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A presentação de

J acques B e r l io z

Monges e Religiosos
na Idade Média

Terramar
Este livro resulta de uma recolha de artigos inicialmente publicados
pela revista L ’Histoire e posteriormente editados, sob a forma de
livro, pelas Éditions du Seuil. A apresentação de Jacques Berlioz
foi expressamente escrita para este livro.

FICHA TÉCNICA

C Socieii dÉdilions Scientifiques. 1994


Titulo original: Moines et Religieux au Moyen Age
Edição original: Édilions du Seuil, Paris. 1994
Tradução: Teresa Pire:

ISBN: 972-710-127-5

Todos os direitos desta edição reservados por


TERRA MAR - Editores. Distribuidores e Livreiros, Lda.

LISBOA-PORTUGAL
S. Francisco de Assis
André Vauchez

Há oito séculos — no final do ano de 1181 ou no começo de


1182 — nascia no coração da Úmbria uma personagem de
origem obscura. Era o filho de um mercador de panos que viria
a marcar a história do Ocidente de maneira muito mais profun­
da do que a maior parte dos reis ou dos papas do seu tempo:
Francisco de Assis. Decerto foi menos célebre em vida do que
os seus contemporâneos Inocêncio III ou Frederico II, mas a
influência da sua acção e o fascínio do seu ideal fazem-se sentir
ainda nos nossos dias, como o testemunham tanto a vaga cres­
cente da peregrinação a Assis como o impulso dos estudos fran-
ciscanos, ambos tendo conhecido uma constante renovação,
desde as últimas décadas do século XIX até agora. Não esque­
çamos também as numerosas famílias religiosas que, a títulos
diversos, o reclamam para si e rodeiam a sua memória de uma
veneração particular. Tudo isto contribui para fazer dele uma
figura familiar, mesmo para aqueles que são insensíveis à sua
dimensão mística: quem não ouviu falar da pregação de S.
Francisco aos pássaros ou do episódio do lobo de Gúbio?
Não está porém confirmado que a ideia que se tem habitual­
mente do Pobre de Assis (o Poverello, em italiano) abarque a
realidade histórica da personagem. A visita aos “lugares santos”
do franciscanismo pode neste ponto induzir em erro. Cida­
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de-museu e cidade-santuário, Assis conservou um cenário


arquitectónico que. no essencial, não variou desde o século XIV
e pode-se assim reconstituir sem esforço o quadro no qual se
desenrolou a vida do filho de Pietro Bemardone. Mas a calma e
o silêncio que aí se desfrutam nada evocam das suas actividades
econômicas hoje desaparecidas, assim como das lutas de partidos
e de clãs de uma extrema violência de que a cidade medieval foi
palco. Do mesmo modo, o espectáculo dos pequenos claustros
harmoniosos e floridos, reverberando o rumor das fontes e dos
cantos dos pássaros, leva por vezes o turista apressado a identi­
ficar o espírito franciscano com uma simples estética do despo-
jamento, e até com uma certa pieguice. Não será só o clima da
Úmbria que mantém a ilusão: a sua doçura primaveril ou outonal
arrisca-se a fazer esquecer os rigores da canícula dos meses de
Verão e sobretudo os do Inverno, muitas vezes rude nesta região
montanhosa; as biografias de S. Francisco estão repletas de
menções a bátegas de chuva, a caminhos cheios de neve e a
ventos glaciais dos quais lhe era bastante difícil proteger-se a
não ser acrescentando à sua túnica alguns pedaços de fazenda.
Só os eremitérios de Carceri ou de Fonte Colombo, perto de
Rieti, sugerem que a vida do Poverello e dos seus contemporâ­
neos tenha sido um tanto diferente da vagabundagem folgazã
no meio de uma natureza amena que numerosos pintores se delei­
taram a representar.
Outras razões — estas de ordem historíográfíca — fazem
com que não seja sensato aderir ao “verdadeiro” S. Francisco,
pelo menos a uma representação deste que não seja demasiado
arbitrária ou duvidosa. Esta observação pode parecer sur­
preendente tratando-se de uma personagem que não se perde na
noite dos tempos, uma vez que viveu na mesma época que um
Filipe Augusto ou um João Sem Terra, cuja biografia é bem
conhecida e se apoia em dados solidamente estabelecidos. Mas
Francisco não era um dos grandes deste mundo e, exceptuando
duas regras (a de 1221 e a de 1223) que chegaram até nós, não
deixou qualquer texto legislativo. A maior parte da sua corres­
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pondência não foi conservada e as únicas obras autênticas que


dele se conhecem são uma dúzia de cartas ou bilhetes, algumas
orações, fórmulas de louvor e bênçãos, o Cântico do Irmão Sol
ou Das Criaturas e sobretudo o Testamento que ditou pouco
antes de morrer. Conjunto precioso, é certo, mas afinal de vo­
lume pouco espesso e que — à excepção do Testamento — nos
informa mais sobre a devoção do seu autor do que sobre a sua
história. Nos textos da época, as menções do Poverello não são
muito numerosas. Fora da Itália, Jacques de Vitry — um prelado
francês que se tinha dirigido em 1216 à Cúria antes de ir
ocupar uma sede episcopal no Oriente — foi um dos raros a
discernir em vida a importância histórica do movimento
franciscano. Além disso, as passagens da sua correspondência
que lhe fazem referência ilustram sobretudo os primórdios da
ordem dos irmãos menores.
Restam as biografias. São numerosas e prolixas, mas a sua
utilização como fontes coloca aos historiadores graves proble­
mas. Todas, com efeito, foram redigidas posteriormente à cano­
nização de Francisco pelo papado, a qual teve lugar em 1228,
dois anos após a sua morte. Ora as vidas de santos e, de maneira
geral, os textos hagiográficos constituíam na Idade Média um
gênero literário bem definido, regido por um certo número de
convenções e visando a edificação. Tomar à letra e encadear
todos os episódios que figuram nas vidas medievais de S. Fran­
cisco, como fizeram certos autores modernos, constitui pois um
contra-senso. Finalmente, e acima de tudo, a biografia de S.
Francisco tomou-se rapidamente uma aposta importante e uma
fonte de contradição no seio dos irmãos menores. Temos ainda
que as diversas lendas foram compostas em função de preo­
cupações muito precisas que correspondiam a vicissitudes in­
ternas da ordem. Tal como é bem visível nas variações que
apresentam as duas primeiras biografias oficiais, obras do fran­
ciscano Tomás de Celano. Enquanto na primeira, composta em
1229-1230, o irmão El ias de Cortona (comand itário da obra com
o papa Gregório IX) ocupa um certo lugar e é apresentado sob
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uma luz favorável, a sua acção e as suas relações com S.


Francisco são evocadas em termos nitidamente mais discretos
na segunda, que data de 1246. É que entretanto esta personagem
contestada fora obrigada a abandonar a direcção da ordem e
reunira-se ao imperador Frederico II em luta contra o papado.
Mais completa que a anterior, esta última Vida só parcialmen­
te tomou em consideração as recordações que os primeiros com-
panheiros de Francisco, os irmãos Leone (morto em 1271), Ânge­
lo e Rufino, tinham relatado por escrito após 1224, por medo de
ver caída no esquecimento a verdadeira imagem daquele a quem
tinham amado e seguido. Inquietos com a evolução da ordem,
sublinhavam sobretudo o espírito de pobreza do fundador, a
desconfiança de que tinha dado testemunho face aos estudos e
o seu apego apaixonado aos valores evangélicos. Ignora-se qual
foi a forma exacta desta preciosa recolha a que se chama o Flo-
rilégio de Greccio e os especialistas ainda hoje discutem o seu
conteúdo e a sua organização interna. Mas o essencial foi trans­
mitido em dois textos compostos em meados do século XIII: a
Lenda dos Três Companheiros e a Lenda (denominada) de
Perúsia, que se revestem efectivamente de uma importância
particular. Um pouco mais tarde, um ministro geral, S. Boaven-
tura (1257-1274), desejoso de restabelecer a unidade e a con­
córdia no seio da ordem, compôs uma nova biografia oficial, a
Legenda Major, que foi a única autorizada a partir de 1266. A
maior parte dos manuscritos das biografias anteriores foram
então destruídas, o que explica— para tomar apenas um exemplo
— que tenha sido necessário aguardar o início do nosso século
para que se redescobrisse o texto da Lenda de Perúsia já citada,
assim como outras biografias de S. Francisco compostas no início
do século XV pelos franciscanos “espirituais” — isto é, hostis
ao relaxamento e às atenuações das exigências da regra em
matéria de pobreza — , como é o caso do Espelho de Perfeição.
Ainda mais tarde, nos eremitérios da Marca de Ancona, fo­
ram postas por escrito tradições orais mais ou menos folcloriza-
das. São os Actus Beati Francisci et Sociorum, recolha que
S. FRANCISCO DE ASSIS 247

obteve um êxito duradouro na sua tradução italiana de 1390


conhecida pelo nome de Fioretti. Conforme optamos por nos
apoiar essencialmente nesta ou naquela dessas fontes, obtemos
imagens de S. Francisco assaz diferentes. No fim do século
passado, o pastor protestante Paul Sabatier pôs em causa a au­
tenticidade até então incontestada das biografias oficiais (I e II
Celano, Legenda Major) e suscitou um grande escândalo ao
escrever uma Vida de S. Francisco inspirada no Espelho de
Perfeição, no qual julgava ter encontrado a Vida mais antiga do
Poverello. O santo aparece nela como uma personagem total­
mente carismática, esmagada e alquebrada pela Igreja Romana
na pessoa do cardeal Hugolino, que, sob pretexto de proteger a
ordem nascente, lhe teria imposto um quadro institucional que
repugnava a Francisco. Com esta publicação retumbante se abre
a “Questão Franciscana”, polêmica erudita que tende hoje em
dia a esgotar-se mas que levou à descoberta e à publicação de
numerosos textos inéditos. A hipótese de Sabatier era falsa, mas
teve o mérito de suscitar pesquisas que permitem hoje aos his­
toriadores avançar sobre um terreno menos minado.
Francisco, como vimos, era filho de um rico mercador de
panos que frequentava esse grande centro de trocas da Europa
da altura que eram as feiras de Champanha. Seria essa a razão
pela qual teria querido que o seu filho se chamasse Francesco
— “o Francês” — , nome próprio que não era então muito cor­
rente. Sabe-se que teve irmãos e que a mãe lhe manifestava uma
afeição particular. Pelas suas origens familiares e a sua profissão,
pertencia aos Popolo, isto é, a um grupo social que, no quadro
ainda feudal que caracterizava Assis no fim de século XII, estava
submetido à preponderância da nobreza e excluído do poder.
Mas. como em todas as cidades de Itália nessa época, a franja
superior desse Popolo — em particular os homens de negócios
e os proprietários de imóveis urbanos — tendia a aproximar-se
da aristocracia pelo seu gênero de vida. A fortuna de Pietro
Bemardone permitia assim ao seu filho viver à maneira dos
nobres e fazer parte da mocidade dourada da cidade. Chefe de
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uma confraria de alegres estroinas, tomara-se bem popular


junto dos amigos já que se achava sempre disposto a pagar-
-Ihes coisas.
Francisco, com efeito, reagiu muito cedo aos valores
dominantes do seu meio — avidez do lucro, avareza — e sofreu
a influência do ideal cortês veiculado pelas obras literárias —
canções de gesta e poemas de amor — vindas de França que
invadiam então a Itália. Foi profundamente marcado por esta
moda e, mesmo após a sua conversão, continuará a cantar poe­
mas em francês e a evocar os paladinos da Canção de Rolando
e os Cavaleiros da Távola Redonda. Seja como for, por volta
dos vinte anos foi tentado pela carreira das armas e, em 1204,
pensava colocar-se ao serviço de um condottiere para se tomar
cavaleiro quando uma doença o obrigou a renunciar aos seus
projectos.
Começou então para Francisco um período de inquietação e
de ‘Vazio na alma” que iria durar dois anos (1205-1206) e levá-lo
ao que os seus biógrafos chamam a sua conversão. Decepcio­
nado pela vida que levara até então, procurou durante muito
tempo a sua via e tomou progressivamente consciência da sua
vocação: servir não qualquer nobre dama mas a Pobreza e rea­
lizar proezas não nos campos de batalha mas ao serviço de Cristo,
cujo rosto lhe era revelado nos desafortunados. Foi nesse mo­
mento que começou a visitar e a tratar os leprosos e essa vitória
que conquistou sobre si mesmo foi de uma importância decisi­
va, como ele próprio reconheceu no seu Testamento: “Quando
os deixava, o que me havia parecido amargo tomava-se para
mim em doçura para o espírito e para o corpo. A seguir, pouco
mais esperei e disse adeus ao mundo.” De facto, não tardou a
romper de maneira espectacular com o pai, que o censurava por
dilapidar a fortuna, distribuindo pelos pobres dinheiro que não
lhe pertencia. Conhece-se, quanto mais não seja por intermédio
de Giotto que o ilustrou magnificamente, o episódio de Francis­
co despojando-e das suas roupas e restituindo-as ao pai para se
ir colocar sob a protecção do bispo Guido de Assis. Por este
S. FRANCISCO DE ASSIS 249

gesto, tomava-se um “homem religioso”, deixando de depen­


der da autoridade paterna e dos tribunais civis e passando a
depender da Igreja.
Isso não significava contudo que tivesse a intenção de se
tomar padre ou monge, coisas que nunca foi. Mas existia na
cristandade medieval um estado intermédio entre o dos clérigos
e o dos leigos: tratava-se dos penitentes, isto é, de fiéis que opta­
vam por renunciar à vida mundana sem no entanto passarem a
fazer parte das ordens. Esses convertidos (ou conversos) levavam
uma existência ascética e consagravam-se à oração e às obras
de beneficência. Francisco adoptou este estilo de vida que
começava então a conhecer um certo êxito em Itália: vestido
com um hábito de eremita, dedicou-se à reparação de pequenas
igrejas em minas na periferia de Assis, rezando e meditando
diante dos grandes crucifixos pintados sobre madeira que ali se
encontravam. Os seus concidadãos não andavam longe de o con­
siderar um louco ou um iluminado. Apesar disso, em breve se
lhe juntaram alguns companheiros originários da cidade: Ber­
nardo de Quintavalle, Pedro Cattani, Gil, Filipe, Ângelo e
Silvestre. Este último era um sacerdote que se agregou em pé
de igualdade com os outros à nova “fraternidade dos penitentes
de Assis” de que Francisco era o chefe e o animador. O grupo
instalou-se em cabanas de pedra seca, em Rivo Torto, na planície
pantanosa situada em nível inferior em relação às muralhas da
cidade. Mas um camponês desalojou-os ao ir ali instalar o seu
burro. Como não queriam entrar em conflito com ninguém,
retiraram-se e foram instalar-se na igreja de Santa Maria dos
Anjos, dita a Porciúncula, que o abade de S. Bento do Subásio
lhes concedeu depois.
Este período primitivo é evocado com emoção pelo Francis­
co dos últimos anos e pelos textos que dependem do testemu­
nho dos três companheiros: não contentes em orar apenas e ser­
vir os pobres na alegria, os irmãos anunciavam o Evangelho e
pregavam a penitência, isto é, a conversão, nas aldeias e nas
pequenas cidades da Úmbria e das Marcas. Este “tomar a
250 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

palavra”, da parte de leigos que não tinham recebido nenhum


mandato da hierarquia, nem sempre era bem recebido. Muitos
fiéis manifestavam hostilidade para com esses pés-descalços que
ninguém ou quase ninguém distinguia dos verdadeiros pobres e
os clérigos desconfiavam deles, suspeitando que pertencessem
a movimentos heréticos, então bastante numerosos.
Mas Francisco soube convencer a hierarquia da sua ortodoxia
e da sua submissão à Igreja. O encontro decisivo teve lugar em
Roma em 1210. O papa Inocêncio III. parece que não sem
algumas hesitações, acedeu a aprovar oralmente a regra que o
Pobre de Assis tinha composto para a sua pequena comunidade.
Este texto, que não foi conservado, era composto por versículos
do Evangelho encadeados e não comportava nenhum aspecto
jurídico. Confortados por este apoio, os irmãos menores — foi o
nome que então adoptaram, no seguimento de várias propostas
que surgiram — desenvolveram a sua acção apostólica em toda a
Itália central e viram afluir numerosos recrutas. Em 1212, Clara,
uma jovem da aristocracia de Assis, impressionada pela pregação
e pelo exemplo de Francisco, foge de casa para ir juntar-se a ele.
Em breve foi seguida por várias parentas e amigas que constituíram
sob a sua direcção uma comunidade de penitentes enclausuradas,
as "Damas Pobres”, que se instalam dentro em pouco no pequeno
convento de S. Damião.
A continuação já é conhecida e contentar-nos-emos em evo­
car as datas principais: em 1217, quando do cabido geral
(reunião anual de todos os irmãos que tinha lugar na Por-
ciúncula), foi decidido sair das fronteiras da Itália. O próprio
Francisco teria querido ir a França, mas o cardeal Hugolino,
com quem se encontrou em Florença, descreveu-lhe os perigos
que a sua partida se arriscava a fazer correr à sua fundação ainda
muito frágil. Não tendo essas primeiras "missões" a norte dos
Alpes dado quaisquer resultados, a experiência foi retomada
em 12 19 em melhores condições e grupos de irmãos alcançaram
a Alemanha, a França e a Hungria e em breve a Inglaterra, onde
começaram a estabelecer-se. Alguns foram até Marrocos, onde
S. FRANCISCO DE ASSIS 251

foram massacrados. O próprio Francisco partiu para a Terra


Santa, juntando-se em Damieta, no Egipto, à quinta cruzada,
que, sob a direcção de um legado pontificai, se esforçava por
quebrar o poderio militar do Islâo. Descoroçoado pelo espec­
táculo das violências que acompanharam a tomada da cidade,
partiu com um só companheiro em direcção às linhas inimigas.
Preso e conduzido diante do sultão Malek-al-Kamil, teve com
ele uma conversa sobre as questões religiosas (cuja realidade se
encontra bem estabelecida) e foi reconduzido com todas as
honras ao campo dos cruzados. Chamado a Itália pelas más novas
que lhe chegavam, encontrou a ordem em plena efervescência
em razão de certas iniciativas que tinham sido tomadas na sua
ausência pelos seus “vigários” e das tensões que começavam a
m anifestar-se no seu seio. Inquieto com esta evolução,
esforçou-se por contrariá-la dotando os irmãos menores de uma
regra e pedindo à Santa Sé a nomeação de um cardeal protector
que foi Hugolino, o futuro papa Gregório IX. *
A regra que ele compôs em 1221 não conseguiu a unanimi­
dade no seio da ordem nem foi aprovada pelo Papa. Foi preciso
esperar pelo ano de 1223 para que um último texto, que Fran­
cisco considerava como um mínimo e que possuía um aspecto
mais jurídico que os anteriores, fosse oficialmente promulgado.
Entretanto o Poverello tinha renunciado a dirigir os irmãos,
alegando o seu estado de saúde, o qual, de facto, se tomara
muito mau depois do seu regresso do Oriente onde contraíra
uma doença nos olhos. Distanciando-se de um organismo cada
vez mais espalhado e que lhe escapava, alternou campanhas de
pregação na Itália com estadas prolongadas em eremitérios, ro­
deado de um pequeno número de companheiros. Foi num deles,
o do Vema, a norte do Arezzo, que recebeu em 1224 os es­
tigmas da Paixão de Cristo, enquanto se achava absorvido na
meditação desse mistério doloroso. Os seus últimos anos foram
sob todos os espectos um calvário. Quase cego e sofrendo além
disso do baço e do fígado, foi transportado de uma cidade para
outra para aí receber os cuidados de m édicos que só
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agravaram o seu padecimento. Foi neste estado de sofrimento


e de desânimo — começava a tomar-se importuno para um
certo número de irmãos e tinha consciência disso — que
compôs em Assis o Cântico do Irmão Sol, extraordinário louvor
ao Deus criador no qual se exprime — em italiano — toda a
sua sensibilidade poética e cósmica. No Verão de 1226, o seu
estado tornou-se desesperado e foi levado para Assis onde
morreu a 3 de Outubro, depois de ter ditado o seu Testamento,
texto fundamental que dá o sentido último da sua experiência
religiosa e do itinerário que percorrera após a sua conversão.
Em 1228, foi canonizado pelo papa Gregório IX e os seus restos
mortais foram solenemente transportados em 1230 para a nova
basílica que começava a ser construída em sua honra a oeste
da cidade, num terreno plano até então reservado para os
enforcamentos.
Nessa época, a ordem dos irmãos menores contava já perto
de três mil membros e o seu êxito continuava a aumentar. Não
havia cidade de certa importância, primeiro na Itália e em breve
em toda a cristandade. que não quisesse ter dentro dos seus muros
um convento franciscano. O papado apoiava-o com todos os
seus esforços, seguro de poder contar com esta nova “milícia”
toda devotada — assim como com a ordem dos irmãos
pregadores criada na mesma época por S. Domingos — na luta
contra a heresia. Mas era mesmo isso o que Francisco teria
querido?

A mensagem espiritual

Quando se tenta defini-la em termos abstractos, a mensagem


de S. Francisco reduz-se a algumas fórmulas que podem pare­
cer bastante banais. Ele não foi, com efeito, nem um grande
teólogo, como Santo Agostinho, por exemplo, nem um pensa­
dor profundo como S. Tomás de Aquino, nem sequer um teóri­
co da vida espiritual como um S. Bernardo ou um Inácio de
Loiola. Este leigo que escrevia um latim rugoso e cheio de ita-
S. FRANCISCO DE ASSIS 253

lianismos não deixou uma obra importante mas um testemu­


nho: o de um homem que quis viver o Evangelho à letra e ser
uma testemunha do amor de Deus no seio do mundo. Não há
aparentemente nisso nada de originai. E contudo todos os tes­
temunhos contemporâneos se acham de acordo ao sublinhar a
novidade do seu propósito e do seu gênero de vida. É a natureza
exacta desta experiência religiosa inaudita, a qual suscitou tanto
entusiasmo e tantas paixões, que temos agora de apreender
melhor.
“Viver segundo o santo Evangelho”, segundo a fórmula em­
pregue por S. Francisco no seu Testamento, era, nos alvores do
século XI, uma ideia nova. É certo que desde o final do século
XI, um certo número de movimentos religiosos tinham fixado
para si mesmos ambições assaz próximas: Papas reformadores
como Gregório VII ou Urbano II, pregadores populares como
Roberto d’Arbrissel ou eremitas como Estevão de Muret tinham
difundido na cristandade o ideal da vida apostólica, isto é, um
retomo à vida da Igreja primitiva tal como se encontra descrita
nos Actos dos Apóstolos (II, 44-47): a de uma comunidade em
que “os crentes tinham um só coração” e punham em comum
tudo o que possuíam. Este mito dinâmico tinha suscitado o apare­
cimento de novas formas de vida religiosa: cônegos regulares
vivendo segundo a regra de Santo Agostinho, ordens monásti­
cas reformadas como as de Grandmont ou de Cister ou grupos
de laicos que se colocavam ao serviço dos religiosos como con­
versos. Mas estas novas ordens, por rigorosas que fossem as
suas exigências em matéria de austeridade, mantinham-se no
quadro feudal e senhorial. Se os religiosos eram pobres indivi­
dualmente, eram ricos e poderosos colectivamente. Além disso,
a maior parte deles foram vítimas do seu próprio êxito. Cumu­
lados de bens pela nobreza, não tardaram a atenuar o rigor das
suas observâncias e a deixar-se monopolizar pelas tarefas de
gestão e pela preocupação em estender o seu patrimônio. Os
que com isso se escandalizaram e que, como Amoldo de Brescia
na década de 1140, preconizaram que a Igreja renunciasse ao
254 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

seu poder temporal e aos seus bens, acabaram por entrar em


conflito com a hierarquia. Foi, um pouco mais tarde, o caso dos
Valdenses, discípulos de Valdo, um rico mercador lionês que se
despojou dos seus bens para ir anunciar o Evangelho. O Papa
declarou-os heréticos em 1184. Sob o golpe das condenações
eclesiásticas, os movimentos evangélicos populares tenderam a
constituir seitas à margem da instituição oficial ou foram con­
taminados pelas teses dualistas propagadas nas regiões meri­
dionais da França e em Itália pelos cátaros. Entre uma Igreja
desejosa, antes de mais, por desenvolver as suas estruturas e de
acentuar a sua preponderância sobre a sociedade, e as aspirações
religiosas de numerosos fiéis cada vez mais críticos face aos
clérigos e aos monges, cavara-se um fosso que não parava de se
aprofundar.
Francisco de Assis situa-se na esteira deste evangelismo
popular que acabamos de evocar. A partir da sua conversão,
esforçou-se por “seguir nu o Cristo nu”, calcorreando as pisadas
do “Filho do Homem que não tinha onde repousar a cabeça”.
Com ele, pela primeira vez na história do cristianismo, a vida
religiosa deixa de ser concebida como uma contemplação do mis­
tério de Deus e passa a ser concebida antes como uma imitação
de Cristo ou, melhor ainda, como a busca de uma conformidade
sempre mais estreita com o seu exemplo e a sua pessoa. Depois
da morte de S. Francisco os irmãos menores celebrarão nele um
novo ou um segundo Cristo (alter Christus), o que permitirá mais
tarde a Lutero censurá-los por quererm fazer dele “um outro Deus”.
Quer esta crítica seja fundada quer não, não há no Pobre de Assis
nenhuma ambiguidade: não se encontra nele nem ambição
prometeica nem aspiração panteísta, mas o desejo ardente de se
tomar semelhante ao Crucificado e de permitir a cada cristão fazer
o mesmo. Para o conseguir, não havia aos seus olhos outro
caminho senão o de uma fidelidade literal — o que não quer
dizer estreita — ao Evangelho. Ainda neste ponto é-nos difícil
imaginar a novidade da mensagem franciscana a que os
contemporâneos foram tão sensíveis. Numa época em que, sob a
S. FRANCISCO DE ASSIS H5

influência da exegese monástica, a Igreja considerava a Escritura


como “uma floresta de símbolos” e um conjunto de textos tão
difícil e rico de significações ocultas, que só os clérigos formados
nas disciplinas do arcano eram capazes de desvendar o seu sentido
velado. Francisco inova radicalm ente, recusando toda a
interpretação alegórica da Palavra de Deus. Longe de se
comprazer, como muitos espirituais ou teólogos do seu tempo,
em especulações sobre os textos mais obscuros do Antigo ou do
Novo Testamento, — por exemplo, o Apocalipse que Joaquim
de Flore tinha comentado alguns anos antes — o Poverello des­
tacou o que constituía aos seus olhos o âmago da mensagem
evangélica: o amor divino encarnado em Jesus Cristo, Deus feito
homem, nascido num estábulo, tendo vivido pobre no meio dos
pescadores e tendo sofrido os tormentos da sua Paixão para que
depois dele possamos ressuscitar de entre os mortos.
Esta invocação simples e firme dos dados centrais do mis­
tério cristão não teria talvez bastado para despertar o espírito
dos seus contemporâneos se ele Ihos não tivesse apresentado de
uma maneira própria para os tocar. O encontro de S. Francisco
foi para milhares de homens ocasião de um choque emocional e
religioso profundo, porque ele lhes falava de Deus de maneira
igualmente nova. Aquele que se definia a si mesmo como “o
arauto do grande rei” ou o “jogral de Deus” não se limitava a
pregar: mimava a vida de Cristo e, no sentido mais concreto do
termo, “representava-a” perante os homens. Sabemos que ele
organizou em Greccio o primeiro presépio [vivo] numa noite de
Natal, ilustrando assim para os seus irmãos e para os aldeãos a
realidade do mistério da Natividade. Para fazer compreender
aos habitantes de Assis a nudez e os opróbios de Cristo na cruz
assim como as exigências do despojamento. não hesitou em
pregar nu na cidade, depois de lá ter enviado o irmão Rufíno no
mesmo preparo. Com ele, a experiência intima dos mistérios da
salvação encama-se numa cultura gestual. Toma-se simultanea­
mente acção e espectáculo. Mas não se trata unicamente de
256 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

fazer ver para fazer crer. A inscrição na sua carne dos estigmas
da Paixão — as chagas das mãos, do pés e do lado — mostra
que esta maneira de viver a realidade do Evangelho se situa
muito para além do procedimento pedagógico ou do jogo.
De facto, foi primeiro na sua vida quotidiana que Francisco
se esforçou por imitar Cristo. Daí a importância, fundamental
aos seus olhos, da humildade e da pobreza. O próprio nome que
ele deu à sua ordem, os irmãos menores, atesta o apego que ele
sentia pela primeira destas virtudes. “Éramos simples e submis­
sos a todos” — diz ele no Testamento, ao evocar a época das
origens. E quando os seus companheiros lhe faziam queixas
por terem sido mal recebidos pelos sacerdotes e pelos bispos,
ele recomendava-lhes que não insistissem e se afastassem sem
recriminações ou sem fazer caso dos seus direitos. Quanto à po­
breza, sabemos que ela está no âmago da experiência francisca-
na. A entrada na ordem implicava aliás que se renunciasse a
todos os bens pessoais, que estes fossem distribuídos pelos po­
bres e que se ficasse apenas com uma túnica, umas ceroulas e
uma corda, uma vez que os irmãos menores, ao contrário dos
monges e dos outros religiosos, não deviam possuir nada. nem
de seu nem sequer em comum. Viver segundo o Evangelho era
recusar toda a segurança e entregar-se à providência no que se
referia à subsistência, ao alojamento e a todas as outras necessi­
dades. As polêmicas que surgiram na ordem após a morte de S.
Francisco em tomo da noção de pobreza obscureceram um pouco
o sentido da sua escolha da “Pobreza” como do apego apaixo­
nado que ele lhe manifestava. Para ele, tratava-se menos de recu­
sar, a priorí, toda a forma jurídica de propriedade (em 1213
aceitou que o conde Orlando de Chuisi lhe desse a localidade
de La Vema para aí estabelecer um eremitério) do que de aniqui­
lar em si mesmo o espírito de apropriação. Foi assim que dei­
xou um dia precipitadamente uma cela que os irmãos lhe tinham
preparado por um deles se lhe ter referido dizendo “a tua cela”.
O facto de se instalar em algum sítio ou em alguma coisa que se
podia reivindicar como seu arriscava-se com efeito a afastar o
S. FRANCISCO DE ASSIS 257

homem de Deus conferindo-lhe um sentimento de poder e de


autonomia. Assim se explica a sua hostilidade visceral face ao
dinheiro, que ele proibia aos irmãos de receber e possuir. Isto
porque a posse da moeda não confere apenas uma sensação de
poder ilusória, falseia igualmente as relações entre os homens e
situa os que a possuem entre os opressores. Em conformidade
com as idéias econômicas do seu tempo, o filho de Pietro
Bemardone estava convencido de que a quantidade de dinheiro
disponível no mundo era constante e que, ao enriquecer ou acu­
mular riqueza se empobrecia os outros.
Além disso, Francisco tinha compreendido que o apego aos
bens deste mundo conduz fatalmente à violência. Ao bispo de
Assis, que se inquietava por ver os irmãos recusarem toda a
forma de propriedade, respondeu simplesmente: “Se possuísse­
mos bens, teríamos de defendê-los.” Ora ele tinha escolhido
colocar-se de uma vez por todas do lado dos fracos, dos
deserdados e dos marginais: leprosos, vagabundos, mendigos e
salteadores, todos os que constituíam a escória da sociedade,
eram para ele objectos de predilecção. Neles, mais que em
qualquer outro homem, ele encontrava o rosto do Cristo sofredor.
Mas, consciente das ambiguidades da pobreza voluntária, queria
que os irmãos partilhassem com os miseráveis as esmolas que
recebiam e no seu Testamento recordou a necessidade de
trabalhar com as próprias mãos — não para ganhar um salário
mas para não estar a cargo de ninguém —, sendo a mendicidade
admitida apenas em caso de necessidade. Concebia-a ainda como
uma troca desigual, em que aquele que mendigava, ao chamar a
bênção de Deus sobre aquele que lhe dava esmola, dava infini­
tamente mais do que recebia.
É no mesmo registo que convém situar a atitude, assaz com­
plexa e até contraditória aparentemente, de S. Francisco face à
cultura. Ele mesmo, sem ser um letrado, sabia ler e escrever,
tendo mostrado por várias ocasiões, nas suas obras, a estima
pelos teólogos, graças aos quais a Palavra de Deus pode ser
258 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

mais bem compreendida. Todavia, contemporâneo do impulso


das escolas e das universidades, tinha igualmente entrevisto os
riscos que o gosto pelos estudos podia fazer correr à sua
fundação. Por isso multiplicou as advertências nesse capitulo,
acentuando os estreitos elos existentes entre a ciência, a riqueza
e o poder. Numa época em que os livros valiam muito e eram
ainda assimilados a tesouros, o simples facto de os possuir não
se arriscaria a colocar os irmãos ao lado dos ricos e a conduzi-los
à presunção, dando-lhes a ilusão de ter resposta para tudo? Por
isso se encontra com tanta frequência na sua boca o elogio da
simplicidade e um convite a abster-se de uma cultura livresca a
que estavam ligadas tantas tentações. A um irmão que queria
possuir um saltério respondeu um dia, não sem alguma
vivacidade: «Quando tiveres um saltério, hás-de querer um
breviário e quando tiveres um breviário, hás-de instalar-te no
púlpito como um grande prelado e ordenarás ao teu irmão:
“Traz-me um breviário!”» Posto isto, todo exaltado, pegou em
cinza da lareira, espalhou-a na cabeça e esfregou-a, repetindo:
“Aqui está o breviário.” O incidente é significativo: pelo seu
gesto, Francisco situa-se deliberadamente do lado da natureza.
Saído da sociedade urbana mais avançada e mais refinada do
seu tempo, nela condena pelo seu comportamento o orgulho e a
avareza, e propõe um modo de vida alternativo baseado na recusa
desta “sociedade de consumo”. Foi pelo menos assim que o seu
testemunho foi recebido pelos contemporâneos: como diz a
Lenda dos Três Companheiros a propósito dos primeiros irmãos,
“o seu hábito e a sua vida tomavam-nos bem diferentes de to­
dos os outros mortais e faziam por assim dizer deles homens
das florestas” (poder-se-ia igualmente traduzir por “homens sel­
vagens”). Num mundo em que se afirmavam duas formas novas
de poder — o dinheiro e o saber —, o Pobre de Assis remava
conscientemente contra a corrente da evolução, como o teste­
munha a famosa frase que pronunciou em 1219, no cabido de
Nattes, diante de todos os irmãos reunidos em tomo dele: “Deus
chamou-me a caminhar na senda da humildade e mostrou-me o
S. FRANCISCO DE ASSIS 259

caminho da simplicidade (...) O Senhor disse-me que queria fazer


de mim mais um louco no mundo e Deus não quer conduzir-vos
por outra ciência a não ser essa.”
Sob a influência da obra de Paul Sabatier, a historiografia
recente manteve-se em larga medida dominada pela imagem de
um S. Francisco “recuperado” pela Igreja romana e obrigado a
aceitar, contra a sua vontade, a trasnsformação da sua fraterni­
dade primitiva numa ordem religiosa dotada de instituições pe­
los cuidados da cúria. Nem tudo é falso nesta maneira de ver as
coisas e é certo que o Poverello sofreu muito no fim da sua vida
por ver os irmãos— ou pelo menos alguns deles— afastarem-se
do gênero de vida que fora o seu, em Rivo Torto e na Porciún-
cula, na época dos começos. Mas temos de abordar o problema
das suas relações com a Igreja banindo todo o romantismo e
sem querer conduzi-lo a todo o custo a um confronto sistemá­
tico entre o sacerdócio e o profetismo, a instituição e o carisma,
ou a qualquer outro esquema simplista deste tipo.
Francisco não era só espontaneidade e doçura; logo que os
seus companheiros se tomaram suficientemente numerosos, ele
mesmo tomou a iniciativa de os repartir por “províncias”, à ca­
beça das quais foram colocados ministros e não houve nenhum
outro fundador de ordem, talvez antes de Santo Inácio, que
tivesse insistido tanto como ele na necessidade da obediência.
Quanto à sua atitude face ao clero, é clara e sem equívocos:
“Mesmo que me persigam” — diz ele no seu Testamento — “é
ainda assim a eles que quero recorrer (...) pois é o filho de Deus
que eles recebem e eles são os seus únicos ministros.” Pelo
simples facto de consagrarem e darem aos fiéis o corpo e o
sangue de Cristo, “os sacerdotes são os nossos senhores”, ainda
que a sua dignidade moral não esteja à altura da missão que
Deus lhes confiou. Longe de opor a autoridade da Escritura à
dos homens, S. Francisco não concebeu a sua acção senão no
seio da Igreja e em colaboração com ela. Mas enganar-nos-íamos
igualmente ao ver nele simplesmente o fundador de uma ordem
religiosa particularmente dedicada à Santa Sé e desejosa, acima
260 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

de tudo, de assegurar o triunfo da ortodoxia. A sua obediência à


Igreja exclui qualquer servilismo e não deixa de reivindicar o
apelo particular que Deus lhe dirigiu. Como ele diz no
Testamento, “ninguém me mostrou o que devia fazer, mas foi o
próprio Altíssimo que me revelou que eu devia viver segundo o
santo Evangelho”. Foi precisamente esta certeza de estar com a
razão que esteve na origem dessa dilaceração que vemos
acentuar-se nele no decurso dos últimos anos. As biografias não
oficiais (mas também a segunda Vida de Tomás de Celano) põem
em evidência as tentações que o assaltaram então, os conflitos
que o opuseram aos ministros, isto é. à hierarquia da ordem, e a
ansiedade que suscitava nele a evolução da sua fundação. Por
medo do escândalo preferia as mais das vezes calar-se “não sou
um carrasco que castiga e flagela” — teria dito então aos que o
convidavam a reagir publicamente — ) e redobrar de austeri­
dade para deixar aos seus irmãos um exemplo que não pudesse
ser discutido.
Nem sempre se viu com acerto a natureza desta última pro­
vação. Na realidade, não é a existência da ordem nem sequer o
seu desenvolvimento que estão na sua origem. Francisco tinha
acolhido com alegria a chegada dos seus companheiros e tinha
visto no êxito dos irmãos menores uma graça pela qual dava
graças a Deus. Mas nunca tinha sonhado, ao contrário do seu
contemporâneo, S. Domingos, criar uma ordem de pregadores
especializados que fizessem concorrência ao clero secular e su­
prissem as suas deficiências. Para ele, os irmãos deviam consti­
tuir “um pequeno povo diferente dos povos precedentes e que
se contentaria em possuir, como riqueza, o Altíssimo”, seriam
uma fraternidade de homens evangélicos menos preocupados
em convencer e criar polêmicas do que em edificar e converter
pelas suas acções e pelo seu testemunho. Ora, diante dos seus
olhos, a sua fundação transformava-se numa ordem religiosa
como tantas outras, desejosa acima de tudo de eficácia apostóli­
ca a curto prazo e pronta, para isso, a renunciar a certos aspec­
tos do gênero de vida evangélica que lhe pareciam inúteis ou
S. FRANCISCO DE ASSIS 261

incômodos. Instalações fixas, construção de conventos e de igre­


jas, introdução de práticas ascéticas ou litúrgicas de tipo mo­
nástico, relaxação em matéria de pobreza e de simplicidade,
interesse crescente pelos estudos e a ciência, todas estas entor­
ses do ideal primitivo Francisco parece tê-las sentido como ou­
tras tantas traições. Mas falar, como muitas vezes se faz, a
propósito disto, de uma decadência da ordem, a qual teria
começado antes do falecimento do seu fundador, é um abuso de
linguagem que mais não faz do que baralhar as cartas. Trata-se,
mais profundamente, de uma divergência de pontos de vista que
era quase inevitável entre aqueles — os ministros franciscanos,
o papado — que eram sobretudo sensíveis às necessidades ime­
diatas da Igreja (escalada das heresias, insuficiências do clero,
ignorância religiosa dos leigos) e que procuravam fazer-lhes
face utilizando para tal essa "massa de manobra” providencial
que era a ordem dos irmãos menores e, por outro lado, o fun­
dador, que, sem ignorar estes problemas, via para além deles.
E que — e talvez o essencial seja isso — Francisco de Assis
estava muito avançado em relação ao seu tempo. O seu apelo à
fraternidade universal, da qual não excluía nem os animais nem
os elementos, nem mesmo “a nossa irmã, a morte corporal”, era
demasiado carregado de consequências para que se apreendesse
imediatamente o seu alcance. Além disso, se ele tinha pessoal­
mente transcendido as clivagens que existiam então na socie­
dade e na Igreja e se tinha pretendido que no seio do movimen­
to a que dera origem não houvesse mais ricos e pobres, letrados
e gente inculta nem, poder-se-ia mesmo dizer, homens e mu­
lheres, estas distinções não tardaram a reaparecer entre os que o
tinham seguido, por amor, é certo, mas sem sempre compreen­
derem onde ele os queria conduzir. Não temos que nos escanda­
lizar ou que censurar os seus contemporâneos. Podemos mesmo
pensar que é na medida em que a sua mensagem foi, no decorrer
dos séculos, empobrecida ou deformada que Francisco de Assis
continua a ser uma personagem actual que continua a ser
constantemente redescoberta.
262 MONGES E RELIGIOSOS NA IDADE MÉDIA

O rientação b ib lio g rá fica

Escritos (em francês):


O conjunto das obras de S. Francisco e das suas biografias medie­
vais foi publicado nas Éditions franciscaines numa boa tradução fran­
cesa: Saint François d'Assise. Documents. écrils et prem iers biogra-
phies. reunidos pelo Pe. Théophile Desbonnets e pelo Pe. Damien
Vorreux, Paris, Éd. Franciscaines, 1968.
Oeuvres de Saint François d'Assise, tradução francesa de Alexan­
dre Masseron. Paris, Éd. du Seuil, 1982.
François d’Assise, Ècrits. Paris, LeCerf, 1981.

Vida de S. Francisco:
E. Renan, “Saint François d’Assise”, em Nouvelies Éludes d'Histoire
Religieuse. Paris, 1884, pp. 323-3S2.
P. Sabatier, Vie de Saint François, 2* ed.. Paris, 1931.
I. Gobry, Saint François d 'Assise et l 'Esprit Franciscain, Paris, Éd.
du Seuil, 1977.
E. Longpré, Saint François d ’Assise et son Expérience Spirituelle,
Paris, Éd. Franciscaines, 1966.
R. ManseWi, François d'Assise, Paris, Éditions Franciscaines, 1981.

Cassetes-vídeo:
Podem ser adquiridas na France-Culture (Av. du Président-Kennedy,
n.° 116 Paris XVle) as cassetes-vídeo da emissão “Un homme, une
ville: saint François et Assise”, que foi transmitida em Julho de 1981.

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