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A presentação de

J acques B e r l io z

Monges e Religiosos
na Idade Média

Terramar
Este livro resulta de uma recolha de artigos inicialmente publicados
pela revista L ’Histoire e posteriormente editados, sob a forma de
livro, pelas Éditions du Seuil. A apresentação de Jacques Berlioz
foi expressamente escrita para este livro.

FICHA TÉCNICA

C Socieii dÉdilions Scientifiques. 1994


Titulo original: Moines et Religieux au Moyen Age
Edição original: Édilions du Seuil, Paris. 1994
Tradução: Teresa Pire:

ISBN: 972-710-127-5

Todos os direitos desta edição reservados por


TERRA MAR - Editores. Distribuidores e Livreiros, Lda.

LISBOA-PORTUGAL
S. Domingos, “o mal-amado”
André Vauchez

Não se teria a posteridade enganado? Se a figura de S. Fran­


cisco, o Pobre de Assis, suscita estima e simpatia mesmo no
exterior do mundo cristão, a de S. Domingos mantém-se pouco
atraente. Michelet contribuiu em larga medida para fazer de Do­
mingos o "terrível fundador da Inquisição'’. Sem qualquer in­
dulgência, escrevia ele em 1861: "Ninguém mais do que ele
teve o dom das lágrimas, que com tanta frequência se alia ao
fanatismo.” 1 Dois historiadores dominicanos, o padre M.-H.
Vicaire e padre G. Bedouelle2, chamaram a si a tarefa de reagir
contra estas idéias que consideram falsas.
Nascido em Caleruega, uma terra castelhana, por volta de
1170, Domingos de Gusmão (G tizm án\ oriundo de uma família
nobre, foi desde muito cedo destinado ao estado clerical. Por
volta de 1186, foi enviado para as escolas de Palença. Segundo
uma tradição a que não falta verosim ilhança, ter-se-ia
distinguido desde essa época pela sua caridade, não hesitando
em pôr à venda os livros da sua biblioteca para poder distri­
buir esmolas aos pobres depois de uma fome generalizada se
ter abatido na região. Em 1196, o jovem clérigo foi eleito cône­
go do cabido da catedral de Osma, primeira etapa de uma
carreira eclesiástica brilhante, à qual as suas origens sociais e
a sua formação escolar pareciam destiná-lo.
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Em 1203, o jovem subprior do capítulo de Osma acompa­


nhou o seu bispo, Diego, numa missão diplomática que os le­
vou à Dinamarca. Tendo, de caminho, atravessado o condado
de Tolosa e pernoitado nessa cidade, patentearam os êxitos aí
alcançados pela heresia cátara e ressentiram-se disso. Uma se­
gunda missão levou os dois homens à mesma região em
1205-1206; tiveram ocasião de encontrar, em Montpellier, os
legados cistercienses que o Papa Inocêncio III tinha enviado ao
Linguadoque para aí pregarem contra os “Albigenses”. Desen­
corajados pelo mau acolhim ento encontrado junto das
populações locais, os cistercienses pediram conselho ao bispo
de Osma, que criticou vivamente a amplitude da sua equipagem
e o luxo das suas vestes: “Não é assim, irmãos, que se deve
proceder” — ter-lhes-ia declarado — “pois os hereges mostram
as aparências da devoção e dão às gentes o exemplo mentiroso
da frugalidade evangélica e da austeridade. Portanto, se expondes
maneiras de viver opostas, edificais pouco, destruireis muito e
as gentes recusar-se-ão a aderir [à Igreja católica].”
Domingos não esquecería esta lição. Renunciou logo ao seu
título de subprior para passar a chamar-se irmão. Com Diego e
alguns clérigos que se lhes juntaram, empreendeu, sem aparato
nem escolta, uma campanha de pregação itinerante através das
províncias eclesiásticas de Narbona e Tolosa. O seu programa
de evangelização baseava-se na imitação dos Apóstolos, tema
que havia inspirado numerosos pregadores do século XII.
Tratava-se de anunciar a palavra de Deus na humildade e na
penitência, de pôr em prática a mendicidade que testemunhava
o abandono à providência na vida quotidiana.
Toda a pretensão à autoridade teria sido mal recebida nesta
região onde os defensores da Igreja romana estavam em vias de
se tom ar minoritários. Diego e Domingos aceitaram pois en­
frentar os cátaros e os valdenses por ocasião de controvérsias
públicas que, sem acarretar necessariamente conversões em
grande número, contribuíram para modificar a imagem da orto­
doxia católica. Em 1207, Diego fundou, em Prouille, um centro
S. DOMINGOS. "O MAl.-AMADO” 265

de missão e uma comunidade feminina destinada a receber as


jovens vindas do catarismo para a Igreja. Confiou a sua direcção
espiritual ao seu companheiro e voltou depois para a sua dioce­
se. onde veio a morrer pouco tempo depois.
Domingos prosseguiu a sua acção em condições bem difíceis,
porquanto os cisterciences, desiludidos pelos magros resulta­
dos obtidos nesta região, voltaram para o norte da França e a
cruzada provocada pelo assassinato do legado pontificai Pedro
de Castelnau se abateu sobre Tolosa a partir de Julho de 1209.
Apoiado pelo novo bispo de Tolosa, Fulco, Dom ingos
estabeleceu nesta cidade uma comunidade de clérigos. A sua
missão? Consagrarem-se à salvação das almas assistindo os
prelados no seu ensinamento e esforçando-se por suprir as insu­
ficiências do clero paroquial. Foram-lhes atribuídas três igre­
jas, cuja manutenção era assegurada pela outorga de um sexto
dos dízimos da diocese.
Esta nova congregação de pregadores foi aprovada em 1215
pelo bispo de Tolosa, com o qual Domingos se dirigiu ao con­
cilio de Latrão IV a fim de obter uma confirmação do Papa.
Inocêncio III ratificou o título de Ordo Fratrum Praedicalorum
(Ordem dos Irmãos Pregadores). Contudo, pelo facto de o
Concilio ter acabado de proibir a criação de nova ordens
religiosas, este impôs-lhe a adopção de uma regra que existia
já, a de Santo Agostinho.

M endigar p a ra viver

A ordem dominicana não teria sem dúvida conhecido o êxi­


to de que temos conhecimento se o seu fundador não tivesse
tomado, no fim do ano de 1217, a iniciativa de abandonar a
região na qual tinha nascido. Entretanto, a situação tomara-se
extremamente tensa no Linguadoque onde parecia que a única
saída seria o recurso à coacção e à guerra para reprimir a he­
resia triunfante. A ideia de gênio do fundador foi dispersar os
seus companheiros — ainda pouco numerosos nesse momento
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— pelos grandes centros urbanos da cristandade: Paris, Orleàes.


Bolonha, Madrid e Segóvia. Nestas cidades — as três primeiras
eram centros universitários afamados — , os irmãos pregadores
iriam consagrar-se aos estudos e ao reforço da sua preparação
teológica visando a pregação. A crer nos testemunhos recolhidos
quando do processo de canonização de S. Domingos, o seu fervor
e a austeridade do seu gênero de vida impressionaram os meios
intelectuais no seio dos quais fizeram numerosos recrutas de
valor.
Com o apoio da Cúria, que a cumulava de privilégios, a or­
dem dominicana depressa adquiriu uma dimensão universal:
quando da morte do seu fundador, em 1221, contava já algumas
centenas de irmãos, vinte cinco conventos e cinco províncias.
Não tardaram a associar-se-lhes comunidades femininas em
Itália, tais como as de Santa Inês em Bolonha, dirigida por Diana
de Andaio, e a de S. Sisto em Roma. No cabido geral de 1221,
ficou decidido o envio de irmãos a Inglaterra e à Hungria.
No ano anterior, em 1220, a instâncias do seu fundador, os
pregadores tinham introduzido nas suas instituições a renúncia
a toda a propriedade e a todo o rendimento. Isso implicava o
recurso à mendicidade para sobreviver. Estava pois achada a
fórmula fundamental das ordens mendicantes. Desde 1220 que
o papado apelara a Domingos para que participasse, ao lado de
outros religiosos, numa grande missão, animada pelo cardeal
Hugolino, na Lombardia. Em 1231, isto é, dez anos após a morte
do santo, Hugolino, tomado papa sob o nome Gregório IX, ins­
tituiu a Inquisição. Em 1233-1234, confiou aos seus filhos es­
pirituais o cuidado de perseguir e de extirpar a heresia do
Linguadoque e da Provença. Esses mesmos anos viram a canoni­
zação de Domingos (1234).
Em certos aspectos, os irmãos pregadores surgem como uma
criação menos original do que os irmãos menores de S. Francis­
co, quanto mais não seja porque adoptaram, como se disse, uma
regra já antiga, a de Santo Agostinho. Além disso, enquanto o
“Pobre de Assis” tinha voluntariamente associado na sua or­
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dem clérigos e leigos num pé de igualdade. Domingos de Gus­


mão fundou uma ordem de clérigos que recebiam normalmente
a ordenação sacerdotal. Os conversos (religiosos não sacerdotes)
que os assistiam eram remetidos para as tarefas materiais: asse­
gurar a vida quotidiana dos conventos e ganhar o alimento dos
irmãos clérigos indo mendigar. Parece que S. Domingos dese­
jou conferir-lhes um poder importante no seio da ordem,
confiando-lhes a inteira responsabilidade do aspecto temporal a
fim de que os pregadores, livres de toda a preocupação, pudessem
entregar-se unicamente a tarefas espirituais. Mas os seus com­
panheiros opuseram-se. Ateve-se assim a fórmulas mais tradi­
cionais, inspiradas em Cister e Prémontré, onde os conversos se
achavam subordinados aos clérigos em todos os planos.
Seria injusto dar ênfase unicamente ao que podia haver de
arcaico nas estruturas edificadas por S. Domingos. Com efeito,
como o Poverello, ele tinha compreendido a importância fun­
damental da palavra na transmissão e na educação da fé cristã.
Mas os pregadores eram clérigos e, longe de se opo.rem à cultu­
ra livresca ou de considerarem com suspeita as escolas e as uni­
versidades então em pleno desenvolvimento, procuraram logo
apoiar-se nelas para tomar mais eficaz o seu ministério. Do­
mingos dava o exemplo, trazendo sempre consigo o Evangelho
de S. Mateus e as Epístolas de S. Paulo, prescrevendo aos seus
irmãos que “não levassem consigo senão comida, roupas e li­
vros”.
O objectivo que Domingos designara para os irmãos prega­
dores era simples e grandioso: “Falar com Deus e de Deus.”
Para tal, não hesitara em dar prioridade ao trabalho intelectual;
na recitação do oficio, o ritmo da salmodia não devia ser dema­
siado lento “para não prejudicar os estudos” e ele tinha previsto
numerosos casos de dispensa a fim de que a regra não pudesse
em caso algum tomar-se um obstáculo ao cumprimento da mis­
são fundamental do pregador. Esta aposta na cultura erudita deu
os seus lucros: num mundo onde o saber teórico e prático
começava a desempenhar um papel importante e onde os profes­
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sores de teologia, de filosofia e de direito em breve iriam constitu­


ir um terceiro poder, ao lado do Sacerdócio e do Império, havia
lugar, no Ocidente, para uma ordem de “doutores”.
Todavia, S. Domingos tinha convivido bastante com os
valdenses e com os cátaros. no Linguadoque e em Itália, para
saber que a ciência dos pregadores não bastava para induzir a
adesão dos seus auditores. De resto, ele próprio parece ter sido
mais um homem de oração que de cultura, ainda que esses dois
aspectos da vida do espírito fossem indissociáveis aos seus olhos.
Para além de tudo o mais. ele achava-se animado de uma grande
compaixão pelas almas em perigo e desejava ardentemente a
salvação dos heréticos, dos pagãos e até dos condenados cujo
destino póstumo lhe arrancava abundantes lágrimas — que es­
tão na origem do juízo severo de Michelet.
A despeito de uma lenda tenaz. Domingos nunca foi inquisi­
dor, quanto mais não fosse porque a Inquisição, no sentido em
que se entende habitualmente o termo, não existia ainda. Mais:
ele tinha compreendido que a sua mensagem e a dos seus irmãos
não seria credível senão fosse apresentada na humildade e na
pobreza. Por isso recusou, por diversas vezes, o episcopado e
quis que os pregadores vivessem como os Apóstolos: andar de
pés descalços, não trazer consigo ouro nem prata, mendigar e
proclamar a vinda do Reino de Deus. S. Domingos não é menos
apegado à pobreza que Francisco, mas atribui-lhe um lugar di­
ferente. Para ele, ela é antes de mais uma arma contra a heresia;
é um instrumento, não um absoluto, nem sequer um meio de
partilhar as condições de vida dos mais desprotegidos. Os do­
minicanos mostraram-se pois rapidamente mais flexíveis que
os franciscanos neste domínio, aceitando sem escrúpulos pos­
suir as igrejas que lhes davam e os terrenos nos quais eram cons­
truídos os seus conventos.
Tudo isso não basta todavia para explicar a má reputação —
persistente— de Domingos. Já no século XI11, um cronista fran-
ciscano — é certo que bastante dado à má-língua — , Salim-
beno de Parma, notava com uma ironia pérfida que os irmãos
S. DOMINGOS, “O MAL-AMADO' 269

pregadores tinham esperado mais de dez anos antes de se aper­


ceberem da santidade do seu fundador! Mesmo que se recuse
este testemunho, como faz o padre Vicaire, não se pode deixar
de ficar surpreendido com a “discrição” com a qual Jourdain de
Saxe, o seu primeiro sucessor, evoca o papel de S. Domingos
na sua obra sobre as origens da ordem, que data de 1233. É
verdade que S. Domingos não tem nem a profundidade espiri­
tual de um Santo Inácio — não deixou qualquer obra escrita
significativa — nem o gênio poético e religioso de um S. Fran­
cisco. Muito mais que este último, Domingos de Gusmão
identifica-se com a sua ordem e não é, afinal de contas, senão o
primeiro dos dominicanos. Talvez seja afinal justificadamente
que sobre ele recaíram, com o decorrer dos séculos, todas as
simpatias ou as antipatias que os seus filhos espirituais foram
inspirando.

N otas

1Michelet, Oeuvres Completes, Paris, éd. P. Viallaneix, 1974, t. 4,


p. 657.
1M.-H. Vicaire, Histoire de Saint Dominique, Paris, Le Cerf, 1982,
2 vols. Trata-se da segunda edição, muito corrigida e enriquecida, de
uma obra aparecida com o mesmo título em 1957. G. Bedouelle, Do­
minique ou Ia Grâce de Ia Parole, Paris, Fayard/Mame, col. “Douze
hommes dans 1’histoire de 1’Église” , 1982; W. A. Hinnebusch, Breve
Histoire de VOrdre Dominicain, Paris, Le Cerf, 1990.

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