Você está na página 1de 17

A presentação de

J acques B e r l io z

Monges e Religiosos
na Idade Média

Terramar
Este livro resulta de uma recolha de artigos inicialmente publicados
pela revista L ’Histoire e posteriormente editados, sob a forma de
livro, pelas Éditions du Seuil. A apresentação de Jacques Berlioz
foi expressamente escrita para este livro.

FICHA TÉCNICA

C Socieii dÉdilions Scientifiques. 1994


Titulo original: Moines et Religieux au Moyen Age
Edição original: Édilions du Seuil, Paris. 1994
Tradução: Teresa Pire:

ISBN: 972-710-127-5

Todos os direitos desta edição reservados por


TERRA MAR - Editores. Distribuidores e Livreiros, Lda.

LISBOA-PORTUGAL
As ordens mendicantes
Jacques Le Goff

A inscrição no espaço de uma manifestação religiosa ou,


com mais forte razão, de uma instituição religiosa é rica de sen­
tido. Árvores ou fontes sagradas, postes totémicos, templos, igre­
jas não se situam em qualquer parte. A sua implantação releva
de uma relação dupla, com o divino e com o terreno, com o
sagrado e com o social. Aqui, a topografia, como acontece com
frequência, mais que de comodidade natural, é suporte de
significação simbólica. As ordens religiosas cristãs não fugiram
a esta ligação reveladora com a geografia: situação e localização.
Um dístico que se tomou proverbial a seguir à Idade Média
declarava:

Bemardus valles, montes Benedictus amabat,


Oppida Franciscus, celebres Dominicus urbes.
«Bernardo amava os vales, Bento as montanhas,
Francisco as povoaçôes, Domingos as cidades populosas.»

Assim eram sublinhados, por um lado a ligação do mona-


quismo antigo ou novo, beneditino e cisterciense, com a nature­
za e a solidão, por outro lado a dos irmãos mendicantes, fran-
ciscanos e dominicanos, que não são monges, com as cidades e
os homens que as habitam.
228 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

Os pecados da cidade

Porquê esta atracção pelas cidades por parte das novas or­
dens? Na viragem do século XII para o século XIII, o grande
movimento de urbanização iniciado no século XI abarca, com
alguns desníveis, toda a Europa da cristandade latina: o norte de
França, a Flandres, a Renânia, o norte e o centro da Itália vão à
frente, mas da Escandinávia à Península Ibérica, da Inglaterra à
Polônia, um novo mundo urbano se afirma através dos novos
valores e dos comportamentos, do gosto pelas trocas, comerciais
ou intelectuais, do preço do trabalho, do tempo e do dinheiro
mais justamente calculado, da procura da segurança e do conforto
em novos códigos de habitação, de alimentação e de vestuário,
de novas formas de sociabilidade mais igualitárias, tais como a
corporação ou a confraria. A palavra que está na moda é univer-
sitas, que designa o conjunto dos cidadãos da cidade, dos homens
de um oficio e, nomeadamente, do novo oficio intelectual que
aparece nas escolas urbanas. Mas esses homens e essas mulheres
urbanizam-se sem se aperfeiçoarem. São entes duplamente
pecadores: aos pecados tradicionais do mundo rural e senhoria!
donde vêm — orgulho e inveja — acrescentam-se os pecados
próprios da cidade — a cupidez (a avariíia, que destrona a su-
perbia da liderança dos sete pecados capitais) e as formas novas
da gula e da luxúria, neste universo de grande farra e de
prostituição. A cidade é pagã, há que convertê-la.
Pior ainda: a cidade é muitas vezes herética; a vaga das con­
testações heterodoxas, das quais as dos valdenses e dos cátaros
são as mais evidentes e as mais numerosas, ameaça o cristianis­
mo oficial. O clero secular, insuficiente em número, instrução e
bons costumes, o monaquismo dominado pelo desprezo pelo
mundo (contemptus mundi), a ideologia da solidão e a absorção
no contexto feudal são impotentes. A nova sociedade urbana
precisa de um apostolado novo. Esses novos apóstolos serão os
irmãos mendicantes. Mas antes de se instalarem nas cidades, as
novas ordens tiveram sérios problemas a resolver. Tendo be-
AS ORDENS MENDICANTES 229

As ordens mendicantes

As ordens mendicantes surgem no século XIII. Receberam essa


designação desde essa época porque a sua maneira de subsistir
pelo peditório e não pela recepção de dizimos e de proventos de
tipo feudal impressionaram os contemporâneos. A mendicidade
— que eles praticam de uma maneira diferente dos “verdadeiros”
mendigos — é um “valor” e um comportamento discutidos no
século XIII. As duas principais ordens mendicantes são a ordem
dos irmãos pregadores (comummente chamados hoje dominica­
nos e. na França medieval, jacobins por causa do nome do seu
convento, Saint-Jacques, de Paris), fundada pelo espanhol
Domingos de Calaruega (ap. 1170-1221, canonizado em 1233) e
a ordem dos irmãos menores (comummente chamados hoje fran-
ciscanos e, na França medieval, cordeliers por causa do grosso
cinto de corda da sua túnica), fundado pelo italiano Francisco de
Assis (1181-1226, canonizado em 1228).
Os mendicantes não são monjes, mas irmãos que vivem entre
os homens e não na solidão. Tendo o quarto concilio de Latrão
(1213) proibido a formação de ordens que observassem novas re­
gras, os dominicanos adoptaram a regra dita de Santo Agostinho e
apresentaram-se pois canonicamente como cônegos regulares. Em
virtude de uma ficção segundo a qual S. Francisco teria apresenta­
do à Santa Sé um projecto de regra anteriormente a Latrão IV, os
franciscanos tiveram em 1223 uma regra redigida por Francisco
de Assis após um primeiro projecto recusado em 1221 pela cúria
romana. As duas ordens são dirigidas por um cabido geral que se
reúne de três em três anos e elege um mestre geral no caso dos
dominicanos e um ministro geral no dos franciscanos.
Outras ordens adoptaram no decorrer do século XIII o modelo
mendicante mas o segundo concilio de Lião em 1274 deixou sub­
sistir apenas quatro ordens mendicantes: os pregadores, os meno­
res, os carmelitas (Irmãos da Bem-Aventurada Virgem Maria do
Monte Carmelo), reconhecidos em 1247, e os agostinhos (eremi­
tas de Santo Agostinho), formados pela reunião de diversos gru­
pos eremíticos em 1243 e em 1256.
230 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

neficiado desde muito cedo do apoio da cúria romana e dos


príncipes laicos — Branca de Castela e S. Luís, por exemplo,
favoreceram-nos muito — , foram com m uita frequência
sustentados pelos bispos e puderam, no conjunto, triunfar com
bastante facilidade sobre a hostilidade do clero paroquial que
via neles — com justa razão — concorrentes.
Contudo, era preciso encontrar um local para construir os
seus conventos e as suas igrejas, arranjar os meios para construir
esses edifícios, assegurar os recursos necessários para viver,
manter os conventos, desempenhar o papel tradicional dos mem­
bros da Igreja face aos pobres e aos necessitados. Embora os
testemunhos formais sobre o estudo preliminar destas condições
só sejam precisos em relação à Baixa Idade Média, é possível, a
partir dos processos e das demoras da fundação dos conventos
e dos mapas desses conventos, concluir que o estabelecimento
dos mendicantes nas cidades foi cuidadosamente planifícado.
Dominicanos e franciscanos constituíram, quase ao mesmo
tempo, as suas redes, com a diferença de que os dominicanos
preferiam estabelecer conventos bastante grandes em cidades
bastante importantes, ao passo que os franciscanos estavam
desejosos de instalar também conventos mais pequenos em
aglomerações urbanas mais modestas.
As outras ordens mendicantes mais tardias alojaram-se
sobretudo nos interstícios deixados livres pelas duas grandes
ordens e nas cidades mais importantes que podiam tolerar a ins­
talação de mais de dois conventos mendicantes. Antes de 1294,
as grandes cidades receberam dentro dos seus muros uma mul­
tiplicidade de conventos mendicantes. Paris, a maior cidade da
cristandade latina, acolheu sete (oito, se contarmos os trinitários).
Há três tipos de documentos que ilustram esta planifícação
do estabelecimento das ordens mendicantes nas cidades.
Uns precisam os processos a utilizar para a fundação de um
convento no século XIII. Por exemplo, os dominicanos exigiam
duas fases preparatórias: I) uma inciativa atribuída a um
AS ORDENS MENDICANTES 231

generoso doador ou a um religioso da província (a cristandade


foi dividida por cada ordem em territórios chamados províncias)
fazia surgir a “candidatura” de uma cidade, mas parece que o
mais frequente era a iniciativa partir dos superiores da ordem;
2) a tomada em consideração era decidida a dois níveis: primeiro
pelo prior provincial e os definidores da província, seguidamente
pelo cabido geral. A fundação propriamente dita fazia-se em
três momentos distintos:
I) um ou vários religiosos eram enviados ao local para se
informarem das “vias e meios” da fundação; 2) um lugar (isto é,
uma cidade) era recebido como propício à fundação de um con­
vento e para lá eram enviados irmãos para preparar a fundação
definitiva; 3) o convento era definitivalmente fundado, com um
prior, um leitor, irmãos clérigos e conversos, sendo o número
estatutário de um prior e doze irmãos no mínimo. Os fracassos
parecem ter sido muito pouco numerosos.
Textos pontificais precisam, por outro lado, a forma como o
espaço no interior da mesma cidade devia ser repartido entre as
diferentes ordens mendicantes. O papa Clemente IV unificou
na bula Quia plerumque de 28 de Junho de 1268 diveras medi­
das promulgadas anteriormente. A distância mínima que devia
separar as igrejas de duas ordens mendicantes no interior de
uma cidade era fixada em trezentas carmes em linha recta, isto
é, cerca de quinhentos metros (é preciso não esquecer que a
maior parte das cidades medievais contavam apenas alguns mi­
lhares de habitantes numa superfície pequena).
Finalmente, documentos mais tardios fornecem pormenores
sobre as condições requisitadas para o estabelecimento de um
convento mendicante, condições examinadas no decurso de um
inquérito prévio. Uma bula de Bento XIII em 1404, pela qual o
Papa reconhecido em França (estamos no tempo do Grande Cis­
ma) autoriza a fundação de um convento de dominicanos na
Bretanha, em Guérande, enumera as condições satisfeitas: I) a
distância entre Guérande e a cidade com um convento men­
dicante mais próxima (Nantes) é satisfatória: é de catorze lé­
232 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

guas, cerca de 60 quilômetros; 2) "a cidade está situada numa


região povoada, fértil e abundante, perto do mar, e recebe a
visita regular, por terra e por mar, de numerosos mercadores
vindos de todas as partes do mundo”; 3) o número da população
é superior ao mínimo necessário, três mil habitantes. A punçâo
efectuada nos recursos da cidade pelos peditórios permitirá pois
aos irmãos “subsistir e fazer face aos encargos que lhes compe­
tem”.
As ordens parecem assim ter “quadriculado” todo o espaço
urbano da cristandade a tal ponto que o mapa dos conventos
mendicantes se confunde com o mapa urbano e que o “critério
mendicante” pode surgir como o melhor meio de referenciar a
rede urbana numa época em que o vocabulário urbano é muito
incerto e as definições da cidade muito vagas.
Por exemplo, em França no ano I33S existem 222 aglome­
rações “com conventos mendicantes” e é possível estabelecer
uma lista das cidades por níveis de importância. As “grandes
cidades” — cidades com 3 ou 4 conventos mendicantes — são
em número de 52,37 das quais no reino tal como era então e 15
nos limites da França actual, mas fora do reino no século XV.
Deste número, 28, as maiores de entre as “grandes”, têm 4 con­
ventos: Agen, Angers, Baiona, Béziers, Bordéus, Cahors,
Carcassona, Figeac, La Rochelle, Orleães, Limoges, Lião,
Montpellier, Narbona, Pamiers, Paris, Reims, Ruão, Tolosa e
Tours, no reino; Aix, Aries, Avinhão, Marselha, Metz, Nice,
Perpinhão e Estrasburgo fora do reino. 24 delas têm 3: Albi,
Amiens, Arras, Bergerac, Burges, Caen, Châlons-sur-Mame,
Clermont, Condom, Lectoure, Le Puy, Limoux, Millau, Mon-
tauban, Nantes, Nimes e Valenciennes, no reino; Bourg, Colmar,
Draguignan, Grasse, Haguenau, Verdun e Vissemburgo, fora
do reino. A mesma relação estreita entre o mapa urbano e o
mapa da implantação mendicante foi verificada no que se refere
à Hungria medieval.
AS ORDENS MENDICANTES 233

Uma palavra nova

Descobrímos, através da implantação e da acção dos con­


ventos mendicantes, as relações entre cidades e campos tais como
eram na Idade Média. A cidade domina o campo circundante.
Os dominicanos, por exemplo, limitam em tomo de cada um
dos seus conventos urbanos um território — que se pode con­
siderar como “o interior” da cidade — a que chamam praedi-
catio, território de pregação de facto mas também de peditório,
completando o espaço de apostolado e de exploração da cidade
propriamente dita. Humberto de Romans, mestre-geral dos do­
minicanos de 1254 a 1263, enumera entre os três motivos prin­
cipais da escolha das cidades como local de estabelecimento
dos conventos da ordem o facto de pelas cidades se chegar ao
campo, pois o campo imita a cidade. Resta dizer que os mendi­
cantes raramente procuraram instalar-se directamente num meio
rural e que, quando procuraram fazê-lo. isso constituiu quase
sempre um fracasso, como na Toscana no século XIV.
O período em que as ordens mendicantes chegam às cidades,
no segundo terço do século XIII, é também aquele em que
começa a funcionar a nova rede paroquial que então se esta­
beleceu, com um desnível mais ou menos grande tendo em conta
o extraordinário crescimento urbano do século. Face a esta rede
paroquial, os conventos mendicantes. mesmo nas cidades onde
eles partilham entre várias ordens o espaço urbano, formam uma
rede extra-paroquial e supra-paroquial. Os conventos men­
dicantes não “cobrem” apenas uma parte do território urbano,
mas sim o seu conjunto. E um primeiro contratempo. Há outros.
O primeiro é a palavra, e não apenas para os pregadores.
Desde finais do século XII, face aos hereges que discutem nas
praças públicas, face à sociedade urbana que tem necessidade
de que lhe falem de maneira diferente de Deus e da sua sal­
vação, uma palavra nova começa a fazer-se ouvir. A pregação
conhece um impulso extraordinário e uma metamorfose pro­
funda. Não caí já do alto sobre o povo dos fiéis, mas dirige-se
234 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

verdadeiramente a ele. Esforça-se por lhe falar dos seus proble­


mas específicos e distingue auditórios segundo as suas activida-
des socio-profissionais, o seu “estado” (sermones ad status):
sermões para os clérigos, para os universitários, para os
negociantes, os artesãos, os camponeses, etc. Recorre a narrativas
que divertem, apela para a fábula ou para a vida do dia-a-dia: os
exempla.
Entre os dominicanos, as igrejas comportam por vezes duas
naves, como nos jacobins de Paris, ou nos de Tolosa, das quais
uma, reservada aos leigos, lhes oferece um espaço particular de
audição. A pregação acabará por sair às praças, em púlpitos
exteriores, provisórios ou permanentes (em Paris, em 1439,
Michelozzo e Donatello constroem e ornamentam um), o ser­
mão com os seus pregadores populares em voga, verdadeiros
“ídolos” da multidão, tomará proporções de meeting.
Os mendicantes também sabem encontrar a fórmula que satis­
faz as aspirações dos leigos a viver uma vida espiritual que seja
simultaneamente a sua e os associe à dos clérigos. É a descoberta
das Ordens Terceiras, que tem lugar no final do século XIII.
O êxito é menor no que se refere às mulheres. Desde cedo,
os franciscanos, graças a S. Francisco e à sua amiga Santa Clara,
criam uma ordem feminina, as clarissas, cuja atracção porém
não é maior que a que exerce em muitas mulheres, na cidade,
um novo gênero de vida a meio-caminho entre a vida laica e a
vida religiosa, o das beguinas. É certo que são as ordens mendi­
cantes que tomam a seu cargo o enquadramento espiritual das
beguinas. Em Paris, as superioras das beguinas são enterradas
nas igrejas dos jacobins e na beguinaria criada por S. Luís entre
o Sena e a igreja de S. Paulo os pregadores são na sua maioria
irmãos mendicantes. Mas a segunda ordem dos pregadores só
dificilmente chega a constituir-se e as irmãs dominicanas —
como as clarissas — mantêm-se enclausuradas, numa presença
reclusa na cidade.
Os mendicantes são mais felizes com os mortos. Sabem ser
os mais zelosos na assistência aos moribundos, ajudam à re­
AS ORDENS MENDICANTES 235

dacção da nova forma de expressão das últimas vontades, os


testamentos, acolhem, por um golpe de gênio, os cadáveres lai­
cos não só nos cemitérios contíguos às suas igrejas, mas no in­
terior das próprias igrejas, ao lado dos irmãos. São os melhores
propagandistas da crença nova no Além, intermediário entre o
Inferno e o Paraíso, terceiro reino onde se pode ainda ser resga­
tado entre o juízo individual que se segue imediatamente à morte
e o juízo final: o Purgatório, nascido, enquanto lugar específi­
co, no final do século. Ora, escreveu-o o cisterciense Cesário de
Heisterbach por volta de 1220, o Purgatório, para muitos peca­
dores dantes votados ao Inferno, é a esperança.
Promotores — mas não inventores a maior parte das vezes
— de devoções novas, é também o culto mariano que eles
difundem, por vezes graças a novas utilizações da oração, tal
como o rosário que os dominicanos lançam ou o uso do
escapulário espalhado pelo bem-aventurado Simão Stock,
mestre-geral dos Carmelitas, morto em 1258.
Sobretudo eles tomam-se os grandes especialistas da nova
forma da confissão, a confissão auricular imposta a todos os
cristãos pelo menos uma vez por ano pelo quarto concilio de
Latrão de 1215. Revolução espiritual e psicológica que cria um
diálogo insólito entre os sacerdotes e os leigos, desenvolve o
exame de consciência, sofistica a casuística moral. Para colocar
as boas questões e dar-lhes as respostas apropriadas, as que têm
em conta os problemas religiosos colocados pelas novas activi-
dades urbanas e as novas mentalidades que estão ligadas, são
preciosos manuais, os manuais do confessor. Os redactores dos
manuais de êxito nos séculos XIII e XIV são quase todos men-
dicantes.

Influência social e política

Assim, os mendicantes fornecem as justificações religiosas


de que a sociedade urbana tem necessidade. Surgem numerosos
236 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

mestres e estudantes que têm de encontrar formas de subsistên­


cia fora das escolas monásticas e episcopais. Os espíritos
tradicionais acusam-nos de vender a ciência que só a Deus per­
tence. Os mercadores que se multiplicam e detêm na cidade os
lugares mais favoráveis praticam o empréstimo a juros e outras
formas de actividade cujo benefício vem do facto de poderem
adiantar dinheiro. A Igreja tradicional acusa-os de praticar a
usura e de vender o tempo, que, também ele, só a Deus per-
cence. As ordens mendicantes legitimam o essencial da activi­
dade dos universitários e dos mercadores, fazendo valer o seu
trabalho que merece ser remunerado.
De maneira geral, os mendicantes favorecem e legitimam a
nova sociabilidade. Os conselhos municipais, as universidades,
instituições novas, durante muito tempo não têm locais pró­
prios. Almotacés, cônsules, universitários reúnem-se nas vastas
igrejas dos conventos mendicantes.
As gentes das cidades exprimem a sua devoção através das
organizações novas, as confrarias. Os mendicantes criam e
enquadram as principais confrarias— a da Virgem, a do Espírito
Santo, a de S. Domingos, por exemplo — , sob o impulso dos
pregadores.
Quando podem fazê-lo, em Itália sobretudo, região das
Cidades-Estado, os mendicantes dominam a vida espiritual e a
política inteira das cidades. No norte de Itália, em 1233-1234, o
“revivalismo” religioso do Alleluia, dirigido pelos dominicanos
e pelos franciscanos, conduziu a uma reforma dos estatutos
comunais e a acordos de paz entre as classes e as facções de
habitantes. As medidas visam os hereges, abolem as disposições
contrárias às liberdades eclesiásticas, reprimem o luxo, a liber­
tinagem e a usura. É o caso de Parma, de Bolonha, de Vermeuil,
de Milão, etc. Numa cidade como Foligno, os mendicantes
surgem no começo do século XIV como os garantes de uma
verdadeira “república eclesiástica”.
O século XIII assiste ao nascimento do urbanismo e do patrio­
tismo urbano. Os mendicantes encontram-se na primeira fila
AS ORDENS MENDICANTES 237

deste movimento. Como em muitas cidades o urbanismo e a


implantação dos mendicantes são contemporâneos, os conven­
tos mendicantes modelam a nova morfologia urbana. Em mui­
tas destas cidades, a presença das três principais ordens, (domi­
nicanos, franciscanos e agostinhos), traduz-se por um modelo
de estrutura triangular (cf. E. Guidoni): foi o que se passou em
Sena, em Cortona, em Palermo, em Colmar. Quando, no início
do século XIV, os pregadores constroem a sua igreja de San
Domenico em Sena com a sua praça, exprimem as suas preo­
cupações simultaneamente práticas (criar um espaço idôneo de
pregação) e estéticas (realizar um belo edifício e embelezar a
paisagem urbana). Na segunda metade do século XIV o fran-
ciscano catalão Francesch Eximeniç traça no seu Regiment de
Princeps o plano da cidade ideal: é um quadrilátero, com a praça
da catedral ao centro, dividido em quatro bairros, tendo cada
um no seu centro uma praça “grande e bela”, a de cada uma das
ordens mendicantes.
Os mendicantes desempenham também um papel importante
no desenvolvimento, no final da Idade Média, de uma histo­
riografia propriamente urbana, de uma história de que as cidades
são as heroínas.
No decurso desta urbanização dos mendicantes, estes não
deixaram de estar cada vez mais ligados aos grupos dominantes
das cidades, isto é, a essas famílias a que se chama o patriciado
(nobres e burgueses) e de quem acolhiam nas suas igrejas os
monumentos funerários ostentatórios, como se pode ainda ver
em Florença e em Veneza. A sua obra de recuperação, de justi­
ficação da sociedade urbana acompanhava o reforço da domi­
nação dos ricos e dos poderosos. Estudando o alargamento dos
conventos dos jacobins de Tolosa, o padre Vigário demonstrou
que num primeiro período (1229-1234), os pregadores cons­
troem um convento baixo e pobre unicamente com as esmolas
da população sem distinção social; num segundo (1242-1254),
beneficiam além disso do apoio de uma parte das grandes famí­
lias de Tolosa; na última campanha (1275-1340), graças à ge­
238 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

nerosidade dos prelados do Meio-Dia e de Avinhão e da elite


urbana, constroem uma igreja e um convento cheios de magni­
ficência.
No seus sermões pronunciados em Florença de 1303 a 1309,
o dominicano Ciordano de Pisa exalta a solidariedade da comu­
nidade urbana e exprime o seu menosprezo pelos rurais; mas ao
pregar um modelo escatológico que não tem consequências para
a vida quotidiana, ao limitar a um nível psicológico a acção
penitencial que ele insufla, ele justifica e fortalece os poderes
dos senhores da cidade.
Não é pois de espantar que as críticas feitas desde meados
do século XIII no interior e no exterior da ordem (pelos poetas
Rutebeuf e Guillaume de Meung), depois de ter vilipendiado o
irmão mendicante hipócrita, a construção de conventos afasta­
dos do espirito de pobreza e de humildade, o enriquecimento de
ordens que se viravam cada vez mais para a posse de rendas
urbanas, tenham desembocado numa franca crítica anti-urbana.
Os agostinhos passam dificilmente “de eremitas para ci­
dadãos” (ex heremitis urbaniste). S. Boaventura, contra uma
fracçâo de espirituais animados do espirito do “deserto”, teve
de defender a implantação na cidade. No concilio de Viena em
1311, o franciscano contestatário Ubertino de Casaie escan­
daliza-se com a construção, no coração das cidades, em pleno
centro da especulação imobiliária, de sumptuosos conventos
mendicantes. No século XV, os franciscanos observantes
retomam estas críticas e alguns, na Bretanha, por exemplo,
querem inverter o movimento estabelecendo conventos nas flo­
restas e nas ilhas. Muita gente pensava que os mendicantes ti­
nham sido perdidos pelas cidades que haviam querido salvar.

Orientação bibliográfica

Obras em francês:
A. Vauchez, “Une campagne de pacification en Lombardie autour
de 1233. L’action politique des ordres mendiants d'après Ia réforme
AS ORDENS MENDICANTES 239

des status communaux et les accords de paix”, em Mélanges de l 'Ècole


Française de Rome, 78, 1969, pp. 503-549.
J. Kloczowski, “Les ordres mendiants en Pologne à Ia fin du Moyen
Age”, em Acta Poloniae Histórica. XV, 1967, pp. 5-38.
J. Le Goff, “Apostolat mendiant et fait urbain dans Ia France medié-
vale: 1'implantation des ordres mendiants. Programme. Questionnaire
pour une enquête”, em Annales ESC, 1968, pp. 335-352.
J. Le Goff e diversos autores, “Ordres mendiants et urbanisation
dans Ia France médiévale”, em Annales ESC. número especial His-
toire et Urbanisation, 1970, pp. 924-965.
E. Fugedi, “La formation des villes et les ordres mendiants en Hon-
grie”, em Annales ESC. ibid., pp. 966-987.
C.-M. De La Roncière, “L’influence des franciscains dans Ia campa-
gne de Florence au XI Ve siècle (1280-1360)”, em Mélanges deVÈcole
Française de Rome, Moyen Age-Temps modemes, 70,1975.
M.-H. Vicaire, Dominique et ses Prêcheurs, F ri burgo (Suiça), Édi-
tions universitaires, Paris, Le Cerf, 1977.
A. Vauchez, éd. Mouvements Franciscains et Société Française
(XUe XXe siècle), Paris, Beauchesne, 1982.
T. Desbonnets, De 1'lntuition à 1'lnstituition. Les franciscains. Pa­
ris, 1983.
R. Manselli, Saint François d'Assise, Paris, Les Éditions francis-
caines, 1981.
R. Favreau, “Les ordres mendiants dans le Centre-Ouest au Xllle
siècle”, em Bulletin de ta Société des Antiquaires de 1‘Ouest, 1977,
pp. 9-35.
A. Guerreau, “Analyse factorielle et analyses statistiques classiques:
le cas des ordres mendiants dans Ia France médiévale”, em Annales
ESC. 1981, pp. 869-912.
“Les mendiants en Pays d ’Oc au Xllle siècle”, Cahiers de Fan-
jeau. 8, Tolosa, 1973.
H. Martin, Les Ordres Mendiants en Bretagne (v. 1230-v. 1530),
Paris, 1975.
Les Ordres Mendiants et Ia Filie en Itaiie Centrale (v. 1220-v. 1350),
Roma, École française de Rome, 1978.
B. Montagnes, Architecture Dominicaine en Provence, Paris, éd.
doCNRS, 1979.
240 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

Obras publicadas sem ser em França:


D. L. d’Avray, The Preaching o f lhe Friars. Sermons diffusedfrom
Paris before 1300, Oxford, Clarendon Press, 1985.
R.C. Trexler, Naked before lhe Falher. The Renunciation o f Fran-
cisofAssisi, Nova Iorque, P. Lang, 1989.
G. Micopli, Francesco dAssisi. Reallà e memória di un esperienza
cristiana, Turim, Einaudi, 1991.
K. Elm, ed., Stellung und Wirksamkeit der Betterlorden in der
stâdtischen Gesellschafl, Berlim, 1983.
R. Manselli, Nos qui cum eofuimus. Contributo alia questionefran-
cescana. Roma, Instituto Studico dei Cappuccini, 1980.
Francescanesimo e vila religiosa dei laia nel '200, Assis, Univer-
sità degli studi di Perugia, 1981.
R. W. Emery, The Friars in Medieval France. A Catalogue ofFrench
Mendiant Convents, 1200-1550, Nova Iorque e Londres, 1961.
D. R. Lesnick, “Dominican preaching and the creation o f capitalist
ideology in late-medieval Florence”, em N. S. n.° 89, 1977-1978, pp.
199-247.
LeScuole degli Ordini Mendicanti (secoli XIII-XIV). Atti dei XVII
Convegno di Studi (1976), Todi, 1978.
E. Guidoni, “Cità e ordini mendicanti: il ruolo dei conventi nella
crescita e nella progettazione urbana dei XIII e XIV secolo”, em Qua-
derni Medievali, 4, 1977, pp. 69-106.
D. L. d'Avray, “Sermons to the upper bourgeoisie by a thirteenth
century Franciscan”, em Studies in Clmrch History, ed. D. Baker, 1979,
pp. 187-199.
Francescanesimo e Società Cittadina: Vesempio di Perugia, Peru­
gia, 1979.
C. Delcomo, Giordano da Pisa e FAntica Predicazione Volgare,
Florença, 1975.
B. E. J. Stüdeli, Minoritersniederlassungen und mittelalterliche
Stadt. Beitrâge zur Bedeutung von Minoriten - und anderen Mendikant
enanlagen offentlichers Leben der mittelalterlichen Stadtgemeinde,
insbesondere der deutschen Schweitz, Werl/Westf, 1969.
L. Pellegrini, “L’ordine Francescano e Ia società cittadina in epoca
bonaventuriana, un analisi dei «Determinationes»”, Laurentianum,
15, 1974, pp. 154-200.
A. Benvenuto Papi, “Ordini mendicanti e città. Appunti per un
indagine, il caso di Firenze”, Da Dante aCosimo. I Richerche distoria
AS ORDENS MENDICANTES 241

religiosa e culturale loscana nei secoli XIV-XVI, ed. D. Maselli, Pis-


toia, 1976.
Lester K. Little, Religious Poverty and lhe Profit Economy in Me­
dieval Europe, Londres, 1978.
J. B. Freed, The Friars and German Socieiy in lhe Thirteenth Cen-
lury, Cambridge, Mass., 1977.

Você também pode gostar