas opiniões.
Os acadêmicos consideram, ainda, que não se deve procurar a verdade nos
sentidos, pois os mesmos só apresentam como as coisas aparecem ao homem, sem
estabelecer relações do que são e como são; seguindo este princípio, os sentidos
não levam à falsidade. Ora, sabemos que os Acadêmicos não estabelecem nenhum
assentimento e juízo, argumentando que tudo é baseado em sensações. Para
Agostinho, a sensação unicamente analisada como sensação não seria falsa, desta
forma, não devemos duvidar da importância da percepção, estando o erro em
basear o conhecimento da verdade nos sentidos.
O modo de vida do cético “é uma escolha de vida filosófica de um modo
de vida não-filosófico”267. O cético conduz a vida por semelhanças, ponderando que
poderá ser feliz somente no ato de buscar a verdade. Na busca da comprovação da
certeza, a própria escolha da palavra “provável” utilizada pelos Acadêmicos insinua
uma intenção.
[...] se entre as representações verdadeiras e as falsas não é
possível operar uma distinção, elas carecem de uma diferença
especifica, e não será nem mesmo possível estabelecer qual é a
representação proxíma do verdadeiro ou menos distante dele.
Portanto, para salvar o provável, será preciso reintroduzir o
verdadeiro porque, para estabelecer se uma coisa é mais ou menos
próxima ou distante do verdadeiro, é preciso saber o que é o
verdadeiro268.

265
C.f. REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. V.3. Os Sistemas da era helenística, 1994, p.
451.
266
Idem, Ibidem, p. 422.
267
C.f. HADOT, Pierre. O que é Filosofia Antiga, 1999, p. 212.
268
Idem, Ibidem, p. 452.
69

Seguindo esta forma de raciocínio, a indagação sobre o que é semelhante


à verdade (falso), já leva a pensar que existe uma verdade. Assim, ao duvidar da
própria existência, a dúvida já é baseada em alguma certeza, logo, qualquer pessoa
que duvida da existência da verdade, tem em si uma coisa verdadeira. O ato de
duvidar já pressupõe a certeza de estar em dúvida.
Utilizando uma argumentação posterior, tendo como princípio a análise
de uma afirmação para verificar se ela é verdadeira ou falsa - Princípio da Bivalência
-, e aproveitando a definição de Zenão, segundo a qual “o que aparece pode ser
apreendido se aparecer de modo a que não possa parecer uma falsidade”269,
Agostinho deseja saber se esta última estabelece-se como verdadeira ou falsa, e
qualquer que seja a resposta, a definição existe, determinando algo como certo, isto
é, sabemos algo. Assim, ele apresenta como certeza a existência do pensamento,
sendo a primeira prova que não poderia ser negada, mesmo quando o pensamento
estiver no erro. Com efeito, se eu estiver errado, por estar errado, eu sou; quem não
é, não pode confundir-se, e é por isso que eu sou, se eu estiver errando. Para errar
preciso existir.
O exemplo mais inovador e significativo de algo que afirma que podemos
conhecer é aquilo que cada um de nós exprime individualmente ao declarar ‘eu
existo’; desta forma, estabelece-se uma ligação na qual sabe-se que o homem
existe, o fato da sua existência aparecendo como verdade de uma forma irrefutável
que não poderia ser enganadora, nem mesmo para os Acadêmicos.
Diante do Cogito, “eu penso”, Agostinho faz desmoronar toda a filosofia
dos acadêmicos e abre caminho para poder chegar a Deus, e finalmente prosseguir
com sua filosofia270. Agostinho consegue, no Contra os Acadêmicos, pela
descoberta do mundo inteligível, o abandono da incerteza, que era sustentada pela
afirmação do conhecimento baseado somente nos sentidos271. Agostinho abraça a
dúvida na construção do seu pensamento, percebendo-a até mesmo em alguns
julgamentos imediatos, estabelecidos em toda sua vida: eu sou, eu acho, eu duvido.

269
MATTHEWS. Gareth. Santo Agostinho, 2008, p. 35.
270
SOUZA NETO, Francisco Benjamim. Tempo e Memória no pensamento de Agostinho. In:
PALACIOS, Pelayo Moreno (Org.). Tempo e razão. 1600 anos das Confissões de Agostinho. São
Paulo: Loyola, 2002, p. 12.
271
C.f. BOYER, Charles. L’idée de Vérité Dans La Philosophie de Saint Augustin, 1934, p. 54.
70

Dessa maneira, abala os fundamentos dos céticos Acadêmicos baseando-se em sua


própria doutrina de duvidar272.
A certeza inicial que livrou Agostinho da dúvida dos Acadêmicos foi
produzida pelo conhecimento formulado pela razão. Na existência do ser, uma
afirmação que é verdadeira ou falsa, independentemente da resposta, é uma
afirmação de algo que existe.
O Homem, não conseguindo alcançar a verdade, deveria seguir o
provável; este posicionamento dos Acadêmicos traz um problema para o sábio, que,
sendo sábio, não poderia dar seu assentimento a nada, mantendo-se num estado de
suspensão. Sobre as afirmações do sábio Acadêmico, que se baseia na definição de
Zenão, negando o assentimento a todas as coisas, não formulando verdades,
Agostinho argumenta que só o sábio é feliz, que o sábio deve ser perfeito, mas
quem busca a verdade não pode ser perfeito, sendo assim, quem procura a verdade
não pode ser feliz. O sábio Acadêmico não concedendo seu assentimento, não
encontra a verdade, logo, não é sábio, e tampouco feliz. Por conseguinte, Agostinho
mesmo salienta a diferença entre o homem e o sábio, e a importância que o último
atribui a isso, pois o homem em direção ao porto é aquele que procura a verdade e
não é ainda feliz, enquanto o sábio possui a verdade já estando em terra firme.
Analisando o discurso sobre o sábio do ponto de vista agostiniano e de
sua teoria do porto da sabedoria apresentada no Prólogo a Romaniano,
estabelecemos uma relação entre o filósofo, o sábio e a sabedoria, adotando o
seguinte raciocínio: o filósofo busca uma vida examinada pela razão e na reflexão
sobre verdade, logo, segue em direção ao porto, superando as incertezas, o orgulho,
os rochedos. Chegando ao porto da sabedoria, no encontro com a verdade, ainda
precisa ir à terra firme para desfrutar da sabedoria. Em terra firme, transforma-se em
sábio, desfruta da plenitude em sua alma, e, conhecendo a sabedoria, torna-se feliz.
Nesse sentido, a sabedoria ocupa um lugar especial na filosofia de
Agostinho, somente podendo ser alcançada pelo sábio, pois, como analisamos, a
sabedoria estaria atrelada a Deus, e, automaticamente, a vida feliz seria Deus. Isto
afirma a importância do sábio, pois a sabedoria passa a ser introduzida na
interioridade humana através da sua figura, na medida em que ele é aquele que

272
C.f. BOYER, Charles. L’idée de Vérité Dans La Philosophie de Saint Augustin, 1934, p. 293.
71

entende e conhece Deus. Com efeito, o laço que liga a contemplação do mundo e o
sábio encontra-se na concepção do caráter sagrado.
Podemos analisar, ainda, a definição da sabedoria como a ciência das
coisas humanas e divinas como o primeiro passo para Agostinho definir a existência
de um Mundo dos homens, Mundo sensível. Logo, a superação deste mundo é
importante para acessar o Mundo divino. Este assunto Agostinho trata em seus
próximos diálogos e livros.
Ao final deste Primeiro Livro Agostinho conclui: “pois desejamos a
felicidade. Quer esta consista em encontrar a verdade, quer em buscá-la
diligentemente, devemos em todo caso, se quisermos ser felizes, fazer passar antes
de tudo a busca da verdade”273.
A superação do ceticismo foi um passo decisivo na evolução da filosofia
de Agostinho, o qual necessitava de discípulos bem treinados para disseminar seus
fundamentos. Como analisamos no Prólogo a Romaniano, para o filósofo, precisam
ser superados os bens materiais que trazem somente a infelicidade. Agostinho
entende que o homem que ama algo que pode perder, viveria temendo, perturbado
para sempre, eternamente. A busca pela felicidade está no que é permanente,
independentemente do acaso e da fortuna, ou seja, a verdadeira felicidade está no
que é eterno, neste caso, em Deus. Comprovar que o homem pode alcançar a
verdade é, acima de tudo, para Agostinho, comprovar que Deus existe.
Santo Agostinho viveu seus dias em busca permanente de respostas para
uma vida feliz. A questão da felicidade constitui algo a ser solucionado que motivou
todo o seu pensamento filosófico e suas experiências de vida se tornaram rico
material que deram origem aos seus escritos. Deste modo, ao acompanharmos a
saga de Agostinho, o que vemos é um homem em constante transformação, tanto
no que concerne ao campo intelectual quanto ao campo moral: da condição de leitor
de Cícero na juventude até a condição de Bispo interessado pelo neoplatonismo,
almejando o bem que, satisfazendo o seu desejo, traria a paz ao seu coração.
Superou o materialismo, a escravidão do prazer corpóreo, descobriu que a verdade
está na busca do homem em seu interior, deparou-se com o fato de que a riqueza
torna o homem insensato, afirmando, depois, que o homem que deseja viver feliz
deve viver segundo a razão, não segundo a riqueza.

273
C.f. AGOSTINHO, Santo. Contra os Acadêmicos, 2008, I, IX, 24.
72

Sobre a pergunta inicial: acerca da possibilidade de viver de modo feliz


somente procurando a verdade, sem encontrá-la o que Agostinho apresenta neste
seu diálogo coloca que a verdade é o ponto inicial na busca da felicidade e do “Deus
verdadeiro”. O caminho é a filosofia, levado o homem a conhecer a verdade, a qual
conduz ao desligamento dos bens materiais e à conexão com o Eu interior, levando
à sabedoria e a Deus. Em Deus, encontra-se a vida feliz, para a qual é
imprescindível manter a virtude. Com efeito, a tomada de consciência do homem
sobre si mesmo leva ao conhecimento de sua existência. Não é a busca externa que
o guia ao encontro da verdade e felicidade, mas a descoberta sobre si mesmo e
sobre o outro, e, nesta descoberta, transforma-se em sábio.
Esperamos e acreditamos que esta pesquisa tenha atingido os seus fins
propostos. Logo:

Devemos ter cuidado, porque as palavras não são capazes de dizer


aquilo que verdadeiramente deveriam dizer. A filosofia quer dizer a
verdade. A filosofia quer atingir e exprimir a verdade no seu sentido
mais venerado. A filosofia quer conhecer e enunciar o bem supremo.
Porém, para fazê-lo dispõe apenas de uma linguagem finita, humana,
uma linguagem que é pequena diante da grandeza de seus
propósitos. Por isso, é preciso ter cuidado com as palavras, porque
elas podem conter uma pretensão vã, podem parecer dizer algo, do
qual estão demasiado distantes274.

A dificuldade inerente à linguagem não pode ser base para o ceticismo. Com
efeito, nem deve ser elemento que se impeça dizer a verdade, logo, o desafio da
filosofia “não é aplainar o terreno, mas sim assinalar com nitidez os acidentes, as
dificuldades, os desafios. Cabe ao filósofo, se busca a sabedoria, fazer com que os
problemas aflorem, e não compor uma doutrina apaziguadora” 275.

274
C.f. PALACIOS, Pelayo Moreno (Org.). Tempo e razão. 1600 anos das Confissões de Agostinho,
2002, p. 33.
275
NOVAES, Moacyr. Linguagem e Verdade nas Confissões In: PALACIOS, Pelayo Moreno (Org.).
Tempo e razão. 1600 anos das Confissões de Agostinho, 2002, p. 43.
73

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