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Ò à E D IT O R A

▼ VOZES
PAULUS

2002
CONSULTORES CIENTÍFICOS
Jean GRIBOMONT, Vittorino GROSSI, Adalbert HAMMAN, Tito ORLANDI,
Man Ho SIMONETTI, Paolo SINISCALCO, Basil STUDER, Pasquale TESTINI,
Achille TRIACCA, Sever J. VOICU.

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


___________________(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)___________________
Dicionário patrístico e de antigüidades cristãs / Tradução de Cristina Andrade ; organizado por
Angelo Di Berardino. - Petrópolis, RJ : Vozes, 2002.

ISBN 85.326.1294-6
1. Antigüidades cristãs - Dicionários 2. Igreja - História - Igreja primitiva - Dicionários
3. Padres da Igreja primitiva - Dicionários
94-3055 CDD-270.03

índices para catálogo sistem ático:


1. Cristianismo : História da Igreja : Dicionários 270.03
2. Dicionário patrístico : Cristianismo 270.03
ORÍGENES

culto). Também no rito fúnebre não poucas vezes o nio Saccas, o pai do neoplatonismo. Devota-se então a
Oriente exercia um papel importante para indicar a úl­ uma vida extremamente austera e, tomando ao pé da
tima posição que o cristão devia tomar, seja moribun­ letra o passo de Mt 19,12, se mutila. Tendo obtido
do, seja como cadáver. Nos primeiros séculos, a grande êxito no ensino, confia a Héraclas a catequese
significação deste gesto estava ligada à expectativa es- propriamente dita, reservando para si os alunos mais
catológica {Ml 24,27; Doctr. Addai 2,1); mas aos pou­ desejosos de progredir e os contatos com heréticos e
cos a oração voltada para o Oriente foi posta em pagãos. Chegado aos trinta anos de idade, começa a
relação com o tema paradisíaco, segundo a narrativa escrever, estimulado a isto por Ambrósio, um homem
do Gênesis, que colocava a antiga pátria Uo Oriente rico de Alexandria, que da heresia valentiniana fora
{Gn 2,8); conforme o Apocalipse de Moisés (cap. 29), por ele reconduzido à ortodoxia. Ambrósio fora atraí­
Adão retornava com frequência à fronteira barrada do do pela gnose, enquanto não encontrava na Grande
paraíso terrestre para suplicar perdão. O cristão, como Igreja o alimento intelectual que desejava. Convertido
o progenitor Adão, deseja retornar à pátria perdida e, por O., Ambrósio induzirá seu mestre a produzir aqui­
por isto, como ele, volta-se na oração particular para o lo que lhe faltara e porá à sua disposição meios consi­
Oriente (Greg. Niss., De Or. Domin.: PG 44, 1184D). deráveis para poder trabalhar. Durante este primeiro
No século seguinte, em Roma, Leão M. considera este período, tendo morada habitual em Alexandria, O. fez
gesto da oração cristã como superstição, como uma muitas viagens: a Roma, onde parece ter ouvido uma
herança do paganismo (Serm. 22,6; 27,4). pregação de Hipólito; a Cesaréia da Palestina, onde o
DACL 12, 1610-1657 (Orient-Occident); 12, 2658­ bispo Teoctisto, como Alexandre de Jerusalém, lhe dá
2665 (Orientales); 12, 2665-2669 (Orientation); J. o encargo de pregar, apesar de leigo, provocando um
Daniélou, Bible et liturgie, Paris 1951; C. Vogei, L ’o­ protesto de Demétrio; à Arábia Romana (Jordânia),
rientation vers Vest da célébrant et des fidèles pen­ chamado pelo governador; enfim, a Antioquia, condu­
dant la célébration eucharistique: Or Syr 9 (1964) zido, com escolta militar, por Júlia Maméia, mãe do
3-37; Id., Sol aequinoctialis. Problèmes et techniques imperador Alexandre Severo, que desejava conhecer o
de r orientation dans le culte chrétien: RSR 36 (1962)
cristianismo.
175-211; M.J. Moreton, Eis anatolas blepsate: Orien­
tation as Liturgical Principie: SP 17, Oxford 1982, Por volta de 231, O. é convidado pelos bispos da
575-590. Acaia (Grécia) a ir a Atenas discutir com grupos de
G. Ladocsi heréticos. Durante a viagem, passa por Cesaréia da
Palestina, onde Teoctisto e Alexandre o ordenam sa­
ORÍGENES cerdote. De volta a Alexandria, Demétrio, irritado por
í. Vida - II. Obras - III. Cunho do pensamento de O. esta ordenação feita sem o requisito de sua aprovação,
- IV. O exegeta - V. O homem espiritual - VI. O teó­ reuniu um concílio de bispos e de sacerdotes que o
logo especulativo. exila do Egito; depois Demétrio, sustentado por al­
guns bispos, o declara suspenso de ordens. O., senti­
0 . é, junto com Cipriano, o autor pré-niceno do do, retira-se para Cesaréia, onde é bem acolhido pelos
qual possuímos o maior número de dados biográficos: amigos palestinenses e onde, como em muitas outras
escassos em suas obras, abundantes ao contrário no li­ províncias do Oriente, não se dá nenhuma importância
vro VI da História Eclesiástica de Eusébio; a estes de­ à sentença de Demétrio. O. volta a ensinai' e nós co­
vemos acrescentar as notícias dadas por Jerônimo e nhecemos, pelo Discurso de agradecimento, que lhe
por Fócio, provenientes de obras perdidas de Eusébio. dirige um aluno - aluno que, não obstante recentes
Suas relações com os alunos e os programas de seu contestações, persistimos em identificar com Gregório
ensino estão descritos no Discurso de Agradecimento o Taumaturgo (cf. Gregorianum 60 [1979] 287-320 -
de Gregório o Taumaturgo a O. as informações referentes a seu ensino naquela cidade:
1. Vida. O., cognominado Adamâncio, o homem um tipo de escola que é mais uma espécie de curso de
de aço, ou de diamante, nasceu verossimilmente em estudo “missionário” para jovens pagãos simpatizan­
Alexandria, de uma família cristã. Recebeu do pai tes, dado com a intenção de apresentar a versão cristã
Leônides uma educação particularmente profunda, dos problemas filosóficos, sem apresentar ainda a
grega e bíblica. Mas quando, em 202, Leônidas sofreu doutrina propriamente cristã. O. prega com freqüência
o martírio durante a perseguição de Septímio Severo, e possuímos numerosas homilias. Sua atividade literá­
os bens da família foram confiscados. Alguns meses ria continua considerável, pois Ambrósio foi encon­
depois, O. abriu uma escola de gramática (isto é, de li­ trar-se com ele em Cesaréia, com estenógrafos e
teratura) para poder manter a mãe e seis irmãos meno­ copistas. Viaja muito: a Atenas, onde inicia o Comen­
res; em seguida, o bispo Demétrio lhe confiou a tário ao Cântico; à Arábia (Jordânia) onde, durante
formação dos catecúmenos, enquanto continuava a um sínodo, reconduz à ortodoxia o bispo Berilo de
perseguição, com as intervenções dos prefeitos do Bostra e discute com um grupo de cristãos que afirma­
Egito. Por algum tempo assumiu este duplo ensino; vam que a alma morre com o coipo e ressuscita com
depois, quando a família provavelmente não precisou ele; a Nicomédia, onde dita a carta a Júlio Africano; à
mais de seu auxílio, deixou de ensinar a cultura profa­ Capadócia, chamado pelo bispo Firmiliano. Talvez
na para dedicar-se inteiramente à catequese. Impelido justamente na Arábia se realiza o pequeno concílio
pelo radicalismo que caracterizou sua juventude, ven­ reunido em volta do bispo Heráclides; deste concílio,
de então os manuscritos em seu poder por uma soma em 1941, foram descobertas as atas em Tura, no Egi­
muito pequena, e este gesto parece indicar uma renún­ to. A perseguição de Décio, em 250, põe bruscamente
cia a tudo o que não fosse conhecimento de Deus; mas fim a esta atividade caudalosa e multiforme; preso e
as exigências apostólicas obrigaram-no a retomar torturado, O. proclama corajosamente a própria fé.
àquilo que havia abandonado, e, para aprofundar seus Não se deseja sua morte, mas sua apostasia, cujo efei­
conhecimentos filosóficos, segue os cursos de Amó­ to seria notável, do momento em que ele é, entre os

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ORÍGENES

cristãos de sua época, a figura mais relevante. A morte ensaio de reflexão teológica que a religião cristã pos­
do imperador o reconduz à liberdade no decurso de al­ sui, e que recebe seu impulso da regra de fé, apoian­
guns meses, mas com a saúde arruinada. Morre pouco do-se na Escritura e na razão; chegou até nós por
depois, aos sessenta e nove anos completos, provavel­ inteiro somente na tradução latina de Rufino; uma sé­
mente em 254. Seu túmulo era ainda visível em Tiro, tima parte dela nos foi conservada em grego na Filo­
no séc. XIII, na igreja dita do Santo Sepulcro. calia e alguns fragmentos são citados por Jerônimo,
Justiniano e outros autores. As outras obras nos che­
II. O bras. O. é provavelmente o autor mais fe­ garam em grego: o De oratione {Peri Euchés) com um
cundo da Antigüidade, tanto pagã quanto cristã: o comentário do Pai-Nosso; a Exhortatio ad martyrium,
elenco de suas obras, transmitido por Jerônimo na car­ endereçada a Ambrósio em perigo de ser preso duran­
ta 33 a Paula, embora incompleto, é surpreendente. te a perseguição de Maximino o Trácio; a Disputa
Em sua Hexapla transcreveu todo o texto do AT em com Heráclides, encontrada em Tura (cf. acima); o
seis colunas: o hebraico, em caracteres hebraicos e em Contra Celsum, confutação, em oito livros, dos ata­
caracteres gregos; as quatro versões gregas de Áquila, ques do filósofo Celso, expressos no Discurso verda­
de Símaco, dos Setenta e de Teodocião; para alguns li­ deiro contra o cristianismo: é a obra apologética mais
vros dispunha de versões suplementares, chamadas importante da antigüidade cristã. Chegaram até nós
Quinta, Sexta, Sétima. Com certos sinais gráficos, ti­ fragmentos, gregos e latinos, de outras obras perdidas,
rados dos gramáticos alexandrinos, representava os como o De resurrectione e os Stromata. Da volumosa
acréscimos e as lacunas de cada texto. Grande parte da correspondência de O. existem duas cartas completas,
Bíblia também foi por ele comentada com diferentes uma a Júlio Africano, a outra a Gregório o Taumatur­
métodos. De seus comentários eruditos existem, em go, e fragmentos de algumas outras.
grego, nove livros sobre João e oito sobre Mateus; na
versão latina de Rufino, dez livros sobre a Epístola A maior parte da imensa obra de O. não fugiu da
aos Romanos e quatro sobre o Cântico dos Cânticos; usura do tempo e da violência persecutória do impera­
um tradutor anônimo transmitiu, em latim, toda a se­ dor Justiniano. Aquilo que nos resta tem uma ampli­
gunda metade do Comentário a Mateus. Foram con­ dão ainda considerável, mas a maior parte consiste
servadas numerosas homilias, cerca de trezentas: na apenas em traduções latinas e em fragmentos: isto le­
língua grega, sobre Jeremias e sobre Saul em casa da vanta importantes problemas críticos, já que os tradu­
nigromante; na versão latina de Rufino, sobre o Gêne­ tores latinos Rufino e Jerônimo, mais do que traduzir,
sis, o Êxodo, o Levítico, os Números, Josué, os Juízes, parafrasearam e com suas traduções procuraram tor­
o nascimento de Samuel, os Salmos 36, 37 e 38; na nar os textos adaptados ao ambiente latino; os frag­
versão latina de Jerônimo, sobre Isaías, Jeremias, Eze- mentos das Cadeias muitas vezes consistem em
quiel, o Cântico dos Cânticos, Lucas, e ainda homilias resumos feitos pelos catenistas que tentavam conser­
sobre diversos Salmos, que até hoje são atribuídas ao vai* as idéias principais. O resultado deste processo
próprio Jerônimo, mas delas Jerônimo foi apenas o certamente não foi satisfatório, sobretudo para o De
tradutor. O. ainda escreveu muitos Scholia: breves no­ principiiSy pois, de um lado Rufino, do outro Jerônimo
tas exegéticas de passos escriturísticos; estes Scholia ou Justiniano traduziram ou escolheram passos segun­
foram muitas vezes recolhidos em coleções. Hoje são do as opostas posições que assumiram na disputa ori-
muito difíceis de ser classificados, na massa dos nu­ genista; até os textos conservados na Filocalia
merosíssimos fragmentos breves ou longos, prove­ sofreram alguns cortes.
nientes de comentários ou de homilias perdidas: estes
fragmentos nos chegaram de três modos. Possuímos III. Cunho do pensamento de O. Veremos mais
duas coleções de trechos seletos: a Apologia em favor adiante as acusações, na maioria infundadas, de que
de Orígenes, em seis livros, dos quais só existe o pri­ foi objeto o pensamento de O., depois de sua morte.
meiro, em tradução latina de Rufino; composta pelo Seus acusadores, porém, têm desculpas. Antes do
mártir Pânfilo de Cesaréia, com o auxílio do historia­ mais, a mentalidade histórica que procura repor um
dor Eusébio, a obra defende O. das acusações de que escritor em sua época é uma aquisição relativamente
era alvo nos anos entre os sécs. III e IV, citando mui­ recente e não se pode dizer, ainda hoje, que esteja as­
tos de seus textos, na maioria não citados em nenhum sim tão espalhada entre os teólogos; da mesma forma,
outro documento; a Filocalia de Orígenes, chegada a a idéia de um desenvolvimento do dogma, ou melhor,
nós em grego: trechos recolhidos por Gregório de Na- da consciência que a Igreja toma da revelação. Sobre­
zianzo e Basílio de Cesaréia, por um motivo velada- tudo, porém, o próprio O. nunca se preocupou com
mente apologético. Encontram-se depois numerosos “definir” com clareza seu pensamento teológico. De­
fragmentos atribuídos a O. nas Cadeias exegéticas, pende ele muito do texto bíblico que comenta e segue-
compilações de interpretações patrísticas concernentes o passo a passo, sem preocupar-se de contrabalançá-lo
a um livro da Escritura, que termina por ser comenta­ com as afirmações complementares que se encontra­
do versículo por versículo. Enfim, O. é muito frequen­ rão em outro lugar na interpretação de um outro texto.
temente citado por autores posteriores que o acusam Nas teorizações contidas no De Principiisy acontece-
ou o defendem. Temos também de recordar que os co­ lhe muitas vezes examinar duas ou até três soluções
mentários de Jerônimo às cartas paulinas Gl, E f Tt e diferentes, que tenta desenvolver em toda a sua evi­
Fm se inspiram muito de perto, por declaração do pró­ dência, deixando muitas vezes a conclusão para o lei­
prio autor, nos correspondentes comentários de O., tor. Por este motivo, deve ser estudado, tendo presente
que se perderam, salvo alguns fragmentos. o conjunto de sua obra, pelo menos daquela parte que
nos resta; ver-se-á então que os diferentes trechos se
Um segundo grupo de obras, embora não declara­ equilibram, compondo uma teologia cheia de tensões
damente exegéticas, dedicam amplo espaço à Escritu­ e de nuanças, que geralmente se revela ortodoxa. Não
ra. O De Principiis, ou Peri Archôn, fonte de pós­ se deve nunca julgá-lo por um texto isolado, porque
tumas acusações contra o Alexandrino, é o primeiro este só expressa um aspecto parcial que, tomado isola­

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ORÍGENES

damente, é unilateral e, portanto, heterodoxo. Ao con­ muito mais na historicidade dos trechos escriturísticos
trário, seus detratores, a partir do séc. IV, não tiveram do que o mais conservador dos exegetas contemporâ­
nem tempo nem a paciência e nem mesmo a vontade neos; bem o mostra sua defesa da historicidade da
de estudá-lo deste modo. A necessidade de “definir”, arca de Noé contra as objeções do marcionita Apeles
que aparece nos numerosos concílios suscitados pela que, com razão, afirmava que as dimensões indicadas
crise ariana entre Nicéia e Constantinopla, com suas não permitiam acolher tão grande número de animais
várias fórmulas de fé, nascia por um lado da influên­ (Hom. Gen. II, 2; C. Cels. IV, 31). No concernente a
cia do direito romano que, desde a época constantinia- alguns acontecimentos do NT, como a teofania do ba­
na, assimilava sempre mais a regra de fé com a lei tismo de Jesus, a tentação de Jesus, etc., ele vê justa­
civil; do outro lado, pela necessidade de enunciar, mente neles uma expressão sensível dada a uma visão
diante dos heréticos, a doutrina da forma mais clara e espiritual.
completa possível, para não deixar ao adversário ne­
nhuma escapatória. A mentalidade que daí advinha Mas se é para nós, cristãos, que a Escritura, inclu­
sive o AT, foi composta (ICor 10,11), o Espírito San­
criava as condições mais infelizes para entender e jul­
to não o fez somente em função do significado literal;
gar eqüitativamente O. Temos também de assinalar
se assim fosse, de fato, as prescrições jurídicas e ceri­
outro ponto essencial: O., em toda a sua obra, é ao
moniais da antiga aliança abolidas por Cristo deve­
mesmo tempo um exegeta, um homem espiritual e um
riam ser supressas da Bíblia, e da mesma forma
teólogo especulativo. É impossível compreender sua
também as narrativas que, na perspectiva pastoral em
exegese e sua especulação, se se esquece de que estas
que O. se coloca, somente interessam pelo ensinamen­
nascem de um homem espiritual, já que a preeminên­
to que delas se pode tirar. A significação querida pelo
cia do elemento espiritual as informa, como acontece Espírito é a espiritual, que O. encontra no NT e na tra­
também com a cosmologia do De principiis. E reci­ dição anterior, mas da qual é ele o grande teórico. O
procamente: sua espiritualidade e sua teologia são as AT é revelação somente na medida em que, em seu
de um exegeta; ele fez a teologia de sua exegese e de conjunto, é profecia de Cristo, e a exegese deve mos­
sua espiritualidade. Muitas deformações da crítica trar que Cristo é sua chave. Quanto à exegese do NT,
moderna em torno de seu pensamento nascem da ig­ ela aplica a todo cristão o que se diz de Cristo, e mos­
norância deste elemento espiritual. Além disto, O. co­ tra, nas ações de Cristo, a profecia e a posse antecipa­
nhece muito bem a filosofia e a ciência de seu tempo e da dos bens escatológicos. A primeira vinda de Cristo
as ensina, como vemos no programa ilustrado pelo é contemporaneamente a profecia da segunda vinda:
Taumaturgo. Ele, porém, não é um filósofo: utiliza a entre o “evangelho temporal” como é vivido aqui na
filosofia como teólogo. Quanto à ciência, esta lhe ser­ terra e o “evangelho eterno” (Ap 14,16) da bem-aven­
ve para a explicação do significado literal da Escritu­ turança, a diferença não está na DTEoaxacTtç, na subs­
ra; igual consideração no que concerne à filologia, que tância, já que não existe senão um só evangelho, mas
ele conhece através de sua cultura alexandrina. na 87iivota, na maneira humana de considerar as coi­
IV. O exegeta. O. é, antes de tudo, junto com Je- sas, pois nós somente vemos “através de um espelho,
rônimo, o maior exegeta crítico (a Hexapla) e o maior em enigma”, aquilo que veremos, ao contrário, “face a
exegeta literal da Antigüidade. Possui uma curiosida­ face; todavia, já possuímos aqui embaixo os “verda­
de inesgotável pelas diferentes lições que encontra nos deiros bens” e todo o sacramentalismo que caracteriza
manuscritos, seja do NT, seja do AT, e as assinala em o tempo da Igreja se encontra em germe nesta distinção.
seus comentários e até nas homilias; mas, para ele,
Malgrado as incompreensões que encontrará a
como para todos os Padres que precederam Jerônimo, partir do séc. XVI, este tipo de exegese é essencial ao
o texto grego prevalece sobre o hebraico, porque foi dogma cristão, já que, se a revelação é o Cristo, o AT
este que os apóstolos deram à Igreja. O significado li­ não é em seu conjunto revelação, se em seu conjunto
teral é sempre por ele explicado cuidadosamente, com não fala de Cristo. Pode-se, por certo, censurar à exe­
o auxílio da filologia e de todas as disciplinas de seu gese de O. o fato de não levar bastante em conta o au­
tempo, servindo-se do conhecimento dos costumes e tor humano, na persuasão de que o Espírito Santo é o
das exegeses hebraicas, que ele cultiva, mantendo re­ autor da Escritura, e, se a exegese da Escritura deve
lações com alguns rabinos. Com freqüência escandali­ ser digna de Deus, de procurar um significado para
zamo-nos com a afirmação feita no De principiis IV, cada pormenor, donde resulta com freqüência um
2,5, de que alguns textos não têm um sentido literal modo arbitrário de proceder, compensado pela beleza
válido. Mas o sentido literal para O. indica o significa­ e pela riqueza espiritual de muitas de suas exposições.
do material da letra e não, como para nós, contempo­ Mas, em volta do esquema que expusemos, entrela­
râneos, o significado que o autor sacro quis expressar; çam-se muitas influências, bíblicas, rabínicas, filonia-
por conseguinte, quando a Bíblia fala numa lingua­ nas, helénicas, gnósticas, etc., que dão à exegese
gem figurada, e isto é freqüente, esta não tem, segun­ origeniana um cunho extremamente complexo. As
do a concepção de O., um significado literal válido. Se tentativas de classificação não faltaram. Em primeiro
examinarmos os casos deste gênero que encontramos lugar, a teoria do tríplice significado, que remonta ao
nas Homilias sobre o Hexateuco, veremos que estes próprio O. (De Principiis IV, 2,4); para este, os signi­
nascem seja de erros de interpretação da versão dos ficados correspondem às divisões de sua antropologia
Setenta que, como dissemos, é, para todos os Padres tricotômica: significado corpóreo ou literal, significa­
anteriores a Jerônimo, o texto da Igreja, com exclusão do psíquico ou moral, e significado espiritual ou mís­
do texto hebraico, mesmo quando conhecido; seja tico. H. de Lubac (Exégèse Médiévale 1/1, 198-211)
pelo fato de que, em casos relativamente raros, O. não faz remontar à praxe de O. a doutrina do quádruplo
consegue situar-se no contexto literal ou literário, psi­ significado que será enunciada pela primeira vez por
cológico ou histórico. Mas tal contestação da história Cassiano: significado literal, significado alegórico,
se dá sobre particulares de pouca importância e O. crê que consiste na afirmação de Cristo como centro da

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ORÍGENES

História, significado tropológico, que concerne ao O conhecimento tem por objeto os mistérios, os
comportamento do cristão depois da vinda de Cristo, e dos seres visíveis e invisíveis, os das relações intratri-
significado anagógico, que faz pressentir os bens esca- nitárias, todos unificados na pessoa do Filho, Mistério
tológicos. Alguns autores modernos distinguem entre por excelência, Imagem do Pai, Mundo inteligível:
“tipologia” e “alegoria”, entendendo esta última em nele se encontram os planos e os germes da criação,
sentido diferente do sentido da doutrina do quádruplo enquanto é ele a sabedoria de Deus. O mistério é co­
significado: é “tipológica” toda interpretação confor­ lhido na luz comunicada pelas Pessoas divinas, onde o
me à concepção horizontal, progressiva e linear do Filho, conformando-se em modos diversos segundo as
tempo cristão; é “alegórica” uma exegese que supõe, capacidades de cada um, se faz alimento que alimenta
acima do mundo atual, um mundo divino ou angélico, o homem com a natureza divina, que o Filho recebe
que se reflete de certo modo sobre ele. Tal distinção, constantemente do Pai; é um vinho que alegra a alma,
legítima se se refere às formas literárias diferentes, enchendo-a de doçura, de delícia, de “entusiasmo”,
não é aceitável por causa do juízo de valor contra a isto é, do sentimento que se experimenta pela presen­
“alegoria”, acusada de não ser cristã: na realidade, as ça divina. O conhecimento é o encontro entre a liber­
exegeses “alegóricas” deste tipo não são raras no NT dade divina que se dá e a liberdade humana que
e, se o tempo cristão é sacramental, ele comporta, acolhe: Deus não se apodera do homem contra sua
além da dimensão horizontal, uma dimensão vertical, vontade, num êxtase que lhe tolheria a consciência e a
que manifesta o fato de que as realidades escatológi- liberdade fundamentais, pois só o diabo age deste
cas já estão presentes no mundo atual. modo nos possessos e nos dominados por uma paixão.
O conhecimento tem como ponto de partida habitual a
V. O homem espiritual. A doutrina espiritual
exegese da Escritura, meditada na renúncia ao pecado
está presente por toda a parte em cada escrito exegéti­ e ao mundo, na pureza do coração; a fé é seu princípio
co. As concepções ascéticas e morais de O. ainda es­ necessário, mas o objeto se faz sempre mais presente
tão para serem estudadas. O combate espiritual aos cinco sentidos espirituais e, a bem considerar, o
domina a antropologia e a angelologia. O homem é, conhecimento se confunde com o amor, na união:
ao mesmo tempo, espírito (TtveDpa), alma e corpo; o “Adão conheceu Eva, sua esposa” (Gn 4,1). Sem ra­
pneuma é o dom que Deus faz a cada homem para zão, censurou-se à espiritualidade origeniana um certo
guiá-lo no conhecimento, na oração e na virtude. Mas esoterismo, que se reduz, na realidade, ao fato de não
a alma é dupla, sua parte superior, a inteligência dar a uma alma aquilo que não poderia suportar e que
(vouç) ou coração, é educada pelo pneuma, e é a fa­ a prejudicaria: regra comum a todos os diretores espi­
culdade da alma que acolhe a graça; a parte inferior, rituais. Acusá-lo, de modo semelhante, de visão aris­
“carne” ou “pensamento da carne” (Rm 8,6-7), corres­ tocrática, significaria esquecer-se de que ele se
ponde em certa medida à concupiscência que atrai o expressa sobre todos estes temas em homilias prega­
homem para o corpo. A alma, além disto, é solicitada das a todos os cristãos de Cesaréia, exortando os ou­
pelos anjos e pelos demônios que estão por trás dos vintes a progredir para poderem conhecer. Recordamos
respectivos comandantes, Cristo è Satanás. Encontra­ ainda que Orígenes manifesta muitas vezes uma devo­
mos em O. uma doutrina bem completa, dispersa aqui ção profundamente afetiva para com Cristo, e que em
e ali nas páginas exegéticas, nas que tratam do martí­ sua obra se encontram alguns testemunhos, poucos,
rio, da virgindade ou castidade, da virtude e das virtudes, mas claros, de uma experiência mística pessoal.
do pecado e de tudo quanto a ascese cristã implica.
O. é criador de muitos temas místicos que serão VI. O teólogo especulativo. A teologia de O. é
inseparável de sua exegese e de sua doutrina espiri­
retomados por seus sucessores. À exegese tradicional,
tual; é inspirada por estas. Permanece ele fiel à regra
coletiva, da esposa do Cântico que representa a Igreja,
de fé de seu tempo, que expõe no prefácio do De
acrescenta uma exegese individual que aplica à alma
Principiis, e, partindo desta, com o auxílio da Escritu­
cristã. Ele aproxima Is 49,2 e Ct 2,5, criando assim a ra, da razão e da própria experiência espiritual e pasto­
imagem da flecha e da ferida de amor. A fim de que a
ral, conduz sua pesquisa com toda a modéstia, sem
Encarnação de Cristo produza seus efeitos em cada pretender dogmatizar: o De principiis é uma teologia
um, é preciso que também em cada alma Ele nasça e £V YUíwama, “em exercício”, isto é, na procura. Ela
cresça. A ascensão espiritual, através da oração e da se desenvolve, em grande medida, como reação às he­
virtude, é representada pela subida dos apóstolos so­ resias de seu tempo. Contra os marcionitas, O. afirma
bre a montanha, em cujo cume Jesus lhes aparece em a bondade do Criador e sua identidade com o Pai de
sua divindade que transparece através de sua humani­ Jesus, como também a concordância dos dois Testa­
dade: a transfiguração é o símbolo do mais alto conhe­ mentos e o valor do Antigo; contra os valentinianos,
cimento que o homem possa ter, aqui na terra, de afirma o livre-arbítrio, a responsabilidade pessoal e a
Deus em seu Filho. Os cinco sentidos espirituais, que recusa de uma predestinação vista como lei da nature­
se desenvolvem naquele que progride, lhe permitem, za; em contraste com o docetismo, a humanidade au­
em analogia com os cinco sentidos corpóreos, conhe­ têntica assumida por Cristo como condição da
cer intuitivamente e com conaturalidade as realidades redenção. Opõe-se igualmente a duas heresias trinitá-
divinas a que aderiu num primeiro tempo mediante a rias: em relação aos modalistas, proclama a personali­
fé. Esta conaturalidade vem com o desenvolvimento dade própria de cada uma das Pessoas, e, em face dos
de sua participação na imagem de Deus, o Verbo, que adocionistas, proclama a geração eterna do Verbo. En­
o homem recebeu no momento de sua criação e que fim, as correntes antropomórficas, milenaristas e lite-
faz crescer em si mesmo com a vida cristã e a prática ralistas presentes na Grande Igreja lhe apresentam
das virtudes, já que somente o semelhante conhece o ocasião de professar a incorporeidade de Deus, da
semelhante, até chegar à “semelhança” da bem-aven­ alma e da beatitude final, a abolição, em Cristo, da lei
turança que coincidirá com a visão perfeita. judaica em seus preceitos cultuais e jurídicos. Seria

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ORÍGENES

evidentemente injusto censurá-lo, como fazem com que natural. Mas o pecado cobre a imagem de Deus,
freqüência seus detratores, por não haver previsto as he­ no homem, com imagens diabólicas ou bestiais que
resias posteriores, e por usar às vezes em sentido ortodo­ somente o Redentor pode suprimir. As especulações
xo, como a comparação com outros textos evidencia, relativas aos corpos ressuscitados tendem a afirmar ao
expressões que receberão mais tarde um significado he­ mesmo tempo sua identidade e sua alteridade com o
terodoxo. A filosofia que inspira sua teologia é o pla­ coipo terreno, segundo a imagem paulina da semente
tonismo médio, um platonismo eclético, misturado e da planta (ICor 15,35-44). Se O. não vê Maria isen­
com muito estoicismo e com um pouco de aristotelis- ta totalmente do pecado, é o primeiro a afirmar com
mo; mas O. não é propriamente um filósofo, pois utili­ clareza a virgindade perpétua, nela vê um dos grandes
za seus conhecimentos filosóficos como teólogo. “tipos” do homem espiritual e, segundo Sócrates (HE
VII, 32), tê-la-ia chamado de Theotokos. Elabora tam­
Em relação à Trindade, O. procura expressar de bém precisa doutrina sobre o batismo, a eucaristia, a
um modo mais dinâmico do que ontológico a unidade penitência, a ordem e o matrimônio.
das Pessoas e a personalidade própria de cada uma. O
Pai é a fonte da divindade que comunica ao Filho, em Aquilo a que se deu o nome de origenismo foi ti­
sua geração eterna e contínua, e ao Espírito, de tal rado, não do conjunto da teologia de O., que constitui­
modo que o Filho é e permanece no Pai como o Pai no rá o alimento dos Padres do séc. IV, mas de algumas
Filho: o Filho permanece no Pai mesmo quando, na especulações do De Principiis, privadas de seu cunho
encarnação, está na terra com sua alma humana. En­ hipotético e antitético, e sistematizada pelos pósteros.
contramos em O., pela primeira vez, a propósito da O único ponto claramente demonstrável é a hipótese
eternidade da geração do Filho, a fórmula o\)K rjv oxe da preexistência das almas, inclusive a de Cristo.
ook r|V, “nunca houve um momento em que (o Filho) Deus, no princípio, criou as “inteligências” todas
não fosse” (Peri Archôn I, 2,9; IV, 4,1), confirmada iguais, vestidas de coipo etéreo e imersas na contem­
por Atanásio, Com. Rom. I, 5). Por outro lado, ele plação divina. A diminuição do fervor constituiu a
combate nos valentinianos a representação da geração culpa primitiva que as dividiu em anjos, homens e de­
do Filho como probolè ou prolatio, isto é, a repre­ mônios: naquele momento as “inteligências” se esfria­
sentação que comporta, como a geração humana ou a ram em almas, dado que \|n)%T] se liga a \|/\)%oç, frio.
geração animal, uma divisão de substância. O Pai é o Esta doutrina, herdada de Platão, fornecia a O. uma
primeiro enquanto princípio e porque é ele quem en­ resposta aos ataques marcionitas contra o Deus cria­
via em missão o Filho e o Espírito: aqui está a essên­ dor, pois permitia atribuir a desigualdade dos homens no
cia do “subordinacionismo” de O. que, salvo algumas momento do nascimento a uma consequência do livre-ar­
expressões inábeis, não comporta para as outras duas bítrio; o que lhe permitia também evitar as dificuldades
Pessoas uma inferioridade de poder. O Filho possui, das duas outras respostas ao problema da origem da
na unidade de sua pessoa, denominações (STUVOiai) alma, o traducianismo e o criacionismo. Em referência à
múltiplas: os diferentes nomes que lhe são atribuídos sua época, não pode ser definida herética, pois a Igreja
pela Escritura e que exprimem os diferentes aspectos não possuía nenhuma doutrina acerca da origem das
de suas relações com o Pai e com os homens. Como almas, a não ser sua criação da parte de Deus.
Sabedoria, ele é o Mundo inteligível que contém os
princípios e os germes dos seres e toda a ciência dos Quanto à apocatástase, a restauração do fim dos
mistérios; como Logos ele os revela e é ele quem rea­ tempos, esta deriva de ICor 15,23-26; não tem caráter
liza a criação. A união do Verbo com a natureza hu­ panteístico, e, se alguns textos parecem afirmar a sal­
mana é, segundo a doutrina da preexistência das vação final do demônio e dos danados, outros vão em
almas, anterior à encarnação, pois a alma humana do sentido contrário e a Carta aos amigos de Alexandria
Verbo foi criada junto com as outras almas na preexis­ a nega expressamente. O. não tem uma visão clara
tência; mediante sua união com o Verbo, ela era “sob deste problema; na realidade trata-se de uma grande
a forma de Deus”, impecável, e Cristo, na sua humani­ esperança sua e daí fazer uma teoria rigorosa é incom­
dade, é por isto o esposo da Igreja que, na preexistên­ patível com o fortíssimo acento que põe sobre o livre-
cia, era formada pelo conjunto das outras almas. Para arbítrio. Os outros erros reprovados são muitas vezes
resgatar sua esposa decaída, Ele se encarnou no seio contraditados por textos gregos seguros e nascem de
de Maria e com ele o Verbo. Ele revela aos homens a uma incompreensão de seus acusadores ou de uma
divindade, traduzindo-a numa pessoa humana. Esta posterior especialização do vocabulário: não se com­
alma é, na paixão, abandonada em resgate a Satanás, preendeu que o mundo criado desde toda a eternidade
desce ao Hades, onde liberta as almas dos justos de­ por Deus é o Mundo inteligível das “idéias” platônicas
funtos, conduzindo-os consigo em sua ascensão. O. ou das “razões” estóicas, dos projetos ou dos germes
ensina, a seu modo, a união hipostática e, pela primei­ dos seres, mundo contido no Verbo, portanto criado
ra vez, a “comunicação dos idiomas”. O Espírito San­ desde toda a eternidade por obra do Pai na geração do
to vem do Pai mediante o Filho que lhe comunica suas Filho; não se compreendeu que a afirmação de que o
denominações: é o Santificador e constitui a “matéria” Filho não vê o Pai é dirigida contra os antropomorfitas
ou a “natureza” dos carismas, que correspondem às e que “ver” é aqui usado em seu significado sensível:
graças atuais da teologia escolástica. porque, na realidade, O. especulava frequentemente
sobre o conhecimento do Pai por parte do Filho; que
O. elabora uma doutrina dos anjos e dos demô­ as acusações de Metódio, a respeito dos corpos ressus­
nios: guardas dos indivíduos ou dos povos, ou então citados, nascem de um mal-entendido, porquanto a pa­
prepostos aos diferentes reinos da natureza. O homem lavra siSoç é tomada em seu significado comum de
foi criado, como o anjo, segundo a imagem de Deus, o aparência exterior, ao passo que O. indica um princí­
Verbo; participa da existência e da divindade do Pai, pio metafísico; que O. não pode ter afirmado no De
da filiação e da racionalidade do Verbo, entendendo Principiis crer na metempsicose, que julga absurda
todos estes termos num sentido mais sobrenatural do nos comentários em grego remanescentes, consideran­

1049
ORÍGENES

do-a incompatível com o ensino da Igreja; nem crer Die Théologie des Gebetes nach “De Oratione ” von
no renovar-se, no céu, do sacrifício de Cristo, do mo­ Origenes, München 1975.
mento que no livro I do Com. Jo. (35 [40], 255), con­ Teologia: C. Verfaillie, La doctrine de la justification
temporâneo do De P rincipiis , afirma nitidamente sua chez Origène, Strasbourg 1926; C. Vagaggini, Maria
unicidade; não se compreendeu que aplicar a Cristo o nelle opere di Origene, Roma 1942; K. Rahner, La
termo yevr|TOç, sem distingui-lo de y£wr|TOÇ, e de doctrine d ’Origène sur la pénitence: RecSR 37
KTiaiq, que não tem exatamente o significado de cria­ (1950) 47-97, 252-286, 422-456; M. Harl, Origène et
tura, não faz do Verbo uma criatura; que seu “subordi- la fonction révélatrice du Verbe Incarné, Paris 1958;
P. Nemeshegyi, La paternité de Dieu chez Origène,
nacionismo”, motivado por sua concepção de origem Paris 1960; J. Chênevert, L ’Eglise dans le commentai­
e de “economia”, permanece ortodoxo, apesar de al­ re d'Origène sur le Cantique des Cantiques, Bruxel­
gumas expressões canhestras; não se compreendeu, les 1969; J. Rius-Camps, El dinamismo trinitario en
enfim, que, ao atribuir-lhe a teoria absurda dos corpos la divinizaciôn de los seres racionales segiin Orige­
gloriosos esféricos, Justiniano interpretou como refe­ nes, Roma 1970; J.A. Alcain, Cautiverio y redencum
rido aos ressuscitados aquilo que O. dizia dos astros del hombre en Origenes, Bilbao 1973; H.J. Vogt, Das
no De O ratione XXXI, 3; e que a doutrina dos “mun­ Kirchenverstàndnis des Origenes, Koln 1974; L. Lies,
dos sucessivos” não passa de uma hipótese efêmera a Wort und Eucharistie bei Origenes, Innsbruck 1978;
Os Atos dos dois Colóquios internacionais sobre Ori­
conciliar com a doutrina da apocatástase.
genes, Montserrat 1973 e Bari 1977: Origeniana, Bari
Uma bibliografia quase completa até 1969 em H. 1975; Origeniana Secunda, Roma 1980.
Crouzel, Bibliographie critique d ’Origène, La Haye- H. Crouzel
Steenbrugge 1971: um suplemento até 1980: ibidem
1982.
ORÍGENES o Neoplatônico. Quase todos os
Edições: Na coleção GCS de diversos autores em 12 estudiosos modernos (Daniélou, Origène, Paris 1948,
vols.; numerosas obras com texto e tradução francesa p. 89; Schwyzer, PWK 21, 1, 480; Dorrie, Hermes 83
em SCh; a edição Ch. Delarue na reedição de J.P. [1955] 468-472; Dodds, Les sources de Plotin, Genè­
Migne (PG 11 a 17) com a Hexapla e alguns frag­ ve 1960, p. 26 e 31 n. 1; Numenius and Ammonius, em
mentos, publicados por A. Galland e A. Mai. Para a H. Chadwick, Early Christian Thought and the Clas­
Philocalia ed. Robinson, Cambridge 1893. Fragmen­
sical Tradition, Oxford 1966, 68s; Theiler, Forschun­
tos sobre epístolas paulinas em JThS 3 (1902); 9-10
gen zum Neuplatonismiis, Berlin 1966, p. 3) concordam
(1908-1909); 13-14 (1912-1913). Homilias sobre Sl
em que o O. de que falam Porfirio em Vita Plot. caps.
em CCL 78 (cf. V. Peri, Omelie Origeniane sui Salmi,
Vaticano 1980).
3 (I 3,24-4,32 Bréhier) e 14 (I 15,20-16,23) e Longi-
no, citado por Porfirio, Vita Plot. cap. 20 (I 22,37), e
Obras gerais: DTC 12, 1489-1565; R. Cadiou, La que foi discípulo de Amónio Saccas junto com Plotino
jeunesse d ’Origène, Paris 1935; J. Daniélou, Origène, e Herênio (fr. 2,5 e 6 Weber, p. 4-5), é diferente do
Paris 1948; P. Nautin, Origène, sa vie et son oeuvre, outro bem mais famoso Origenes cristão - também ele
Paris 1977 (obra a ser utilizada com precaução, até discípulo de Amónio - ao qual se refere Porfirio em
que seja confirmada por estudos ulteriores). Eusébio, HE VI 19,6-7 (II 558,26-560,7 Schwartz; H.
Exegese: H. de Lubac, Histoire et Esprit, Paris 1950 Dõrrie, Hermes 83 [1955], 469-470, no entanto, se en­
(tr. it. Roma 1971); R.P.C. Hanson, Allegory and gana ao considerar que Porfirio, neste passo de Eusé­
Event, London 1959; R. Gögler, Zur Theologie des bi­ bio, tenha confundido o Origenes cristão com o O.
blischen Wortes bei Origenes, Düsseldorf 1963; A. neoplatônico). Não parece sustentável a tentativa de
Zöllig, Die Inspirationslehre des Origenes, Frei bürg i. identificar os dois personagens e de negar a existência
Br. 1902; E. Molland, The Conception o f the Gospel do O. neoplatônico, feita por R. Cadiou (La jeunesse
in the Alexandrian Theology, Oslo 1938; G. Lomien- d ’Origène, Paris 1935, p. 231-262) e repetida recente­
to, L ’esegesi origeniana del Vangelo di Luca, Bari mente, sem novos argumentos, por F.H. Kettler (Ori­
1966; N. de Lange, Origen and the Jews, Cambridge genes, Ammonius Sakkas und Porphyrius. Kerygma
1976; H. Crouzel, Pourquoi Origène refuse-t-il par­
und Logos, Festschrift C. Andresen, Gõttingen 1979,
fois le sens littéral dans ses Homélies sur l ’Hexateu-
p. 325-327). Um exame mais profundo dos dados que
que?\ BLE 70 (1969) 241-263.
consideram necessária a distinção entre o O. neoplatô­
Espiritualidade: W. Völker, Das Volkommenheitsi- nico e o Origenes cristão, uma coleção dos vários tes­
deal des Origenes, Tübingen 1931; A. Lieske, Die temunhos relativos ao primeiro (conservados por
Theologie der Logosmystik bei Origenes, Münster Porfirio, Eunápio, Fócio, Proclo e Nemésio de Emesa)
1938; P. Bertrand, Mystique de Jésus chez Origène, e uma reconstrução e interpretação de seu sistema fi­
Paris 1951; H. Crouzel, Théologie de l ’image de Dieu losófico podem encontrar-se na monografia de K.O.
chez Origène, Paris 1956; H.U. von Balthasar, Parole Weber (Origenes der Neuplatoniker, Zetemata 27,
et Mystère chez Origène, Paris 1957; F. Fässler, Der München 1962) que continua ainda agora a obra clás­
Hagios-Begriff bei Origenes, Fribourg (Suíça) 1958;
sica sobre a qual se deve basear qualquer estudo sobre
G. Teichtweier, Die Sündenlehre des Origenes, Re­
gensburg 1958; F. Hartmann, Origène et la théologie
este autor. Bastará aqui recordar que, como refere Por­
du martyre: EThL 34 (1958) 773-824; H. Crouzel, firio, ele se encontrava em Alexandria, junto com Plo­
Origène et la “connaissance mystique”, Bruges/Paris tino e Herênio, quando Amónio Saccas morreu por
1961; G. G ruber, ZQH. Wesen, Stufen und Mitteilung volta de 242 (Vita Plot. cap. 3 = fr. 2 Weber); que vi­
des wahren Lebens bei Origenes, München 1962; M. sitou Plotino enquanto este dava seu curso em Roma
Martinez Pastor, Teologia de la Luz en Origenes, Co- depois de 244 (Vita Plot. cap. 4 = fr. 3 Weber; sobre a
millas 1963; H. Crouzel, Virginité et Mariage chez data, cf. Cadiou, p. 235 e Dõrrie, p. 471); que escre­
Origène, Bruges/Paris 1963; J. Dupuis, L ’“esprit de veu dois tratados, flepi tcüv ôaipovcov e Oxi povoç
l'homme”, Bruges 1967; M. Eichinger, Die Verklä­ TEOiriTqç o PaaiAsuç, este último durante o reinado
rung Christi bei Origenes, Wien 1969; W. Gessel, de Galieno, iniciado em 253 (Vita Plot. cap. 3 = fr. 2

1050
ORIGENISMO

Weber); que deixou também apontamentos de um co­ dem eles os termos usados pelo Alexandrino com o
mentário seu ao Timeu, de que fala Proclo (fr. 8-16 significado que tais termos haviam recebido no séc.
Weber, p. 6-11); e que, como refere Proclo (Theol. IV e que, em alguns casos teologicamente importan­
plat. II, 4 [= fr. 7 Weber]), seu sistema metafísico se tes, era muito mais preciso do que o do séc. III. Leram
afastava do de Plotino, porque ele, ao contrário de Origenes, projetando sobre ele o o. de seu tempo, o
Plotino, não punha o uno acima da inteligência e do terceiro momento, justamente porque era este que,
ser, mas considerava a inteligência (equivalente ao ser com efeito, tinham em mira. Jamais fizeram estudos
absoluto) como o sumo princípio, permanecendo mais sistemáticos da obra de Origenes e fundam suas acu­
fiel ao ensinamento do mestre, Amónio Saccas (cf. sações a partir de textos isolados, sem levar em conta
Schwyzer, PWK 21/1, 480; Weber, p. 160). as explicações que se encontram com freqüência em
R. Beutler, PWK 18/1, 1033-1036; H.R. Schwyzer, outros trechos do mesmo livro e, às vezes, a poucas li­
PWK 21/1, 479-480; K.O. Weber, Origenes der Neu- nhas de distância. Tudo quanto Origenes escreve em
platoniker, Zetemata 27, München 1962. forma de exercício (yupvaaTiKCOÇ), estes o entendem
S. Lilla como dito em forma de doutrina (ôoypaTiKCDç), com
uma concepção da ortodoxia e da regra de fé que aos
ORIGENISMO. É possível distinguir no “orige- poucos foi sempre mais modelada sobre a da lei civil e
nismo” seis momentos sucessivos. O primeiro é o de expressa em “definições” na luta contra a heresia.
Origenes, quer dizer, o conjunto de especulações que, A batalha começa com Epifânio, metropolita de
com as incompreensões de seus sucessores, constitui­ Salamina ou Constância, em Chipre: ele classifica a
rão a base do o. posterior. O segundo momento é dado “heresia” de Origenes junto com aquelas que enchem
pelo o. tal como o entendem seus detratores, entre o seu Ancoratus e seu Panarion, e insiste com o bispo
séc. III e o IV, Metódio, Pedro de Alexandria, Eustá- João de Jerusalém para obter dele uma condenação de
cio de Antioquia: a estes responde a Apologia de Orí- Origenes. Em 393, um certo Atárbio, não se sabe a
genes, escrita por Pânfilo. Além da preexistência da que título, faz o circuito dos conventos da Palestina,
alma e da apocatástase, são contestadas, por uma série recolhendo assinaturas para a condenação de Oríge-
de mal-entendidos, a doutrina do corpo ressuscitado e nes. Mal recebido por Rufino em seu convento do
a criação eterna. O terceiro momento é o o. dos mon­ Monte das Oliveiras, contra toda previsão é bem aco­
ges egípcios e palestinenses da segunda metade do
lhido por Jerônimo, até aquele momento ardente de­
séc. IV: é exposto principalmente por Evágrio Pôntico
fensor de Origenes, em seu mosteiro em Belém. A
nos Kephalaia Gnostica - segundo a tradução siríaca
não expurgada, publicada por A. Guillaumont na PO batalha então se exaspera, com Rufino ao lado de
28/1 (1958) - e na Carta a Melânia, editada na tradu­ João, contra Jerônimo ao lado de Epifânio. Sobrevém
ção siríaca e em uma retroversão grega por W. Fran­ uma reconciliação entre Rufino e Jerônimo, mas a dis­
kenberg (Evagrius Ponticus, Berlin 1912). Evágrio puta recomeça mais viva quando Rufino, de volta de
fez uma “escolástica” do pensamento de Origenes, su­ Roma, traduz o livro I da Apologia de Pânfilo, depois
primindo as tensões internas e omitindo grande parte o Peri Archôn, e um manuscrito que, roubado por um
da doutrina para construir com o restante um sistema: monge amigo de Jerônimo, Eusébio de Cremona, es­
era o modo mais seguro para torná-lo herético, pois a candaliza os amigos romanos de Jerônimo. Estes obri­
heresia é a supressão e o corte das antíteses que carac­ gam Jerônimo a fazer nova tradução do Peri Archôn
terizam a doutrina cristã. O quarto momento, o mais que, com a intenção de ser literal, pusesse em relevo
importante, é o o. assim como o supõem os antiorige- as heresias de Origenes e as inexatidões de Rufino, e
nistas dos sécs. IV-V, Epifânio, Jerônimo, Teófilo de fazem tudo para exasperar os ânimos. Neste ínterim, o
Alexandria (ao passo que Origenes é defendido por patriarca de Alexandria. Teófilo, a princípio favorável
João de Jerusalém e por Rufino de Aquiléia). Suas a Origenes, escolhido como árbitro das duas partes an­
proposições devem passar pelo crivo da crítica, pois tagônicas, no interesse pela política do patriarcado,
lhes falta sobretudo senso histórico, o que é bem nor­ muda de campo, expulsa o auxiliar Isidoro e os
mal para sua época: não tinham noção alguma do de­ “Grandes Irmãos” e faz depor João Crisóstomo, que
senvolvimento do dogma, a cuja consciência se lhe havia dado asilo em Constantinopla. Condena Orí-
chegou bem recentemente, e não julgavam Origenes a genes num sínodo regional em 400; imediatamente es­
partir de seu tempo. Além do mais, não primavam tes acontecimentos repercutem no Ocidente, por meio
nem pela compreensão filosófica nem pela teológica. de Jerônimo, e o papa Anastásio lhe faz eco, por duas
Na realidade, não apreenderam a mudança de mentali­ cartas. Esta primeira disputa termina em 402 com o si­
dade que separava a Igreja em minoria, perseguida, do lêncio de Rufino.
tempo de Origenes, e a Igreja triunfante de sua época,
principalmente no que diz respeito à importância de O quinto momento é o o., ou melhor, o evagria-
uma cristianização da filosofia para a pastoral do nismo, dos monges palestinenses da primeira metade
mundo intelectual, e a necessidade de uma teologia do séc. VI, que viviam nos conventos da obediência
“em exercício” (sv yufivaaia), isto é, em procura. de São Sabas, a Grande Laura e a Nova Laura. A prin­
Acusam Origenes a partir das heresias de seu tempo, cipal manifestação de sua doutrina é o Livro de Santo
especialmente do arianismo, sem se perguntar quais Hieróteo, obra do monge sírio Estêvão bar Sudayle,
eram aquelas que Origenes devia afrontar e que deter­ que agrava a “escolástica” origenista até chegar a um
minaram sua problemática peculiar. Não tinham abso­ panteísmo radical. Entre a primeira e a segunda inter­
lutamente nenhum conhecimento do progresso venção de Justiniano, estes origenistas se dividem em
doutrinal provocado, na Igreja, pela reação ao arianis­ dois grupos. Os extremistas são chamados de isocris­
mo em confronto com a sucinta regra de fé do séc. III, tas (taoxpicrroí), pois julgam que tanto no princípio
aquela que Origenes expõe no prefácio do De Princi- quanto no fim todas as “inteligências” são iguais a
piis\ nem da evolução do vocabulário, e assim enten­ Cristo: sua superioridade sobre aqueles é apenas pro­

1051
ORIGENISMO

visória; ele não tomou parte no pecado primitivo. Os pulos, a teologia de Orígenes assinalou invisivelmente
moderados, cuja tardia aliança com os antiorigenistas toda a tradição cristã.
provocará a condenação dos isocristas, são chamados
Se Orígenes parece ter sido geralmente recusado
de protoctistas (TtpcoxoKTiaxoi), porque atribuem a pela Idade Média bizantina, a Idade Média latina, até
Cristo uma superioridade sobre as outras inteligências; o séc. XIII, o lê apaixonadamente nas traduções lati­
os adversários lhes infligem a alcunha de tetraditas, nas: Orígenes influenciou Bernardo de Claraval, Gui­
acusando-os de transformai* a Trindade em tétrade, ali lherme de Saint-Thierry e, através destes, a tradição
introduzindo a humanidade de Cristo. cisterciense. Ao contrário, as recentes tentativas de fa­
O sexto momento é constituído pelo suposto o. zer dele a fonte do bogomilismo búlgaro e do cataris-
contra o qual são dirigidos os documentos das conde­ mo não parecem dignas de ser levadas em con­
nações do imperador Justiniano: não se deve confun­ sideração. Entre o séc. XIII e o séc. XIV, seu platonis­
mo é dificilmente compatível com o aristotelismo im-
dir os documentos de 543 com os de 553. Os
perante: neste período, por este motivo, somente é
primeiros, extraídos de uma instância de monges pa-
lembrado por sua exegese. No Renascimento, foi de­
lestinenses antiorigenistas apresentada ao imperador fendido por Pico delia Mirandola e muito admirado
pelo apocrisiário papal Pelágio, são formados pelo Lí­ por Erasmo. No século XVI, aparecem as primeiras
ber adversas Origenem ou Carta a Metia, seguidos de edições que irão se aperfeiçoando nos séculos seguin­
extratos do De Principiis e dos anatematismos (DS tes, bem como os estudos. No início do séc. XX, Oríge­
403-411): aprovados pelo sínodo doméstico do impe­ nes, confundido com o o. posterior, e julgado quase
rador, foram apresentados para assinatura ao papa e exclusivamente por uma leitura um tanto unilateral do
aos patriarcas. Têm em mira o próprio Orígenes, visto De Principiis , é visto mais como filósofo grego do que
na perspectiva do o. do tempo, e com alguns graves como teólogo cristão: sua espiritualidade na realidade,
eirós de inteipretação, tanto na Carta quanto nos ana­ não é percebida e sua exegese considerada arbitrária e
tematismos. Os outros documentos de condenação absurda (H. von Harnack, E. de Faye, P. Koetschau,
provêm do V concílio ecumênico, o Constantinopoli- H. Koch). A espiritualidade de Orígenes é redescober-
tano II, compilados antes e depois da abertura oficial. ta por W. Võlker (1931), e a compreensão de sua exe­
Enquanto Justiniano procura obter o assentimento do gese é obra de H. de Lubac (1950): sua personalidade
papa Vigílio, que ele conduziu à força a Constantino­ reencontrou suas dimensões essenciais. Atualmente
pla, antes de declarar aberto o concílio, conforme a hi­ Orígenes é, entre os escritores eclesiásticos da anti-
pótese de Fr. Diekamp, dirige aos bispos já reunidos güidade, o mais lido depois de Agostinho.
uma carta, que é o esboço dos quinze anatematismos F. Diekamp, Die origenistischen Streitigkeiten im
que não figuram nos Atos oficiais do Constantinopoli- sechsten Jahrhundert and das fiinfte allgemeine Con­
tano II e, portanto, não são juridicamente fruto de um d i , Münster 1899; F. Cavallera, Saint Jérôme, Lou­
concílio ecumênico: têm em vista explicitamente os vain 1922; Origénisme: DTC 11, 1565-1588; A.
Guillaumont, Les “Kephalaia Gnostica” d'Evagre le
isocristas, e Orígenes não é citado senão como o por­ Pontique et l ’histoire de Vorigénisme chez les Grecs
ta-bandeira a que estes apelam; além disto, alguns des­ et les Syriens, Paris 1962; H. Crouzel, Qu'a voulu fai­
tes anatematismos reproduzem palavra por palavra re Origène en composant le Traité des Principes?:
textos de Evágrio. Nos Atos oficiais do concílio - o BLE 76 (1975) 161-186, 241-260. A influência de
imperador, tendo renunciado a obter o consenso do Orígenes sobre os Padres do séc. IV é freqüentemente
papa, declarou aberto o concílio com sua única autori­ sublinhada nos estudos que lhe dizem respeito. Para a
dade - os anatematismos dirigidos contra os “Três Ca­ Idade Média latina: H. de Lubac, Exégèse Médiévale,
pítulos” contêm o nome de Orígenes, como o último 1/1, Paiis 1959, p. 198-304 (tr. it. Roma 1962); J. De-
numa lista de heréticos, no anátema 11. A mesma lis­ roy, Bemardus en Orígenes, Haarlem 1964; P. Ver-
deyen, La théologie mystique de Guillaume de
ta, sem porém o nome de Orígenes, aparece na Homo- Saint-Thierry: em diversas contribuições, em Ons
noia do imperador, que é o esboço destes anate­ geestelijk erf (Antuérpia) de 1977 a 1979; H. Crouzel,
matismos. Muito provavelmente foi acrescentado o Origène est-il la source du catharisme?: BLE 80
nome de Orígenes, em seguida à discussão sobre os (1979) 3-28. Para o Renascimento: H. Crouzel, Une
origenistas que precedeu a abertura oficial, como o controverse sur Origène à la Renaissance: Jean Pic
símbolo dos isocristas. Os documentos do papa Vigí­ de la Mirandole et Pierre Garcia, Paris 1977; M.
lio, que aprovam, depois do encerramento, um concí­ Schar, Dos Nachleben des Orígenes im Zeitalter des
lio que se reuniu contra sua vontade, não falam de Humanismus, Basel 1979; A. Godin, Erasme lecteur
Orígenes. De um ponto de vista jurídico, a presença d'Origène, Genève 1982.
H. Crouzel
do nome de Orígenes na lista em questão não é parti­ *
cularmente significativa: não quer dizer que tenha OROSIO. Sobre o sacerdote espanhol (Paulo?) O.
sido formalmente um herético - os Padres do concílio encontramos a primeira informação em 414, quando,
estavam verossimilmente persuadidos disto por causa ainda jovem, chegou a Hipona e entrou em contato
de boatos espalhados por Epifânio acerca de uma pre­ com Agostinho. Em 415, aconselhado por este último,
sumida apostasia - mas provavelmente quer dizer que vai à Palestina, onde encontra Jerônimo e se vê impli­
em seus escritos há alguns erros, levando em conta a cado por imprudência sua nos inícios da controvérsia
maneira com que eram lidos naquele tempo; mas é pelagiana. Em 416, volta para o Ocidente, portador de
mais exato dizer, talvez, que sob seu nome estejam na diversas mensagens e de supostas relíquias do proto­
realidade condenados os isocristas. Esta condenação mártir Estêvão, que contribuirão para a conversão de
teve como consequência a perda da maior parte de muitos judeus em Minorca. De retomo a Hipona, aí
suas obras na língua original. Foi grande obstáculo à escreve em 416 e 417 sua obra histórica. Ignora-se
irradiação do pensamento de Orígenes no mundo bi­ tudo acerca de seu destino posterior (detalhes, discus­
zantino, pelo menos sua irradiação direta, porque, sões dos pontos con tio vertidos, e testimonia em
através dos Padres do séc. IV, quase todos seus discí­ Schanz IV, I, p. 483-485).

1052
PELÁGIO

Longobardi, Bologna 1941, p. 225-300; M.J. Higgins, de Inocêncio I em 417 (27 de janeiro); a momentânea
Two notes, em Polychronion, Fest. Dõlger, Heidel­ reabilitação de Pelágio e de Celéstio por parte do papa
berg 1966, p. 238-243; J. Orlandis, Sobre el origen de Zósimo (setembro de 417); o concilium plenarium de
la “lex in confinnatione Concilii": Anuário de Histo­ Cartago de 418 (maio) que em 9 cânones declarou a
ria del Derecho Esp. 41 (1971) 113-126; L. Magi, La condenação do pelagianismo; a Tractoria do papa Zó­
sede romana nella corrispondenza degli imperatori e simo, de condenação de Pelágio e de Celéstio, enviada
patriarchi bizantini, Roma-Louvain 1972, p. 162-165 a todos os bispos para que a assinassem, e a condena­
(cf. índice). ção do imperador Honório (não se têm dados precisos
A. Di Berardino para estabelecer a prioridade de tempo quanto à con­
PELÁGIO - PELAGIANOS - PELAGIA- denação de Zósimo e de Honório). Neste período, se
NISMO têm também os principais escritos de Pelágio (Ep. ad
Demetriadem; De natura; De libero arbitrio).
I. Perfil histórico - II. O contexto polêmico - III. Os
escritos e as idéias. c) Depois de 418. Este último período foi caracte­
Estes três termos tiveram notável alcance históri­ rizado pela polêmica de Agostinho com Juliano de
co, relativo ao tempo, às pessoas e às idéias que encar­ Eclano sobre como conciliar a bondade do matrimô­
naram, e constituem uma simbólica em relação àquilo nio com a transmissão do pecado original, e pela
que, em seguida, representaram na história do cristia­ transformação da polêmica pelagiana em questão an­
nismo. Aqui tentaremos, com base no progresso dos tropológica. Deste contexto surgiram as grandes obras
estudos neste setor, esclarecer o alcance histórico des­ teológicas de Agostinho sobre a liberdade humana
tes termos, para uma “redefinição” deles, mais próxi­ {De gratia et libero arbitrio, De correptione et gratia,
ma das fontes do que a simbolização desenvolvida a De praedestinatione sanctorum, De dono perseveran-
partir da morte de Agostinho (430). No curso dos sé­ tiae). Revivem neste período as problemáticas do De
culos, a polêmica pelagiana tem sido lida o mais das induratione cordis Pharaonis (dada a semelhança de
vezes na ótica dos escritos de Agostinho, que a apre­ muitas questões desta obra com as que agora se apre­
sentam qual “nova heresia” na cristandade {Retract. sentam, nos anos 425-427, são muitas as interrogações
II, 33). Esta ótica influiu negativamente também sobre que nos fazemos sobre seu autor e sua data). A polê­
a compreensão do próprio Agostinho, porque levou a mica pelagiana encontra asilo nos conventos africanos
atribuir-lhe impostações antropológicas de outros, (Adrumeto) e provençais, porém não mais na linha da
dentro das quais ele respondia para mostrar sua incon­ heresia, mas na da discussão.
sistência. Os estudos sobre o pelagianismo, de Plinval
(1943) até hoje, permitem, para além do julgamento A distinção feita por Juliano de Eclano a Zósimo
ortodoxo sobre ele, termos uma visão de conjunto entre heresia e quaestio era aceita de fato, uma vez de­
bem mais ampla do que no passado sobre o movimen­ saparecidos os grandes mestres pelagianos (Pelágio
to inteiro, que, por uns vinte anos (de 410 em diante) morria, talvez no Egito, por volta de 427; Celéstio e
manteve agitadas as águas da cristandade principal­ Juliano estavam no exílio). A polêmica se prolongou
mente ocidental. De Pelágio, nascido na Britânia por nas questões acerca da graça e da liberdade, colocadas
volta de 354 e batizado em Roma por volta de 380- more pelagiano, isto é, uma defronte da outra (para
384, onde viveu por muito tempo, e foi uma das vozes Agostinho, a graça é auxílio da liberdade, não seu ri­
mais escutadas do tempo, deriva o nome de pelagia- val), desembocando na questão do initium fidei (o
nos-pelagianismo. Deste movimento de pensamento chamado “semipelagianismo”) e do predestinacionis-
damos aqui o perfil histórico, o contexto polêmico, os mo, condenado no concílio de Aries de 473. A leitura
escritos e as idéias. do pelagianismo e de Agostinho, feita depois de 431,
só se interessou, na maioria dos casos, por este tercei­
I. Perfil histórico. Distinguem-se três momentos ro período. Da parte imperial, houve o rescrito de Ho­
bastante bem delineados: o movimento pelagiano an­ nório contra os devedores insolventes (9 de junho de
tes de 411; nos anos 411-418; depois de 418. 419) e o de Valentiniano III contra o pelagianismo da
Gália do sul (9 de julho de 425).
a) Antes de 411. Pertence a este período o escrito
De induratione cordis Pharaonis, que iria constituir a II. O contexto polêmico. A polêmica pelagiana
tomada de posição de Pelágio sobre a compreensão do ficou na história como uma questão sobre o modo de
cristianismo, discutida então, na Itália, nos círculos in­ entender a antropologia cristã. Com efeito, esta foi a
telectuais cristãos, talvez em polêmica com o Ambro- síntese doutrinal que, nos anos seguintes, desembocou
siaster (cf.) e as Quaestiones 83 de Agostinho. Nesta na condenação dos pelagianos, em particular de 425
obra, rejeitando qualquer espécie de predestinacionis- em diante. Na realidade, tratou-se de um grande movi­
mo maniqueu, insiste-se no merecer para si um desti­ mento de idéias que atravessou a cristandade na pri­
no, observando, com a liberdade inata na natureza meira metade do séc. V. Apresentava-se ele como
(Indur. 46 e 51), os preceitos de Deus. O período an­ uma solicitação à coerência com o evangelho, que pe­
tes de 411, se é o mais sugestivo, é também o mais di­ dia ascese e dedicação em cada setor da vida humana
fícil de abordar, dada a escassez de elementos e, portanto, não apenas nos conventos. Tratava-se de
concretos explícitos que se têm à disposição. imitar Jesus Cristo com toda a seriedade. Mas aquilo
que podia significar apenas um estímulo a fazer o me­
b) 411-418. Neste período nasceu e se concluiu lhor, foi aprofundado no plano teórico, e o discurso se
publicamente a polêmica pelagiana. Houve o sínodo dirigiu para as possibilidades e o mérito da liberdade
de Cartago de 411 contra Celéstio, seguido de uma humana, sobre a natureza da graça de Deus, sobre o
condenação, a que se faz sempre referência no resto valor dos sacramentos na vida cristã. No momento em
da discussão; o sínodo de Dióspolis, de 415, contra que a compreensão pós-constantiniana do ser cristão
Pelágio, que dele saiu absolvido; a reação africana que parecia consolidada, quer dizer, a presença do cristão
levou à condenação de Pelágio e de Celéstio, por parte dentro do estado e não em contraposição a este do

1131
PELÁGIO

ponto de vista religioso, tudo voltou a ser posto em ção homem-Deus ou a colocação do problema antro­
discussão. Nos círculos intelectuais romanos, dividi­ pológico no seio do cristianismo. Paia Joviniano, a
dos entre origenistas (uma leitura não antropomorfa graça de Deus é dada a todos na mesma medida, por
da Bíblia) e antiorigenistas (leitura literal das Escritu­ isto não é susceptível de ser apropriada nem aumenta­
ras, pelo que eram acusados de antropomorfismo), ha­ da por algum mérito pessoal devido ao próprio empe­
via uma disputa muito cerrada que se espalhou e se nho. Para Pelágio, a graça de Deus é apenas um
radicalizou com os fugitivos de Roma, depois de sua auxílio externo para a liberdade, um auxílio no signifi­
queda causada por Alarico (410). cado de criação, de revelação, de remissão dos peca­
dos, portanto, não um auxílio para a própria liberdade
Além disto, em Roma aprofundava-se a leitura do para ser tal e agir no plano de um bem merecedor de
cristianismo feita por Joviniano. Este, apoiando-se so­ vida eterna. A liberdade, com efeito, tem, desde a cria­
bre a comum graça batismal, negava haver um mérito ção, uma autonomia própria radical nas decisões con­
particular e, por conseguinte, uma recompensa pecu­ cernentes a seu destino. À sua escolha, e somente a
liar para a opção pela virgindade e pela continência, esta, são devidos os méritos tanto de querê-la quanto
tão incrementada naquele tempo por vozes autorizadas de atuá-la e a correspondente recompensa.
como Ambrósio, Jerônimo, etc. O círculo dos orige­
nistas romanos, ligados a poderosas famílias do tem­ Para Agostinho, a graça de Deus é o próprio bem
po, e onde Pelágio parecia o chefe, já havia produzido da liberdade humana: por eia, de fato, a liberdade
o Líber de fid e de Rufino, de cunho antitraducianista. pode ser tal e agir no plano de um bem merecedor de
Agora recolhia muitas vozes dispersas, graças à esta­ vida eterna. Deixada a si mesma, não tendo seu ponto
tura moral de Pelágio e à capacidade dialética de Ce- de apoio que é Deus, é levada à deriva (Ep. 194,2,3).
léstio, numa nova leitura unitária do cristianismo: cada
cristão é chamado a seguir a Cristo até nas opções da O auxílio, que a liberdade recebe da graça, não
virgindade e da castidade, e a possibilidade de fazê-lo significa que ela venha a ser substituída em suas deci­
está na liberdade de cada um ( Ep. a d D em etriadem ). sões; é somente posta em condição de poder expres­
Este idealismo, que se opunha radicalmente a Jovinia­ sar-se no nível de liberdade e não de condicionamentos.
no, encontrou terreno favorável um pouco por toda a A graça, com efeito, ajuda a liberdade como o amigo
parte, segundo as circunstâncias: em Siracusa, no ter­ ajuda um amigo, adaptando-se às suas possibilidades.
reno social; na nobre família dos Anícios, no sentir-se A liberdade, neste modo de ver, não é um absoluto
honrada por dedicar-se a sustentar mosteiros; nos pró­ que pode realizar-se desde o primeiro desejo. Ela co­
prios mosteiros que, nas idéias pelagianas, encontra­ nhece graus de crescimento: um estado de infância,
vam estímulo para continuar a viver e a propor a quando sabe desejar, mas não conhece o modo nem
escolha daquele propositum (o abraçar o monaquis- tem a força para poder fazê-lo; um estado adulto,
mo) tão desvalorizado por Joviniano. Agostinho nos quando alcança poder realizar aquilo que deseja.
testemunha que no mosteiro de Adrumeto circulava o
III. Os escritos e as idéias. No contexto históri­
seguinte adágio pelagiano: “Está em meu poder fazer
o bem, sou eu quem dirige minha liberdade” (Ep. co-cultural da polêmica sobre a compreensão do cris­
216,5). As ambigüidades, que a síntese pelagiana tra­ tianismo, nos inícios do séc. V, estão colocados os
zia consigo, diziam respeito não tanto à afirmação das escritos pelagianos, orientados todos no sentido de
possibilidades da liberdade humana, mas ao modo de exortar a cumprir tudo quanto nos é proposto nos
entender esta mesma liberdade e às consequências exemplos das Escrituras. No passado, os escritos pela­
dela derivadas. Os pelagianos negaram assim o nasci­ gianos eram vistos como um único corpus atribuído a
mento da humanidade no pecado “original”, por isto Pelágio. Hoje, os estudos se conscientizaram das dife­
ela não necessita da redenção de Cristo desde o nas­ renças de conteúdo e de estilo de muitas obras, embo­
cer, opondo-se, por conseguinte, à praxe de batizar as ra possuindo homogeneidade de pensamento. De fato,
crianças para a remissão dos pecados. Entenderam, houve, na polêmica pelagiana, uma difusão anônima
enfim, de modo redutivo, a graça de Deus, limitando-a de muitas idéias, chavões e escritos que tomaram, até
somente ao auxílio externo da liberdade. As ambigüi­ para os contemporâneos, muito difícil apreender o real
dades pelagianas, levadas à África, entrando em con­ pensamento de Pelágio e de outros adeptos. O Líber
tato com as soluções eclesiológico-sacramentárias de Tesiimoniorum (um conjunto de 160 títulos), do qual
Agostinho na questão donatista que chegara então à foram extraídas seis proposições no processo contra
conclusão (411), e com a questão do traducianismo, li­ Pelágio, em Dióspolis, em 415, continua a ser a prova
gada ao problema da origem da alma, foram recebidas mais vasta das idéias pelagianas que circulavam sem
como “um novo escândalo na igreja” (Ep. 177,15), precisa paternidade. Atualmente, o corpus pelagianum
uma “nova heresia” (Agost., Retr. II, 33). Pelágio e está dividido em três grupos: obras de Pelágio, obras
Celéstio foram apontados como os cabeças deste mo­ dúbias se são de Pelágio, obras de outros autores. As
vimento, gente dotada de muita capacidade de persua­ maiores contribuições para este esclarecimento foram
são (Ep. 175,1), mas “nefastos autores de uma nova dadas por: C.P. Caspari (Briefe, Abhandlungen und
heresia” (Ep. 175,1 e 182,3) que, como tal, foi conde­ Predigten... Oslo 1890), que considera obras do bispo
nada definitivamente no concílio de Cartago de 418, Fastídio algumas outrora atribuídas a Pelágio; G. Plin-
na carta circular (a T racloria ) do papa Zósimo (418) e val (cf. em particular Vue d ’ensem ble sur la littérature
no concílio de Éfeso de 431. pélagienne: REL 29 [1951] 284-294: colocação segui­
da por Hamman em PLS I, 1101s); R.F. Evans (Pela-
O movimento pelagiano é considerado como ten­ gius, Fastidius and the Pseudoaugustinian D e vita
tativa de compreender o cristianismo, tendo aparecido christiana: JThS 13 [1962] 72-98); P. Courcelle (H is­
às claras no primeiro decênio do séc. V. Joviniano,
toire litt. des grandes invasions germ aniques , Paris
Pelágio e Agostinho refletem de fato as idéias funda­
mentais sobre o modo diferente de pensai* a graça de 31964, 303-317); J. Morris (Pelagian Littérature : JThS 16
Deus e a liberdade do homem, quer dizer, sobre a rela­ [1965] 25-60); os esclarecimentos da CPL 728-766.

1132
PENITÊNCIA

Enfim, observe-se que a maior parte das obras de Pe- cancelados os pecados cometidos durante a vida ante­
lágio nos chegou através do Pseudo-Jerônimo. rior à iniciação cristã. Depois do batismo, o cristão
não deveria mais pecai” o problema da (segunda) pe­
Os escritos de Pelágio de natureza exegética, teo­ nitência (e reconciliação) é, portanto, uma problemáti­
lógica e ascético-moral, quanto ao pensamento, se sin­ ca batismal (penitência = segundo batismo), quanto
tetizam no imitar Cristo assim como está exposto no aos efeitos.
evangelho. Toda a Escritura é, por isto, entendida
como a revelação de uma Lex a ser observada e exem­ 1) Período pré-niceno. As primeiras informações
plos a se imitar, em particular o de Jesus Cristo (a im- relativas a uma reconciliação concedida depois de cul­
postação de seu comentário a Paulo: Expositiones XIII pas cometidas após o batismo se encontram nos escri­
ep. Pauli, ed. A. Souter, Cambridge 1926). tos de Hermas (Roma, apr. 140), de Tertuliano (t
Os escritos teológicos e ascéticos podem ser depois de 220) e de Cipriano (t 258). Estes dois últimos
agrupados em torno do De nattira, de 414, em que se são testemunhas paia a África do Norte. Segundo Her­
sustenta a fundamental possibilidade do homem, inata mas, a única reconciliação é a recebida no batismo; ex­
cepcionalmente, para a geração contemporânea de
em sua natureza, de poder orientar as próprias esco­
Hennas, uma “segunda” penitência e reconciliação são
lhas de acordo com os mandamentos de Deus, viven­
possíveis, mas uma vez só durante a vida: “Quem obteve
do sem pecado. Pelágio aprofundou ainda mais esta a remissão dos pecados (no batismo) não deveria mais
idéia, importante em seu pensamento, baseado sobre a pecai*... Para aqueles que foram chamados antes destes
doutrina da criação, no De libero arbítrio de 415. A li­ últimos tempos, o Senhor instituiu uma penitência... Se
berdade é implantada no homem, no momento da cria­ alguém... cai em pecado, pode fazer penitência, mas
ção, como uma raiz, que será determinada, nos frutos uma só vez” (Hennas, Pastor, Mand. IV, 1,8).
que produzir, por suas escolhas. A graça de Deus se
insere para ajudar esta decisão primária, à guisa de Tertuliano (apr. 204) no De paenitentia (7,9,10)
uma provocação da vontade a seguir o exemplo de dará ao princípio fundamental da não-reiterabilidade
Cristo. Seus outros escritos determinam concretamen­ da penitência antiga a formulação definitiva: “(Uma
te esta idéia, em particular suas obras sobre a castida­ segunda penitência é possível), mas só por uma vez, já
de e sobre a virgindade. que é a segunda vez (a primeira penitência foi a do ba­
tismo), e nunca mais no futuro”. O autor do De paeni­
Em conclusão, podemos dizer que Pelágio foi o
tentia, a respeito da readmissão dos adúlteros e
nome que deu origem aos termos pelagianismo e pela-
fornicadores à comunhão (contra a qual o próprio Ter­
gianos: historicamente, no tempo da polêmica, tam­
tuliano se opôs, uma vez feito montanista), nos des­
bém se destacou o grupo que se ligava a Celéstio. creve, pela primeira vez, o processo penitencial: vida
Juliano de Eclano não representou propriamente um de duríssimas mortificações, roupas andrajosas, jejuns
grupo, mas muita literatura, depois dele, se referiu a prolongados, orações e lamentações, prostrações dian­
seu pensamento, em particular sobre a concupiscência, te dos presbíteros e dos servos de Deus, apelo à inter­
como a uma doutrina pelagiana (por ex., Praedestina- cessão da comunidade, perdão final (somente da parte
tus). A partir da morte de Agostinho, pelagianismo foi de Deus? pela mediação da comunidade?).
um nome sintético para indicar todos aqueles que,
apelando para a liberdade humana, eram suspeitos de Cipriano ( t 258), de acordo com o papa Cornélio
ser “inimigos da graça de Deus”. Pelágio foi conside­ (253-255), admite à reconciliação os apóstatas, nume­
rado simbolicamente como o herético que era contra a rosos durante as perseguições de Décio e de Valeria-
graça de Deus ou como o defensor da liberdade huma­ no, não sem a oposição dos círculos rigoristas.
na; como Agostinho, em contraluz pelagiana, foi consi­
derado o defensor da graça de Deus, mas suspeito de Por conseguinte, parece que a disciplina peniten­
suplantar com ela a liberdade humana (foi a heresia do cial tenha sido elaborada partindo de casos concretos,
predestinacionismo, quer dizer, Deus determina para o como os citados, e que por isto seria variável confor­
bem e paia o mal as liberdades; a própria predestinação me as comunidades.
foi depois entendida assim, projetando sobre Agostinho
questões nascidas depois dele). Maior conhecimento do 2) Período paleocristão pós-niceno (de 325 aos
movimento pelagiano está fazendo justiça histórica tam­ inícios do séc. VII). Todos os documentos (Agostinho,
bém ao real conteúdo dos escritos de Agostinho. Cesário de Aries, concílios, decretais, correspondência
dos bispos do sul da Gália em particular) concordam
PLS I, IlOls; CPL 728-766; G. Plinval, Pélage. Ses
écrits, sa vie et sa réfonne. Etude d'histoire littéraire et
em descrever do seguinte modo a organização da pe­
religieuse, Lausanne 1943; R.F. Evans, Pelagius. lnqui- nitência oficial. Realiza-se em três tempos, cronologi­
ries and Reappraisals, London 1968; G. Greshake, camente separados: 1. Entrada na penitência, com o
Gnade als konkrete Freiheit Eine Untersuchung zur consenso do bispo, no curso de uma cerimônia comu­
Gnadenlehre des Pelagius, Mainz 1972; O. Wermelin- nitária (petere, accipere paenitentiam). 2. Permanên­
ger, Rom und Pelagius..., Stuttgart 1975; V. Grossi, em cia, mais ou menos longa, na ordem dos penitentes
Patrologia III, 437-458; ld., La crisi antropologica nel (ordo, status paenitentiwn). 3. Readmissão na comu­
monastero di Adruineto: Augustinianum 19 (1979) nhão mediante a imposição das mãos feita pelo bispo,
103-33; Id., Pelagio: DIP 6, Roma 1980, 1327-1330. comumente na Quinta-feira Santa, diante da comuni­
V. Grossi dade reunida (reconciliado).
PENITÊNCIA Já que este processo não era reiterável, os peca­
dores ainda jovens são excluídos da penitência, por
I. Penitência e reconciliação - II. Iconografia - III. Li­
causa de uma possível recaída no pecado, pois neste
vros penitenciais. caso a igreja oficial nada pode fazer por eles. Exigin­
I. Penitência e reconciliação. A reconciliação pri­ do o estado de penitente a continência perfeita e defi­
meira e única é concedida pelo batismo, pelo qual são nitiva, bem como o abandono de todo cargo público.

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