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LUfS CASTANO s. D. B.

Consultor da Saa-rada Conareaação dos :Ritos

LAURA VICUNA
/llt,,/

A Heróica Filha de Maria


dos Andes da Patagônia

LIVRARIA EDITORA SALESIANA LTDA.


LARGO CORAÇÃO DE JESUS, 140
SÃO PAULO
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CHILE E ARGENTINA, COM O ITINERÁRIO TERRENO
DE LAURA VICUNA

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O TERRITóRIO ARGENTINO DE NEUQUEN,
HOJE PROVíNCIA

LLJ

Rio
m,N eg ro

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DECLARAÇAO DO AUTOR

Em obediência aos decretos do


Papa Urmano VIII, o autor declara não
atribuir outro valor, além do humano,
às afirmações e aos fatos incluídos na
presente biografia, e não querer ante­
cipar de modo algum o juízo da Igreja,
da qual se professa filho obedientíssimo.
Roma, 11 de fevereiro de 1958.

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No CENTENÁRIO
DAS APARIÇÕES DE LOURDES
ÀS FILHAS DE MARIA
DA ITÁLIA E DO MUNDO
O EXEMPLO
DE UMA HUMILDE JOVEM
QUE, À ESCOLA DA IMACULADA
ATINGIU AS GRIMPAS MAIS ALTAS
DA PIEDADE, DA PUREZA,
DO APOSTOLADO
,
ENTRE OS FULGORES DE INCRUENTO MARTIBIO

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APRESENTAÇÃO

Pode a histó:ria de uma jovem que viveu ig·norada


nos planaltos dos Andes, e morreu no viço da adolescên,­
cia, despertar interêsse uns cinqüenta e tantos anos apó3
a sua morte?
No rri11.ndo sobrenatural da graça que transfor111/1,
e sublirrta as almas, cada flor - especialmente quando
agreste e montesa - tem seu encanto, seus misteriosos
reflexos de céu, sua fragrante suavidade. Assim como
não permaneceram meninas na estima e n,a veneração
da Igreja e da posteridade uma Inês e uma Cecília, na
antigüidade, e, nos nossos dias, Maria Goretti, assini
também uma joven,zinha como Laura Vicufía, que afron­
ta, impávida, o heroísnio da virtude, não permanece me-
1iina, pôsto não tenha ultrapassado o período da ado­
lescência.
A imolação cruenta, preferida à ignomínia do mal,
elevando essas cândidas existências ao ápice da forta­
leza cristã, fê-las gigantes, a despeito de sua pouca idade.
Com admiração para tôdas as três, Santo Ambrósio repe­
tiria: "O seu sacrifício foi superior à idade; a galhardia
do seu espírito ultrapassou os recursos da natureza."
Assim aconteceu com Laura Vicufía, cuja vida, aos 13
anos, embora não tivesse sofrido -martírio cruento, re­
sume uma esplêndida epopéia missionária.
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Não falta absolutamente à jovem patagônica, a
auréola de um martírio oculto, tanto 1nais digno de
história, quanto menos freqüente, para não dizer des­
conhecido, no cenário da santidade juvenil antiga e mo­
derna.
Ao biógrafo compete apenas proceder com a sereni­
dade do historiador e a sagaz ponderação do ag-iógrafo.
Por si sós falam os fatos que revelam a fisionomia, a
missão especial da jovem andina, que, na prática das
virtudes e na oferta de si mesma atingiu tão precoce
maturidade de espírito e tal esplendor de perfeita exem­
plaridade, que muitos lhe aug1tram, mesmo nesta terra,
a glória dos santos.
* * *
"4. natureza do trabalho e o seu conteúdo exigem
que sejam notificadas as suas fontes e os seus respecti­
vos critérios. Muitos opúsculos foram escritos na Europa
e na América sôbre Laura Vicufía; entretanto, dois so­
mente têm valor de fonte histórica. Primeiro: Vida de
Laura Vicufía aluna das Filhas de Maria Auxiliadora e
Filha de Maria Imaculada - escrita pelo sacerdote sa­
lesiano Augusto Crestanello e publicada em Santiago do
Chile em 1911, sete anos depois da morte da angélica
menina. Nintuém melhor que o P. Crestanello podia tra­
çar tão perfeitamente o perfil de Laura, pois foi seu
confessor durante quatro anos e conhecia-lhe o íntimo.
2le se valeu também de numerosas declarações de com­
panheiras e de Superioras de Laura; e no desenvolvi­
mento de seu trabalho, de umas noventa páginas, seguiu
o exemplo de S. João Bosco, ao escrever a vida de S.
Domingos Sáv•io. Mais .que à cronologia e aos aconteci­
mentos externos que são como o arcabo1tço da breve,

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mas excepcional vida de Laura Vic1tiia, o P. Crestanello,
escrevendo para jovens, procurou documentar e focali­
zar no seu justo valor virtudes não comuns de sua he­
roína.
Segundo: "Botão de Rosa" publicação anônima do
Instititto das Filhas de Maria A1txiliadora de Turim em
1926, recordando o jubileu de ouro das Missões Salesia­
nas celebrado em 1925. "Botão de Rosa" não é senão
o resumo do volume n. 0 853, das Leituras Católicas, edi­
tado em 1924 pela professôra Mad�lena Puttini, com o
título: "Sôbre os Andes" Tal edição foi depois comple­
tada por 1.tma segunda, publicação também anônima,
"Em Missão sôbre os Andes" editada sob os auspícios do
1nesmo Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora, de
Turim, em 1926. "Botão de Rosa" se baseia no trabalho
do P. Crestanello com algum acréscimo, ao passo que
"Em Missão sôbre os Andes" apresenta notícias de ca-­
ráter geral.

* * *

De 1926 a 1954 a pranteada Madre Clélia Genghini


(morta a 13 de janeiro de 1956), Secretária do Conselho
Geral das F. de M. A., com profunda intuição, c-om óti­
mo senso histórico-crítico e sobretudo com grande amor,
recolheu durante 30 anos as mais minuci-osas informa­
ções sôbre Laura Vic1tiía, dirigindo-se por escrito a tôdas
as pessoas, - particularmente a seu irmão P. Zacarias
Genghini - que a tivessem conhecido ou que de alguma
maneira -estivessem em condições de fornecer-lhe subsí­
dios biográficos, agiográficos e históricos. Surgiu então
um manancial de informaçées que se confirmam, que
se ilustram e se completam mutuamente, apresentando,

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ao mesmo tempo, os elementos para reconstruir a vida
difícil da heróica Filha de Maria, dos Andes Patagônicos.
ultimamente, nos anos 1955-56, vieram de Viedma
e de Turim os processos informativos para a Causa de
Beatificação e Canonização da Serva de Deus. Entre as
21 testemunhas que se apresentaram, ach.ava-se tam­
bém Júlia Amanda Vicuna, irmã de Laura.
* * *
Servindo-me de todo êste material, que não é pouco
para a história de uma adolescente, con.segui bosquejar
o quadro completo de sua vida, incluindo-a, para melhor
ser compreendida, nos fastos das Missões Salesianas d-o
Neuquén patagônico. Procurei seguir um critério estri­
tamente cronológico também para que se evidencie o
progresso das virtudes em Laura. Citei nomes e pessoas
para garantia dos fatos, que tomam desde o início um
andamento dramático. A coordenação de certos teste­
mitnhos e algumas inevitáveis repetições, especialmente
nos partic?1,lares mais insólitos e surpreendentes, têm
por fim banir todo e q1.talquer preconceito de história
romanceada ou de disfarçada intenção panegirista. Ca­
be-me apenas acrescentar qu.e dando forma vernácula
aos testemunhos das fontes citadas, embora conservan­
do o sabor original, procurei manter uniformidade de
estilo no trabalho inteiro e completar pensamentos im­
perfeitamente esboçados por gente iletrada. Todavia
posso garantir que não deturpei os conceitos, nem o va­
lor dos testemunhos, inclusive os do processo.
* * *
Assim apareceu a prim.eira biografia completa de
Laura Vicuiía, ardentemente desejada pela Rev.ma Ma-

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dre Linda Lucotti, quarta Superiora Geral das F. de M.
A., falecida a 27 de novembro do ano passado (1957). O
P. Crestanello já havia apresentado Laura como modê­
lo da Filha de Maria. O seu retrato é a sua inconfundí­
vel fi.sionomia espiritual.
Queira Deus que no ano centenário das Aparições
de Lourdes, a figura desta heróica adolescente suscite
numerosas imitadoras nas cândidas fileiras sempre mais
compactas das Filhas de Maria da Itália e do mundo.

Roma, 11 de fevereiro de 1958.


Início do Centenário M:ariano de Lourdes.

0 AUTOR

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I

PRELÚDIO DISSONANTE

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CAPÍTULO I

No Exílio

Laura Vicu:fía proveio de uma família chilena de per­


seguidos políticos. Nasceu até numa época difícil para
a história de sua pátria, e durante tôda a vida sofreu
as conseqüências do nome e da condição paterna. Ainda
hoje os "Vicufias" constituem estirpe ilustre da República
do Chile. Mas o tronco primitivo tem a sua origem na
nobreza cavalheiresca do antigo reino basco de Navarra,
não lhe faltando brasões e memórias gloriosas. Sôbre
as remotas praias do Oceano Pacífico ou como emigran­
tes ou como enviados pelo "Conselho das índias", de
Sevilha, os Vicu:fías aparecem pela primeira vez na se­
gunda metade do século XVIII, em pleno domínio colo­
nial espanhol; todavia, não atingem o apogeu no campo
literário, administrativo, militar e político, senão depois
que a Província do Chile, separando-se da Mãe Pátria
no início de 1800, constituiu-se nação livre e indepen-

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dente. Basta. notar que, em 1841, o Papa Gregório XVI,
nomeava como primeiro Arcebispo de Santiago, D. Ema­
nuel Vicufi.a, homem de exímias virtudes e de incompa­
rável zêlo pastoral.
* * *

É impossível estabelecer com exatidão a que ramo


dos "Vicufías" pertence a .heroína destas páginas. Con­
forme, porém, as longas pesquisas em arquivo e segun.do
informações fidedignas, e, sobretudo, devido à mesma
natureza dos acontecimentos, é fora de dúvida que no
século passado, à sombra das principais descendências
tinham surgido vergônteas secundárias. Em Santiago,
atualmente, fala-se ainda de "Vicufi.as nobres e ple-­
beus", como famílias de uma mesma estirpe. Laura,
que ignorou a história e os conflitos hispano-america-­
nos dos seus antepassados, descende dos "Vicufia decaí...
dos". Conforme testemunhas fidedignas, Bernardino
Vicufia, casando-se com uma mulher de condição infe­
rior à sua, teria dado origem a um ramo desprezado e
havido como degenerado. Seu filho, José Domingos Vi­
cufi.a, com o propósito talvez de reconquistar a honra
havida e de ser inserido na tradição dos antepassados,
abraçou a carreira militar, não alheia, desde aquela
época, nas jovens Repúblicas da América, às manobras
e reviravoltas da vida política. De fato, já como espôso
e pai, encontramo-lo envolvido nas revoluções de 1891
que assinalaram uma mudança na vida e na organiza­
ção civil do país.

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Depois das guerras de independência a República
Chilena assumiu como forma de govêrno um regim·e pre­
sidencial. Além da escolha dos Ministros o Chefe de
Estado possuía, entre as suas muitas atribuições, a de
escolher o seu sucessor. Justamente em 1891, o velho
sistema foi substituído pelo parlamentarismo à custa,
porém, de uma guerra fratricida que ensangüentou a
Nação e fomentou ódio, vinganças e rancores. Desde
1886 era presidente José Emanuel Balmaceda, conside­
rado o maior estadista chileno do seu tempo. Homem
de grande habilidade, soube desenvolver a instrução, a
agricultura, o comércio e as vias de comunicação. Em
fôrça, porén1, do liberalismo, pouco a pouco formara-se
no país um partido contrário que exigia a reforma da
Constituição e um govêrno democrático que pusesse fim
ao absolutismo então no seu apogeu. Balmaceda não
conseguiu desligar-se do passad.o e iniciar uma nova
era na vida da Pátria. Encabeçada pela Marinha, estou­
rou a guerra civil em janeiro de 1891; guerra que visava
mais a derrubar o regime que depor o presidente. �ste
havia renovado o Ministério, nomeando para seu Chefe,
Cláudio Vicufia, do Partido Conservador, no esfôrço inú­
til de impedir a iminente borrasca. Com efeito, em
plena guerra, Balmaceda propôs a candidatura de Cláu­
dio Vicufia para Presidente da Nação. Tarde demais.
Estava decretada a queda do velho regime. Em fins
de agôsto os revoltosos entravam vitoriosos em Santiago
e tomavam o poder. Balmaceda abdicou e acabou mi-

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seràvelmente. Seus partidários e coíaboradores entre
outros, especialmente os "Vicufias" foram aniquilados:
suas casas foram queimadas, e da implacável e cruel
reação muitos só encontraram a salvação na fuga e no
exílio. Entre êsses, José Domingos Vicufia, filho de Ber­
nardino e pai de Laura.

* * *
Não sabemos quando nasceu José Domingos Vicufi.a,
nem foi possível localizan seu contrato matrimonial com
lVIercedes Plno, realizado antes que a agitação de 1891
os pusesse à margem da vida social. Os casamentos ci­
vis, no Chile, começam a ser registrados somente a par­
tir de 1885; e o registro eclesiástico não primava pelo
cuidado e exatidão; de modo que não é para admirar
se se encontram defeitos e lacunas. Tanto mais que,
e1n casos de matrimônios como o de José Domingos Vi­
cufia e Mercedes Pino, isto é, de um nobre, se bem que
decaído, com uma mulher do povo, preferia-se omitir
as formalidades civis que, por lei, deveriam preceder
às religiosas, a fim de atenuar conseqüências desagra-
dáveis, entre as famílias dos nubentes. Além disso al�
guns arquivos eclesiásticos foram incendiados e destruí­
dos. Seja como fôr, entre as testemunhas oculares no
processo de Beatificação e Canonização de Laura, ini­
ciado em Viedma em setembro de 1955, apresentou-se
Emanuel Urrutia López, de 80 anos, o qual ainda bem
sacudido e de memória lúcida percorrera mil quilôme-

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tros para depor e assegurou quê erà chiienó, qtiê ha ju ...
ventude fizera parte do exército nacional, que conhecera
os pai.s de Laura, antes mesmo de se 1:1nirem em matri­
mônio. Diante do Tribunal declarou também que José
Domingos Vicufia foi militar; que êle o considerava pes­
soa digna de respeito e que sôbre isso eram concordes
todos quantos dêle lhe haviam falado em tempos idos.
Quanto a Mercedes Pino, asseverou tê-la conhecido desde
criança, tendo ela nascido, como êle, em Collipulli, pro­
víncia de Bio-Bio. Disse que era jovem desembaraçada,
filha de modestos agricultores, capaz de vencer na vida.
Outras testemunhas que conheceram D. Mercedes, antes
e depois das tremendas desgraças que inundaram de
lágrimas o seu caminho, informaram-nos que era de
boa índole, aparência agradável, trato educado e gentil.
Sabia música e costura, e não ignorava os funda­
mentos da vida cristã. Possuia enfim os requisitos para
fazer a felicidade de um homem e de um lar.
Em 1900 estava pelos 35 anos, o que faz supor seu
nascimento por 1865. Provàvelmente José Domingos
Vicufi.a era mais velho alguns anos. Ter-se-ão, pois,
conhecido e casado entre 1885 e 1890, sendo presidente
Balmaceda.
Começaram a vida conjugal em Santiago e mora­
vam num bairro central da metrópole. Aí nasceu Laura,
destinada, nos imperscrutáveis desígnios do Céu, a au­
mentar o lustre e o esplendor de um nome que parecia
comprometido justamente entre as paredes de sua casa.
* • •
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Dois documentos, que se integram e confirmam re­
ciprocamente, atestam que Laura, filha primogênita de
José Domingos Vicufía e de l\tlercedes Pino, nasceu em
Santiago do Chile a 5 de abril de 1891, às 20 horas, na
Rua Mapocho, n. 0 62, pouco distante do rio do mesmo
nome. O primeiro documento é a certidão de Batismo.
Laura é declarada "filha legítima" de pais residentes
na paróquia de Sant'Ana, chamada, vulgarmente - a
paróquia dos ricos e da aristocracia. O segundo do­
cumento de caráter civil, embora apontando nome e
.sobrenome da recém-nascida, a qual dêsse modo reve­
la-se à sociedade como uma "Vicufi.a", omite a paterni­
dade. Tal omissão não deve levar a errôneas conclusões.
Intervieram, talvez, motivos ocasionais de prudência que
escapam ao historiador e crítico mais atilados. Além
disso, não se pode esquecer que Laura era filha de um
pai que os "Vicufi.as" consi,deravam desterrado, proscrito.
E é presumivelmente essa a razão pela qual o registro
civil assinala, junto ao nome de Mercedes Pino, a pro­
fissão de "costureira" como para acentuar o contraste
entre a nobreza do sobrenome "Vicufi.a" dado à criança
e a humilde condição da mãe.

Deve-se considerar também que o nascimento de


Laura coincide com a época mais agitada da história
chilena, para os conservadores e militares favoráveis ao
presidente Balmaceda. Explica-se, portanto, o motivo
das reticências e cautelas perante o Estado; ou também

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se poderia pensar no que era comum naquela época -
que, por patentes razões sociais José Domingos Vi­
cufía e Mercedes Pino tivessem contraído apenas, e qua­
se ocultamente, o matrimônio religioso, omitindo as
formalidades civis que, por lei e sob certas sanções de­
viam preceder, como já foi dito, o rito sacramental.

• • •
O batismo de Laura foi retardado por causa da
agitação e desordem reinantes na capital, quando da
guerra civil entre balmacedistas e revolucionários. Vindo
ao mundo a 5 de abril, domingo "in albis", só foi levada
à paróquia de Sant'Ana a 24 de maio próximo, festa
da Santíssima Trindade. Uma coincidência foi feliz
augúrio: naquele dia comemorava-se liturgicamente
Maria Auxiliadora; e parece que, por amoroso desígnio,
quis a Providência que o "Lírio" dos Andes Patagônicos,
destinado a irradiar o seu encanto nos canteiros mis­
sionários das Filhas de Maria Auxiliadora, se abrisse ao
primeiro eflúvio da graça santificante, no dia e com a
bênção materna de sua celeste Rainha.
A nova filha da Igreja foi imposto o nome de Laura
do Carmo, o que prova o espírito cristão de seus pais.
A devoção à Virgem do Carmo está profundamente ar­
raigada no povo chileno, que a herdou dos colonizadores
espanhóis. O mesmo exército ao qual pertencia José
Domingos Vicuií.a tem por Patrona a Virgem do Carmo,
como aliás, a aristocracia de Santiago. Figuram como

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padrinhos de Laura, no batismo, um certo Venceslau
Calderón e uma tal Rosária Rajas, dos quais apenas se
conserva o nome. A ausência dos parentes numa hora
de tanta alegria é uma prova evidente de que os côn­
juges Domingos e Mercedes Vicufi.a não gozavam a be­
nevolência da família. A cerimônia foi efetuada pelo
pároco P. Bernardo Aranguiz e nada teve de particular.
Veio tão só completar a alegria de dois esposos que ofe­
reciam a Deus o primeiro fruto do amor cristão e sen­
tiam que estreitavam ao coração um anjo em carne
humana. No seu rápido vôo sôbre a terra Laura seria,
verdadeiramente, anjo de pureza e de bondade. As pa­
lavras rituais do ministro: "Recebe a veste cândida que,
sem mancha, levarás ao tribunal de Cristo, onde terás
a vida eterna", mais que advertê1'cia augurai da Igreja
ecoaram naquele dia como antecipação da história de
Laura, que haveria de conservar intacta e imaculada a
graça do renascimento e da adoção divina.
Com o Batismo, a pequena foi inserida no minis­
tério da morte que dá a vida; o sublime segrêdo de sua
existência destinada à uma imolação salvadora.
Mas no dia 24 de maio de 1891 ninguém entreviu
o que Deus reservava àquela inocente criatura, nascida
para um duro Calvário. Só os tristes acontecimentos
da Pátria em armas bem depressa imprimiram aos seus
tenros anos um ritmo de angústia e de sofrimento.

• • •

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A guerra, sempre mais cruel de ambas as partes,
fazia centenas de vítimas. Entusiasmados com algu11s
bons sucessos navais os revoltosos preparavam o ataque
a Santiago, que realizaram violentamente em agôsto,
depois de alguns encontros favoráveis que pareciam um
grito de vitória; e a 28, como se disse, entravam triun­
fantes na capital e assumiam o govêrno do País. Foram
atrozes as represálias. O pai de Laura se viu obrigado
a abandonar Santiago e a carreira iniciada; só o seu
nome era suficiente para. denunciá-lo como balmace­
dista. Tanto mais que o presidente procurou reunir e
reanimar as fôrças conservadoras- em tôrno do prestígio
de nobre de Cláudio Vicufia, como supremo esfôrço con­
tra a revolução.
Naquela hora de derrota militar e política os no­
mes de Balmaceda e do seu eventual sucessor e conti­
nuador foram tomados de mira e cruelmente hostiliza­
dos. Isso foi para José Domingos Vicufia a ruína do
homem e do cidadão. Antes o renegara a família e agora
o renegava a Pátria que êle amara e servira com leal�
dade e coragem.
Na sua desolada fuga foi para o sul. Andou errante
aqui e acolá, com a sua pequena família, êxules na pró­
pria pátria, até que estacionou em Temuco, centro da
província meridional de Cautín, a uns 500 kms de San­
tiago.

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Naquela época Temuco era um conjunto irregular
de casinholas, com população variada e nômada.
Os araucanos da região andina e do território tran­
sandino de Neuquén pertencente à Argentina, ali faziam
o seu pequeno comércio. Afluiam também para Temuco
numerosos, os aventureiros, os desterrados, os condena­
dos civis, os perseguidos políticos, na esperança de re­
gresso. Havia também no lugar, uma guarnição mili­
tar para defesa das fronteiras vizinhas.
A estada dos "Vicufi.as" na solitária localidade de
Temuco não foi agradável. Uma desgraça nunca vem
sozinha: disso nossos fugitivos tiveram logo amarga
experiência. As peripécias das mudanças de um lugar
para outro, mais demoradas e fatigantes que as viagens
comuns, o rigor do clima austraJ, e quiçá também as
privações e os incômodos daquelas tristes semanas, re­
percutiram sôbre a saúde de Laura.
O P. Augusto Crestanello, seu primeiro biógrafo,
dando as informações recebidas da mãe, alude a graves
doenças da menina por volta dos 18 meses. E afirma
que desde então ela manifestou temperamento plácido
e tranqüilo.
Em 1893, em Temuco, nasceu Júlia Amandina, tra­
zendo um sôpro de alegria à pobre casa de José Domin­
gos de Vicufi.a e Mercedes Pino, separados agora pela
vida e pelos acontecimentos da capital, onde se havia
instaurado um govêrno sob a presidência de Jorge Montt,
chefe da insurreição anti-balmacedista de 1891.

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O pai ,de Laura, e agora de Júlia também, nada mais
tinha a esperar. Precisava criar uma vida nova; enve­
redar por um outro caminho na sociedade que por duas
vêzes lhe fôra adversa.
Essa necessidade acabou por abater sua robusta
fibra de soldado, tanto que, poucos meses após o nasci­
mento de Júlia, acometido por um mal súbito, fechava
precocemente os olhos ao mundo, deixando espôsa e fi­
lhas no mais cruel abandono.
A Irmã Mercedes Vera escreve nos seus depoimen­
tos: "Laura, a minha doce e inesquecível amiga de Co­
légio, disse-me haver sabido da mãe que seu pai falecera
com poucos dias de enfermidade, talvez pneumonia; que
tinha sido militar e que era muito bom!" Efetivamente,
várias pessoas de Junín de los Andes que tinham sido
confidentes de D. Mercedes Pino, após a morte de Laura
asseveravam que ela falava do marido com admiração
e acatamento. Descrevia-o baixote de estatura, cabelos
louros, olhos azuis e de porte nobre. E acrescentava que
nos traços delicados, vivos ainda n a recordação dos pre­
sentes, Laura era o retrato do pai.

* * *

O inesperado e prematuro desaparecimento do es­


pôso lançou D. Mercedes no luto e no desconfôrto. Môça
e sàzinha, com duas filha3 que ignoravam a terrível des­
graça que as havia ferido, a pobre mulher teve que reu-

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nir a custo as suas energias físicas e morais, para não
se deixar arrastar pela tormenta que a assaltava com
a fúria dos ventos sulinos.
Não lhe faltava a coragem; é fácil imaginar, porém,
o desânimo que, por um instante, pareceu subjugá-la.
Voltar a Santiago era impossível. O ostracismo dos "Vi­
cufias", navegantes também êles de águas adversas, não
desapareceria ante seu luto e por outra parte, não pen­
sou D. Mercedes - ignora-se o motivo - em buscar o
apoio de sua família, que continua inteiramente no
esquecimento. Decidiu continuar só, no exílio de Te­
muco, a luta pela vida que parecia não lher dar trégua.
Laura e Júlia bem podiam preencher os dias da viuvez
crescendo junto dela, numa atmosfera de simplicidade
quase agreste, como duas flôres das estepes. Era ne­
cessário trabalhar: D. Mercedes rd'tomou com coragem
o ofício de costureira, que talvez nunca deixara e que
lhe deu o sustento. Comprou também um baz-ar, mescla
de mercearia e loja, na esperança de poder atender me­
lhor às filhas, única consolação de sua vida difícil e
amargurada.
A estada em Temuco prolongou-se por uns seis anos,
de 1893 a 1899, ou seja, da morte de José Domingos
Vicufia até a mudança de D. Mercedes com as filhas
p.ara além dos Andes. O mesmo P. Crestanello, embora
sem dar muita importância à cronologia de Laura, diz
ter ela ficado em Temuco durante oito anos mais ou
menos.

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''A minha querida filha - confiou-lhe mais tard
D. Mercedes recordando aquêle tempo - nunca me de
desgôsto algum; desde pequena foi obediente e bo�
zinha".
Nada mais se sabe sôbre a sua infância e as pr
meiras atitudes conscientes de Laura. E nem é nece:
sário. Basta haver descoberto no tempo do seu primei1
exílio êsse raio de luz matutina, que preanuncia os e;
plendores do meio-dia.

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CAPITULO II

Prepara-se o Canteiro

No correr do ano de 1898, enquanto D. Mercedes mo­


rava em Temuco, viu e talvez até se tivesse aproximado
de um grupo de Irmãs Missionárias que se dispunham
a atravessar os Andes para chegar à Argentina, e que
haveriam de ser as educadoras de Laura e Júlia. Eram
Filhas de Maria Auxiliadora vindas de Santiago àque ..
las longínquas paragens, guiadas pelo intrépido sale­
siano P. Milanésio, conhecido na Cordilheira, de um lado
e do outro, como o "pai" dos Araucanos e o Apóstolo
de Neuquén.
Impelido pelo incontido zêlo e pelo� desejo de prepa­
rar famílias cristãs para o seu campo de trabalho apos­
tólico reunira aquelas almas generosas, na metrópole
chilena. Dada a grande distância e a escassez de comu­
nicação, era-lhe mais fácil passar da Argentina ao Chile
do que ir a Buenos Aires; ou também descer de sua re-

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sidência, na montanha até Viecima, centro das Missões
da Patagônia Setentrional, do qual dependia no exercí­
cio do seu ministério.
Chegando, entretanto, a Temuco em abril, as chu­
vas outonais e as primeiras neves abundantes o impe•
diram de seguir para Junín de los Andes, onde, junto
do colégio masculino, êle construíra outro pequeno, a
fim de entregá-lo às Filhas de Maria Auxiliadora, para
a instrução e formação da juventude feminina.
Pensavam poder inaugurá-lo antes do inverno da­
quele mesmo ano, 1898; a população já estava informa­
da e as religiosas eram esperadas com curiosa ansiedade.
A inclemência da estação e o perigo de se perderem nas
quebradas das montanhas, e de acharem desmoronadas
as pontes induziram o P. Milanésio - conhecedor dos
perigos dos Andes - a protelar a travessia até à prima­
vera seguinte. Essa obra lhe custara muitos sacrifícios;
por êsse motivo não queria expô-la a riscos e avent."\lras.
Por outro lado, provado pelas fadigas e imprevistos da
vida missionária, êle não era homem que se contrariasse
ou desanimasse em semelhantes reveses. Evangelizador
autêntico, não tinha preferências por lugares, nem me­
dia o tempo; sempre e com todos sabia atirar-se ao tra­
balho, sem vãs lamúrias ou preocupações inúteis. Em
Temuco, o P. Milanésio não ficou de braços cruzados. Ao
contrário, parece que a Providência lhe veio ao encon­
tro, satisfazendo as suas ânsias de apostolado. Como
o Vigário do lugar precisasse ausentar-se por motivo de

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saú-de, pediu-lhe que ô substituísse no cuidado dos fiéis; e
o P. Milanésio ficou satisfeito com aceitar e sacrificar-se
por alguns meses naquele recanto de terra chilena. :mste
acontecimento, num centro pequeno como Temuco, não
passou despercebido a D. Mercedes e nem mesmo a Lau­
ra que já tinha 7 anos e freqüentava a igreja e talvez
também a escola. Quando a menina entrou no Colégio
de Junín - dizem as testemunhas - "já sabia ler um
pouco, e a mãe lhe havia ensinado alguma coisa de re­
ligião". Não era muito. Como, porém, pretender mais
que isso? D. Mercedes cuidava dos afazeres que lhe
davam o necessário para viver e quase lhe faltava tempo
para cuidar das filhas.
Não travou relações com o P. Milanésio e nem mes­
mo com as Filhas de Maria Auxiliadora. Delas se lembra­
rá em momento oportuno, a fim de confiar-lhes os seus
tesouros.
* * *
Enquanto permaneceram em Temuco, as Filhas de
Maria Auxiliadora deram também prova de sua ativi­
dade. Eram três: Ir. Angela Piai, italiana, Superiora e
Diretora da futura obra transandina; a noviça do 2. 0
ano, Ir. Rosa Azócar, e a postulante Carmela Opazo, chi­
lenas estas duas.

No início foram hóspedes das Irmãs da Misericórdia;


depois, adiada a travessia dos Andes, alugaram uma
casa perto da paróquia, e sob a direção do P. Milanésio

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abriram uma escolinha e um oratório para as meninas
do lugar.
"Não queiram saber - diz a Ir. Azócar - como
ficaram contentes as famílias de Temuco. Em poucos
dias, entre pequenas e grandes, 90 alunas começaram
a freqüentar a nossa casa". E acrescenta: "Ir. Piai,
incansável em sua atividade, se encarregava dos traba­
lhos domésticos e eu, do ensino." Quase não percebiam
que permaneciam na primeira etapa da longa viagem
à Argentina.
Correu logo a notícia de que as Missionárias de
Santiago se entretinham alegremente com as meninas
- "coisa nunca vista naquelas regiões" - observa a
Ir. Azócar, e por isso, mais de 200 meninas da paróquia
e de seus arredores começaram a freqüentar aos domin­
gos o improvisado Oratório festivo e muitas se prepa-
raram para a Primeira Comunhão.
Não consta que Laura Vicufia freqüentasse, desde
então, o Colégio das Filhas de Maria Auxiliadora. Tal­
vez as visse e certamente ouviu falar bem delas.
Conheceu, ao invés, a menina Francisca Mendoza
que, cheia de admiração e entusiasmo pelas novas Re­
ligiosas, achando-se casualmente em Temuco, decidiu
seguir-lhes o exemplo e lhes compartilhar o ideal mis­
sionário. Com efeito, quando ambas se encontraram em
Junín, Laura exclamou com efusão d'alma: "Eu a co­
nheço, senhorita. Recordo-me de tê-la visto uma vez
em Temuco, na loja de minha mãe''. Isto aconteceu

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Santiago do Chile: Paróquia de Santana,
onde Laura foi batizada
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em fins de 1898 e comêço cie 1899, pouco antes que a
comitiva do Pe. Milanésio, com a melhora dos eaminhos
andinos e após nove meses de parada forçada, reinicias­
se a viagem em direção às cordilheiras.

• • •
Digno de especial menção é um fato que, aconte­
cido nas últimas semanas vividas pelas missionárias no
Chile, põe em relêvo o espírito de simplicidade, de fer­
vor, de sacrifício, que elas levaram a Junín de los Andes.
A Irmã Azócar terminava naqueles dias o 2. 0 ano
de Noviciado e devia fazer a profissão religiosa. Naquela
época heróica do Instituto, na América, não se levavam
em conta certas formalidades, mesmo porque os Supe­
riores Salesianos, dos quais as Religiosas dependiam,
possuíam faculdades especiais. Nenhuma, entretanto,
renunciaria ao Retiro Espiritual. Mas como proporcio­
nar à ótima Noviça, tôda zêlo e caridade para com as
outras, os dias de recolhimento em preparação à sua
grande oferta?
O P. Milanésio não se apertou. O ótimo, pensou, é
inimigo do bom: e o bom, dizia o Santo Cotolengo a
D. Bosco, se faz como se pode.
Necessitando pregar uma Missão de 8 dias, numa
localidade chamada "Las Lajas", ao norte de Temuco,
determinou que a Irmã Piai o acompanhasse com a sua
pequena Comunidade. Além de escutar os sermões, co..
mo em Retiro Espiritual, ajudá-lo-iam nos trabalhos de

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ntlni�térlô éom vantagens prôprias e dós outros. Põ­
dia-se desejar mais e melhor, fora e distante das Casas
do Instituto? E assim a 6 de janeiro de 1899, solehidade
da Epifania, ao têrmo dâ frutuosa Missão, erttre os sul­
cos do apostolado, a Irmã Azócar oferecia sua vida a
Deus em holocausto de amor, pelo bem das almas.
"Naquele dia - narra ela rnesma - tive a ventura
de apresentar à Mesa Eucarística para a Primeira Co-­
munhão bem 25 adultos, que a mim se uniram a fim
de me obter da bondade do Senhor, o dom da perseve­
rança na Vocação".
Pelas 10 horas, com a alegria dos Reis Magos, numa
saleta que só podia conter um altarzinho e poucas ca­
deiras, pois a Missão era pregada ao ar livre, eu fazia
os votos religiosos na presença de minha Diretora, do
P. Milanésio, que me dirigiu uma calorosa exortação
para animar-me a continuar no caminho iniciado.
"Não se pode descrever a acolhida que recebi dos
que participaram das Missões, ao me verem aparecer
com o Crucifixo em lugar da medalha que eu então
usava. Exclamaram quando eu passava: "Viva a Es­
pôsa do Senhor" e se julgavam felizes de poder beijar
meu sagrado hábito enquanto me cobriam de flôres".
Não era por acaso o merecido prêmio à generosidade
e desprendimento da jovem Missionária? Quem não a
invejaria entre as alegrias espirituais conquistadas jus­
tamente na hora do seu místico sacrifício?

* * *

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Voltando a Temuco, o P. Milanésio e ás Missioná­
rias não pensaram senão nos últimos preparativos para
a travessia dos Andes. Foi então que Francisca Men­
doza estêve na loja da senhora Vicufi.a para comprar
uma cadeirinha e improvisar com ela um silhão para
a longa e fatigante viagem a cavalo.
No dia 12 de janeiro entre a saudade, os agradeci­
mentos e os augúrios de muitos, a insólita caravana
rumou a caminho dos montes.
Em Petrufquén, última estação na planície, os guias,
vindos de Junín, achavam-se preparados, com 12 cava­
los, para a travessia. Antes de se aventurarem pelos
caminhos dos Andes que se erguiam misteriosos, ante
as heróicas viajantes, tiveram estas que se exercitar por
alguns dias na equitação, inclusive as duas aspirantes,
Carmela Opazo e Francisca Mendoza.
Iniciaram a subida a 16 ou 17. "Era interessante
- observa a Irmã Azócar - vermo-nos montadas em
altos e briosos cavalos, vestidas de amplos guarda-pós,
trotando para as montanhas, servidas como rainhas pe­
los guias, que cavalgavam ao nosso lado, prontos a nos
socorrerem em caso de perigo ou apenas de mêdo".
...
Não :faitâ.ram peripécias tanto na montaria� como
na passagem dos rios -e correntes de águas turvas e de
perigoso leito de pedra. Não faltaram sobretudo as
quedas das inexperientes e improvisadas amazonas,
que, todavia, nada sofreram, não perdendo nunca a cal­
ma e o bom humor.

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Orações, cantos, elevações a Deus ante os espetá­
culos da natureza entremeavam as longas horas de
n1archa sob o azorrague do sol, ou ao sôpro de auras
suaves que pela aurora, ou ao pôr do sol, pareciam re­
temperar as energias dos cavalos e cavaleiros.
Sôbre suas intermináveis excursões pelas vertentes
opostas das cordilheiras escrevia o P. Milanésio no Bo­
letim Salesiano daquele mesmo ano: '' Armado com a
Cruz e anelando tão só a conquista das almas, o missio­
nário não teme nem o frio nem o calor, nem a chuva,
nem os ventos, nem a neve, nem a tempestade. Não
recua diante das montanhas alcantiladas, nem o ate­
n1orizam a profundidade dos abismos, o cerrado das flo-­
restas, ou a torrente ameaçadora dos rios espumantes
entre os penedos: êle continua impertérrito o seu ca­
n1inho. Vê-se muita vez constrangido a descansar na
terra nua, debaixo das estrêlas, tendo por travesseiro o
arreio do animal. Se a sorte ll1e sorri, acha agasalho
em míseras cabanas ou no toldo de algum índio perdido
nas gargantas dos montes".
Era mais ou menos essa a descrição da viagem das
Filhas de Maria Auxiliadora de Temuco a Junín de los
Andes.
Com efeito, depois de uns doze intermináveis dias
daquele vagar pelos montes e planaltos que jamais ti­
nham visto uma freira, na tarde de 29 de janeiro, dia
àedicado a São Francisco de Sales, Padroeiro das Obras
Salesianas, as quatro missionárias alcançavam as mar-

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gens do rio Chimehuín, de fronte a Junín de los Andes,
o suspirado campo de trabalho que as esperava. Fre­
mentes de alegria tinham ultrapassado, havia já um
dia e meio, a fronteira chileno-argentina, e tinham en-
trado no território do Neuquén.
"Depois de contemplarmos com alma cheia de ale­
gria - anota ainda a Irmã Azócar - o campo que o
Senhor confiava ao nosso zêlo, rezada uma prece de
agradecimento, incitamos os cavalos, que entraram
n'água, e sem incidentes alcançamos a outra margem.
Passada uma hora de alegre galope, descemos em frente
a nossa humilde casucha de Junín".
A êste nascente oásis de educação cristã - o pri-
meiro que se constituíu para meninas na vertente pa­
tagônica, e o único até hoje - dentro de um ano, have­
ria de chegar também Laura Vicufía, vinda do exílio
de Temuco.
Em seus imperscrutáveis desígnios estava Deus
Nosso Senhor preparando o .canteiro para o "Lírio" das
Cordilheiras.

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CAPITULO III

Além dos Andes

A partida das Missionárias de Santiago para as bandas


do Neuquén aumentou na mãezinha de Laura o desejo
de imitar-lhes o exemplo.
Já de algum tempo andava ela acariciando o sonho
de tentar a sorte em outras paragens. Era-lhe Temuco
um lugar triste de exílio e de lembranças sangrentas.
Sàzinha, indefesa, com duas órfãs para criar, D.
Mercedes sentia cada vez mais o desconfôrto de uma
vida incerta e sem futuro.
Um roubo no seu bazar veio bruscamente arreben­
tar o fio delicado que ainda a unia à pátria, na qual,
desde o dia das núpcias com José Domingos Vicufia,
pela incompreensão dos homens e pelas adversidades da
sorte, não havia mais gozado horas serenas e tranqüilas.
Decidiu emigrar para além da Cordilheira.

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Parece também que se tinham multiplicado ao redor
de sua pessoa flórida - passava de pouco os trinta
anos - laços e insídias que a empurravam para o cai­
rei do abismo.
Embora de ânimo resoluto - de que dará magní­
fica prova na morte de Laura - não tinha D. Mercedes
um temperamento adamantino; nem sua instrução e
firmeza cristã eram tais que a pudessem premunir con­
tra todos os perigos.
Afastou-se em tempo de Temuco, esperando e, -
quem sabe, - iludindo-se que haveria de se achar me­
lhor num país afastado e com menores riscos.
Pensando na Argentina não podia a sua escolha
recair senão no território de Neu r1uén, limítrofe com a
província de Cautín; tanto mais que por aquela época
eram muitos os patrícios que se transferiam para Neu­
quém, devaneando condições de vida mais risonhas que
na pátria, nas áridas e abandonadas zonas do sul.
No tempo bom, com efeito, isto é, de dezembro a
março - os meses do verão austral - p·elas gargantas
andinas passavam caravanas migratórias de chilenos,
que se espalhavam pelos vales subjacentes e pelos imen­
sos planaltos das pré-cordilheiras argentinas, ou ao lon­
go dos rios, onde surgiam os primeiros centros habitados,
e onde se iam estruturando as primeiras estâncias, ou
fazendas de plantação, e sobretudo de criação.

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Sem meta preestabelecida, como alguém que se en­
trega à sua estrêla., D. Mercedes, com Laura e Júlia, em
fevereiro ou março de 1899, poucas semanas após a par­
tida das freiras, interrompeu definitivamente sua estada
em Temuco, e antes que se fechassem os passos da serra,
lá se foi por sua vez para as sendas do Este.
Não era difícil dirigir-se a Liucurá, e daí, com
poucos dias a cavalo, alcançar a fronteira e entrar no
Neuquén.
Em linha reta seriam aí umas centenas de quilô­
metros.
Mas bem que se exigia coragem para atravessar a
Cordilheira com os seus picos coroados de neve, as gar­
gantas profundas, os hórridos precipícios, as interminá­
veis veredas riscadas entre rochas crestadas pelo sol, os
rios bizarros, os lagos a espelharem o azul do céu, os
horizontes dilatados, as tormentas improvisas.
D. Mercedes estava disposta a tudo.
Não terá viajado sàzinha. Deve ter-se agregado a
negociantes que subiam os Andes carregando vinho, te­
cidos, bebi,das alcoólicas e artigos preciosos; desciam
depois com uma carga de peles, ou tangendo tropas e
manadas.
Não se lhe conhece exatamente o itinerário. Po­
der-se-á dizer que não foi o mesmo que levou as irmãs
a Junín. Enquanto estas caminhavam para sudeste, em
direção à região dos lagos, D. Mercedes se encaminhou

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para o nordeste, buscando a ponta setentrional do
Neuquém.
Na biografia de Laura assegura-nos o P. Cresta­
nello que a primeira parada das Vicufías, aquém dos
Andes, foi :fiorquin, - um pequeno povoado da fron­
teira, perdido entre os montes, não longe das nascentes
do rio Agrio, principal afluente do Neuquén, que brota
a mil e duzentos metros de altura, nos flancos de um
vulcão, e dá o nome a tôda a região que êle atravessa.

* * *

Antes de continuarmos a narrativa, convém reco­


lhermos umas breves notícias etnográficas, históricas e
geográficas sôbre o Neuquén, onde, como flor exótica
estava para desabrochar a santidade de Laura: santi­
dade - di-lo-emos logo - entrelaçada e feita quase
uma coisa só com as infaustas vicissitudes de sua mãe.
Em 1899 o território do Neuquén contava escassos
vinte anos de vida civil. Era o panorama social ainda
o de uma zona semi-selvagem e inculta, que pouco a
pouco se transforma por influxo da religião, da legali­
dade e da convivência de raças diversas, que se irma­
nam no respeito mútuo e no esfôrço comum de progresso.
Durante muitos séculos, de um extremo ao outro
dos seus cento e dez quilômetros quadrados de super­
fície, êle estivera sob o domínio dos índios Araucanos,
que lhe conheciam os rios, os vales e os trilhos como a
palma da mão.

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Em 1879 o góvêrno argentino, cansado das incursões
predatórias daq�ueles audazes cavaleiros dos pampas,
que às vêzes se tinham arrojado até o centro da provin­
cia de Buenos Aires, decretou uma campanha de con­
quista para dobrar a arrogância dos indígenas, e levar
as tropas nacionais até os cumes mais altos das Cordi­
lheiras. Como chefe do exército expedicionário partiu
o mesmo Ministro da Guerra, General Júlio Roca, cha­
mado depois - o herói do deserto.
Dois anos de esfalfantes marchas através das ili-
mitadas planuras do Sul bastaram para que o temido
poderio dos Araucanos, sob as ordens do último grande
cacique, Manuel Namuncurá, fôsse para sempre quebra­
do e destruído, embora a guerrilha, como brasa que fa­
talmente $e apaga, durasse ainda dois anos.
Dizimadas, derrotadas, perseguidas, as hordas indí­
genas dobraram para o ocidente; e aos poucos se desa-
gregarati e se dispersaram por entre as gargantas das
monta$as do Neuquén, abandonando tôda veleidade
de d�,�rra.
A andeira alvi-azul foi içada nas grimpas andinas;
e tro�as de guarda se aquartelaram em vários pontos
da f1'Pnteira para defesa dos limites naturais da pátria,
alca çrados finalmente com o prestígio das armas.
m 1883 aquela vasta região triangular, com a bas·e
nos rnontes e os lados marcados pelo curso do Limay
e Colorado, se constituía em Território nacional e
ju amente com outros cinco Territórios do sul come-

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çava sua vida político-administrativa, sob a direta de­
pendência das autoridades nacionais de Buenos Aires.
Nascia assim o Neuquén, ou Território do Neuquén, da
zona inexplorada, chamada até então, Araucanía argen­
tina, Pampa ocidental e também Misterioso território
do Triângulo.
* * *

A conquista militar, rápida e fácil, seguiu-se a espi­


ritual, muito mais trabalhosa, diuturna. Realizaram-na
com lendário heroísmo os filhos de São João Basco, sob
a chefia do futuro cardeal João Cagliero, que em 1884
era nomeado Vigário Apostólico da Patagônia setentrio­
nal, com a árdua tarefa de prover à evangelização de
uma região três vêzes maior que a Itália.
Desde de 1888 os salesianos se estabeleceram em
Chos-Malal, minúsculo vilarejo andino, fundado pela
expedição Roca, e elevado no ano seguinte a cabeça de
distrito do Território, e residência do Governador.
Daquele ninho de águias, ou, se quiserem, �e con­
dores - os gigantescos abutres das Cordilheiras, - os
missionários, P. Mateus Gavotto e P. Bartolom� Pa­
naro, iniciaram suas excursões de exploração, pai\., en­
trar em contato com os índios e com os escassos bra cos,
atraídos ao Neuquén pelos promissores recursos do ter­
reno.
O campeão e incansável cavaleiro andante do eu­
quén foi o P. Milanésio. Imaginem que atravesso os

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Andes a cavalo bem mais de cinqüenta vêzes; e que em
dois anos só - 1894 e 1895 - percorreu como um Cen­
tauro mais de cinqüenta mil quilômetros.
Esquadrinhou e perlustrou o Neuquén nas suas mais
esconsas e inacessíveis paragens: ao longo dos rios, dos
vales, nos altiplanos, entre as dunas de areia, nos prados
que descem para os Pampas centrais.
Os Araucanos que êle, nôvo Xavier, batizou _aos
milhares, chamavam...lhe "Pai"; e todos os que o co­
nheceram admiraram seu zêlo ardente, a prontidão ao
sacrifício, a sêde de almas que o devorava.
A viagem a Santiago do Chile para levar as primei­
ras Filhas de Maria Auxiliadora a Junín de los Andes
não é senão uma prova do espírito que lhe inflamava
o peito e o lançava a emprêsas audaciosas.

* * *

Era óbvio que a conquista espiritual do Neuquén


não seria tão fácil e expedita como a militar. Visava
esta a subjugar com a fôrça umas poucas tril:x>s indô­
mitas: e bastou a manobra envolvente de alguns bata­
lhões alinhados no campo; aquela se propunha dar
feição e vida cristãs a uma região que nascia para a civi­
lização e que precisava conquistar ou reconquistar -
o que importava em maiores obstáculos e dificuldades
- para os ensinamentos e a prática do Evangelho.
Com efeito o Neuquén entrara na confederação
Argentina com uma população escassa, desigual, hete-

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rogênea, e na maiorir1 disseminada numa vasta sµper­
ffcie, sem vias de corx1unicação, e longe, centenas e cen­
tenas de quilômetros, não só de Buenos Aires, mas
também dos centros mais vizinhos da província homô­
nima e dos Territór.:>s limítrofes. Não foi à toa que o
P. Milanésio buscara o Chile para pedir as Irmãs para
Junín.
Havia em primeiro lugar os índios Araucanos, até
então nômades e semi-selvagens. Depostas as lanças e
as fundas, iam...se, acomodando à vida sedentária e ao
pastoreio. Além das superstições, do espírito de vingan­
ça e do ·apêgo às bebidas alcoólicas, urgia combater
nêles o ódio e a desconfiança contra os brancos. Em
verdade, como terra virgem, foram os mais fáceis para
receber o sôpto plasmador da graça.
A seu lado, e com êles mesclados, havia trânsfugas,
aventureiros de todo quilate, os evadidos, os fora-da-lei,
bem mais difíceis de levar a uma vida morigerada e ao
respeito à lei de Deus e à dos homens. Após o ano de
1883 começaram a afluir os imigrantes também. Inva­
são pacifica de gente que pertencia a tôdas as raças e
religiões e que chegava aos amplos territórios de Neu­
quén como a un1a terra prometida. Eram comerciantes,
engenheiros, colonos, traficantes e especuladores de tôda
classe, ávidos tão só de lucro, na maioria.
Provinham muitos das correntes migratórias que
naqueles anos, de tôda parte da Europa, jorravam nas
praias do Prata (�m prc)cura de trabalho e de fortuna;

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t>utros,das regiões limítrofes, inéhôs fêrteis é Mênôs
luxuriantes. A maioria, entretanto, chegava a Neuquén
vinda de além Cordilheira, atraídos pela proximidade
do lugar, pela facilidade de intercâmbio e pela quimera
de fabulosos e súbitos enriquecimentos.
Uns acumularam haveres, outros continuaram a
levar vida apertada, ou alcançaram relativo confôrto.
"Quem sofreu - escreve um missionário da primeira
hora - foram o colono e o índio. :tste último, sobre­
tudo, desfrutado sem dó e sem -escrúpulo, viu-se redu­
zido a uma espécie de escravidão".
O defeito social mais grave, em tanta mixórdia de
gente que dava origem aos primeiros povoados do Neu­
quén, foi a falta de sentido cristão na familia. Nem
sempre dependia da má vontade ou de más intenções.
Pelo contrário, na maioria dos casos, parecia efeito de
desleixo e de pouca sensibilidade religiosa, devida tam­
bém ao isolamento em que viviam as pessoas, quase
fora do âmbito da lei eclesiástica e civil.

* * *

:tsse é - com suas luzes e as sombras indefectíveis


- o Neuquén que D. Mercedes Pino achou em 1899, ao
defrontar-se com a Argentina.
Imaginara-a redourada, como o imigrante que espe­
ra no ignoto. E ao invés se lhe preparava um duríssimo
calvário.

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Escreve Josefina li1erré: "0. Mercedes transferiu-sé
do Chile para a Argentina para fugir à baixa condição
a que se vira reduzida; mais piorou a sua sorte". De
fato, entre os montes do Neuquén, sem quase o perce­
berem os contemporâneos, estava para se desenrolar um
drama, sôbre o qual se assenta o heroísmo cristão de
Laura.

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Passo Tromen: Fronteira chileno-argentina
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� . i ' .
CAPITULO IV

Fatal Passo Materno

A etapa inicial de D. Mercedes aquém dos Andes, como


acenamos, foi Norquín, na extrema ponta setentrional
do Neuauén.
Com a guarnição da fronteira havia uma população,
na maior parte adventícia, de chilenos, argentinos,
araucanos e europeus de diversas nacionalidades, os
qliais, especialmente durante o verão, se e11contravam
para suas barganhas e comércios.
O primeiro sacerdote que visitou Norquín foi o P.c
Milanésio, em 1883. Em 1887 passou por lá Dom Ca­
gliero que deu a bênção a uma miserável igrejinha, que
ruíu dois anos depois.
De onde em onde os missionários de Chos-Malal aí
apareciam ràpiàamente, mas com pouco fruto. O pro­
testantismo, pelo contrário, andava espalhando a man­
cheias a sua cizânia.

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As missões de 1891 e 1892, pregadas para reavivar
o sentimento e a vida cristã, encontraram o deserto.
Não foi possível legitimar as uniões, nem sequer dos
bem intencionados, em fôrça, aqui também, da absoluta
precedência legal do matrimônio civil sôbre o religioso.
Deixaram escrito os missionários: "Se não fôssem
algumas mulheres e môças educadas cristãmente em
institutos chilenos, as quais são como um farol em meio
de tanta escuridão moral, Norquín não passaria de um
lugar de perversão".
Bem cedo D. Mercedes se deu conta disso. Talvez,
por cúmulo de desgraça, nem trabalho encontrasse. Por
outro lado, como providenciar naquele abandono a ins­
trução de Laura, já então pelos 8 anos, tão dócil e tão
ajuizada? Tinha-lhe falado de Deus e lhe ensinara
algumas orações. Mas não bastava.
Desde o início, o segundo exílio se preanunciava
mais triste e mais tormentoso. Apertando ao peito as
filhas, D. Mercedes sentiu mais do que nunca a amar­
gura torturante da solidão, e o risco de se encontrar
sem amparo em terra desconhecida e estrangeira.
Recordou Temuco? Bem provável. Mas o dado ti­
nha sido atirado: já não podia, e talvez já lhe não con­
viesse voltar atrás.
Tomou, pois, a resolução de deixar :&orquín - onde
sua permanência deveu ser brevíssima - e descer pelo
vale do rio Agrio até Las Lajas.

* * *
50 -·
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Essa também não passava de uma vilinha de umas
poucas centenas de habitantes, não muito melhores que
os de Norquín. Assim os descreve o missionário P.0
Franchini: "Sem sacerdote estável e sem igreja, os mo­
radores de Las Lajas são muito descuidados em assunto
de religião e costumes; parecem todavia inclinados a
se deixarem levar à prática da fé. Há, entre êles, estra­
nha mistura de tôdas as raças indígenas e civis, e de
tôdas as religiões. Falta sómente a religião católica vi­
vida e praticada".
Até Las Lajas também, vinham freqüentemente os
missionários de Chos-Malal para pregar e administrar
os sacramentos.
As três Vicufías, por certo, c.onheceram-nos e os
escutaram. O P.e Crestanello, falando das suas primei­
1

ras paradas de Laura na Argentina, escreve: "Seja em


Norquín, seja em Las Lajas, onde passou algum tempo,
deixou Laura ótimas impressões nos que dela se acer­
Cb.tam. Ela própria lembrava-se muitas vêzes, com afeto,
das amizades contraídas n,aqueles lugares; e gostava de
recordar as companheiras mais virtuosas com que tra­
tara". É sinal que durante a sucessiva morada nas duas
localidades serranas D. Mercedes havia procurado a
companhia e, talvez, até o auxílio de pessoas respeitá­
veis por honestidade e seriedade de costumes.
Que uma e outra estada tivessem durado pouco -
seis ou sete meses ao todo, - deduz-se das ponderadas
palavras do P.e Crestanello, e confirma-o a asserção da

�-- 51 -
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Írmã Piai, que ignorou 1nte1ramente o particular, cómó
cousa de secundária importância: "Nunca soube - es­
creve - que a Sr.:i Pino tivesse estado em Las Lajas.
Estou certa que viveu em Temuco: pelo menos isso as
meninas contavam"
Com efeíto, pelos fins daquele mesmo ano - 1899
- D. Mercedes se achava nos arredores de Junín de los
Andes.
Qual é o motivo da terceira transferência para o
território de Neuquén? Não é difícil precisá-lo.
Com o rodar das semanas a Sr.ª Pino, sempre em
procura de trabalho, percebeu que levava vida mesqui-
11l1a; que, sozinl1a, não bastaria para cuidar das fill1as;
que se iludira imigrando para a Argentina.
Sentiu a ânsia de amparo, e sentiu-lhe a urgente
necessidade, mais do que em Temuco.
Era humano. O coração de mãe aspirava a sair das
estreitezas em que incautamente viera achar-se; eis se-
11ão quando, l)Or cúmulo de desgraça, caiu na cilada e
e11gendrou a própria ruína.
Algumas circunstâncias da triste aventura não se
poderão jamais conhecer a fundo. Todavia os teste­
rrrunl10s trazidos aos processos de Laura, e informações
particulares, colhidas em n1uitos anos de assíduas pes­
quisas bastam para nos dar a trama dos acontecin1entos,
q_ue in1primiram um inconfundível carater à virtude da
a11gélica me11ina, destinada a ser a vítima inocente da
sua genitora.
* * *

- 52
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Se colocarmos entre os meses de março e maio de
1 B99 a chegada e a permanência de D. Mercedes a Nor­
q u in, ficam para Las Lajas os meses invernais e a pri..
rnuvera, até novembro ou dezembro, sendo certo que
pelo fim do ano mãe e filhas moravam nos arredores de
J unin de Los Andes, on,de pouco depois faziam estas
Hua entrada no coleginho das Irmãs missionárias que
110 ano anterior tinham passado em Temuco.
O inverno de 1899 foi um dos mais terríveis para os
..

'rerritórios da Patagônia setentrional e do Neuquért.
Chuvas torrenciais em tôda a região andina e abundan­
tíssimas nevadas provocaram as enchentes dos rios, com
alagamento dos centros habitados, das Cordilheiras ao
Atlântico. Dom Cagliero, de Viedma escrevia amargt1-
rudo: "Nunca se viu por estas bandas um cataclismo
tüo espantoso e geral". Os maiores desastres se verifi­
caram im Roca, Pringles, Viedma, Patagones e nas ou­
tras vilas da planície; mas não escaparam à convulsão
P aos perigos da inundação nem sequer os pequenos
povoados montanheses de Chos-Ma.lal, Junín de los
Andes e Las Lajas, situado êste último nas margens do
impetuoso Neuquén, que foi entre os primeiros a trans­
bordar e semear o pânico e a destruição ao seu derredor..
Muitas casinholas e cabanas foram carregadas pela
<'huva, enquanto o---povo se abrigava nas altq_ras, car­
r<'gando tudo quanto podia.

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Não se sabe o que aconteceu a D. Mercedes naque­
las contingências. É provãvel que já se achasse em Las
Lajas, e que o calamitoso evento lhe aumentasse as an­
gústias e a perplexidade.
Naquele turbilhão de águas que o céu despenhava
e que inundava a terra, ela se viu como uma palhinha
joguete da corrente; e no desesperado esfôrço de não se
deixar afogar pela sorte adversa, dobrando-se ao cos­
tume do lugar, amadureceu no seu ânimo a decisão de
ir viver com Manuel Mora, a quem se agarrou como a
uma tábua de salvação, e que, ao invés, se transformou
no seu feroz tirano.
* * *
Tem Manuel Mora na vida de Laura, embora de
maneira indireta, importância decisiva. É preciso, pois,
conhecê-lo.
Pertencia a uma família abastada da província de
Buenos Aires, e depois de ter estado no Forte General
Roca, no alto Rio Negro, após a conquista do Neuquén
obteve do Govêrno o aproveitamento de uma ampla zo­
na sôbre o rio Quilquihué, subafluente do Limay, a uns
vinte quilômetros de Junín de los Andes.
Lá se instalou, e com a habilidade do crioulo aman­
te dos usos e costumes da vida campestre, organizou
naquela solitária região pré-andina, entre amenas eleva­
ções do terreno e ubertosos valezinhos, duas estâncias
- uma chamada Quilquihué, a outra Mercedes - para
criação de gado.

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Foram a sua riqueza. Fêz delas até p.1rticipantes
seus irmãos Angelo e Lourenço. "Manuel Mora - de­
t· Iarou Sabino Cárdenas nos processos de Laura - era
muito rico e tinha .estâncias ... além do Caleufu''.
0 P.e Genghini, missionário, esperto conhecedor de
lugares e pessoas, atesta que Manuel Mora morava habi­
tualmente na fazenda de Quilquihué: "Seu domicílio
- diz - era uma casa de campanha com alguns cô­
rnodos, numa localidade chamada Quilquihué, do rio
que corre nas proximidades".
Tôda a zona tomava também o nome de Chapelco,
tirado da homônima cadeia de montanhas, que fecha­
vam o panorama ao ocidente, para as bandas dos Andes.
Júlia P..mandina depôs nos processos da irmã: "Sei que
a serva de Deus viveu num lugar dito Chapelco, onde
o senhor l'Aora tinha a sua fazenda; e que dali passou
para Junín de los Andes"
Ao passo que as testemunhas elogiam a conduta de
Angelo e Lourenço Mora, descrevem com tintas carre­
gadas o caráter e a figura de Manuel.
Já pelos quarenta, de belo aspecto, e de movimen­
tos galhardos, sobretudo quando empunhava as rédeas,
montava e saía a galope, veloz como o vento, era Manuel
Mora o tipo do gaucho argentino: estouvado, gabola,
rixento, um romântico e sonhador.
Embora rude e inculto vestia-se com afetação, à
moda dos ricos proprietários rurais. Da cinta lhe pendia
o inseparável terçado, de bainha de couro com o cabo

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embutido em prata. Também nos arreios dos animais
de raça fazia alarde de guarnições e enfeites preciosos;
e gostava de gestos aparatosos e desabusados que lhe da­
vam ares de superioridade.
Manuel Urrutia López afirma que barganhou uma
carga de vinho por quinhentas vacas com um chileno
dado ao tráfico da.s Cordilheiras.
Cônscio da abastança que o tornava patrão de mui­
tos assalariados e lhe dava, num pequeno mundo em
formação, os ares anacrônicos de um baronete feudal,
Manuel Mora mostrava um caráter soberbo e altivo, e
não dissimulava o ódio e o desprêzo para os que se lhe·
atravessassem no caminho.
Passava das maneiras gentis e cavalheirescas a mo­
dos brutais, e até mesmo a crueldades que fazem estar­
recer. Teve disso a inaudita experiência Tomásia Ca­
talã com a qual conviveu e que depois repudiou - como
atesta Sabino Cárdenas - depois de havê-la marcado
com o ferro quente que usava para os seus animais.
Era um homem, pois, êsse Mora, que podia fascinar
e meter mêdo; aparecer como âncora providencial de
salvação, e transformar-se em déspota cruel.
Algumas testemunhas limitam-se a eh.amar-lhe:
"Um sujeito mau", "gaucho malo", "um homem que por
um nada puxava o facão e a pistola". Leo·nardo Cifuen­
tes definiu-o nos priocessos: "indivíduo perverso, pre­
potente e grosseiro". E Urrutia López não hesitou em
lhe pespegar o epíteto causticante de "demônio".

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As Irmãs de Junín, por .sua vez, tinham-se conten­
tado com tracejá-lo como "rico proprietário de gado,
pouco instruído e sem religião".
E justamente entre as mãos dêsse indivíduo, como
entre as garras de um condor, foram tristemente cair
D. Mercedes e suas filhas.

* * *

As circunstâncias que provocaram o encontro de


Mora com D. Mercedes, e os motivos que a induziram
a segui-lo permanecem envolvidos numa nuvem de im­
penetrável segrêdo.
Quem escreve ouviu dos lábios do octogenário Urru­
tia López que Manuel Mora, voltando da cadeia de Chos­
Malal, onde estivera prêso, e passando por Las Lajas,
conheceu Mercedes Pino e a levou para a estância de
Quilquiht.ié.
Isso aconteceu quase certamente na primavera -
ou seja, entre outubro e dezembr o - de 1899. O P.e
Crestanello deixa-o entender também, visto como em
1910 não podia descer a particulares indiscretos. Es­
creveu êle na vida de Laura: "Tinha 9 anos quando de
Las Lajas passou a viver nos arredores de Junín de los
Andes, onde Deus lhe tinha preparado o ninho que seu
terno coração sonhava, desejoso de bem".
A mesma Júlia Amandina, como notamos, coloca
uma breve demora de Laura nas propriedades de Mora,
antes do seu ingresso no colégio. E Francisca Mendoz�

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dá esta ordem às estadas de Laura em terra argentina:
"Rorquin, Las Lajas, Chapelco e Junín de los Andes.

* * *

A acedência de D. Mercedes nos deixa pensativos.


Seríamos entretanto injustos julgando-a com frio rigor,
no momento mais infeliz da sua martirizada existência.
Por certo não conhecia o homem que lhe oferecia
apoio material, de que ela tinha necessidade, mas que
não tardaria em reduzi-la a humilhante escravidão.
Talvez sob o pungente aguilhão da solidão, e ven­
do-se num país assolado pela calamidade, pensasse po­
der reconstruir um lar doméstico e tentar de novo a
vida, como fêz mais tarde depois da morte de Laura.
Infelizmente, porém, se iludiu, porque Mora - segundo
depoimento de Claudina Camargo - "não tencionava
casar-se". Pelo menos não parece essa a sua intenção
com respeito à mãe de Laura. Alguém nos dirá algo
bem diferente.
E não se esqueça por fim que em todo o Neuquén,
e mesmo no resto da campanha argentina, não era in­
freqüente o caso de pessoas vivendo sob o mesmo teto
sem o vínculo nupcial.
Se alguém, como o Mora, valeu-se das tristes condi­
ções civis e religiosas do Neuquén com maldosas inten­
ções, dessa infeliz Mercedes Pino se há-de dizer que foi
vítima, embora não de todo irresponsável, das desgra­
ças e tribulações que lhe pontilharam a estrada.

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Que a sua conduta não causava maravilha - salvo
os direitos da consciência - atesta-o o P.• Zacarias
Genghini chegado a Junin um mês após o ingresso de
Laura no colégio. "A sen.hora Pino - escreve - achan­
do-se sàzinha, sem recurso, e com duas filhas para criar,
aceitou a convivência com Manuel Mora, como fazem
em idênticas condições muitas mulheres, segundo con­
denável costume destas terras"
Mais: o p.e Genghini, depois de percorrer naquele
ano grande parte do Neuquén asseverou mesmo que ses­
senta, ou até sessenta e cinco por cento da população
vivia nessa condição, sem se preocupar com legitimar
a própria união diante da autoridade eclesiástica e ci­
vil. "Se o caso da Sr.ª Pino - conclui o P.e Genghini -
levantou um diz-que-diz, foi devido ao tremendo tem­
peramento de Mora, e sua qualidade de abastado fa-
zendeiro".
A Irmã Piai observa, falando de um caso semelhan­
te: "Tôda a região de Junín sabia do fato, e ninguém se
importava, uma vez que era um costume inveterado na
região."
Por isso, sem estranheza e sem dar na vista, Mer­
cedes Pino chegava, pelos fins de 1899, com Laura e
Júlia à fazenda de Quilquihué, à casa de Manuel Mora.
Os que a viram ultrapassar aquela soleira se com­
padeceram dela; ainda mais contemplando o olhar ino­
cente das crianças que levava ao lado e por cujo bem se
decidia ao fatal passo.

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I I

FLOR DE SANTIDADE

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CAPÍTULO V

Sob o Manto da Auxiliadora

A educação das filhas constituiu o pesadelo de D.


Mercedes no primeiro e segundo exílios.
Sua origem, os -estudos juvenis, o contato com a
fina sociedade de Santiago e seu mesmo espírito pronto
e vivaz não podiam deixá-la indiferente ante o problema
da instrução e formação de Laura e Júlia. A memória
também do marido e das suas legítimas aspirações do­
mésticas a estimulavam a não descuidar aquêle seu
dever maternal.
Desde os anos de Temuco, freqüentou Laura as pri­
meiras classes elementares, a não ser que tivesse sido a
mãe quem lhe ensinou a soletrar e a traçar os primeiros
pauzinhos; quando chegou a Junín de los Andes já sa­
bia ler e usar a caneta.
A isso alude o P.• Crestanello, escrevendo sôbre
Laura antes de sua transferência para o Neuquén: "Ela

- 63 -
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também tinha suas horas de descanso e lazer, tnàs sém­
pre com moderação e com a licença da mamãe, a cujo
mando voltava para as pequeninas ocupações próprias
de sua idade".
Não é improvável que também em Norquin, espe­
cialmente em Las Lajas, continuasse ela a exercitar-se
no estudo, dentro das possibilidades daqueles recantos
onde ainda não tinham sido abertas escolas do govêrno,
e onde a população crescia na ignorância e no abandono.
Em 1899 espalhou-se pelo Neuquen a notícia do co­
leginho aberto pelas Filhas de lVIaria Auxiliadora em
Junín de los Andes para a educação das meninas do
lugar e das cercanias. Foi D. Mercedes informada, e
não resta dúvida que ela se recordaria da passagem da­
quelas religiosas por Ten1uco e os escopos de sua viagem
para a Argentina, sob a chefia do P.e Milanésio.
As circunstâncias tinha-na lançado na mesma re­
gião: é fácil portanto compreender como lhe nascesse
no coração o desejo de colocar Laura no educandário.
O encontro com Manoel Mora e o convite para se­
gui-lo até suas propriedades favoreceu as intenções de
D. Mercedes que viu assim assegurada a mensalidade
que precisava pagar às irmãs.
Não foram longas as tratativas com a Irmã Piai,
diretora, e a aceitação das duas meninas tornou-se logo
uma realidade.
Laura - afirma-o o P.e Crestanello - ficou con­
tentíssima. "Não cabia em si de alegria", a tal ponto

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que sua mãe se admirou de tão insólitas explosões de
júbilo. Laura mesma confessou mais tarde que não
conseguia explicar a causa dessa sua alegria: "o certo
é que - repetia - eu -estava feliz. O menino Jesus
devia estar satisfeito com a resolução de minha mãe;
e eu também me sentia contente"
A alusão ao menino Jesus faz compreender que se
estava na quadra natalina, vale dizer, pelos fins de 1899
ou no início do novo século.
A entrada no colégio foi combinada para o sábado,
21 de janeiro, em plenas férias estivais. O que faz su­
por que D. Mercedes no princípio da vida com Mora, -em­
bora de coração sangrando, desejasse afastar Laura e
Júlia da estância de Quilquihué, que jamais seria a casa
delas.
* * *
O vilarejo de Junín de los Andes tinha surgido ha­
via vinte anos - em 1879 - depois da campanha do
exército argentino contra as últimas hordas araucanas.
Como os outros centros de fronteira fôra fundado
por uma guarnição militar, numa posição pitoresca, a
700 metros sôbre o nível do mar, nas fraldas da Cordi­
lheira, não longe do rio Chemihuín.
Contava então uns trezentos habitantes, enquanto
outros dois mil, índios e chilenos na maioria, viviam es­
palhados pelos altiplanos e vales, e especialmente na
região dos lagos, n,um raio que ultrapassava os cem
quilômetros.

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Querendo fazer de Junin de los Andes uma basê
de irradiação civil e cristã, tinha D. Cagliero ordenado
ao P.e Milanésio a construção de um colégio masculino;
e o ardoroso missionário, como já se disse, no desejo de
completar a obra, construíra também um feminino.
"A construção dessas duas casas - escrevia êle no
Boletim Salesiano •de setembro, 1899 - custou-nos tan­
tas canseiras e suores que é mais fácil imaginar que
descrever. As imensas distâncias, os meios de trans-
portes consistindo tão só de animais de carga, as estra-
das pràticamente intransitáveis, a extrema penúria dos
lugares, e a calamidade dos tempos, falam por si sós
do pêso das dificuldades superadas. Mas era necessá­
rio enfrentar qualquer obstáculo para garantir os fru­
tos da missão. De fato, agora meninos e meninas, em
grande parte indígenas, se dessedentam nos respectivos
colégios nas mesmas fontes salutares, e um dia pode­
rão ser bons cristãos, e honestos cidadãos trabalha­
dores". Por sua yez as irmãs, embora provadas desde
os primeiros dias por uma grave enfermidade da Irmã
Azócar, tinham-se entregado ao árduo trabalho educa-
tivo e missionário que as esperava.
As concisas nótulas de crônica do primeiro ano -
uma escassa página - ressaltam em verdade que o Co­
lSgio "Maria Auxiliadora" se inaugurou a 6 de março
com 19 meninas: dez internas e nove externas; e que
em dezembro, depois das festas de Natal, foram presta­
dos com satisfação os exames do curso. "Não se distri-

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buirahl prêmios - nota-se caril humorismo - põrqüê
não os havia."
Basta isso para ilustrar a vida de renúncias e de
sacrifícios levada naquela paupérrima e desadornada
habitação montanhesa que impropriamente é chamada
colégi.o, como se oferecesse as comodidades e luxos de
uma senhoril casa de educação.

* * *

Eram ap•ena.s umas poucas salas alinhadas sôbre as


duas frentes ao rés do chão, feitas de tijolo cru, segundo
o costume local, grosseiramente rebocadas por dentro e
por fora e coloridas - no dizer da irmã Azócar "de um
verde e café claro, que lhes davam um aspecto alegre."
A entrada humilde; estreitas e baixas as janelas;
fôrro, pavimento e rodapé de madeira. O teto de duas
águas era de fôlha.s de zinco ondulado e fortemente pre­
gadas em grossas traves, para resistir à violência das
tempestades e ao pêso das nevadas invernais.
No interior da construção se abria um pequenino
pátio com poço e jardim; e mais além, expostos ao sol
dos Andes, o pomar e as rústicas choupanas monta-­
nhesas.
"A arca ou baú que levamos de Santiago do Chile -
conta a Irmã Azócar - fazia de canapé; e a única mesa
que possuíamos servia para tudo e era carregada em
triunfo de cá para lá pelas meninas".

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Também a Irmã Marieta Rodríguez recorda que a
princípio não havia em Junín senão uma cadeira e al­
guns bancos, que eram transportados de um lugar para
outro, conforme as necessidades do dia.
A alimentação era à base de carne e feijão, com
quase ausência de batata e verdura. Somente mais
tarde, por insistência do P.e Milanésio, se conseguiu no
tempo próprio a provisão de hortaliças para a comu­
nidade. Para de algum modo suprir a falha, recorriam
a ervas silvestres.
Pão era feito uma vez por semana em casa. As
vêzes o substituíam pelo iíaco, ou trigo torrado, moído
e servido no leite, que era abundante.
Para se lavarem precisavam descer até as águas
cristalinas do Chimehuín. Era, como se vê, uma vida
primitiva, rudimentar, de imenso sacrifício.
Isso sem falar do completo isolamento de qualquer
centro urbano, argentino ou chileno. Por dez anos ne­
nhuma superiora provincial se aventurou das margens
atlânticas até Junín; nem pôde religiosa alguma descer
de Junín às outras casas patagônicas, às quais, por mo­
tivos geográficos e políticos, estavam agregadas. Os
raros contatos estivais ocorriam com o Chile, além dos
Andes; e mesmo para atingir Buenos Aires importava
alcançar antes Santiago, depois vencer de novo por es­
trada de ferro as Cordilheiras e assim chegar, depois de
intremináveis dias de viagem, à capital do Plata.

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"Um exílio de fronteira", definiu mais tarde a vida
de Junín uma religiosa mandada para receber o legado
da Irmã Piai: e não deixava de ter razão.

* * *

E entretanto com a sua paz, seu silêncio, o verde


perenal das suas coníferas, a amplidão dos horizontes, o
espetáculo das montanhas, ora brancas de neves, ora
cintilantes na orgia do sol, ora como recolhidas na pe­
numbra de auroras e acasos, Junín de los An,des podia ser
lugar propício para as elevações do espírito e os encan­
tamentos da santidade.
Deu-se conta disso pela primeira vez a neoprofessa
Irmã Azócar cheia de fervor e destinada a derramar no
coração de Laura Vicufia as riquezas de seu espírito
francamente salesiano. "Comecei - escreve ela - a
considerar-me naquela solidão como num paraíso terres­
tre pela paz e tranqüilidade que aí se gozava . . . eram
mais abundantes os auxílios -espirituais que nos insti­
tutos do Chile. Tínhamos a santa missa todos os dias,
a bênção freqüentemente e tôda a comodidade para nos
aproximarmos dos santos sacramentos . . . Nada nos
faltava - conclui - do que pode uma religiosa desejar
para fazer-se santa".
De fato, contíguo ao colégio feminino estava o
masculino, dos missionários salesianos. Como superior
titular figurava o P.e Milanésio, o qual entretanto de-

- 69-
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dicava grande parte do ano a suas viagens apostólicas.
Substituía-o, e tinha a direção espiritual das irmãs e
alunas, o P. 6 Augusto Crestanello, que se tornou o con­
fessor e confidente de Laura e lhe foi o primeiro e mais
autorizado biógrafo.
Homem de Deus, avêsso a elogios e cumprimentos,
o P.° Crestanello aos múltiplos dons naturais acrescia
a intuição e o zêlo de educador apostólico, que sabe insi­
nuar-se na alma juvenil, e captar-lhe as palpitações do
coração, reconhecer as moções e impulsos da graça e
arrojar à conquista e aos heroísmos da virtude.
Então ninguém percebeu, mas na reconstrução da
história, sessenta anos após os acontecimentos, cumpre
concluir que a mão de Deus, se, de uma parte tinha pe­
sado sôbre a cabeça de Laura com desgraças materiais
e morais que a humilharam e afligiram, por outra ti­
nha-lhe providamente preparado em plaga inóspita e
solitária um asilo de santidade.
Chegando a vinte e um de janeiro a Junín de los
Andes, Laura Vicufia alcançava o lugar onde a graça
de Deus lhe preparara a arena da perfeição e o altar do
seu incruento martírio.
Naquele dia, encontrando-se espiritualmente com a
humilde menina chilena, Santa Inês deveu olhâ-la com
olhos de predileção: Ela vinha para renovar, naquele
obscuro rincão patagônico, os maravilhas de seu candor
virginal e o incêndio de sua caridade.

• • •
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Foi a diretora, Irmã Piai, quem recebeu D. Mercedes
com as filhas, La11ra e Júlia; sua gentileza de trato e
·bondade haviam conquistado a simpatia de todos. "O
que mais nos consolou - escreve a Irmã Azócar sôbre
o primeiro ano passado em Neuquén - foi vermos como
pouco a pouco os moradores de Junín, que viviam afas­
tados de Deus, vencidos pela doçura e pela persuasão,
se iam transformando com a freqüencia à igreja, às fun­
ções
., e aos sacramentos"
No registro de matríc11la as irmãs são apresentadas
assim: "Júlia Amanda Vicufía de seis anos, Laura do
Carmo Vicufia de nove anos; chilenas; pais Domingos
e Mercedes Pino, chilenos. Pagam 15 pesos mensais
cada uma''
A mensalidade era de 20, n1as ninguén1 a pagava
i11teira. No caso das Vicufias não era improvável se le­
vasse em conta a pouca idade de Júlia, que logo foi cha­
mada con1 o diminutivo de Amandina ou Mandina, do
segundo nome.
Quem observou D. Mercedes naquele dia afirma que
ela parecia "rnôça simpática com os ombros cobertos
por uma 1nantill1a de sêrla" Len1brava a distinta se­
nhora de outros tempos.
Também o baú das filhas, grande e abundantemen­
te provido, dava a impressão de certa abastança.
Da modesta saleta de espera perto da entrada, foi
muito curto o giro da visita pela casa. Em poucos mi­
nutos as novas alunas viram pátio, dormitório, refeitó-

- 71--!'
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1 �
rio, aulas e capela. Esta não era mais que uma salinha
desadornada, onde, para comodidade das irmãs e cole­
giais, conservava-se o Santíssimo, visto como para a
missa cotidiana e as funções sagradas habitualmente
elas dirigiam-se à capela do colégio salesiano, bem mais
vasta.
A separação da mamãe foi um golpe rude para as
duas meninas. D. Mercedes também, sensível aos re­
clamos do coração, sentiu a dor da desejada separação.
Aquelas meninas continuavam sempre a alma de sua
vida: amava-as com intensidade de afeto, embora afas­
tando-as de si. "A Sr.ª Pino - atestará a Irmã Piai -
foi sempre muito solícita em prover, com certa largueza
até, a tôdas as necessidades de Laura e Júlia".
Naquele dia o pensamento de ter resolvido o pro­
blema delas aliviou a amargura da volta solitária para
Quilquihué, em situações que não podiam condizer com
a tranqüilidade do seu espírito. Talvez se refugiasse no
pretexto das adversidades que a tinham tão duramente
golpeado. Talvez pensasse que lhe não restava outra
saída, e que não era a única a proceder assim. Talvez
se entregasse a vagas e incertas esperanças.
Discreta nas perguntas, e seu tanto confundida pela
desembaraçada loquacidade de D. Mercedes, não pôde
a Irmã Piai, naquele primeiro encontro, intuir a tra­
gédia que ela carregava na alma. Mais do que dela com­
padeceu�e das filhas, para as quais quis ser uma se­
gunda mãe.

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Júlia estava banhada em lágrimas. Laura de sua
parte, embora tivesse desejado com ardor o colégio, pa­
recia triste e pensativa.
Menina precoce, :hão obstante pouco instruída em
matéria de religião e ignara das fealdades da vida, por
uma intuição que é um como reflexo e reação da ino­
cência contra o mal, tinha percebido que nem tudo era
perfume de santidade ao seu derredor. Ela o farejara
na breve permanência na estância de Quilquihué; por
isso, ao despedtr-se da mamãe, com os olhos velados de
pranto e o coração aos saltos, talvez pensasse, já, mais
na desgraçada genitora do que em si mesma.
Essa será sua vida na casa e sob o manto de Maria
Auxiliadora.

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CAPÍTULO VI

Primeiro Ano de Colégio

1 nspirando-se na caridade evangélica, quis D. Bosco


fazer de suas casas e colégios outras tantas famílias,
onde em atmosfera de piedade e de serena alegria pu­
desse o coração juvenil adestrar-se para o dever e a prá­
tica das virtudes.
Como numa compensação da rusticidade e esqua­
lidez das paredes colegiais de Junín, Laura encontrou
adejante o tesouro do mais genuíno espírito salesiano
que lhe inundou a alma e fê-la feliz.
Contava apenas nove anos, mas as desventuras, as
recentes peripécias, e sobretudo uma inata capacidade
de percepção, que se iria desenvolvendo com a chegada
da adolescência, lhe deram ares e juízo superiores à
idade.
Fisicamente parecia ainda uma menina, cheia de
graça
..
.- �
e a respirar suavidade e modéstia. Rosto arre•

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dondado; tez rosada, olhos escuros, cabelos castanhos,
crespos, não muito bastas; ar ingênuo, maneiras educa­
das, quase senhoris.
Diversa, para não dizermos oposta, a figura de
Júlia, que reproduzia os traços e a coloração olivácea de
D. Mercedes. "Júlia - escreveu a Irmã Piai - em nada
se parecia com Laura, quer no físico quer no moral".
Não se pode dizer que Laura fôsse já uma santinha: fal­
tava-lhe, entre outras coisas, o conceito de perfeição; e
não se tinha ainda aproximado dos sacramentos, de onde
todo adolescente vai haurir fôrça e energia contra o
surto das paixões e os engodos do mal. Cumpre, entre­
tanto, revelar que recebera da natureza ín-dole mansa e
temperamento inclinado à virtude.
Apresentando-a em Junín D. Mercedes fêz-lhe o elo­
gio que depois se tornou comum em seus lábios: "Nunca
me deu desgostos. Desde criança foi sempre obediente
e submissa".
Mais não se poderia desejar de uma menina crescida
entre as penúrias e na tristeza, como florzinha a que
faltasse o sol.
Conquanto - segundo a Irmã Azócar - soubesse
"ler, escrever e um pouco de orações", Laura deixou
transparecer ao olhar esperto e perscrutador da diretora
as profundezas da sua alma sedenta de Deus.
"Desde os primeiros dias de colégio - refere a Irmã
Piai ao P.e Crestanello - notou-se em Laura um juízo
superior à sua idade e verdadeira inclinação para a pie-

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dade. Seu inocente coração não achava paz e tranqüi­
lidade senão nas coisas divinas; e sua devoção, embora
se tratasse de uma menin-a, era séria, sem qualquer afe­
tação e exagêro."
Talvez na segunda parte do autorizado juízo aflore
já o progresso que não tardou a se manifestar na vida
de Laura: certo é que ela chegou à missão andina de
Junín não de todo desprovida de preparo para o trabalho
da graça e para as ascensões do espírito a que Deus a
chamava.
* * *

Além da diretora a da Irmã Azócar, naquele 21 de


janeiro de 1900, as duas Vicufi.as encontraram outras re­
ligiosas em Junín. Era verão e o coleginho "Maria Au­
xiliadora", a três semanas do encerramento do ano le­
tivo, se apresentava deserto.
A falta de ritmo regular de vida favoreceu a adapta­
ção de Laura às várias exigências da nova habitação.
Aprendeu cedo a cuidar da sua pessoa, do leito, das
roupas, das suas coisas, e a fazer tudo dentro de um
horário.
Familiarizou-se com as superioras, que considerava
anjos da guarda e para as quais demonstrava reverên­
cia e respeito. Encantavam-na seu ânimo sereno, o rosto
aberto, a bondade que lhe tinham e a paciência que usa­
vam com Júlia, irrequieta e um tanto caprichosa.
De boa mente as acompanhava nas orações e nas
conversas amenas.

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No mês de fevereiró chegou a junín o jovem e vigo­
roso missionário, P.e Zacarias Genghini, destinado a ter
sua parte nas vicissitudes de Laura.
Em março apareceu de volta o P. 0 Milanésio, supe­
1

rior e pai da missão. Antes que êle retornasse para


Santiago, à prorura de pessoal e de auxílio, as duas co­
munidades celebraram juntas os seus vinte e cinco anos
de sacerdócio.
Pela primeira vez sentiu Laura o fascínio das festas
salesianas, feitas de cerimônias religiosas, de poesias,
cantos, sons e barulho de clamorosa alegria. Parecia-lhe
sonhar. Na sua vida não tinha jamais experimentado
tão expansiva ledice.
Temuco, Norquin, Las Lajas, Quilquihué ... tudo se
esgarçava em confronto da jovial serenidade e da vida
recolhida e piedosa que o colégio lhe proporcionava.
E era tão só o comêço!

* * *

A primeiro de abril - segunda-feira santa - abriu­


se o ano escolar de 1900. A crônica, reduzida como a
do ano anterior, assinala a presença de 14 alunas inter­
nas e 19 externas: 33 ao todo.
Não eram muitas pelo número, mas suficientes para
justificar o sacrifício e .as esperanças das missionárias
de Junín. As companheiras de Laura eram na maioria
da roça, pobrezinhas, humildes, de casca dura e desele-

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gantes. "Meninas - lê-se hurhà relação - qúé mais
fàcilmente empunham as rédeas do cavalo que a pena
ou a agulha."
Em outra página, um pouco posterior, aparecem elas
descritas assim: ''As alunas internas de Junín são tô­
das da Cordilheira: selvagens caipirinhas que é preciso
domesticar. Chegam aqui vindas de umas duzentas lé­
guas até - 1. 000 kms de distância. Dormiriam no
chão nu sem dificuldades, estando habituadas a tudo.
Surpreendi uma delas, chegada de pouco, lavada em
pranto. Quis consolá-la, perguntando se chorava de
saudades dos seus. Respondeu-me: "- Estou cho...
rando porque não tenho mais as minhas ovelhas!"
Não faltavam õrfãzinhas de indígenas ou m estiços.
De índole essas agrestes meninas não eram más.
Pelo contrário. "Em geral - observa uma Irmã - são
dóceis e dadas à piedade; n1as domina nelas o egoísmo
e a inconstância.
Numa palavra: terras virgens que iam sendo lavra­
das com bondade e invicta paciência.
Convém, aliás, notar que o crescimento assim des­
sas meninas ao ar livre, em contato com a vida rústica,
e entre pessoas não acostumadas a muito recato, se, de
uma parte, contribuía para o seu desenvolvimento e sua
robustez física, por outra, as abria para todos os pro­
blemas da vida, embora sem prejudicar o candor ingê­
nuo do olhar e do porte, que as tornava simples e
atraentes, como plantinhas exóticas da montanha.

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Em Santiago o P.e Milanésio não perdeu t�mpo.
A 16 de abril, sábado santo, reaparecia em Junín com a
esperada caravana. Havia a Irmã Luísa Grassi, italia­
na, e as chilenas irmã Marieta Rodríguez e a aspirante
Maria Bricefio.
A festiva acolhida de superioras e alunas dificilmen­
te a imaginará quem não viveu naquelas remotas soli­
dões, onde o aparecimento de um rosto amigo assume
as proporções de um acontecimento.
Aquêle dia e o seguinte encheram-se de transbor­
dante alegria pascal.
Ia Laura cada vez mais sendo conquistada pelo
novo gênero de vida que correspondia às suas internas
disposições e aos vivos desejos de aprender e de me­
lhorar.
O curso escolar de Junín só podia mesmo ser sim­
plicíssimo, já pelo escasso número de alunas, já pela sua
quase absoluta carência de precedente instrução.
No primeiro ano a Irmã Azócar conservara internas
e externas numa só classe, fazendo da necessidade vir­
tude, para ensinar a cada uma o que lhe convinha.
Com a chegada da Irmã Grassi foram as internas
separadas das externas. Ficaram estas com a nova pro­
fessôra, as outras continuaram com a Irmã Azócar.
Laura foi classificada entre as alunas de segunda
ou terceira elementar; Júlia, entre as pequeninas da
primeira.

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Já então conhecia a Irmã Azócar as duas irmãs e
mostrava apreciar Laura pela boa vontade que a ani­
mava e a tornava apontada entre as mais solícitas e ca­
prichosas no cumprimento dos múltiplos deveres da vida
colegial.
Base do ensino: a leitura, a escrita, a redação e
contas. Entretanto a especial natureza do colégio e das
alunas de Junín exigia que se lhes ministrassem os rudi­
mentos da vida civil, a costura, a ordem, o asseio, e dire­
ção da casa e similares. Por isso, nas horas da tarde, a
Irmã Azócar tornava a reunir tôdas as alunas para lições
de trabalho e de economia doméstica.
Segundo as boas tradições salesianas não faltava
também aula de canto, para educação da voz e do sen­
timento, e sobretudo para as execuções sacra� e as fes­
tinhas familiares. Laura mostrou-se dona de voz re­
gular. O primeiro lugar, entretanto, cabia ao catecis­
mo e à formação cristã das alunas, das quais dependia
a consolidação da religião no sudoeste do Neuquén.

* * *

A Irmã Azócar - honra lhe seja feita - foi o tipo


da mestra e assistente salesiana que não mede sacrifí­
cio e não conta renúncias pelo bem das alunas. Dão
testemunho as Irmãs Grassi e Marieta Rodríguez, antes
de afirmarem ambas que ela foi tudo para Laura.
Ela mesma, evocando muitos anos após, as primí­
cias do seu apostolado de jovem professa nos Andes,

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sem perceber que fazia o melhor auto-elogio escreve: ''eu
estava sempre e em tôda parte com as alunas, assistin­
do-as no pátio, no refeitório, na capela, no dormitório.
Estavam comigo na aula e ·as acompanhava a passeio.
No co111êço eu até comia com elas, e não as deixava nem
um instante". E em outro lugar, respondendo, como
antes, às perguntas que se lhe faziam acrescenta:
"nunca perdia de vista as alunas; brincava com elas;
ensinava-as a rezar e a dizer jaculatórias ...; durante
as horas pós-meridianas a gente, em particular, traba­
lhava ou rezava."
Com êsse teor de vida intenso e variado na sua sim­
plicidade, começaram a transcorrer as semanas do ano
letivo, enquanto os dias se iam encurtando, e dos mon­
tes desciam os primeiros frios outonais e as primeiras
rajadas cortantes.

* *

Laura ia e vinha, de um lugar para o outro, em


meio às companheiras, princesinha da ordem, da distin­
ção e da bondade.
O caráter doce e afável, os modos gentis e especial-

mente a exatidão do dever não tardaram em colocá-la
entre as melhores. "Se antes de entrar no colégio -
observa o P.e Cresta11ello - seu procedimento fôra sem­
pre edificante, desde o dia em que começou a tratar com
as Irmãs e a instruir-se nas coisas de religião, cresceu
em virtude e delicadeza"

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No recreio procurava estar perto da Irmã Azôcar,
informava-se sôbre os costumes do colégio; queria co­
nhecer as prescrições do regulamento e de boa vontade
se submetia às suas diretrizes.
Pendia, sobretudo, dos lábios da professôra nas ho­
ras de catecismo, que lhe revelavam os segredos da fé,
inflamando-lhe o coração. É ainda o P.e Crestanello
quem escreve: "Desde as primeiras aulas de catecismo,
Laura demonstrou interêsse em aprender tudo que lhe
era ensinado, enquanto se lhe acendia no fundo da alma
o desejo de pôr em prática o que andava aprendendo."
Nem se creia que tudo lhe fôsse fácil ou ··que não
encontrasse dificuldades. Umas vêzes não acertava na
escolha dos meios para o fim desejado; outras, os resul­
tados não correspondiam às suas aspirações. Laura não
desanimava, nem se aborrecia. Estava pronta a pedir
conselhos e a tentar de nôvo a prova.
É sempre o P.e Crestanello - o confidente de sua
alma desde as primeiras confissões - a afirmar que em
Laura não havia nem os modos estabanados, nem a in­
constância próprios da idade. Mostrava já um caráter
firme e resoluto. Também a Irmã Azócar nota: "Laura
era de caráter forte e suave a um tempo".
Tinha ouvido ler no Regulamento do colégio: "Lem­
brai-vos que fomos criados para amar e servir a Deus,
nosso Criador; e que a ciência e tôdas as riquezas do
mundo de nada valem sem o temor de Deus." E ainda:
"Entregai-vos desde os verdes anos à virtude, porque es-

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perar pela velhice é pôr-se em gravíssimo perigo de per­
der-se eternamente. As virtudes que mais ornam o co­
ração de uma menina cristã são a modéstia, a humil­
dade, a obediência e a caridade."
Nestes conceitos se inspiraram também os pregado­
res do tríduo de introdução ao ano letivo e dos exercí­
cios espirituais a que se alude na crônica. Foram cer­
tamente o P.e Crestanello e o P.e Genghini, que tinham
a arte de entreter meninos e meninas e que habitual­
mente falavam aos dois colégios reunidos na capela sa­
lesiana.
Laura escutou com os olhos e com o coração. Ja­
mais tanto esplendor de luz se havia jorrado na sua
alma. Jamais tanta comoção lhe invadira o espírito.
Esquadrinhou o seu breve passado; repassou os poucos
meses decorridos no colégio, e vendo-se qual era e qual
queria ser, teve de dizer e repetir depois: "Tenho sido
e sou muito má; mas de agora por diante hei-de ser
muito boa". E com ânimo generoso redobrou de esfôrço
na prática do dever e da virtude.
E Deus quis que no árduo empenho não lhe faltasse
o confôrto e o estímulo de uma alma gêmea.

* * *

Entre as internas de Junín estavam as irmãs Maria


e Merced€s Vera, filhas dos principais benfeitores do
colégio.

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No dia seguinte à chegada, as Missionárias tinham
feito uma última cavalgada de três léguas para conhe­
cer e reverenciar os senhores Vera na estância dêles.
E imediatamente Maria e Mercedes foram inscritas en­
tre as educandas internas da nascente instituição.
Mais, a vinte cinco de maio daquele mesmo ano,
como exemplo nôvo para as companheiras, Maria Vera,
com pouco mais de dezesseis anos, vestia a capinha das
aspirantes a Filha de Maria Auxiliadora.
Por aquela época entre Laura e Mercedes - ou
Merceditas como afetuosamente lhe chamavam em Ju­
nín - já se havia estabelecido a corrente de afinidade
espiritual e de sinoera amizade que as uniu na aspira­
ção da vida salesiana e da santidade juvenil.
Merceditas era três anos mais velha que Laura,
tendo nascido em 1888; e se é verdade que a amizade
acha ou torna iguais, cumpre convir que na Vicufí.a o
siso superava a idade, e que pelo seu modo de raciocinar,
de sentir e de agir dir-se-ia uma adolescente. Ter-se-á
até oportunidade de ressaltar que Mercedes Vera, atraí­
da pelos exemplos de Laura, vai-lhe bem perto no
encalço.
Onde Laura, desde então, proporcionava a insólita
medida da sua virtude era nos diligentes cuidados que
tinha para com Júlia. Percebiam-no todos, e ficavam
admirados, embora justamente aí aflorasse algum leve
movimento de impaciência. Vale a p·ena ouvi-lo da pró­
pria Irmã Piai: "Sôbre os defeitos de Laura posso di-

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zer que se mostrava um pouco impaciente com a irmã,
quando esta não procedia bem. Com as outras compa­
nheiras era sempre boa e condescendente." E em outro
lugar: "L.aura cuidava de Júlia valendo-se de mil in­
dústrias para torná-la melhor."
A mesma Júlia Amandina depôs nos processos da
irmã: "Quanto ao comportamento de Laura para co­
migo posso atestar que pelo meu caráter e minha viva-
cidade eu era o reverso da medalha. Dava-me conse­
lhos, mais de mãe que de irmã, malgrado a pouca dife­
rença de idade." E para bem compreender a conduta
de Laura, convém ter presente que isso aconteceu no
primeiro biênio de colégio, porque em 1902 Júlia já não
voltou para Junín.
Das faltas, não por certo graves, de Mandina outras
testemunhas asseguram que Laura se afligia muito pelo
desgôsto dado a Deus e às sup-erioras.
Também Mercedes Vera recorda os conselhos que
Laura dava à irmã; e acrescenta que rezava e se mor­
tificava por ela: para não ser vaidosa, para que amasse
Nosso Senhor e Nossa Senhora, e não imitasse os exem­
plos de Quilquihué ...

* * *

:tste último aceno sugere ao biógrafo de Laura uma


pergunta: percebeu a menina a condição irregular de

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sua mãe, antes de entrar em Junín ou nos primeiros
tempos da permanência no colégio?
As crianças, e de um modo particular as meninas,
têm às vêzes intuições profundas. Seus olhinhos vêem
mais do que se pode imaginar. A frescura e o candor
da alma levam-nas como deixamos dito, a reagir instin­
tiva e inconscientemente ao mal. Não sabem dizer o
que enxergam; mas, ao menos confusamente, formulam
juízo exato.
Assim foi com Laura no tocante à sua mãe. Não
obstante os carinhos que lhe usavam em Quilquihué, ela
compreendeu que não renasciam na estância argentina
os tempos longínquos de Temuco, quando vivia seu pai.
E por cima, o estudo da religião lhe esclarecia as
idéias, em forma quase trágica.
A Irmã Azócar o acena, confirmando o interêsse que
Laura demonstrava nas aulas de catecismo; e seu tes­
temunho, do conjunto dos pormenores, parece dever-se
referir ao primeiro ano escolar de Laura, já pelo fim,
talvez. HÃ primeira vez que expliquei o sacramento do
matrimônio - conta a Irmã l"'zócar - Laura desmaiou,
certamente porque pelas minhas palavras percebeu que
a mãe vivia em estado de culpa ..."
Vivamente impressionada, a religiosa falou com a
superiora. Esta, na sua prudência, sugeriu a volta ao
argumento com jeito, para melhor estudar-se a aluna.
Pois bem, Laura empalideceu novamente e foi preciso
correr em seu auxílio e mudar de assunto.

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Não restava dúvida: um espinho andava rasgando
o coração da inocente menina e preparava o pequeno
grande Calvário.
• * *

Ao sofrimento interior que não dará trégua ao es­


pírito de Laura, e que mais intenso se irá tornando à
medida que su,a alma se imergir em Deus, uniram-se
fortes humilhações, de que falaremos adiante, e sofri-
mentos comuns.
Na manhã de 18 de julho, pouco depois dos exerci­
cios espirituais, enquanto o p.e Crestanello se dirigia
para Buenos Aires, e o P. e Genghini iniciava uma das
suas excursões missionárias, eis que, improvisamente,
o Chimehuín, engrossado pelas chuvas invernais sai do
leito, invade a planície e alaga as primeiras casas de
Junín.
Pode-se imaginar o pavor da população e o terror
dos alunos e alunas dos dois colégios, que atabalhoada­
mente tiveram de abandonar tudo para se pôr em se­
guro.
Graças a Deus, as coisas não correram como no ano
anterior: então Irmãs e alunas tinham sido obrigadas
a ficar acampadas fora de casa, cêrca de duas semanas.
Desta vez, pelo contrário, no espaço de um dia puderam
voltar às próprias ocupações: tinha sido maior o susto
que os danos. O frio e as intempéries bem poderiam ter
repercutido na saúde das mais fraquinhas - Laura en­
tre elas - mas felizmente nada aconteceu.

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A quinze de agôsto, no coração do inverno, aprovei­
taram a solenidade mariana para a aquisição do jubi­
leu proclamado pelo Papa Leão XIII. "O povo - lê-se
na crônica - participou numeroso, dando prova de fé
e de sincera devoção. Muitas as comundões".
A semente evangélica, embora caída em terreno pe­
dregoso, dava os seus frutos.
Laura escutava, admirava e calava. Ouvindo falar
de Roma, do Papa, da porta santa, da extraordinária
facilidade para obter o perdão das culpas, voava com o
pensamento até Quilquihué. Se também a mamãe
viesse para o jubileu!
Mas, D. Mercedes, que talvez nem fôra informada do
acontecimento, nôvo de todo naquelas terras, não in­
terveio. Aliás, consultada a propósito a Irmã Azócar
atestou: "Não me lembro de jamais ter visto a mãe de
Laura na igreja, a não ser no dia em que esta fêz a Pri­
meira Comunhão."
A pouco e pouco, através de amargas desilusões,
Laura acabaria por compreender o preço infinito das
almas e a impossibilidade de salvá-las sem crucifixão.

D. Mercedes de quando em quando aparecia, às


pressas, para ver as filhas, informar-se dos estudos, pro­
vê-Ias do necessário e pagar a pensão.
Sabe-se que todos os anos voltava a Temuco para
as oportunas provisões. Certo é que nos primeiros tem-

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pos nunca faltou nada para Laura e Júlia. Antes, sem­
pre sobrava alguma coisa para darem às coleguinhas
mais pobres.
Acompanhando-as ao parlatório a Irmã Grassi no­
tou que D. Mercedes "lhes demonstrava muito afeto",
e que era largamente retribuída.
Ia o amor de IJaura, assim, aprimorando-se ao calor
da sua crescente piedade. Amar para ela significa, já,
desejar para a pessoa amada a paz com Deus e com os
homens.
Alegrou-se, portanto, quando a 27 de outubro da­
quele ano - 1900 - sua mãe, na igrejinha de Junín,
onde alunos e alunas se reuniam no domingo para a
missa de preceito, serviu de madrinha no batismo de
Maria Rosário Martínez, nascida alguns meses antes de
pais chilenos.
Naquela época D. Mercedes contava trinta e cinco
anos.

* * *

Poucos dias após, a '? de novembro, iniciou-se o mês


mariano, que no hemisfério meridional se celebra em
preparação à festa da Imaculada.
A crônica do Colégio Maria Auxiliadora nota que
as alunas o fizeram com "bastante fervor". Essa tam­
bém era para Laura uma prática nova, cheia de encanto
e poesia.

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Leituras, prédicas, exortações, loas sagradas, jacula­
tórias, "flôres" cotidianas: uma sucessão e entrelaça­
mento de convites e de esforços para honrar a Puríssima,
suscitadora das obras sale.sianas.
Não andaríamos longe da verdade imaginando que
Laura e Merceditas sobrepujassem as companheiras na
oferta de flôres de virtudes àquela Virgem que amavam
com ardor e que haveria de ser o sonho cândido de sua
juventude pura e mortificada.
A 8 de dezembro Laura foi inscrita entre as aspiran­
tes a Filha de Maria.

* * *

Agora o pensamento de superioras e alunas concen­


trou-se nos exames finais e no encerramento do ano
escolar.
Laura também devia colhêr no campo das suas fa­
digas: e a colheita foi mais que lisonjeira.
"Era tão aplicada e ajuizada - nota a diretora -
que se saía excelentemente no estudo." E o P. Gen­
ghini declara: "possuía inteligência mais que discreta,
tanto que não precisava repetir-lhe - como acontecia
com algumas índias - as mesmas coisas. Na aula e na
sala de trabalho não estava nunca ociosa, embora, por
sua compleição franzina e delicada e pela índole tran­
qüila, não fôsse daquelas que andam numa roda-viva".
As provas orais e escritas, que duraram de 26 a 29
de dezembro, depois de um férvido natal, demonstram

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que Laura não enterrara seus talentos. Conseguiu nove
em leitura e dez nas outras oito matérias. Um verda­
deiro sucesso.
Com razão escreve o P. Crestanello: "Dos regis­
tros daquele ano se deduz que Laura estêve entre as
alunas mais estudiosas e aplicadas do colégio e que se
dintinguiu particularmente em procedimento e instru­
ção religiosa." Tanto que na premiação de 1.0 de ja­
neiro de 1901 foi-lhe atribuído o prêmio especial de pro­
cedimento e o prêmio de trabalho manual e aplicação.
Causou interêsse nas famílias de Junín e arredores
a pequena exposição de deveres escolares e de trabalhi­
nhos de agulha, de que transparecia o eficiente ensino
das irmãs e o aproveitamento das alunas. Naquele re­
canto ignorado do mundo jamais se vira coisa seme­
lhante.
E entre todos o nome de Laura Vicufia foi o mais
repetido e aplaudido com legítimo orgulho de D. Mer­
cedes, que junto da filha gozava uma hora de alegria,
sem dar-se conta da angústia que a sua vida lhe punl1a
no coraçãozinho.
De seu lado o P. Crestanello conclui, escrevendo
que o Colégio Maria Auxiliadora naquele ano fôra favo­
recido com a presença de uma menina angélica, Laura
Vicufia.

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CAPITULO VII

O Grande Encontro

Depois da premiação de 1. 0 de janeiro de 1901, os co­


legiais e as colegiais lá se foram céleres, como bandos
de passarinhos, para as Cordilheiras e os lares distan­
tes, para as fé rias.
D. Mercedes levou Laura e Júlia para a estância de
Quilquihué.
Para Laura foi um "verdadeiro sacrifício", assegu­
ra-o o P. Crestanello, que ao escrever sôbre sua heroína
ponderou as palavras por necessário respeito aos su­
pérstites.
No colégio Laura se sentira como "num paraíso".
Aprendera a melhor conhecer e amar a Deus; a combater
os defeitozinhos de temperamento; a fugir do pecado.
Todos os dias assistia à missa, rezava o têrço, podia pas­
sar preciosos instantes ao pé do tabernáculo. E, que-

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rendo, tinha à disposição os ,conselhos da assistente, da
diretora, do confessor.
Tornara-se o colégio a sua casa e agora ela sofria
ao pensamento de dever deixá-lo.
Se eu pudesse ficar aqui! - pensava. Mas não era
possível nem conveniente. D. Mercedes não renuncia­
ria aos direitos do amor materno.
Na aspiração de Laura é fácil perceber o mêdo da
pomba ao gavião.
Saíra de Quilquihué alegre; voltava triste. Compre­
endeu que devia obedecer, e não se recusou.
Disseram-lhe que na estância teria podido rezar;
que Deus está perto de quem lhe pede a ajuda; que a
Senhora Auxiliadora havia de estender seu manto sôbre
ela como escudo e defesa. Talvez lhe recomendassem
Júlia, ignara do que andava acontecendo. Cumpre, en­
tretanto, dizer que as superioras de Junín não percebiam
exatamente a verdadeira condição de D. Mercedes: são
elas mesmas que o confessam.

* * *

Pela estrada que costeia o curso sinuoso do Chime­


huín lá se foi Laura com a mamãe e com Júlia para
Quilquihué.
Mostrava-se serena, sem alegria. A certeza de estar
cumprindo a vontade de Deus dava-lhe coragem.

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Aquela senda, pisoteada peias cavalgaduras que â
batiam de Junín a San Martin de los Andes, tornava-se
de certo modo a via dolorosa do seu incipiente calvário.
A direita, erguia-se ao longe a soberba cadeia dos
Andes com a mole imponente do vulcão Lan:in, de pico
agudo e flancos nevados; à esquerda, além do rio, as
serras onduladas dos pré-Andes e as colinas em declive
para as imensas planuras patagônicas; de fronte, ora
estreito, ora largo, o vale do Chimehuín, de águas lím­
pidas a espelharem o azul profundo do céu.
Um cenário artístico!
Mas daquela vez Laura, que tanto amava a natureza
e se extasiava com as flôres, quase não percebeu as su­
gestivas belezas espalhadas pelas mãos de Deus naquele
rincão solitário do mundo.
Atravessado o Curruhé, onde havia um antigo for­
tim, o Colluncó e outros rios pedregosos, a cavalgada
alcançou o impetuoso Quilquihué, na confluência com
o Chimehuín; subiu-lhe, entre as garras de dois penedos,
a corrente que flui do lago Lolog; e em breve se acha­
ram na estância homônima.
Quilquihué significa lugar dos falcões: e sem o que­
rer, o nome do lugar podia convir às pessoas ...

* * *

Na região do Neuquén a estância não era uma vila,


mas uma propriedade agrícola, uma fazenda de alguns
quilômetros quadrados de superfície.

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A de Quilquihué não ,diferia das outras: em c(lnêço
tôdas, ou em vias de remodelação.
A parte central, ou dos p-atrões, consistia em uma
espaçosa moradia que espiava dentre o verde, circun­
dada de alamedas de frondosas árvores e canteiros junto
à entrada, com característico moinho de vento para a
água e o indefectível palanque - esteio fincado no
chão - ao qual se amarravam os animais prontos para
a corrida.
Ao derredor a planície ondulada e relvosa, onde
crescia e pastava o gado.
No horizonte, perto e longe, uma paisagem alpestre
de colinas, penhascos, co�rutos, altiplanos crestados
pelo sol, as cristas rochosas pontilhadas pelas últimas
manchas de neve. Entre outras, para as bandas de San
Martín de los Andes e o lago Lácar, visível, a cadeia
dos montes Chapelco dos mais altos e alcantilados da
região. Lugar de veraneio ideal para a gente se refazer
das fadigas de estudo! Laura não tardou em lhe
sentir as vantagens. A alimentação abundante, a vida
livre, o ar puro, pareciam acelerar-lhe aquêle desenvol­
vimento físico que continuava e se fundia com a preco­
cidade �o espírito.
De resto, para pô-la adulta antes do tempo lá estava
o espinho agudo,, que lhe transpassava o coração.

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Panorama de Junin dos Andes tendo ao fundo as
Cordilheiras e o vulcão Lanin.
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ôs dias sucederam-se sem surprêsas e sem contras­
tes.
D. Mercedes era tôda desvelos. Os outros na estân­
cia - e não eram poucos entre vaqueiros, peões e famí­
lias - olhavam admirados aquêle encanto de menina
que trazia nos olhos a transparência dos lagos andinos.
O próprio Manuel Mora - o soberbo estancieiro de Quil­
quihué - embora a espantasse só com a sua presença,
naquele ano tratou-a com respeito.
único recurso e inabalável sustentáculo de Laura,
- a oração, que tanto lhe tinham inculcado em Junín
e que a fazia reviver, no isolamento espiritual das fé­
rias, as doces e inesquecíveis horas do colégio.
Mas justamente na oração sentia a atenta menina
agravar-se o seu indefinível tormento. A mãe - segun­
do uma autorizada testemunha dos processos - obriga­
va-a a rezar às escondidas de Mora. Por quê? - pergun­
tava a menina - por que sàzinha com Júlia? Por que
a mamãe encontra pretextos para eximir-se de todos os
convites?
O afastamento da oração assinala claro o afasta­
mento de Deus. Laura o compreendia e se amargurava.

* * *

Entrementes em Junín ia-se preparando tudo para


o terceiro ano letivo no Colégio Maria Auxiliadora..
Saindo os alunos e alunas, irmãs e missionários,
como podiam, tinham feito juntos um curso de exercí-

-97-
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cios esp1ritua1s pará se retemperarem p·ara as novas fa­
digas do apostolado. Depois a Irmã Piai e a Irmã Azócar
partiram para Santiago.
Após dois anos voltavam às casas de origem, não
para um merecido descanso, mas em busca de livros,
alfaias, objetos sagrados e escolares e de tudo aquilo
que a humilde vida de Junín podia necessitar. Tencio­
navam, sobretudo, com a narrativa das felizes experiên­
cias andinas, recrutar almas corajosas que as seguissem
ao Neuquén, amado e descrito como uma terra de en­
cantos.
Transpuseram de nôvo os Andes em fevereiro. Acom­
panhava-as a Irmã Ana Maria Rodríguez, alma delicada
e gentil que logo haveria de transmitir a Laura o fervor
de seu espírito.
Colombiana de nascimento, não hesitara em trans­
ferir-se sozinha para o Chile a fim de seguir o ideal da
vida salesiana e missionária, bebido na ·escola de um
filho de São João Basco, apóstolo dos leprosos na sua
pátria.
Era professôra e parecia nascida para viver em meio
às meninas que a ouviam como um oráculo e lhe imi­
tavam os exemplos.
No inicio de 1901 saía de uma doença que a fizera
sofrer muito; os médicos amarravam a cara e davam
de ombro; mas suas insistências foram tantas que obti­
veram das superioras licença para ir com a Irmã Piai.

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Lê-se na crônica de Junín a 25 de fevereiro: "Vol­
tam de Santiago a Diretora e a Irmã Azócar com a boa
Irmã Ana Maria Rodriguez que vem alegre para as mis­
sões para nos ajudar rio trabalho". Se, como tudo faz
pensar, essa nota foi escrita pela mesma irmã Piai, é
supérfluo relevar que exprime satisfação e admiração
pela nova colaboradora.
Em março o ano escolar tomou o seu regular anda­
mento. Famílias e alunas percebiam que a estrutura
interna do colégio, de ano para ano, ia-se aperfeiçoando
para comum vantagem. Não se podia exigir mais de
quem tudo sacrificava com nobreza de intenções.

* * *

A volta para Junín foi uma festa para Laura.


Ela - escreve o P. Crestanello - "era um espírito
alegre, e de boa vontade participava dos recreios e di­
vertimentos, mesmo nos mais animados, procedendo
sempre, porém, com graça e moderação. Ora, seja que
isto não lhe fôsse possível na estância, seja porque lá
não se respirava aquêle aroma de pureza que formava
o seu encanto, quando sua mãe lhe disse que era tempo
de voltar para o colégio, seu coração e sua alma se en­
cheram de inefável alegria. Voltava - como ela mesma
repetia - ao seu paraíso."
Não se podia descrever com maior delicadeza o
íntimo contraste de Laura, que se erguerá sempre mais
como motivo dominante de sua existência.

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No dia seguinte a menina se apresentou ao tribunal
da penitência, para limpar a alma de tôda a poeira das
férias e retomar com entusiasmo o caminho da virtude,
que, aliás, nem um instante abandonara.
Reviu com satisfação as amigas do ano anterior,
entre as quais Merceditas, e fêz novos conhecimentos.
O mais agradável foi o da Irmã Ana Maria Rodrí­
guez, designada como sua professôra.
Na divisão das alunas, para um melhor aproveita­
mento nas aulas, tinham cabido à ardorosa religiosa
colombiana, culta e provecta na arte de ensinar, as
maiorzinhas que iriam desenvolver um programa cor­
respondente à quarta elementar.
"A Irmã Ana Maria Rodríguez - atesta a Irmã
Grassi - foi a segunda professôra de Laura". E con­
· v·ém dizer: professôra santa e zelosíssima, que ensina e
educa, ilumina com a palavra e arrasta com o exemplo.
Professôra que, sem tornar pesadas as lições, sabe achar
infinitos recursos para prender o ânimo das alunas e
formá-las no sentido cristão da vida.
Laura sentiu-lhe o fascínio, como, aliás, Merceditas
Vera, cujas memórias, ditadas uns trinta anos após, re­
velam ainda frescura de sentimento e ilimitada admira­
ção pela mestra incomparável.
* * *
Começaram as aulas na metade de março, ou nos
primeiros dias de abril. Nada de especial há registrado
,... .
11a cronica.

100 -
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Nas atitudes de Laura as superioras devem ter des­
coberto uns tons de tristeza que transparecia do olhar
proft1ndo e do pensamento fixo na mamãe. Aquela me­
nina estudiosa, modesta, piedosíssima, esco11dia un1a
dor que lhe estracinhava o coração.
A diretora, visando a mitigar-lhe maternalmente n
pena e, por certo, para lhe secundar os ardentes anseios,
admitiu-a à Primeira Comunhão.
Tinl1a dez anos, figurava entre as maiorzinhas do
colégio, por todos tida como ajuizada e exemplar: nfi::>
era o caso de retardar mais o gra11de encontro.
''A um tão doce e inesperado anúncio - escreve o
P. Crestanello - lágrimas de alegria e ternura marc ..
jaram os olhos de Laura e lhe banharam o rosto en1
fogo. Tão grande foi a comoção que não conseguiu pro­
ferir uma palavra"
O pe11samento voou fulmíneo para Quilquihtié.
Quem sabe se aqt1êle dia suspirado seria de renascime11-
to também para a mamãe!
- "Está chorando, Laura? - perguntou afetuosa­
mente a diretora. - Você não está contente?
- "Oh! sim, como não! - Balbuciou a menina
enxugando as grossas lágrimas qu,e lhe sulcavam as
faces. - Estou pensando na mamãe. Coitada da ma­
mãe!"
Dela Laura falava continuamente a Deus na ora­
ção; freqüentemente até convidava Júlia para acon1pa­
nhá-la nas visitas à igreja para rezarem pela mamãe.

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Dentro .em pouco o P. Crestanello ,diria de Laura:
"Sabia já confiar a Jesus Sacramentado suas alegrias
e suas penas".

* * *

A preparação remota de Laura para a Primeira Co­


munhão já vinha, pode-se dizer, de mais de um ano.
Receber Jesus constituiu o sonho de sua alma desde
quando pusera o pé em Junín e se tinha adestrado no
estudo do catecismo e na vida salesiana, que lhe pro­
porcionava tôdas as manhãs o espetáculo de juventudes
eucarísticas.
A preparação imediata, muito intensa, durou todo
o mês de maio e talvez parte também de abril. O P.
Crestanello, então já pai espiritual de Laura, alude ao
fato com estas palavras admiráveis:
"Desde o momento em que recebeu a alegre notícia,
entregou-se com mais empenho ao estudo do catecismo,
e especialmente no que se refere à Confissão e Comu­
nhão. Propôs-se especialmente um procedimento vigi­
lante, o exercício de tôdas as virtudes e o conhecimento
do que é necessário para se dispor a tal acontecimento...
"Fôra sempre obediente e submissa, afável, humil­
de; mas ao partir de então notou-se que agia com mais
perfeição. Mais diligente nos deveres, mas recolhida e
fervorosa nas práticas de piedade.
"Entre tôdas preferia o exercício da presença de
Deus, servindo-se para isso de freqüentes e inflamadas

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jaculatórias e bons pensamentos e de conversas santas,
especialmente sôbre o amor que nos tem Jesus na Euca­
ristia.
"Gostava muito também da confissão. Seu vivís­
simo anelo era conservar a alma bela e pura; por isso
nenhuma satisfação maior para Laura do que aproxi­
mar-se do tribunal da penitência e receber a santa
absolvição. Levantando-se do confessionário trazia es­
tampados no rosto o gôzo e a alegria que a inundavam."
As vêzes Júlia caçoava dela por causa dessa assídua
freqüência ao confessionãrio. Laura, porém, se descul­
pava dizendo: "- Quando você fizer a primeira comu­
nhão, vai ver como a gente deseja ser pura e cândida!
Depois da confissão eu me sinto mais forte contra as
tentações, e tudo me fica mais fãcil ..."
Muito dêsse insopitável ardor deveu-o Laura à Irmã
Ana Maria Rodríguez, a quem coube prepará-la, com o
confessor, para o grande dia.
Afirmar que a missionária comunicou ao coração
de Laura sua fé, sua piedade, seu amor, é, talvez, entre­
ver uma página dessa biografia que não será jamais
escrita.
O terreno estava certamente preparado; mas
também a semente escolhida e de primeira qualidade,
era atirada ao sulco a mancheias, e com tal tino e fôrça
de persuasão, que nada de humano faltava à ação mis­
teriosa e aperfeiçoadora da graça.
"A Primeira Comunhão bem feita - afirma São
João Bosco na vida de São Domingos Sávio - assenta

- 103 -
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um sólido alicerce para a vida inteira." A Irmã Ana
Maria sabia-o. Talvez mesmo o lembrasse a Laura. Por
sem dúvida serviu-lhe de norma para o seu delicado
empenho.
* * *

As escolhidas para aquela extraordinária cerimônia


de primeiras comunhões foram três. Quiseram dessa
maneira aumentar a solenidade e o júbilo da festa da
Diretora, que é das mais belas na vida salesiana colegial.
Naquele ano de 1901 o dia onomástico de Santa
Angela caía numa sexta-feira. Tudo foi adiado para
dois de junho, domingo da Trindade.
·-
Na tarde anterior D. Mercedes chegou a Junín, para
assistir a um acontecimento que lhe acordava no cora­
ção o tumulto dos afetos maternos. Talvez tivesse que­
rido acompanhar a filha no banquete sagrado e endirei­
tar os caminhos tortos da vida: mas uma vez precipita­
dos barroca abaixo, não é tão fácil reconquistar o acli­
ve ... A hora da misericórdia estava ainda muito longe!
De volta da confissão que dera o último retoque à
sua alminha, resplandecente de pureza e candor, na sa­
leta de visita do colégio Laura abraçou com transporte
sua mãe.
- "Mamãe - disse-lhe entre soluços - amanhã
vou fazer minha Primeira Comunhão. Perdoe-me os
desgostos que lhe dei. Se no passado fui má, de agora
em diante quero ser a sua consolação. Isso eu vou pe-

- 104 -
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dir amanhã a Jesus com fervor. Vou rezar também pela
senhora ... "
D. Mercedes vivamente comovida, apertou ao peito
aquêle tesouro de filha que somente então ela começava
a conhecer na riqueza de sua vida interior.
A essa cena estava presente a Diretora. A ela tam­
bém Laura pediu perdão das faltas cometidas no colé­
gio e renovou em suas mãos, con10 sagrado juramento,
o propósito de um procedimento exemplar.
Fêz a mesma coisa à tarde com a Irmã Azócar, a
Irmã Ana Maria e até com algumas companheiras, asse­
gurando a tôdas que delas se lembraria no seu pri­
meiro abraço com o Hóspede Divino.
Como da Bem-aventurada Maria Teresa de Soubi­
ran, poder-se-ia dizer que Laura Vicufi.a preparou-se
para a Primeira Comunhão "como uma santinha".

* * *

A cerimônia de 2 de ju11ho se realizou na capela


do colégio salesiano ou na igrejinha paroquial de Junín.
Celebrou provàvelmente o P. Crestanello, visto que
o P. Milanésio não dava. trégua às suas viagens.
Vestida de branco, coroada de flôres, com a alegria
a irradiar-lhe do rosto, Laura foi ao encontro do Amigo
da alma.
Grave e modesta parecia uma pequenina rainha.
"Sua gravidade, sua modestia, seu porte - escreve o
P. Crestanello - atrairam os olhares de todos.''

- 105 -
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A angélica menina tinha sonhado tanto com êsse
dia como o mais suspirado da juventude; à medida que
se aproximava, prelibava-lhe as delícias com a ânsia do
peregrino que divisa a fonte; e à escola da Irmã Ana
Maria viera preparando-se com incessante arroubos de
amor e com mil vitórias secretas sôbre as inclinações
da sua frágil natureza.
Entretanto, ao romper da alva feliz, pareceu-lhe
que não refletia ainda a intemerata brancura das neves
andinas; e antes de ir para o genuflexório junto do altar,
à espera do suspirado instante, quis ainda mais uma
vez chegar-se ao confessionário para uma última bênção.
A igrejinha ressoou de cantos e preces. Não faltou
nem sequer o sermão de ocasião.
Depois, o grande encontro. Laura não está mais
só. Jesus, o Homem Deus, vindo até ela sob os véus
eucarísticos, a inebriava de alegria, -enriquecia de graça,
acolhia suas súplicas e propósitos.
"Ajoelhada no seu lugar - ,diz o P. Crestanello -
de cabeça baixa quedou absorta em doce colóquio com
Jesus" Mais tarde, aludindo àquela hora inesquecível
de céu, exclamava: "Que momentos deliciosos! Unida
a Jesus eu lhe falei de todos, e para todos pedi graças
e favores! "
Primeira a ser recordada foi a mamãe, tão pertinho
com a pessoa, e tão longe espiritualmente.
D. Mercedes, perdida na pequena multidão, olhava
e calava. Em segrêdo talvez derramasse lágrimas. Sen-

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tia que um abismo a separava da filha, mas não teve
fôrças para enchê-lo, quebrando os grilhões da miserá­
vel prisão. O amor de mãe lhe despertava a saudade
da família cristã e a fazia assistir como num sonho
àquela cena paradisíaca, enquanto o passo fatal que a
atirara a Quilquihué impedia-lhe a reconciliação com
Nosso Senhor e a chegada à mesa dos anjos.
Poucos terão notado, naquele dia, o chocante con­
traste que apresentavam mãe e filha, e que delineava
a vida e a missão de Laura.
Quanto ao resto, nada houve de extraordinário,
quer durante a cerimônia, quer no correr do dia. úni­
camente Francisca Mendoza assevera - e o repetiu com
juramento nos processos - que ao contemplar Laura
depois da comunhão pareceu-lhe ver uma como auréola
de três estrelas sôbre sua cabeça.

* * *
A Primeira Comunhão plantou um marco miliário
no breve caminho da vida de Laura.
Santa Gema Galgani escreveu dessa sua data: "Foi
o dia em que senti o coração mais aceso de amor por
Jesus."
Outro tanto se pode dizer de Vicufia. Aquêle 2 de
junho de 1901 provou quanto tinha sua alma progre­
dido nos caminhos do espírito e quanto a dispusera para
o sacrifício, em fôrça do fogo de caridade que a abrasava.
O biógrafo gostaria de abarcar a amplitude e a pro­
fundidade de seu diálogo de amor com Deus, conhecido

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tão só dos anjos. Por sorte restam os propósitos formu­
lados à imitação de Domingos Sávio. São três. Ei-los:
"Primeiro. ó meu Deits, quero amar-vos e ser­
vir-vos por tôda a vida; por isso eu vos dou a mi­
nha alma, o me1t coração, todo o meu ser.
"Seg1lndo. Antes morrer que ofender-vos com
o pecado; por isso tenciono mortificar-me em tudo
o que me afaste de vós.
"Terceiro. Proponho fazer tudo quanto puder
para qu,e vós sejais conhecido e aniado e para re­
parar a.s ofe1isa.s que recebeis todos os di-as dos ho­
mens, especialmente das pessoas de minlia família.
"J.Vleu Deus, dai-me 'uma vida de amor, de mor­
tificação, de sacrifício."
Não há dúvida. De maneira indistinta, embora,
Laura intuiu que Deus queria fazer dela uma pequenina
vítima. O ace110 à reparação pelas culpas das pessoas
de família é de reveladora eloqüência.
O prese11 te de Jesus no grande dia de sua Primeira
Comunhão foi a Cruz: que ela aceitou sem reservas.
Pedia tão só poder imolar-se em espírito de amor como
hóstia de propiciação e ,de paz.
Por isso a mesma alegria inefável do primeiro am­
plexo com Cristo ficou amargurada pela ausência da
mãe no banquete sagrado.
Nenhuma felicidade para a heróica menina dos
Andes haveria jamais de ser completa, exceto a da imo­
lação suprema.

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J
CAPITULO VIII

Amizade e Santidade

Na Primeira Comunhão de Laura, feita com seráficas


disposições e com arroubos de incontido ardor, o �­
Crestanello descobre o segrêdo da sua corrida veloz pe­
las veredas da santidade. "Fiel aos seus propósitos -
escreve - ela não perdia oportunidade de pô-los em
prática, tanto que desde aquêle dia feliz notamos nela
um verdadeiro e sólido progresso."
A Diretora, Irmã Piai, ficou tão admirada que teve
mêdo de estragar o trabalho divino naquela alma.
"Quando percebi - declarou - que tinha por diante
uma criatura excepcional - e foi logo - tive uma sen­
sação de trepidez; e deixei tudo nas mãos do confessor".
O P. Crestanello, como eu já disse e como se verá
melhor adiante, era sábio plasmador de almas.
Com sobrenatural clarividência compreendeu a
missão de Laura; e sem se antecipar às moções da graça,
soube favorecê-las com singular discrição e tato. Com

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razão, muitos anos depois, não duvidava a Irmã Piai
em assegurar: "Não é certamente o último mérito do
P. Crestanello ter sabido compreender os desígnios da
Providência na vida de Laura: o tempo me dará razão."
Mas isso não aconteceu num átimo. O estudo e o
conhecimento das almas não são coisas de um instante.
Andaremos, pois, certos pensando que a ação farmadora
do confessor na 11ida de Laura tornou-se mais intensa
e pessoal durante o segundo ano de colégio, em prepa­
ração e como efeito da Primeira Comunhão.
Por uma parte a menina tinha aprofundado a im­
portância e as vantagens da confissão freqüente; por
outra, o diretor espiritual notava com maravilha a trans­
formação da penitente ,e a ânsia de perfeição que a con­
sumia, como se pressagiasse a fugacidade dos seus dias.
Examinando com efeito atenciosamente os teste­
munhos, selecionando os que se referem certamente ao
segundo ano de Laura em Junín, tem-se a impressão que
a sua vida espiritual desconhece as pausas, os saltos, as
incertezas, as hesitações próprias da idade juvenil, e
chega, como de surprêsa, a certa plenitude e maturidade
que surpreende.
Nem se esqueça por outra parte que as missões sa­
lesianas da América viviam naquelas décadas a época
de ouro dos primórdios; e que as primeiras Filhas de
Maria Auxiliadora que foram a Junín tinham levado
para as Cordilheiras um ardor tal capaz de criar, sem
o perceberem, um clima de santidade. Confessa-o ingê-

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nuamente a Irmã Azócar ilustrando a.s inclinações de
Laura: "Formadas à escola de D. Costamagna - un1
dos mais fiéis intérpretes do espírito salesiano na Amé­
rica, nós estavamas cheias de fervor; e Laura foi entre
as alunas a que parecia nascida de propósito para nos
seguir nos juvenis entusiasmos da vida de piedade. Não
havia perigo que deixasse cair em vão uma palavra que
fôsse ou recomendação, especialmente de caráter reli­
gioso, saídas de nossos lábios. Apanhava tudo no ar;
considerava, profundava e punha por obra, muito mais
do que se poderia esperar de seus verdes anos."
Isso desde o comêço; muito mais, porém, a partir
da Primeira Comunhão.
A própria Laura nô-lo faz saber. Apresentando-se,
no dia seguinte, à sua professôra, Irmã Ana Maria dis­
se-lhe com acento humilde e decidido: - "Ohl verá
como de ora em diante vou ser boa! Ninguém mais terá
que se queixar de mim."

• • •
O P. Crestanello nos informa que pouco depois
concedeu a Laura a comunhão cotidiana.
Foi provàvelmente na festa do Sagrado e.oração,
ocorrida a 14 de junho. Era o primeiro ano do nôvo
século, e Leão XIII tinha ordenado que as nações e as
cidades se consagrassem ao Sagrado Coração com fór­
mula especial por êle mesmo composta. Junin não quis
ficar atrás.

-- 111 -
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ô P. Crestaneiio, que tinha mão de artista, pintou
um quadro com a imagem do Salvador e preparou seu
pequeno mundo para a comovente cerimônia. A crô­
nica das Irmãs relata: "Festa do Sagrado Coração. Fêz­
se a consagração dos dois colégios segundo a fórmula
do Santo Padre."
Laura ficou arrebatada. Não tardará a demons­
trá-lo.
A queixa de Jesus a Santa Margarida Maria Alaco­
que: "Eis o coração que tanto amou os homens, e dos
quais só tem recebido ingratidões", lembrou-lhe o ter­
ceiro propósito da Primeira Comunhão: Reparar as
culpas dos seus queridos.
O pensamento corria irresistivelmente à sua mãe.
Laura lhe intuía a tragédia espiritual. Quase a havia
tocado com a mão, a dois de junho, e se angustiava.
Mas não ficou inerte. Começou pela oração. Uma
verdadeira campanha.
Primeira aliada, Júlia Amanda, que, como acena­
mos, ficou em Junín somente dois anos. Ela própria
depôs nos processos de Viedma: "Laura me convidava
a rezar, sobretudo pela mamãe. Eu então ignorava os
motivos. Mais tarde compreendi que era para a volta
de mamãe ao bom caminho."
Tôdas as vêzes que D. Mercedes ia a Junín, Laura
se apressava em levá-la à capela; e então, mais do que
nunca, lhe brotavam da alma pedidos ardentes pela sal­
vação de sua mãe.

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O Colégio andino Maria Auxiliadora: exterior e interior
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:Foi dito que às irmãs Vicuíia nada faltava. No séU
modo de vestir era evidente certa elegância e distinção.
A Sr.ª Pino timbrava em mostrar seus gostos e habili­
dades de costureira. A Irmã Piai diz ademais que uma
vez por ano ela ia a Temuco e levava para as filhas sabo-
nete, perfumes, pentes e guloseimas de todo jaez. Laura
repartia tudo com as Irmãs e as companheiras. Pre­
sente bem diferente estava. esperando da mamãe!
Mas a devoção ao Sagrado Coração a pouco e pouco
fa.zia-lhe compreender que as almas se regatam a preço
de sacrifício.

Em julho, o costumeiro alarme da estação invernal.


As águas do Chimehuín tinham saído do leito e amea­
cavam a vila. A uressa foram tratando de pôr em
salvo as duas comunidades juvenis. Entretanto - nota
a crônica do colégio salesiano - "a água chegou só até
o pátio: e no dia see:uinte se retirou, deixando-nos em
''
paz.
E o ano letivo prosseguiu sem novidades.
Foram os meses do grande influxo da Ir. Ana Maria
Rodríguez na alma de Laura e da sua amiga ·e rival.
Mercedes Vera.
O liame entre as duas comoanheiras tornara-se
mais íntimo. O P. Crestanello, recordando-se das san­
tas amizades de que fala D. Basco na vida de Domingos
Sávio, p·ermitiu que uma fôsse monitora secreta da

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outra, para cárreção dos mútuos defeitos e progresso
comum nas virtudes.
E ambas escutavam a Irmã Ana Maria com a ânsia
de discípulo que vê no mestre o ideal da vida, e se mos­
travam insaciáveis da formação cristã que de mil modos
ela ia ministrando na aula, no pátio. no passeio.
A bôca fala do que está cheio o coração: e a jovem
religiosa colombiana não cessava de exaltar a sua vo­
cação, Maria Auxiliadora, Dom Basco, as missões ...
"De Dom Basco - escreveu Merceditas - nos fa­
lavam as Irmãs; mas principalmente o fazia nossa pro­
fessôra, Irmã Ana Maria Rodríguez". Laura sofria o
contágio daqueles sentimentos filiais que, às vêzes, pro­
vocaram nela ímpetos de entusiasmo. "Um dia - conta
a mesma Merceditas - durante o recreio Laura tira
o quadrinho de D. Basco, pendurado na parede do cor­
redor onde nos estávamos divertindo. e pondo-se à testa
das meninas que com ela brincávamos, convida-nos a
levá-lo em triunfo ao canto de Viva Papà Don Basco."
Que não se tratava de passageiro entusiasmo adver­
te-o Mercedes Vera, dizendo que, no Santo Laura via o
instrumento de que se valera Maria Auxiliadora para
fundar colégios e missões. "Que seria de nós - confia­
va-lhe - sem Maria Auxiliadora e Dom Bosco? Oh!
que sorte a nossa de nos acharmos num colégio seu."
As meninas usavam assiduamente o Jovem Instru·í­
do de Dom Basco, não havendo em Junín outros ma­
nuais de piedade. E, seguindo os conselhos da Irmã Ana

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Maria, usavam-no para fazerem juntas os domingos de
São Luí.s, recitarem as alegrias de Maria, -e orações espe­
ciais em honra de São .rosé, mais outras orações devotas.
Com o Jovem Instruído rezavam as Vésperas de Nos­
sa Senhora em companhia das Irmãs e talvez até da
comunidade masculina. "E estando perto de Laura -
atesta Merceditas - eu via que ela as seguia com pra­
zer; e que, depois, no recreio, perguntava à Irmã Ana
Maria a pronúncia desta ou daquela palavra, querendo
ser exata no serviço divino".

* * *

Acenei a Domingos Sávio. Salesianos e Filhas de


Maria Auxiliadora falavam dêle como de uma glória
doméstica; e embora ainda não glorificado pela Igreja
propunham-no à imitação da juventude.
Em Junín conheciam-lhe a vida escrita por Dom
Basco. Lia-se no refeitório e na sala de trabalho tam­
bém, enquanto as meninas estavam ocupadas na costura
e no tricô.
Laura ficou entusiasmada e propôs-se imitar o santo
menino no empenho da perfeição. Aqui também é Mer­
ceditas quem no-lo assegura.
- "Qual é o santo - perguntou-lhe um dia - que
você tomou por modêlo?".
- "Domingos Sávio".
- "E por quê?"

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- "Pelo seu amor à simplicidade, a Jesus Sacrâ­
mentado, a Nossa Senhora; e pelo seu grande horror ao
pecado . . . Oh! sim: quero tornar-me santa como êle!"

Igual predileção tinha Laura para com São Luís.


"Desejava - escreve Merceditas - que o santo lhe al­
cançasse o amor da pureza e da mortificação.

* * *

Os fatos estão aí a provar que também neste ponto


não se tratava de ilusórias mirage11s, mas de propósitos
firmes e eficazes. Laura e Merceditas se excitavam
ao fervor durante o dia também, quando é mais fácil à
mente juvenil distrair-se e devanear; e estavam pron­
tas a se vigiarem e se vencerem por motivos sobrena­
turais.

Desde o seu primeiro ano de colégio tinham apren­


dido a santificar o trabalho manual. A Irmã Azócar
fazia tôdas repetirem muitas invocações piedosas; e a
Irmã Ana Maria recordava mais tarde os exemplos da
Madre Mazzarello co-fundadora do Instituto.
Numa tarde, enquanto trabalhavam, Laura pergun­
tou baixinho à amiga do coraçãJo :
"Merceditas, para quem você trabalha?"
- "Ora essa! Para Jesus e Maria!"
- "Entendido - concluiu Laura. - Façamos co-
mo Madre Mazzarello: cada ponto de agulha seja um
ato de amor de Deus!''

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Ambas não gostavam de beterraba., servida na fru­
gal mesa de Junín. Para acostumá-las a êsse alimento
a Diretora ordenara que a ambas fôsse servido durante
três dias consecutivos. As escondidas da assistente as
companheiras queriam ajudá-las a esvaziar o prato. Mer­
ceditas, não sabendo o que fazer olha para Laura; mas
esta, rejeitando delicadamente as ofertas amigas, excla­
ma: "Não, Merceditas. Nossa obediência não seria per­
feita. Façamos esfôrço e obedeçamos: Jesus sofreu tanto
por nós na cruz! "
Também Francisca de Mendoza, interrogada a pro­
pósito, declara: "É verdade que em Junín freqüente­
mente nos davam beterraba e que Laura comia tudo
por obediência, embora não gostasse nem um pouqui­
nho."
O pensamento e a lembrança de Jesus entravam
na vida de Laura como uma fôrça que tudo vence, como
fascinação irresistível.
Um fato dos mais humilhantes para o amor pró­
prio de uma colegial vem pô-lo em ·evidência, e demon­
tra os incipientes heroísmos de Laura.
Embora sadia, ela não tinha constituição rÕbusta.
No inverno, num lugar onde a temperatura descia habi­
�ualmente a 7 e 8 graus abaixo de zero, ela sofria de
enurese noturna.
O desagradável incômodo durou bastante e se re­
petiu também no inverno de 1901.

r•- 117 -
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Não obstante o ótimo procedimento de Laura, al­
guém atribuía isso à preguiça e indolência. Mais ainda,
a colega que no dormitório fa.zia o papel de vice-assis­
tente, por própria conta, infligiu até, certa manhã, um
humilhante castigo a Laura. Algumas testemunhas
acham que o fato se repetiu várias vêzes.
A menina não disse uma palavra e não deu nenhum
sinal de impaciência. Informada pelas companheiras,
já que durante a toalete das meninas as Irmãs provà­
velmente estavam na meditação, a Irmã Piai interveio
para cortar aquêle excesso de zêlo, que estava em franco
contraste com a suavidade do sistema pedagógico sale­
siano; e não permitiu jamais que se abaixasse a nota
semanal de procedimento de Laura por um defeito que
não dependia de sua vontade.
Depois de um dêsses castigos Laura viu Merceditas
chorando.
- "Por que está chorando?
-
Porventura você deu
algum desgôsto a Jesus?:
- "Estou chorando por aquilo que fizeram com
voce, Laura ...., ,,
A

- "Não vale a pena. Não vestiram Jesus como


louco? Por que não havia eu de aceitar uma humi­
lhaçãozinha, sendo tão pecadora?"
Se não bastassem essas palavras para confirmar a
virtude de Laura, eis o testemunho da Irmã Grassi:
"Laura era sensibilíssima; do rosto transparecia às vê­
zes o esfôrço que lhe custava o calar-se e humilhar-se."

-118-
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Dessa fortaleza de ânimo deu Laura uma amostra
justamente por causa da sua fraqueza orgânica.
Na esperança de lhe fortalecer o organismo sugeri­
ram à Diretora que a submetessem a um tratamento de
banho frio. A heróica menina - conta a mesma Irmã
Piai - obedecia como um cordeirinho; e embora no mo­
mento de ser mergulhada na água lhe batessem os den­
tes e o seu corpo franzino tremesse como vara verde,
não dizia uma palavra de queixa. Antes, aceitava a
repetição do banho, mesmo quando fora tudo era um
manto de neve; e do repetido suplício não conseguia ne­
nhuma melhora.
Por sua vez afirma a Irmã enfermeira: "Laura não
opunha resistência aos banhos frios, embora mais de
uma vez tivesse desmaiado nos meus braços" E note-se
mais que, depois do inútil tormento, embrulhada numa
coberta de lã, devia ser levada ao dormitório através do
pátio. "Eu não sei - conclui a Irmã Piai - como é
que ela não morreu congelada!"

* * *

Sàmente um grande amor podia sustentar Laura


no duplo martírio do corpo e do coração, que mal e mal
se delineava no horizonte de sua existência.
Merceditas lhe desvenda o segrêdo, fácil aliás de
ser imaginado.
"A Diretora - conta ela - nos dava a satisfação
de levar buquês de flôres naturais a Jesus Sacramenta-

-119- -
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do, à capela dos salesianos que servia para os dois co­
légios. E mais de uma vez reparei que Laura colocava
com o rosto iluminado de alegria as suas flôres junto
do tabernáculo. Aconteceu-me até que tive de sacudi-la
levemente para lhe dizer que era tempo de voltar."
"Onde está o vosso tesouro aí está o vosso coração",
diz o Evangelho. único tesouro de Laura, o Hóspede
do Sacrãrio.
Para :tle a piedosa menina mandava seus pensa­
mentos e afetos mesmo durante a noite. "Quando no
sono quero mandar uma saudação a Jesus - confiava
à amiga - basta pedir ao Anjo da Guarda antes de
me deitar: êle pontualmente me acorda na hora dese­
jada."
Tem tôda a razão a Irmã Piai quando afirma: "Na
conduta externa de Laura nada havia que não fôsse edi-
ficante. Todo o seu empenho consistia em dar prazer
a Jesus."
Quem, pois, se admirará se aconteciam fatos que
têm sabor de prodígio?

• * *

"A professôra Irmã Ana Maria - narra Merceditas


- tinha-nos dado a licenç·a de fazer no recreio da ceia
uma visita à estatueta do Sagrado Coração exposta
numa passagem, perto da portaria.

-120 �
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"Uma noitinha queríamos beijar-lhe os pés, mas a
estátua estava muito alta e não podíamos usar escadas
para não sermos des.cobertas ...
"Laura rezou e foram tais seu fervor e sua confian­
ça que a estatueta desceu até nós para nos dar a alegria
daquela homenagem ..."
Ilusão de meninas? Muitos o julgarão. Em maté­
ria tão delicada não se pode ser muito crédulo. Entre­
tanto a chama de amor divino que ardia nas duas ami­
gas e o fervor que demonstravam, e que ainda mais
demonstrarão, bem podiam conciliar-se com sinais de
especial predileção da Providência.
E que o fato ficasse oculto não é de admirar: as
duas protagonistas sabiam calar-se. Em 1933 a Irmã
Mercedes Vera - a Merceditas de 25 atrãs - escreven­
do à Irmã Piai sôbre êsse e ·Outros pormenores, que esta
mostrava ignorar e julgar com sutil ponta de ceticismo,
diz-lhe abertamente: "Não espanta que a Sr.ª, carís­
sima Irmã Piai, não soubesse nada (de tantas coisas
íntimas), não obstante a confiança que ambas lhe tí­
nhamos. Tais coisas nós as escondíamos, cuidadosamen­
te, das Irmãs e das companheiras. Bastava que Jesus
o soubesse."
É de crer que o P.e Crestan-ello estivesse informado
de tudo. Sôbre isso, entretanto, êle se cala na biografia
de Laura. Todavia a sua direção deixa a entender
que o austero missionário julgava Laura uma menina
excepcional.

- 121-
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Mais conhecido e comentado é o fato da estaca flo­
rida.
A parte final do pátio de Junín estava ajardinada
sob os cuidados das maiorzinhas. Cada uma t inha o
seu canteiro, e gostava de apanhar flôres para levar ao
Santíssimo ou a Nossa Senhora.
Também Laura tinha o seu; e Natalina Figueroa,
companheira daqueles dias felizes, recorda sua predi­
leção pelas flôres e o cuidado no cultivo e na rega.
Ora, aconteceu que a Diretora mandou Merceditas
fincar um pau no seu canteiro, talvez para amarrar aí
um cordel para sustentar trepadeiras.
"Como fazia.m tudo juntas - diz Mercedes Vera,
- chamei Laura para me acompanhar."
- "Dos paus plantados por obediência - disse-me
- brotam rosas. Lembre-se, Merceditas, é mais fácil
uma haste florir do que a voz dos superiores deixar de
ser a de Deus."
E a haste inesperadamente floresceu.
Acaso? Feliz coincidência? Presente do céu? Em
Junín alguns falaram em florescência portentosa e ·em
portentosa flor da obediência.
Vários testemunhos recordam que no ano seguinte,
durante a visita pastoral de D. Cagliero, houve aceno ao
acontecimento; e que o Vigário Apostólico, -embora sem
alardear milagre, batizou, êle também, a haste florida
como a planta da obediência; e quis com paterna bon­
dade que as últimas flôres da estação - era outono -

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fôssem colocadas junto do tabernáculo e diante de Ma­
ria Auxiliadora, segundo as suas intenções.
A Irmã Baratelli, tendo ido a Junín pouco depois
da morte de Laura, além de assegurar que o canteiro
da santa menina era disputado entre as alunas do co­
légio, lembra a ambicionada satisfação de quem podia
colher a primeira flor na planta da obediência. "As me­
ninas - comenta - falavam muito de Laura e estavam
convencidas do prodígio."
* * *
Duas observações ainda, antes de encerrarmos o
capítulo.
A amizade de Laura com Merceditas é consagrada
mais pelos fatos que pelos testemunhos de terceiros,
embora não faltem êstes também. Francisca Mendoza
refere que eram íntimas uma da outra, e que mutua­
mente se estimulavam à virtude sob a guia do confessor.
Dissemos que se tratava de almas gêmeas. Antes,
do conjunto de seu procedimento, podia-se já deduzir
a comum aspiração à vida religiosa. Quanto a Laura as
próprias companheiras o percebiam, embora tivesse
apenas onze anos. "Freqüentemente - diz Natalina
Figueroa - Laura desaparecia do pátio e a gente ia
encontrá-la na capela a rezar. Não era como as outras
meninas: acariciava já na mente o seu ideal."
Aqui urge excluir das duas amigas tôda forma de
sentimentalismo humano. Amavam-se como irmãs; o
bem espiritual de uma era também o bem da outra.

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Encorajavam-se e estimulavam-se para a virtude; não
havendo outra coisa e outra coisa não conhecendo em
Junín, apaixonavam-se por tudo que tinha o sabor sa­
lesiano.
"Laura - escreve a Irmã Azócar - não conhecia
amizades particulares; e não se dava àquelas preferên­
cias (humanas) que às vêzes as meninas citadinas pos-
suem ... Eu que a conheci a fundo posso atestã-lo".
Quem teria duvidado?
Convinha, entretanto, ouvi-lo da bôca dos contem...
porâneos.
* * *

A segunda observação é sôbre os defeitos de Laura.


Viu-se que a humilhação a pungia, mas que ela se
esforçava para vencer-se a si mesma. Estava muito
longe de ser apática ou indiferente! Aprendera a domi-
nar-se por motivos sobrenaturais, e conquanto, a prin­
cípio, isso lhe custasse, cedo conseguiu ter o pleno do­
mínio de tôdas as suas facuidades.
A Diretora, interrogada sôbre os defeitos de Laura,
limitou-se a dizer que ela lhe parecera "um pouco impa­
ciente" com a Irmã Júlia, quando esta faltava ao seu
dever. Entretanto Júlia, nos processos informativos,
deu de Laura o mais belo testemunho: "Mostrava-s.e
afetuosa e paciente comigo, e sempre disposta a perdoar
as miphas leviandades, meu caprichos, as minhas ex­
plosões de raiva".

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Mais, completando e confirmando o juízo da Irmã
Azócar, acr,escenta: "Fazia o mesmo com as colegas.
Nela não descobri nenhuma preferência. Era amiga de
tôdas. Dava conselhos e ajudava a tôdas".
Com razão a ótima Irmã Piai, cada vez mais admi­
rada do procedimento de Laura afirmou que ninguém
jamais pôde acusar a menina "de faltas voluntárias ao
Regulamento"; ao passo que tôdas notavam "seu cons­
tante empenho para progredir na perfeição".
Pelos fins do segundo ano de colégio, como se vê,
Laura já se tornara uma menina modêlo.

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CAPITULO IX

Filha de Maria

Se o grão de trigo não cai no sulco e não morre, fica


só e improdutivo: se, porém, é soterrado, multiplica-se
largamente.
Havia três anos que as missionárias de Junín de los
Andes, admiradas e invejadas pelas co-irmãs, amanha­
vam o campo de trabalho que constituía a sua delícia
e o seu orgulho. Sacrifícios bem que os haviam supor­
tado, e muitos, embora vivendo em salesia11a jovialidade.
Importava, entretanto, que, para confirmação das
divinas complecências, nos Andes também se cumprisse
a lei evangélica. da fecundidade. A semente de uma
vida humana devia cair no sulco aberto, e já tão uber­
toso, para lhe garantir e aumentar a fertilidade espi­
ritual.
Eleita nos desígnios da Providência foi justamente
a Irmã Ana Maria Rodríguez, a incomparável mestra
de Laura.

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Um dia, depois de se ter esgoelado em vão parà
quebrar a teimosia de uma aluna, saira-se com esta ex­
clamação que lhe manifesta a nobreza de alma: "Que
bonito poder dar aula até aos setenta anos!"
Seus dias, ao invés, estavam contados. Mais que
os suores da fronte, Deus lhe pedia o sacrifício da vida.
A Irmã Ana Maria jamais se senlira em perfeita
saúde desde sua chegada a Junín. Isso, entretanto, não
a havia impedido de dedicar-se ao ensino e à assistên-
eia.
Na manhã de 29 de outubro não agüentou mais.
Pô-se de cama com sintomas alarmantes. Parece que
se tratava de peritonite aguda.
Calma e serena, com:o virgem prudente que tem
acesa a lâmpada e cheia de óleo, no dia seguinte a Irmã
Ana Maria ia ao encontro do Espôso.
Foi um pranto geral. Era o primeiro luto da famí­
lia salesiana em Junín, e a vila inteira tributou à hu­
milde Filha de Maria Auxiliadora uma homenagem de
estima e veneração difícil de imaginar.
As alunas ficaram inconsoláveis.
Merceditas e Laura, mais do que as outras, tiveram
que derramar quentes lágrimas e sentir o vazio impreen­
chível daquela imprevista partida.
Numa e noutra se robusteceu a vocação nascente,
com o desejo de tomar o lugar dela. Quanto a Laura
atestam-no a Diretora e a Irmã Azócar.

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Júlia Amanda Vicuna, Irmã de Laura ( 1957)
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O grão de trigo desaparecido nas visceras da terra
dava os seus frutos.
* * *

Falando da caridade de Laura para com o próximo


o P.e Crestanello nota que ela experimentou "satisfação
imensa" quando fêz o ato heróico em sufrágio das almas
do Purgatório. Provàvelmente foi após a morte da Irmã
Ana Maria.
A crônica em 1. 0 de novembro de 1901 - enquanto
estava viva a dor pelo luto que golpeara o colégio -
assinala a Primeira Comunhão de seis meninas. E
acrescenta que outras catorze receberam o escapulário
do Carmo.
Entre essas não podia faltar a Vicu:fia, mesmo para
honrar o nome - Laura do Carmo - recebido no ba­
tismo. Nesse tempo a devoção mariana da piedosa me­
nina estava já arraigada e profunda e se preparava para
revestir-se da forma que lhe haveria de caracterizar a
figura e a vida.
Havia dois anos que ao acordar, depois de respon­
der o seu Deo Gratias ao Benedicamus Domino da Assis­
tente, rezava a linda oração: "Imaculada Virgem Maria,
minha Senhora e minha Mãe, quero ser para sempre
tôda de Jesus e tôda vossa. Consagro-vos, portanto, os
olhos, os ouvidos, a língua, o coração e todo o meu ser.
Quero ser tô·da vossa: defendei-me, pois, como proprie­
dade vossa".

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Dessa oração, cujo texto se conserva nos testemu­
nhos da Irmã Piai, diz Mercedes Vera: "A oração Ima­
culada Virgem Maria nós a recitávamos de manhã ao
levantar-nos e de noite ao deitar-nos. Repetia-se tam­
bém durante o trabalho, e principalmente nos meses
dedicados a nossa doce Mãe".
Laura aprendera também a estupenda oração espa..
nhola em versos, que começa: "Bendita seja a tua pu­
reza", e exalta o candor imaculado de Maria; e a rezava
com entusiasmo fervoroso.
Sem esquecer que ao cabo das práticas matutinas
todos os dias cantava com a sua bela voz a tradicional
invocação dos internatos das Filhas de Maria Auxilia­
dora: "Eu vos dou meu coração e minha alma, Mãe do
meu Jesus, Virgem Maria".
"Laura tinha um terníssimo afeto para com Nossa
Senhora" - é testemunho da Irmã Piai.
Não é preciso, pois, dizer com que entusiasmo co­
meçou na noite de sete de novembro o mês Mariano.

* * *

Na América Latina, como já observei, é êsse o mês


de Maria, e prepara a festa de oito de dezembro.
Quem não participou dêle dificilmente há de supor
a comoção que invade a alma ao canto: Oh! vinde, e
vamos todos: Vinde, vamos todos, à porfia, com flôres
para Maria. . . É um turbilhão de notas que jorra dos

- 130 -
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lãbios e dos corações e sobe festivo até à imacuiada Mãe
de Deus.
Era a segunda vez que Laura fazia o mês mariano.
Mas naquele ano se preparava para se tornar Filha de
Maria, a grande aspiração de sua vida.
Durante o mês mariano - escreve o P.e Cresta­
nello - era quando Laura crescia no seu fervor e zêlo
pela mãe de Deus.
"Notava-se nela mais recolhimento, maior devoção
e espírito de mortificação. Quantas pequeninas renún­
cias, mesmo de coisas lícitas e boas! Quantos atos ge­
nerosos de obediência, de bondade e caridade!''
Lembrava também às companheiras a florzinha e
a máxima do dia.
A respeito das florinhas pessoais, aconteceu um
fato que tem sabor das antigas lendas dos santos.
Com a finalidade de excitar a piedade ,das alunas,
tinha a Irmã Piai explicado a natureza das florinhas
marianas, e tinha determinado que tôdas, antes de en­
trarem na capela para a função vespertina, passando
pela Irmã Azócar, lhe pedissem tantas rosinhas artifi­
ciais quantas as "florinhas", ou atos virtuosos do dia.
E era um espetáculo edificante, e comovente a um
tempo - enquanto a quente melodia do Oh! Vinde e
vamos todos envolvia o modesto oratório - contemplar
alunos e alunas dos dois colégios em desfile diante da
imagem de Maria, depondo aos seus pés o símbolo de
seu carinho para com a Mãe do Céu.

--- 131 --
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f>ois desci.e ás primeiras noites Laura viu-se atra­
palhada. Humilde e discreta, queria esconder o número
de suas florzinhas; mas tinha mêdo de faltar à simpli­
cidade e, talvez também, à obediência.
Fêz afinal o pedido das rosinhas. O P.e Crestanello
não precisa o número: mas foi tal que deixou atônita
a Irmã Azócar, que indubitàvelmente não ti11ha no
cestinho a quantidade desejada por Laura. Deu-lhe
todavi� uma boa porção, de modo que a ingênua e fer­
vorosa menina, entre confusa e desorientada, pôde
prestar sua homenagem floral a Nossa Senhora.
Mas no fundo do coraçãozinho lá ficou um proble­
ma de consciência que precisava resolver. Na manhã
seguinte falou com o P.e Crestanello; êste, admirando
em segrêdo os ardores marianos de Laura, aconselhou-a
a não diminuir o número de suas florzinhas, mas que
pedisse só umas vinte-e-cinco ou trinta ros1nhas por
dia. Mesmo assim, reduzido a essa cifra, que se diria
oficial, o número das flôres cotidianas de Laura sobre­
puja fàcilmente a medida do entusiasmo juvenil para
com a Mãe de Deus.
* * *
Naquele novembro de 1901 Laura teve de aprender
uma poesia mariana cujo estribilho - Levai-me ao céu
- tomou-se uma de suas aspirações preferidas. Ensi­
nou-lha a Irmã Azócar, obrigada agora, pelo imprevisto
desaparecimento da Irmã Ana Maria Rodríguez, a jun­
tar tôdas as alunas numa só classe.

-13Z -
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A ótima religiosa tinha desencavado aquêles versos
afetuosos e devotos de 11ma velha folhinha salesiana;
ditara-os e pediu-os de cor. Começavam assim:

Virgem Maria, Nazarena bela


cujo esplendor arrebatou o Eterno . . .

Laura os recitava com sentimento, como oração, a


última estrofe principalmente, grito da alma que pres­
sente a tormenta:

Antes que o mitndo enganador destrua


êste tão doce e apaixonado afeto,
levai-me, ó Mãe, ai! por favor vos peço,
levai-me ao céu.

Do paraíso alcançado pela Irmã Ana Maria Rodrí­


guez andavam quase todos falando naquele mês, recor­
dando e comentando suas últimas palavras. Ao sentir
que desfalecia murmurara com um fiozinho de voz: -
"Maria Auxiliadora, ajudai-me!" e lá se foi para cantar
com os anjos o hino de eterno amor à Virgem, estrêla
do seu caminho.
* * *

A 8 de dezembro estava Laura pronta para ser re­


cebida na Associação das Filhas de Maria.
Desde o início e da primeira propagação do Insti­
tuto� as Filhas de Maria Auxiliadora sonharam com um

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sodalicio mariano para os seus colégios. Não faltaram
aqui e ali tentativas e experiências: mas foram neces­
sários alguns decênios para chegarem à vigente Pia
Associação da Bem-aventurada Virgem Maria Imaculada
Auxiliadora.
Muitas associações locais passaram, pela agregação,
à Primaria de Roma, iniciada em 1864, sob os auspícios
de Pio IX, pelo abade Alberto Passêri, à sombra de S.
Inês, na Via Nomentana.
Em 1898, achando-se na Itâlia, o Padre José Ves­
plgnani, Inspetor dos Salesianos da Argentina, solicita­
va agregação à Primária para bem dezessete Associações
florescentes nos colégios das Filhas de Maria Auxilia­
dor a daquela nação.
Fizeram o mesmo, mais tarde, as Associações do
Chile e de outros países. l!: bom saber outrossim que
mesmo antes da agregação, por tôda parte, se seguia,
com alguma pequena variante, o regulamento e o ceri­
monial da Primária romana. Isso aconteceu em Junín
de los Andes desde os albores da fundação. Proveniente
do Peru e do Chile, não podia a Irmã Piai inspirar-se
senão nos costumes das casas por onde passara.
A aceitação de 8 de dezembro de 1901, conforme a
crônica, era a segunda que se fazia por aquelas alturas,
e revestia-se assim do valor de um acontecimento cheio
de novidade e de interêsse, especialmente na vida de
Laura, a quem não coubera outra alegria exterior depois
da de sua Primeira Comunhão.

--- 134 -
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E não causa admiração que a santa menina se tor­
nasse Filha de Maria com onze anos incompletos. O
Regulamento não fazia- questão de idade. Estabelecia
três condições somente: ter feito a Primeira Comunhão;
ter sido asp·irante por um trimestre ao menos; ter dado
"provas de verdadeira piedade e terna devoção a Maria",
bem como de exemplar procedimento no exercício "da
obediência e da caridade", e na freqüência aos Sacra­
mentos.
Laura estava em perfeita regra. Poucas môças po­
deriam como ela aspirar ao nobre titulo.

* * *

Justamente com ela foi inscrita também Mercedes


Vera.
Na tarde de 7 de dezembro, véspera da aceitação,
enquanto varriam, as duas amigas tomaram um santi­
nho de Santa Inês, a ínclita mártir que estava para
tornar-se seu modêlo e padroeira, colocaram-no sôbre
a carteira e ajoelhando-se se consagraram a ela. Ten­
cionavam imitá-la no seu fúlgido candor de virgem ·e
na invicta fortaleza de admirável mârtir de treze anos.
A cerimônia da aceitação se realizou pelo ocaso da
Festa da Imaculada.
Durante a tarde as alunas sairam a passeio.
Naquele resto de primavera a paisagem andina ofe­
recia ao observador as tintas mais vivas e os mais pe­
netrantes aromas.

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Da esmeralda das planuras relvadas, ao verde es­
curo das coníferas; da policromia das árvores em flor à
candura das neves eternas, faiscantes ao sol; 1,0 leve
sussurro do Chimehuín, ao frescor das auras balsami­
zadas de resina em convite para largos e profundos res­
piras, tudo era um triunfo de olores, de luzes e de côres
que elevava para Deus.
Laura e Merceditas, inseparáveis mais do que nun­
ca, naquele dia devem ter demorado os olhares no ima­
culado das neves da montanha, que lhes falava da inte­
merata virgindade de Maria e dos inviolados esplendores
da sua plenitude de graça desde o momento da con-
. -
ce1çao.
Várias vêzes, não conseguindo conter o ímpeto dos
sentimentos que lhe fervilhavam no coração, Laura
abraçou a amiga exclamando: - "Que alegria, Merce­
ditas! Dentro de algumas horas seremos Filhas da nos­
sa doce Mãe! "
No caminho de volta, as duas meninas multiplica­
ram - no dizer da própria Mercedes - as suas j acula­
tórias marianas em preparação para a iminente ceri­
mônia. Repetiram principalmente a bela oração matu­
tina: "Imaculada Virgem Maria, minha Senhora e
minha Mãe, quero ser sempre tôda vossa e de Jesus".
* * *
Pouco depois, vestida de branco, cingida de faixa
azul, com o véu na cabeça, Laura se apresentou para
a sua consagração à Imaculada.

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Usando o Manual da Primária de Roma d.isse: "ó
Maria, concebida sem pecado, eu, La11ra Vicufía, vos
escolho para Protetora, minha Senhora e Mãe. Pros­
trada aos vossos pés, prometo firmemente envidar todos
os esforças para promover a vossa glória e propagar o
vosso culto. De hoje em diante quero fazer clara pro­
fissão de ser tôda vossa, de caminhar nas vossas pegadas
e de imitar as vossas virtudes; especialmente vossa pu­
reza angélica, vossa perfeita obediência, vossa incompa-
rável caridade!"
Em seguida o celebrante impôs-lhe a fita celeste
com a medalha e colocou-lhe entre as mãos o Manual,
dizendo-lhe: "Recebe esta fita e esta medalha como
distintivo de Maria Imaculada e sinal externo da tua
consagração a essa mãe carinhosa. Lembra-te, ao usá­
la, que te deves mostrar sua digna filha com a inocência
e santidade da vida".
Quem podia então imaginar que, revestida dêsse
mesmo vestido branco com aquela faixa azul, aquela
fita, aquela medalha, aquêle Manual, catorze meses de­
pois, as mesmas companheiras daquele dia inesquecível
a levariam à sepultura?
Os testemunhos notam que na pobreza do colégio
de Junín não havia manuais para tôdas e que o ofician­
te, feito o gesto de entregá-lo a cada novel Filha de
Maria, o recolhia para passá-lo às outras.
"Eu, porém, e Laura, mais alguma outra - assegu­
ra Mercedes Vera - recebemo-la na hora. Nós o usá-

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vamos na prep,aração para as festas de N assa Senhora
e de Santa Inês e, sobretudo, para o exame de consciên­
cia semanal e mensal, antes de nos apresentarmos ao
nosso confessor, P.e Crestanello".
Enquanto Laura, feliz como poucas vêzes na sua
vida, beijava a desejada medalha e a ostentava no peito,
e às suas costas a Irmã Piai maternamente lhe ajeitava
a fita, as companheiras hosanavam a Nossa Senhora.
Talvez cantassem a melodia fácil de Co.stamagna:

Quando penso na ventura


De ser Filha de Maria,
Minha Mãe, tôda amargura
Se esvaece então de mim . . .

Se é que nã·o entoaram:

Somos Filhas· de Maria:


Repeti, brisas fagueiras,
Sussurrando prazenteiras
2ste canto que extasia:
Somos Filhas de Maria!

Filha de Maria! O anseio de Laura tornado final­


mente realidade.
Não é fácil para o biógrafo dizer a alegria de Laura
naqueles momentos. Era, talvez, a única aspiração de
sua alma satisfeita sem dificuldades e sem contrastes;

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e nos caminhos da Providência o título de Filh,a de
Mari'a devia ser o maior titulo de glória da santa me­
nina.
Não foi por acaso que Júlia Amandina, evocando
aquêle 8 de dezembro de 1901 depôs nos processos de
Viedma: "O dia em que Laura recebeu a fita de Filh.a de
Maria foi um dos mais felizes para ela".
Naquela noite ao tirã-la para deitar-se, e ao con­
templá-la com olhos brilhantes de contentamento, como
precioso aderêço da sua pessoa, repetida e carinhosa­
mente a beijou. Depois, seguindo um conselho da Irmão
Azócar, ajeitou em forma de M a fita e a medalha nos
pés do seu pobre leito.
Daqui por diante um dos últimos pensamentos e
afetos do dia será para a sua insígnia de Filha de Maria.
Mesmo dormindo quer que o nome dulcíssimo da sua
Mãe e Rainha, embora apenas na inicial, vele sôbre o
seu repouso, a proteja e defenda, e sôbre ela brilhe como
escudo contra as insídias do mal.
Assim fará até à morte.

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CAPITULO X

As Férias Terríveis

Depois da festa da Imaculada, o ano letivo marchou


ràpidaw.ente para o fim.
A crônica nota qu.E 110 dia 12 cor11eçaram os exames.
Saíram bem. As autoridades, e particularmente o
Juiz de Paz, ficaran1 ad1nirados pelo bom êxito.
Laura mais uma vez coll1eu o fruta das suas fadi­
gas. Basta um olhar para as notas: Procedimento 10,
Religião 10, Gramática 9, Aritmética 8, Geografia 10,
História Pátria 10, Ciência 9, Geometria 10, Leitura 9,
Caligrafia 10, Ditado 9, Desenho 9, Trabalho Manual 9.
O progresso no estudo não era inferior ao progresso
na virtude. Por isso compreende-se a estima que lhe ti­
nham companheiras e superioras, descobrindo nela o
ideal da menina educada, estudiosa e piedosa.
Os exames não lhe diminuíram o fervor. Caíam
durante a novena do Natal, e também naqueles dias

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havia o costume das flôres em honra do Menino Jesus.
"Laura fazia muitíssimas - diz a Irmã Piai - como
aliás fazia muitíssimas mortificaçõezinhas".
A 25 de dezembro, grande concurso de povo à fun­
ção paroquial da meia noite. E no dia 26, distribuição
de prêmios.
Mercedes Vera ganhou o prêmio de procedimento;
Laura, o de Religião. Eram indiscutivelmente as me­
lhores educandas do Colégio Maria Auxiliadora de Ju­
nín. As Irmãs podiam orgulhar-se: o sisterna educativo
por elas levado para as Cordilheiras frutificava como a
semente caída em bom terreno.

O encerramento do ano escolar renovou para Laura


o problema das férias. A estância de Quilquihué não
era para ela um lugar desejado. Amava a sua mãe com
terníssimo afeto; desejava revê-la e estar perto dela.
Ansiava pelo ar puro do campo; e bem que gostava de
se entreter mais tempo com Júlia e com qualquer outra
menina, para lhes ensinar o que sabia. Mas o pensa­
mento e a só figura de Manuel Mora enchiam-na de
horror e de pavor.
Para a aguda sensibilidade religiosa de Laura, mais
que o lugar familiar de tranqüilidade e de paz, a estân­
cia de Quilquihué surgia como lugar de reprovação e
de perigos para a alma.

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O Padre Crestanello, acenando ao germe de voca­
ção que brotava no coração da santa menina pelo fin­
dar do segundo ano de colégio, escreve: "Com o avançar
no estudo da religião Laura compreendia já os perigos
do mundo e os tropeços que se encontram a cada passo
no exercício da virtude. Media também o atrativo fu­
nesto do mau exemplo e das ocasiões de pecado, e por
isso queria apressar a sua consagração a Jesus e à Vir­
gem - com a emissão dos votos na vida religiosa, na­
turalmente - para se precaver contra as ciladas do
"
ma1.1gno....
Do conjunto e dos particulares deduz-se que tais
estudadas expressões aludem - e lhes são como a con­
seqüência - aos fatos que estou para narrar e que fo­
ram a prova de fogo para Laura. É indubitável, todavia,
que a menina teve um como pressentimento do que a
aguardava, antes mesmo de deixar Junín.
Armou-se com seus livros de piedade; recorreu ao
conselho do confessor que lia na sua alma como em livr o
aberto; solicitou as orações da Diretora, das Assistentes,
de Merceditas Vera e das companheiras. E acima de
tudo confortou-se pensando que era Filha de Maria e
tinha consigo, como invencível escudo, a medalha da
Imaculada.

As duas irmãs transferiram-se para Quilquihué nos


últimos dias de 1901.

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Nada tinha trocado na estância. Talvez sômente
a mãe, vista na intimidade e esquadrinhada no segrêdo
que escondia no coração, não parecesse mais a mesma.
Certo ar de tristeza lhe velava a fronte, os sorrisos
e os 1nomentos que passava com as filhinhas.
Os sonhos acariciados no primeiro encontro com
Manuel Mora se esvaíam, e a amargura de uma reali­
dade não suspeitada e inimaginável, dia a dia, lhe tor­
nava mais pesada e mais melancólica a vida na estância.
Mora revelava-se quem era: cruel e despótico, so­
berbo e arrogante, adulador e sêco. Tinha sido fácil
atrelar-se ao seu carro e tirar suas vantagens; mas a
convivência se transformava em escravidão. Dona Mer­
cedes estava para fazer humilhantes experiências ...
Quanto lhe custou a ilusão de chegar a ser a senhora
e quase a rainha da estância de Quilquihué!
Com as filhas ela calava, como se quisesse esconder
a tragédia de seu espírito. Notava a instintiva repulsa
de Laura a Mora, e procurava atenuá-la para não per­
turbar mais aquela forma de convivência, à qual fal­
tava tudo para ser uma família.
De sua parte Laura sofria sem deixar transparecer.
A falta de Missa e da comunhão cotidiana, da confissão
freqüente e das outras práticas devotas fazia-lhe sentir
o isolamento espiritual da estância como um exílio.
Amargu.rava-a o pensamento de que ao seu derredor não
reinava a graça; e percebia que estava em perigo pelo
ar que respirava.

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1 rmã Ana Maria Rodriguez

1 rmã Rosa Azócar

1 rmã Ângela Piai

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As Superioras de Laura, em Junin dos Andes
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As almas timoratas pressentem a ameaça da bor­
rasca. Para Laura bastava olhar para Mora, quando vol­ 1

tava das cavalgadas campestres, ou lhe dirigia cumpri­


mentos, para pôr-se alerta e te1ner o terrível perigo.
Não lhe restava senão o recurso da oração, fôrça e
refúgio da alma na hora da prova.
Nos processos de Viedma Júlia Amandina atestou:
"Recordo que duas vêzes fomos passar as férias na es­
tância... ; e posso dizer que Laura durante as férias
continuava a sua vida de colégio. Passava o tempo
arrumando seus livros de piedade, suas imagens sacras,
os objetos de devoção".
"Eu - acrescenta - era pequena, e não n1e dava
conta do que acontecia entre minha mãe e o se11hor
Mora, a cujo serviço ela se achava ... ; mas soube de
maneira vaga, por algumas expressões que naquela ida­
de não chegava a compreender, que na estância Laura
passou difíceis momentos para sua virtude"

* * *

Laura envolveu os tristes fatos de janeiro e feverei­


ro de 1902 num véu de caridoso silêncio. Somente ao
P.e Crestanello informou, o qual, por sua vez, escrevendo
em 1910 sôbre a sua filha espiritual, por óbvias razões
de prudência, estando ainda viva D. Mercedes, podia
apenas roçar pelos desagradáveis acontecimentos.
Foi a própria D. Mercedes quem os tornou conheci­
dos, na quadra que imediatamente seguiu a morte de

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Laura é que eia transcorreu em Junin de los Andes,
antes de voltar para sempre à sua pátria.
De tais revelações se fazem eco duas pessoas espe-­
cialmente: Claudina Martínez, viúva Camargo, e Jose-­
fina Ferré.
A primeira afirma: "Conheci a Senhora Pino, e
várias vêzes tive suas confidências, particularmente
após a morte de Laura". A segunda recorda a perma­
nência e as conversas de D. Mercedes em sua casa, onde
ela se refugiara no comêço de 1904, para fugir às amea­
ças e à busca de Mora. Há também confirmações indi­
retas, testemunhos colaterais, e sobretudo a opinião pú­
blica de Junín de los Andes, baseada nos fatos que devo
narrar mais na frente.
Não é difícil, portanto, reconstruir as vicissitudes
que iluminam os primeiros inequívocos heroísmos de
Laura.
* * *

Manuel Mora não tencionava desposar Mercedes


Pino: Claudina Martínez o dá como certo. Doutra
parte Júlia Cifuentes, companheira de Laura, declarou
verbalmente em 1956 que as preferências de Manuel
Mora eram para a própria Laura, "e que a fazia educar
para depois casar-se com ela"
Pode bem dar-se que assim fôsse. Todos descrevem
o encanto que a pessoa da angélica menina irradiava.
"Era uma menina graciosa - diz a Cifuentes - rosto

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redondo, tez rosada, cabelos pretos, olhos grandes e es­
curos, dos quais transparecia a beleza da fisionomia"
Laura não tardou a perceber os sentimentos e as
intenções que fermentavam no coração do "patrão", e
o evitava. Mas o choque era inevitável.
Claudina Martínez o descreve e assim o documen­
ta: "Em certa ocasião achando-se Laura na estância,
Mora pôs fora de casa a Senhora Mercedes e pretendeu
ficar sozinho com a menina. Esta, porém, lhe resistiu
e conseguiu livrar-se da emboscada. A própria mãe de
Laura contava o fato com as lágrimas nos olhos, asse­
gurando ter observado pela janela a cena brutal".
Há alguém que afirma achar-se Mora embriagado.
Jamais ninguém saberá o que se passou no coração
de Laura, ao perceber o perigo iminente para o candor
de sua alma. A insídia achou-a preparada. Recordou­
se da firrr..eza de sua protetora, Santa Inês; da sua con­
dição de Filha de Maria, e combateu a tremenda batalha
para conservar-se intemerata e pura.
Deus, tão somente, ouviu as orações de agradecimen­
to que ela ergueu ao Céu depois da vitória.

Entretanto a dura peleja devia repetir-se, de ma­


neira mais insinuante e perigosa.
Manuel Mora não era homem de abandonar a prê­
sa, e muito menos de ceder ou se deixar dobrar por uma

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inerme menina. Se havia enredado a mãe, com maior
razão fá-lo-ia com a filha. Não sabia, porém, na sua
ignorância religiosa, que tinha que se avir com a vir­
tude adamantina de uma autêntica Filha de Maria. A
ocasião não tardou a se apresentar.
Uma festa característica da campanha argentina
é a chamada hierra - a ferra - ou a marca a fogo
dos animais ovinos e bovinos que vieram a engrossar o
gado nesse ano.
Nessa ocasião levam-se e se tosam as ovelhas. �
uma como ceifa, uma vindímia da qual participam vi-
zinhos, amigos e jornaleiros ocasionais.
A estância torna-se um pequeno mundo de traba­
lho e alegria. E ao término dos fatigantes dias não falta
jamais o típico asado - churrasco - jogos e corridas
e o baile noturno com o entremeio de cantos exóticos
e as repetidas ofertas de bolinhos e bebidas alcoólicas.
Não é raro o caso que tudo acabe em discussões,
brigas e xingamentos e que a polícia tenha que intervir.
Laura sabia de tudo isso; e depois da recente expe­
riência, viu com mêdo aproximarem-se os dias do rodeo,
em que se andavam recolhendo as reses dispersas para
dar início à marcação e aos outros trabalhos.
Manuel Mora acreditou chegado o momento da des­
forra, se é que não a tinha preparado com diabólica
perfídia. Pareceu-lhe que obteria o intento, se Laura
dançasse com êle no baile final.

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Mas a indomável Filha de Maria estava disposta,
mais do que nunca, a não ceder. Se resistira apanhada
de improviso, muito mais resistiria cuidando no ardil
que se lhe podia armar.
A finalidade do sodalício ao qual dera o nome era
consagrar à Mãe celeste "a alma, o corpo, os afetos, os
pensamentos, prometendo-Lhe querer considerar-se ...
como coisa tôda Sua e nada fazer que desgostasse o Seu
terno coração".
Laura o recordava. Lera-o no Manual. Fôra-lhe
dito, repetido e comentado em Junín. Agora importava
dar prova de coerência e firmeza nos propósitos.
Quantas vêzes, naquele dia, Laura deve ter reafir­
mado a sua resolução, murmurando as mais belas ja­
culatórias aprendidas no colégio: Bendita a tua pureza!
Imaculada Virgem Maria, minha Senhora e minha Mãe,
quero ser tôda vossa e de Jesus!
A medalha também e a fita azul de Filha de Maria
passaram para suas mãos na trépida vigília da luta que
se lhe preparava. Como poderia esquecer-se do seu dis­
tintivo mariano e as obrigações assumidas no dia 8 de
dezembro, aos pés da Imaculada?
Só o pensam.ento de faltar àquele juramento, àquela
consagração, dava-lhe frêmitos de horror. "Antes mor­
rer que pecar" terá repetido com Domingos Sávio: e
pela sua delicadeza de consciência era já pecado só o
roçar voluntàriamente pelo perigo.

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Beijando repetidamente a sua insígnia, com o so­
bressalto de quem se vê exposto à ameaça de naufrãgio,
Laura invocou a assistência e o auxílio da sua Advogada
e Rainha.
Talvez recordasse, se até não releu, as confortadoras
palavras do Manual: "Advirtam bem ... - as Filhas de
Maria - que a medalha sagrada é um escudo que serve
para defendê-las de todos os perigos. E aquelas outras
com que se assegurava que o demônio fugiria "ao ver
a imagem d'Aquela que lhe esmagou a fronte soberba".
Chegada a hora do baile, depois da ceia, Laura es­
têve presente. Como e onde poderia esconder-se? Tinha
a fronte enrugada, os olhos pensativos, o rosto pãlido.
Aproximou-se Mora e convidou-a a dançar, enquan­
to à volta crescia a animação na sala. A menina se
esquivou; e por maiores que fôssem as insistências,
antes brandas, depois cruéis e insolentes do "patrão",
ela energicamente se recusou a consentir nos seus de­
sejos.
Derrotado pela segunda vez na sua casa, o abastado
estancieiro agarrou sem escrúpulos pelo br-aço a invicta
menina e a atirou fora da porta com despeito e desdém,
para a escuridão pungente da noite andina. Não podia
entretanto dobrar-se à pública derrota e investiu contra
D. 1\1:ercedes. Esta saiu - depõe o P.e Luís Pedemonte
- e suplicou à filha que contentasse o homem naquilo
que não era pecado. Laura manteve-se irremovível como

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a cadeia das Cordilheiras que se recortava sôbre o céu
profundo daquela noite infernal.
Josefina Ferré testemunha o fato, recebido de D
Mercedes nestes têrmos: "A Senhora Pino nos assegu­
rou que por ocasião de um baile preparado na estância
de Mora para atrair Laura, esta recusou-se a tomar par­
te, não obstante suas súplicas, e preferiu passar a noite
ao relento". Mas há coisa pior. Quer Claudina Martí­
nez, quer Josefina Ferré, narram um pormenor acon­
tecido - afirma a segunda - ,durante uma ferra de
animais, - o que faz pensar na circunstância de que
tratamos -; e que revela tôda a maldade de Mora.
Também o P.e Pedemonte, por sua parte, declarou nos
processos que na noite do baile Mora "usou de modos
violentos com a mãe de Laura, para que ela persuadisse
a filha a tomar parte".
Não tendo podido alcançar o intento, nem mesmo
por meio de D. Mercedes, exaltado pelo álcool, se desa­
fogou nela, amarrou-a ao palanque, onde costumava
prender os animais, e vilmente cobriu-a de injúrias e a
surrou, ameaçando marcá-la com o ferro. "Isso - afir­
ma Josefina Ferré - a própria Senhora Pino mo con­
tou" Claudina Martínez repete o mesmo.
Parece sonho. E é apenas o triunfo da angélica
pureza de Laura, a custo também da humilhação e da
angústia maternas.
"De expressões avulsas de minha mãe - atestou
Júlia Amandina - eu tive a impressão que, a despeito

� 151 -
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de aparente timidez, Laura era firme nas suas decisões,
quando se tratava de fazer o bem e evitar o mal ...
Ouvindo minha mãe falar dela, parece-me ter compreen­
dido que minha irmã correu terríveis perigos, e dêles
saiu com heroísmo superior à idade".

• • •
A impressão que a noite abissal de Quilquihué dei­
xou em Laura foi de incancelável arrepio, de pavor e
de angústia.
Compreendeu naquelas trágicas e intermináveis
horas a malvadez dos perversos, a culpável condescen­
dência dos fracos, os excessos a que podem levar as pai­
xões humanas desenfreadas.
Mais do que nunca aos olhos de sua alma fulgurou
de luz arcana o propósito de Sávio: "Antes morrer que
pecar". O pecado, naquela noite, ela como que o ouvira
passar rente. Tinha-lhe concebido ódio e horror; mas
também nascera nela o anseio da reparação.
Escreve o P.e Crestanello: "Durante as últimas fé­
rias passa.das na estância - e foram as de janeiro-mar­
ço de 1902 - Laura compreendeu o perigo que as almas
pecadoras têm de se perderem, e isso lhe causava uma
dor íntima".
A tácita alusão à vida de D. Mercedes em Quilquihué
não precisa comentário, como o não precisa o voluntá­
rio empenho de expiação, que desde aquêle momento
tomou a inocente e vitoriosa Filha de Maria,

- 152 -
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De feito, tratando das penitências de Laura, devo
mais adiante acenar ao cilício que juntamente com Mer­
cedes Vera o P.e Crestahello, seu confessor, lhe tinha per­
mitido usar. Aqui, para confirmação das triste3 notas
basta trazer uma confidência de Latira à amiga: disse­
lhe que usava aquêle cinto nodoso em reparação "de
certos bailes que se davam em sua casa".

• • •

Passada a festa, tudo voltou à marcha costumeira


na estância; mas o abismo rasgado entre Laura e Mora
ninguém mais o encheria. Antes, travara-se uma luta
que se deveria sublimar no sacrifício e no triunfo da
inerme menina.
O Sr. Manuel, astuto como uma rapôsa, lançou a
última cartada. D. Mercedes o seguira a Quilquihué
para garantir a pensão das filhas no colégio de Junín:
recusando-a, iludiu-se de ter vencido a partida.
Muitos detalhes nos escapam da surda e sub-reptí­
cia guerrilha. Conhecemos o essencial.
Certo não faltaram escaramuças e choques entre
D. Mercedes e Mora. Em certas ocasiões a pobre se­
nhora ousou defender as filhas: - "São minhas, -
lhe teria dito, segundo o p_e Pedemonte - e eu não
estou aqui como escrava".
- "Escrava ou morta! - teria respondido o desa­
piedado estancieiro. - Quanto àquelas duas, veremos"

- 153 -
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Seguiram-se dias de incerteza e de angústia.
Mora tratava Laura com desprêzo. "Quando as
duas irmãs iam para as férias - afirma Josefina Ferré
generalizando os fatos de 1902 - Mora fazia sofrer a
inefável Laura: dirigia-lhe insolências e usava com ela
modos grosseiros".
Esperava dobrar-lhe a inflexível vontade. Sonho
vão!
Laura opunha resistência, confiando em Maria.
Quem sabe quantas vêzes, sàzinha, nalgum canto da
casa, terá renovado a prece de consagração. "Confiamos
em vosso Coração Imaculado - era dito entre o mais
- nossas consolações e nossas penas; nossos temores
e nossas esperanças. Sêde nossa paz na tempestades,
nosso escudo nos combates, nosso refúgio nas neces­
sidades".
A Virgem não desiludiu sua digna filhinha.
Informada do propósito de Mora de não pagar mais
a pensão de Laura, a Irmã Piai maternalmente resol-
veu aceitá-la como aluna gratuita. Convém ouvi-lo dela
mesma: ''A Senhora Pino não estava em condições de
pagar a pensão das filhas, e o homem que a tiranizava
pretendia que ambas trabalhassem na estância. Mas,
por uma expressão que lhe escapara, compreendeu-se
que êle queria arruiná-las por vingança contra a san-
tinha, vale dizer, contra Laura, cuja virtude não podia
suportar,

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"Nós mesmas - continua a Irmã Piai - propuse­
mos a D. Mercedes que Laura voltasse para o colégio
por cinco anos como aluna gratuita. A mãe providen-
r •••••�•
ciaria roupa e calçado, e nós nos contentar1amos com
algum pequenino serviço dela"
Mais uma vez Manuel Mora saía derrotado; e den­
tro em pouco Laura lhe fugirá das garras.

- 155 -
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CAPÍTULO XI

Amarguras íntimas e
Votos Privados

Laura voltou a Junín de los Andes pelos fins de fe­


vereiro.
Não via a hora de se atufar de nôvo naquela atmos­
fera de serenidade e de paz, e de retomar as ascensões
espirituais que tanto amava. As poucas semanas de
Quilquihué tinham temperado a sua vontade e acres­
cido o sentido de maturidade sobrenatural que já pos­
suía ·em medida não comum.
Voltava oomo uma pequena triunfadora, embora
todos ignorassem a que preço tinha pago o seu amor
à virtude e o desejo de não manchar o cândido unifor­
me das Filhas de Maria.
Pela primeira vez Júlia não a acompanhava. Di-lo
claramente a Irmã Piai: "Quando Laura veio como
aluna gratuita, Júlia não voltou mais para o colégio.
Ficou com a mãe na estância". Mora deve ter-se re-

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C\lsado á pàgar à sua pensão também. Ou tudo, con­
tanto que se fizesse a sua vontade, ou nada.
A propósito disso vem o desejo de se perguntar:
depois daquele tormentoso verão, não pensou D. Mer-
cedes em abandonar Quilquihué e retomar a sua liber­
dade?
Não há indfcios. Os grilhões eram pesados: amea­
çavam enredar e arrastar também as filhas, mas a des­
graçada mãe não sentia a coragem de quebrá-los.
Todavia aceitou com grati,dão a oferta de Irmã Piai
que punha Laura a salvo, muito embora em condição
de humilde beneficiada.
O P.e Crestanello, sempre atento aos matizes, não
deixa de observar a propósito que a menina, pela sua
pureza "insistiu com pedidos e rogos com sua mãe para
que lhe permitisse voltar ao colégio, pelo menos por
cinco anos".
Laura, pois, olhava para longe: aonde os olhos de
D. Mercedes não podiam chegar. O desejo de abraçar
o estado religioso tinha crescido ao recrudecer a bor-
rasca. Mas eram precisos cinco anos para chegar às
portas do noviciado.
Por isso não se incomodava com a humilhação da
volta a Junín na qualidade de aluna gratuita. O Insti­
tuto das Filhas de Maria Auxiliadora era para ela a
nova, grande e providencial família, que Deus colocara
em seu caminho eriçado de espinhos.

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Por outra parte à materna compreensão da trmâ
Piai fêz que pouco ou nada se mudasse na vida colegial
de Laura; e ela, ao retornar a Junín, teve um respiro
de alívio, como o náufrago que sai das ondas para a
praia.
* * *

A crônica observa que o ano escolar de 1902 foi


iniciado a 1. 0 de março com notável antecipação sôbre
os anos antecedentes. E compreende-se a razão.
Naqueles dias, quer nos dois colégios , quer na aldeia,
tudo era alvorôço de alegria. Esperava-se a chegada
de D. Cagliero, Vigário Apostólico da Patagônia Seten­
trional.
Depois de ter dirigido as sagradas missões ern Chos­
Malal, Tricau-Malal, Malbarco e Las Lajas, com cansei­
ras, peripécias e incômodos sem conta, o grande mis­
sionário apeava a seis de março em Junín, alcançando
pela primeira vez as zonas do sudoeste do N"euquén.
O cronista da excursão escreve: "Que suaves im­
pressões ao revermos os queridos irmãos e tantos me­
ninos índios e abandonados! No dia seguinte, na de­
vota capela do colégio, cantou-se o Te Deum de ação de
graças. Assistiam a êle os nossos alunos, as alunas das
Filhas de Maria Auxiliadora e numeroso público. A
bênção do Santíssimo, precedida por breve e fervorosa
alocução de Sua Excelência suavizou tôdas as penas e
amarguras da viagem e nos infundiu ânimo para as
novas emprêsas que nos esperavam".

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Decidiu-se a pregação de três missões: uma em San
Martin de los Andes, para a guarnição da fronteira; a
segunda no rio Aluminé, e11tre os índios do cacique Na­
muncurá, antigo senhor dos Pampas; a terceira, como
conclusão de tôda a visita ao Neuquén, no vilarejo de
Junín de los Andes.

Que terá sentido Laura à vista de D. Cagliero? Es­


perava que a arrolasse entre as postulantes do Instituto
das Filhas de Maria Auxiliadora e lhe impusesse a ca­
pinha ritual ...
Suas propensões para a vida religiosa eram um
fato notório. "Suspirava _ f diz o p_e Crestanello -
consagrar-se a Deus com os votos religiosos . . . para de­
dicar a existência à educação das meninas. O exemplo
da pranteada Irmã Ana Maria Rodríguez arrebatara-lhe
o coração; e a amizade e conversas com Merceditas ti­
nham sido lenha para a fogueira". Voltando a Junín
e ouvindo falar da visita de D. Cagliero, dos projetos
que se faziam referentes à sua permanência, Laura acre­
ditou chegado o momento de falar da sua vocação com
a Diretora. Fê-lo com o entusiasmo de quem preliba
a alegri.a dos primeiros passos para a meta.
Mas qual não foi sua tristeza ao lhe dizerem q·ue
não podia ser aceita como postulante a Filha de Maria
Auxiliadora: o procedimento materno não permitia às
Irmãs abrirem-lhe o caminho da vida religiosa. "F1ol

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U:tna das m.aiores pelia.s de Laura! u - âfirma o t>.e êres­
tanello. "Todavia - acrescenta - a menina se con­
formou imediatamente com a divina vontade; e do fato
tirou partido para se humilhar ainda mais".
"Um dia, estando nós apanhando juntas verdura
na horta - conta Francisca Mendoza - Laura me con­
fiou que sofria uma grande pena, e me pediu que re­
zasse por ela, visto que lhe haviam dito não poder ser
Filha de Maria Auxiliadora".
Pobre menina! Crescida na escola da dor, das des­
graças domésticas, das insídias dos maus, devia agora,
por cima, sofrer a humilhação pública por culpas que
não eram suas!
Nada de admirar. Laura era daquelas almas que
Deus prova co1n grandes golpes, para fazer delas tro­
féus de sua. glória.
Não vale, talvez, o ideal mais do que a sua atuação?
Quem, aliás, pode perscrutar os segredos da Providên­
cia e perguntar o porquê das ásperas sendas que '.mle
traça para os seus prediletos?

De volta da tribo de Namuncurá, a 25 de março,


quarta-feira santa, D. Cagliero abria a missão e a vi­
sita pastoral em Junín.
As solenes funções daqueles dias se entrelaçaram
as prédicas sagradas. O mesmo Vigário Apostólico, fa-

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lou tôdas as noites, com aquela sua oratória "fâcil e
penetrante", que ia direito ao coração dos fiéis.
"Na Quinta-Feira santa - nota o cronista - a
população de Junín assistiu pela primeira vez a uma
missa Pontifical e à consagração dos santos óleos. As
cerimônias da Sexta-Feira não podiam ser mais como­
ventes. Na bênção da fonte e na missa de sábado to­
maram parte quase todos os moradores. E a Ressurrei­
ção do Senhor foi celebrada com suma alegria; e foi
para nós e para tôda a vila um dia fe)iz e de suaves
recordações".
Laura tomou parte na missão com a ânsia de um
coração inocente qu-e se apaixona pela glória de Deus
e pelo bem das almas afastadas da sua graça.
Esperava conseguir a conversão de sua mãe; mas
os dias da misericórdia passaram sem que D. Mercedes
se arrependesse. "A mãe de Laura - diz Mercedes
Vera - ficou vários dias em Junín, durante a missão
de D. Cagliero, sem entretanto se aproximar, uma vez
sequer, dos sacramentos". Em verdade ela se abalara
de Quilquihué sàmente para a crisma das filhas. Antes,
justamente a partir daí, enquanto Laura se consumia
de amor por ela, pelo seu retôrno a Deus, ela parecia
concentrar seus afetos em Júlia Amandina. "Quando
Laura foi recebida gratuitamente - observa a Irmã
Piai, - Júlia ficou na estância. . . e D. Mercedes pa­
receu usar-lhe certa preferência.. . Laura o percebia,
e sofria em silêncio". Talvez a vida dolorosa com Mora

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levasse D. Mercedes a buscar confôrto no único bem
que tinha perto. Certamente se apresent�iva envelhe­
cida, magra e triste. Francisca Mendoza, que em 1900
a vira próspera ·e flórida, escreve: "Encontrando-a dois
anos depois, achei-a muito desfigurada"
Mais do que ao corpo Laura olhava para a alma
de sua mãe. Mas a Páscoa de 1902, não obstante a mol­
dura de pessoas e de acontecimentos, renovou-lhe o tor­
mento interior da Primeira Comunhão.

* * *

Entretanto Deus compensou-a, derramando em seu


coração os carismas do Espírito Santo.
Cerimônia final da missão e da visita pastoral foi
a administração da crisma. Assim, antes que descam­
basse por trás dos Andes o sol daquela Páscoa ines­
quecível, meninos, meninas e não poucos adultos en­
cheram a Igrejinha paroquial para receber das mãos
do Vigário Apostólico o sacramento que os tornava per­
feitos cristãos.
Entre os crismandos estavam também Laura e Jú­
lia. Serviu-lhes de madrinha a Senhora Felicinda Lagos
de Espinós, que para sempre se conservou afeiçoada a
ambas.
Ninguém descobri11 os efeitos misteriosos da graça
na alma de Laura, pronta como poucos a receber o sêlo
divino de Cristo. A ação do Paráclito aumentou o espí-

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rito de piedade, de fortaleza, de temor de Deus, q_ue jâ
brilhavam nela, e a dispuseram para as grandes ofertas
que haveriam de sublimar sua jovem existência.
O cronista de D. Cagliero, pelo contrário, no término
daquelas jornadas apostólicas, apressa-se em fazer um
relêvo não vazio de interêsse: "A conquista mais im­
portante e o mais aparatoso prodígio da graça, durante
a missão foi ... o gra11de número ,de matrimônios que
se puderam abençoar e legitimar".
Era como a visão, em esbôço, da sociedade cristã
que se ia estruturando no Neuquén, para o bem da Igre­
ja e da Argentina.
* * *

A permanência em Junín proporcionou a Dom Ca­


gliero intimas alegrias de família também.
Ao mesmo tempo êle era superior eclesiástico e re­
ligioso dos Salesianos e Filhas de Maria Auxiliadora,
que viam nêle o filho predileto do Fundador, e estavam
satisfeitos por realizarem, às suas ordens, uma tarefa
cristã e social que lhe mereceu do presidente Júlio Roca
o alto encômio de Civilizador do Sul.
Visitando os colégios de Junín, idealizados e queri­
dos para a educação e formação dos indígenas andinos,
o grande bispo se comprazeu da sua marcha e do fervor
que os animava. Pareceu-lhe respirar entre aquelas
pobres paredes o aroma de virtudes adejante no primi­
tivo e paupérrimo Oratório de D. Bosco, quando êle mes-

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mo, o bispo, lá passava a sua juventude junto com Do­
mingos Sávio, Miguel Rua, João Batista Francésia, Ca­
milo Gávio e outros.
O coleginho de Maria Auxiliadora o estava provan­
do eloqüentemente com a florescência das primeiras
vocaçoes.
Na manhã de primeiro de abril, terça-feira de Pás­
coa, D. Cagliero benzia o hábito religioso de Maria Vera
e admitia a Irmã Azócar à renovação dos votos.
A Irmã Maria Vera, irmã mais velha de Merceditas,
era a primeira vocação feminina que desabrochava no
Neuquén: pode-se bem imaginar a festa das Irmãs e a
satisfação do Vigário Apostólico e dos missionários. D.
Cagliero congratulou-se com o pai da noviça, o qual
para festejar o acontecimento quis dar um churrasco
para todo o mundo, inclusive os pobres de Junín.
A alegria comum foi acrescida de um fato impre­
visto, mas desejado, que pesou unicamente no ânimo de
Laura.
Depois da vestidura de Irmã, aconselhada pelas
freiras, Merceditas pediu ao pai qu.e lhe permitisse ves­
tir a capinha das postulantes, deixada pela Irmã Maria.
E soube insistir com tanta graça, que foi atendida.
A menina, porém, tencionava obter como privilég�o
que fôsse D. Cagliero quem lhe impusesse aquêle pri­
meiro distintivo da sua vocação salesiana. O próprio
Senhor Vera defendeu perante o Vigário Apostólico a
causa da sua filha.

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Imagine-se a alegria de Merceditas ao ouvir do pró­
prio D. Cagliero que, às cinco da tarde, lhe haveria de
impor a suspirada capinha. Pareceu-lhe tocar o céu
com a mao.
Correu para Laura e deu-lhe a fausta notícia.
Os olhos de Laura - conta ela mesma - se enche­
ram de lágrimas, não podendo gozar da mesma felici­
dade".
Notei todavia - acrescenta - que se acalmou ime­
diatamente, que nos- seus lábios voltava a desenhar-se
o sorriso habitual, e que se esforçava por tomar parte
na minha alegria.
* * *

Durante as duas cerimônias daquele dia, no cora­


ção de Laura alternaram-se sentimentos de alegria e de
pesar; de admiração, de entusiasmo e de santas invejas.
Ela, também, suspirava por inscrever-se entre as
Filhas de Maria Auxiliadora, mas via fecharem-se-lhe
as portas.
Os testemunhos escritos não são inteiramente con­
cordes. Parece, todavia, que tivesse tentado alcançar
de D. Cagliero a graça que as Superioras, malgrado seu,
lhe recusavam. E tem-se a impressão que foi a ótima
Irmã Azócar quem lhe deu a sugestão.
Afirma a Irmã Marieta Rodríguez: "Querendo f:a­
zer-se religiosa, Laura falou com D. Cagliero durante
sua visita a Junín; e o Sr. Bispo deu-lhe vagas esperan­
ças. Foi a única aluna que conversou com êle".

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Por sua vez a Irmã Azócar escreve: "Tanto eu co­
mo Laura, e mais alguma outra, nos pudemos confessar
com o Sr. Bispo". A Irmã Piai, pelo contrário, não tem
lembranças precisas: "Não me lembro se alguma aluna
do colégio se confessou com Sua Excelência; nem posso
dizer que Laura o tenha procurado para lhe renovar o
pedido de ser aceita entre as postulantes".
O certo é que as alunas do Colégio Maria Auxiliado­
ra muitas vê�es rodearam o Bispo Missionário e que,
entre outras coisas, lhe falaram do famoso "pau florido
de Laura".
O que faz crer que a menina não lhe passou des­
percebida, e que o caso da sua vocação de algum modo
terá sido discutido. A idade de Laura, aliás, era motivo
suficiente para adiar o problema, limitando-se êle a pa­
lavras de confôrto e de encorajamento.
O que fazia sangrar o coração da angélica menina
era o motivo substancial da recusa,. a lhe renovar a me­
mória da última parada em Quilquihué.
• • •
Junto com Mercedita.s, de catorze anos, recebeu a
capinha também uma môça de vinte anos, Maria Bri­
cefi.o, de Temuco; ela depôs nos processos de Viedma:
"Sei que Laura suspirava ardentemente por fazer-se re­
ligiosa, e se amargurava com a condição da mãe que lhe
impedia ver satisfeitos os seus desejos. Isso apareceu
claramente quando D. Cagliero, vindo a Junín em 1902,
benzeu o hábito da Irmã Maria Vera, e me recebeu a
mim e a Mercedes Vera como postulantes".

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Maria Bricefi.o acrescenta, num escrito, que enquan­
to ela e a companheira se preparavam para a função,
Laura lhes disse com grande tristeza: - "Eu não posso
receber a capinha!"
Sofreu muito por isso: ela que, no dizer da Diretora
"demonstrava amor a Dom Bosco e entusiasmo por tudo
que era salesiano". Mas conseguiu dominar o seu inte­
rior e mostrar-se alegre. É ainda a Diretora quem ga­
rante ter descoberto uma sombra de tristeza no rosto
de Laura, notando embora "seu esfôrço para se unir à
alegria de tôdas".
"Era óbvio - ressalta a Irmã Azócar, - que a afli­
gisse ver-se afastada da capinha tão desejada e solici­
tada. No entanto soube vencer-se e tomar parte na
alegria comum. Tanto mais quando soube que Merce­
ditas continuaria como antes, sem se afastar das edu­
candas''.
Naquela noite a intimidade entre as duas amigas
teve um instante que pode parecer infantil, ao passo
que tem algo· de sublime.
Ninguém mais que Merceditas conhecia as aspira­
ções de Laura; e ninguém melhor do que ela compreen­
deu o anseio e a amargura de sua alma naquele dia.
Portanto, à noite, quando se acharam um instante so­
zinhas, Merceditas tirou dos ombros a capinha e gentil­
mente a pôs nos de Laura, para fazer-lhe saborear uma
gôta da felicidade que ela buscava como um faminto e
que todos, por justas razões, lhe tinham recusado.

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Foi o único instante em que a humilde e martiriza­
da menina, de algum modo, se sentiu Filha de Maria
Auxiliadora, o ideal de sua vida.

* • *

Nos dias seguintes D. Cagliero fundou, na Paróquia


de Junín, o Apostolado da Oração; visitou o cemitério
e benzeu a cruz - lembrança da missão. Depois, a 8
de abril, aos primeiros anúncios do mau tempo apres­
sou-se a voltar.
Laura viu-o afastar-se, com tristeza. Fôra-lhe
mensageiro de graças singulares, embora involuntària­
mente tivesse contribuído para dissipar para sempre o
sonho do seu futuro.
A recusa da capinha, que lhe fechava os caminhos
para o estado religioso entre as Filhas de Maria Auxilia­
dora, foi - escreve o P.e Crestanello - "uma das maio­
res penas" de Laura.
Pois a menina, habituada já à luta, não se abateu.
Dir-se-ia, pelo contrário, que as dificuldades, os contras­
tes, as públicas humilhações lhe aprimoravam o espí­
rito, temperando-lhe o fervor.
Aceitou as divinas permissões que a excluiam do
ambicionado exército virgin·al das Filhas de Maria
Auxiliadora, mas não renunciou ao amor do Celeste
Espôso. O P.e Crestan.ello nos traz a sua oração: "ó
Jesus, visto como não posso ser recebida entre as almas
que se consagram a Ti no Instituto das Filhas de Maria

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Auxiliadora, ofereço-me inteiramente ao teu amor.
Quero ser tôda tua, mesmo se tiver que ficar no mundo".
E não foram palavras ao vento.
Pediu ao diretor espiritual que a instruísse sôbre os
votos religiosos, com o desejo - diz o próprio P.e Cres­
tanello - de �eguir de perto a Jesus e ser semelhante à
Virgem, tôda luz de pobreza, de pureza e de obediência.
E experimentou uma satisfação inefável quando
muito depois, - em maio, talvez, o confessor, em vista
de suas insistências, lhe permitiu fazer privadamente os
votos, que lhe consolidavam o desejo de perfeição e lhe
impunham a obrigação dela.
Foi a primeira grande oferta, que Laura fêz a Deus,
de uma caridade provada no cadinho das tribulações.
"Tantas e tão elevadas aspirações numa menina de
apenas 11 anos - conclui o P.e Crestanello - poderão
causar maravilhas. Isso demonstra que a graça tinha nu­
trido naquela alma bem disposta o sentido da piedade e
o ardor das virtudes; ·e deixa entrever a prontidão e a
generosidade com que Laura correspondia às divinas
moções da graça, sem olhar a sacrifícios."
Talvez intuísse que breve lhe seria o tempo, e ace­
lerava o passo. O amor não padece tardança. 1

De volta ao colégio de Viedma, após a longa excur­


são pelo Neuquén, Dom Cagliero reviu o jovem Zeferino
Namuncurá, ao qual falou da visita no rio Aluminé aos
membros da sua tribo; da primeira comunhão dada ao

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seu velho pai, o octogenário grande cacique Manuel Na­
muncurá, poucos dia.s antes da última missão de Junin;
e da nova era que despontava para a sua gente, que
atingia os resplendores do Cristianismo.
Aquêle jovem araucano, filho do rei dos Pampas,
pupila dos seus olhos, D. Cagliero o haveria de levar a
Roma e apresentar a Pio X, como troféu do apostolado
missionário. E num lapso de cinqüenta anos tornar-se­
ia êle a glória mais fulgida das conquistas salesianas na
Patagônia tendo morrido em conceito de santidade, em
maio de 1905, sendo sua causa de beatificação e canoni­
zação introduzida por Pio XII, em 1956.
Mas não é tudo. Quis a Providência que, no ·cami­
nho do grande Bispo tlmidamente se lhe deparasse
Laura Vicufia, também a heróica Filha de Maria de
Junín de los Andes, a qual, muito embora, então, humi­
lhada por circunstâncias independentes de sua vontade,
haveria de representar no campo fem.inino, com a sua
fama de santidade e a sua causa de beatificação feliz­
mente encaminhada, o segundo fruto de perfeição juve­
nil, desabrochado nos jardins patagônicos dos Salesia­
nos e Filhas de Maria Auxiliadora.
Dom Cagliero, os seus colaboradores e as missioná­
rias de Junín, embora apreciando, tanto Zeferino como
Laura, pelas suas singulares virtu.des, não compreen­
diam, talvez, os planos da Providência que guiava aque­
las duas vidas pelas encostas solitárias do Calvário, para
dêles fazer dois modelos de santiclade.

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CAPÍTULO XI1

A Oferta da Vida

partindo D. Cagliero, tudo na vida salesiana de


Junín voltou à normalidade. Os alunos e alunas reto­
maram os livros e cadernos e se entregaram aos estudos.
Naquele ano Laura freqüentou um curso que pode­
ria equivaler à 5.ª elementar.
Estava entre as maiorzinhas do colégio.
Pôsto que gratuita ficou entre as educandas; e de
certo modo mais do que antes, já que lhe fôra confiado
o cuidado das pequeninas.
Laura possuía um inato sentido materno. E a gra­
ça fazia o resto, dando-lhe vivas ânsias de caridade e de
apostolado entre as companheiras mais necessitadas.
Fê-Io principalmente nos anos letivos de 1902 e
1903, para também, de algum modo, compensar as su­
perioras da generosa hospitalidade. "Foi assistente das
pequenas no recreio e na sala de trabalho - afirma uma

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das menina.s - e cuidava delas muito bem" Ajudava-as
a se vestirem, a se pentearem, a arrumar a cama, a se
manterem limpas e estar alegres. "Em dois anos que
estive com ela - declara uma velha condiscípula -
nunca a vi dar sinal de 1ná vontade ou aborrecimento,
como costuma acontecer em quem presta tais serviços".
Sobretudo recebia com delicadeza e gentileza as
novatinhas. Fazia-lhes companhia, convidava-as a brin­
car; perguntava-lhes se sabiam ler, se tinham estudado
o catecismo; explicava os costumes e deveres da vida co­
legial e as ajudava em tudo com admirável dedicação.
Francisca Mendoza pôde escrever: ''Com as pequeninas
Laura procedia como uma mãe."
Gostava imensamente de ensinar as orações e as
jaculatórias mais repetidas, especialmente a mariana
Bendita seja a tua pureza - uma das preferidas.
A chegada de uma nova órfã ou educanda repetia:
"- Eis uma menina a mais que vem conhecer a Deus
Nosso Senhor e aprender a amá-lo".
Tão ajuizada se mostrava e gozava de tanto prestí­
gio que às vêzes até era encarregada de assistir no salão
de estudo, quando as Irmãs se reuniam para as suas
conferências espirituais.
Muitas vêzes - acrescenta o P.e Crestanello -
incumbiam-na de dar algumas lições ou de ensinar al­
gum trabalhinho às menos adiantadas, no que, sebundo
o testemunho das próprias companheiras, tinha Laura
um método especial.

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"Ensinava com muita paciência e caridade. Não se
cansava nem se aborrecia, se tivesse de repetir muitas
vêzes as mesmas coisas; e quando conseguia fazer-se
entender pelas suas peq11eninas discípulas, lhes dizia:
"Agora vocês se apliquem com empenho enquanto eu
rezo para que vocês possam aprender fàcilmente".
Ain,da que tivesse algo para fazer - continua o P.e
Crestanello - estava sempre disposta a ajudar a tôdas,
sacrificando seus interêsses e até suas distrações". E
mostrava-se muito habilidosa em aproveitar ocasiões
para dar conselhos, fazer correções, sugerir bons pensa­
mentos, estimular a fuga do mal, levar para a igreja
alguns instantes.
De um fato especial ficou memória. Uma pobre
indiazinha, rude e ignorante, achando-se no colégio,
havia alguns dias, pusera-se a chorar porque não lhe
davam a famosa chicha, grosseira bebida alcoólica usada
pelos Araucanos. Laura se aproximou, levou-a à capela
e ali, diante do tabernáculo, tais coisas soube dizer­
lhe que conseguiu deixá-la perfeitamente tranqüila.
"Desde aquêle dia - afirmava a menina - não tive
outro desejo senão acompanhar Laura ao pé do altar
para ouvir-lhe as santas exortações. E às vêzes, só para
consegui-lo, fazia lá meus caprichos e chorava por coi-
' to a... "
. has a-
s1n
Não parece que a superiora confiasse a Laura
ocupações materiais que a afastassem dos estudos, em­
bora seja certo que, mais do que as outras, se entregava

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aos Sêrvicinhos do:tnésticos. ��rârtt!isca Mendoià, põr
exemplo, afirma que Laura a acompanhava em alguns
trabalhos caseiros; e a Irmã Bricefio assegura que às
vêzes - talvez no verão de 1903 - acompanhou-a a
lavar roupa ao rio Chimehuín.
Já a diretora recorda a boa vontade com que auxi­
liava a Irmã sacristã, muito feliz em poder cuidar do
altar, das coisas sagradas, e em se aproximar mais de
Jesus no Sacramento, e entreter-se mais tempo em do­
ces efusões de amor.

* * *

Enquanto nas aulas da Irmã Azócar, a incompará­


vel menina avançava dia a dia no saber, sob a vigilante
guia do P.e Crestanello caminhava a passo álacre e ex­
pedito pelas sendas da virtude.
Seu esfôrço e constância eram sustentados - con­
forme o próprio P.e Crestanello - "pelo grande amor
que Laura manifestava pela divina palavra". Aí apa­
recia sua docilidade à graça; a avidez de luz sobrenatu­
ral, a fome de perfeição que a devorava.
O Regulamento do colégio, lido todos os anos, e co­
mentando com freqüencia, assim exortava as alunas:
"Ouvi atentamente as prédicas e instruções morais;
cuidai de não dormir, tossir ou fazer qualquer outro
rumor. . . Não partais jamais das prédicas sem levar
convosco alguma máxima para praticardes durante
vossas ocupações."

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Em tudo isso taura foi um rnodêlo. Apraz ouvi-lo
dos lábios do seu primeiro biógrafo, que, sôbre ser-lhe o
diretor espiritual, era também o pregador or1dinário das
duas comunidades reunidas. Escreve, pois, o P .e Cres­
tanello: "Para Laura era uma felicid·ade ouvir instru­
ções religiosas ou prédicas. Tirava sempre frutos abun-
dantes e bons propósitos, que traduzia em prática na
prim·eira oportunidade."
A sua atenção espantava o próprio pregador, espe­
cialmente quando falava de Nossa Senhora, do Sagrado
Coração e sobretudo de Jesus Eucarístico. Naqueles
momentos parecia que as chamas de amor estuantes no
coração de Laura e a avidez com que bebia as palavras
do ministro de Deus, a estimulavam a tratar do melhor
modo que pudesse e soubesse os temas que a sua de­
voção preferia.
"Incendida assim de tão ardentes anelos, Laura
aprendeu a conhecer, amar e servir a Deus com verda­
deira e sólida piedade, que santificava todos os seus pen­
samentos, seus desejos e seus atos.
"As companheiras - continua o mesmo sacerdote
- percebiam que para estar na igreja como se deve, era
preciso estar como habitualmente Laura o fazia. As
próprias Irmãs apontavam-na como exemplo."
O atento biógrafo alude também às picadas de
alfinête com que Laura machucava os braços para afas­
tar o sono durante os sermões na estação estival.

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"Dai-vos a Deus e à virtude desde a infância -
lembrava o Regulamento - porque esperar a velhice é
pôr-vos em gravíssimo perigo de vos perderdes eterna­
mente: "E a angélica menina não queria perder o seu
tempo.

Inculcava ainda o Regulamento: "Assisti com de­


voção à Santa Missa e não vos esqueçais de fazer todos
os dias, ou de ouvir um pouco de leitura espiritual."
Quanto à missa, não é preciso insistir. Laura assis­
tia a ela tôdas as manhãs, aproximando-se com fervor
da mesa eucarística. Era a hora mais suave do dia.
Hora que mergulhava a sua alma na divindade e lhe
dava o inebriamento de viver para amar e para se sa­
crificar. ''Depois da comunhão - é ainda o P.e Cres­
tanello que o diz - a paz, a calma, a alegria transpa­
reciam do seu rosto; e então, a sua própria maneira de
rezar era tão doce e tranqüila como a de quem possui
Aquêle que ama."
A recomendação de fazer leituras espirituais, essa
merece um aceno mais detalhado, já porque documenta
a estima não comum que Laura tinha para com a pala­
vra de Deus, já porque aclara a sua índole refletida e a
vontade implícita de chegar à oração mental.
Havia o costume em Junín, como ·aliás nos outros
colégios das Filhas de Maria Auxiliadora, de fazer-se no
fim da missa uma leitura ascético-moral para as alunas,
à guisa de pequena meditação.

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Voltando a Santiago do Chile em 1901, apôs dois
anos nas Cordilheiras, a Irmã Piai se havia munido de
livrinhos adatados, entre os quais as célebres Palhêtas
de Ouro, em edição espanhola.
Geralmente era a própria Diretora quem lia; uma
vez ou outra, a Irmã Azócar. Uma página, ou pouco
mais, por dia.
Laura transformava-a em nutrimento espiritual do
dia, com a avidez e entusiasmo, dir-se-ia, de uma noviça.
Atesta-o Mercedes Vera, inseparâvel companheira tam­
bém nesta luta da vida interior.
O livrinho das Palhêtas de Ouro - escreve - agra­
dava-nos muito. As vêzes nós o pedíamos à Diretora, para
lê-lo mais à vontade e mais atentamente. Assim pude
observar que Laura se deliciava com as considerações
dedicadas aos anjos, e que se esforçava para imitar, ora
o anjo da amabilidade, ora o da ;paciência, das corte­
sias, das pequenas delicadezas, e coisas semelhantes,
consoante a leitura matinal. Mais, de comum acôrdo a
gente marcava o número de ações relativas a cada uma
das virtudes, que se tencionava praticar no curso do
dia. A noite uma prestava conta à outra: devo dizer,
porém, que Laura sempre me vencia."
A Irmã Piai, por sua parte, atesta a prontidão com
que Laura se recordava da leitura da manhã, quando
ela no recreio interrogava, de surprês,a, as educandas,
para lhes estimular a atenção, a reflexão e a aplicação
prâtica daquele meio eficaz de vida cristã.

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Recorda, também, que
entre às aiurtas circulavàn\
folhetos amenos e instrutivos trazidos de Santiago, e
que Laura os lia "com sumo interêsse" e procurava que
fôssem lidos pelas companheiras, especialmente pela sua
irmãzinha Júlia, quando estava no colégio. Por isso a
Irmã Grassi escreveu entre outras coisas: "Laura era
muito piedosa e se dava com prazer às boas leituras".

* * *

Em setembro, de 4 a 8, a crônica de 1902 registra


o curso anual de exercícios espirituais em uso nos Ins­
tttutos Salesianos. Dias de graças e de bênçãos para os
alunos e alunas que, pondo de parte os pensamentos
escolares, recolhem-se em oração e na meditação de três
grandes palavras escritas no rodapé do horário especial
para o retiro: Deus, Alma, Eternidade.
Não era a primeira vez que se faziam êsses exercí­
cios no Colégio Maria Auxiliadora de Junín. A crônica
já os registra em 1900: "Na metade do ano pregam-se
os exercícios; tomaram parte nêles, em bom número,
também as oratorianas."
Eram pregados quase sempre pelos mesmos sacer­
dotes, não se podendo convidar outros, nem do Chile,
muito menos da Argent�_na, dada a estação e as dis­
tâncias.
Os de 1902 pregaram-nos o P.e Crestanello e P.ª
Genghini: um para as n1editações, o outro, de exposi­
tiva mais engraçada e a1nena, para as instruções.

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Laura fêz o retiro com devota seriedade.
Existem os apontamentos autógrafos de três ser­
mões do seu confessor: o terçeiro, o quarto e o quinto:
respectivamente sôbre a morte, o inferno e o paraíso.
Sôbre a morte Laura anota: E' a melhor conse­
lheira que temos para fugir do pecado. . . leva embora
os moços e os velhos."
As poucas linhas sôbre o paraíso começam com a
ardente aspiração: "Oh bem-aventurado paraíso, quan­
do chegarás?"
Pressentia Laura que a Irmã Morte não tardaria a
abrir-lhe o céu?

Naquela época Laura, no ímpeto sublime de cari­


dade que toca o heroísmo no exercício do quarto man­
damento - Honrar Pai e Mãe - oferecera já a Deus a
vida pela pessoa qu-e ela mais amava na terra.
As últimas férias em Quilquihué tinham-lhe des­
vendado até ao fundo a mísera con-dição moral e espi­
ritual de sua mãe. Longe de Deus, como poderi·a ser
feliz?
Ao mesmo tempo que lhe era grata por lhe ter con­
cedido a volta quase indefinidamente para Junín, sofria
pelo seu estado de culpa e pela sua vida com um homem
sem religião.
O que fazer por ela? E o coração de filha não tinha
paz.

- 181-
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Havia muito Laura oferecia orações e mortificações.
Desde quando Júlia a acompanhava nas suas visitas à
igreja, as duas irmãs rezavam pela mamãe. E a intenção
de Laura era vê-la aproximar-se dos sacramentos.
Também às companheiras que durante os recreios
ela levava ao pé do altar, a piedosa menina costumava
dirigir o convite para rezarem com ela pelos "pobrezi­
nhos" que estão afastados de Deus e por aquêles que
o não conhecem.
E quando D. Mercedes ia ao colégio não deixava
nunca de a levar alguns instantes à capela. Esperava
que a graça lhe tocasse o coração e a levasse a mudar
de vida.
O amor filial nela se purificava e sublimava na
fornalha da dor íntima e escondida -e entre as chamas da
mais pura caridade.
A extraordinária missão pascal de D. Cagliero para
nada tinha valido. A amargura pela recusa da capinha
Laura devia juntar a tristeza de ver a mãe empedernida
no mau caminho.
E se a bondade de Deus tivesse cessado? E se a sua
misericórdia tantas vêzes rejeitada, barrasse para sem­
pre a estrada da volta?
Não muitos anos depois, mostrando aos pastorzi­
nhos de Fátima o lugar da condenação, iria a Virgem
dizer: "Estão vendo quantas almas caem no inferno?
E' que há poucos a rezarem e a se sacrificarem por elas".
As almas se redimem a custo de imolação e de sangue.

- 18"2 -
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Laura estava para abrir os olhos a essa verdade e para
lhe viver corajosamente a experiência.

* * *

As tribulações não dobravam essa excepcional filha


de Maria: nem sequer o acrescido afeto da mãe pela
irmã, Júlia- Pelo contrário: tudo a levava a buscar
para ela, de todos os modos, a salvação.
Lia no seu manual no capítulo IX, onde se fala das
festas principais e secundárias da União: "Junho.
�stes mês é consagrado ao Sagrado Coração do Filho
de Maria . . . As Filhas de Maria gostem de entrar no
coração terníssimo da sua Mãe e procurem dêle apren­
der o ódio ao pecado e a compaixão para com o.s peca­
dores; e consagrando-se a êste Coração bendito prome­
tam rezar pela conversão dos que vivem -em pecado."
Orações e comunhões pelo arrependimento de sua
mãe - diz o P.° Crestanello - Laura as fizera sem
conta. "Seu coração, entretanto, não estava satisfeito;
pedia mais: pedia que com as orações, as mortificações,
as b·oas obras ela oferecesse a Deus o sacrifício da vida."
Quem lhe sugeriu tanto heroísmo? Um comentário
ao trecho evangélico do Bom Pastor. Se êle - pensou
Laura - dá a vida pelo rebanho quem me impedirá de
oferecer a vida pela conversão de minha mãe?
Isso aconteceu a 13 de abril de 1902, domingo do
Bom Pastor ou no correr daqueles meses, por uma fácil
e ocasional alusão na prédica à conhecida parábola.

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"Impelida - afirma o biógrafo - por insopitáveis
ânsias de caridade Laura pediu licença ao confessor pa­
ra se oferecer ao s.agrado Coração de Jesus como viti­
ma pela salvação de sua mãe."
Assim como a recusa da capinha provocara a no­
bre reação dos votos privados, assim também a obsti­
nação de D. Mercedes na culpa acossava Laura para o
supremo sacrifício da vida.
Parece que falou primeiro com a Irmã Azócar, e
que a atilada assistente a endereçou ao confessor e à
Diretora.
Revelando ao P.e Crestanello o magnânimo propó­
sito, pediu, implorou que êle não pusesse obstãculos ao
seus intentos.
Admirando-a;•�embora, naquele ímpeto de perfeità
caridade, o P.e Crestanello hesitou. Seria prudente
conceder a uma menina de menos de 12 anos um tal
ato de virtude? Laura se distinguia das outras; fizera
já os votos; amava eternamente sua mãe; sôbre ser reta
na intenção de dar glória a Deus e procurar o bem do
próximo, parecia movida por especial graça do Espírito
Santo que lhe infundia coragem superior à idade; ap�
sar disw convinha esperar.
Quis o P.e Crestanello rezar e refletir: homem de
profunda vida interior, não tardou em persuadir-se que
a sua jovem filha espiritual era o tipo da alma vftin1a.
Ninguém, aliás, melhor do que êle compreendia que so­
mente uma particular misericórdia divina poderia rom-

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per a dupla cadeia de D. Mercedes, graça (-fraca) e
desditosa mais do que perversa. Por isso, em fôrça das
insistências de Laura, deu-lhe o consentimento.
Como Santa Gem.a Galgani, tinha Laura encontra­
do seu caminho: religiosa no desejo, vítima na reali­
dade.
* * *

A grande oferta foi imediatamente feita.


"Laura - escreve o mesmo P.e Crestanello - (obti­
da a permissão) não esperou mais. Correu para o pé
do altar e debulhada em Iãgrimas de alegria e de espe­
rança se ofereceu em holocaust o a Jesus e a Maria pela
salvação de sua mãe."
"Não hã caridade maior - disse Jesus - que dar a
vida pela pessoa amada."
A obscura Fi1ha de Maria dos Andes, na sua corrida
para o heroísmo tinha alcançado o sublime estágio, onde
Deus a esperava com a palma do incruento martírio.

Quase não teve novidades o resto do ano escolar.


Da noite de 7 de novembro à festa da Imaculada,
o mês mariano com o seu encanto, suas loas, suas belas
e freqüentes jaculatórias à Virgem Puríssima e o buquê
cotidiano das florzinhas.

- 185 --
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Depois os exames, a premiação, a festa de Natal e
as férias.
Naquele ano, conforme o combinado, Laura passou
o verão em Junín. A estância de Quilquihué não dava
nenhuma saudade. Somente algum pensamento para
a sorte de Júlia e o tormento cada vez mais agudo da
vida da mamãe.

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CAPÍTULO XIII

Nos Píncaros do Heroísmo

C hegados, na vida de Laura, ao pleno meio-dia, convém


pararmos para o gôzo do espetáculo das suas virtudes
cintilantes ao sol da graça, antes que a sombra da tarde
dê o toque sugestivo de perfeição à sua figura de incom­
parável Filha de Maria.
Cheia de boa vontade e boa ela o foi desde a in­
fância.
O colégio rasga-lhe horizontes novos nos céus da
vida cristã.
As adversidades fustigam-na a ponto de lhe parece­
rem carícias os açoites com que a paterna mão de Deus
a fere.
Ninguém, por certo, quererá pôr em dúvida seu he­
roísmo na árdua peleja com Mora, na emissão dos votos
particularis, na oferta da vida pela salvação da sua mãe.

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A tais heroísmos, tão só em aparência ocasionais,
não se chega sem longo treinamento do espírito na per­
feição do amor de Deus, no desapêgo de todos os bens
terrenos, no anseio da santidade.
Entre os 11 e 12 anos tinha Laura indubitàvelmente
alcançado um habitual teor de vida com visos de excep­
cional, que leva a pensar nos píncaros andinos cotidia­
namente desenhados aos seus olhos, a convidarem-na,
tàcitamente, à escalada do ideal de perfeição que mais
e mais aproxima a alma de Deus.
Nada de extraordinário à primeira vista: tanta
prontidão, porém, tanta facilidade, tanta alegria no
cumprimento do dever e na prática da virtude estão a
revelar ao atento observador a forma de conduta não
comum entre as meninas de idade e condição iguais.
"A santidade - disse Bento XV em 1920 - con­
siste propriamente só na conformidade ao divino que­
rer, expressa num contínuo e exato cumprimento dos
deveres do próprio estado."
:t a trabalhosa meta que Laura alcançara com in­
dômito vigor, trilhando seu caminho nas pegadas de
Domingos Sávio, inspirando-se na sua condição de Filha
de Maria, seguindo a rigor os avisos e conselhos de quem
lhe fazia as vêzes de pai e mestre e a guiava com mão
segura pelas ásperas veredas do bem.

* • *

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lnconcusso fundamento das ascensões de Laura no
mundo sobrenatural da graça foi a piedade. Uma pie­
dade �mples, sincera, alegre, como condizia com a sua
idade, e como aprendeu da vida e da educação salesiana.
Nada de exagerado ou de afetado; antes, aquêle no­
bre espírito de precisão que a levava a procurar, amar e
servir a Deus sôbre tôdas as coisas.
Muito se disse de seus fervores eucarísticos e maria­
nos. Aqui apraz-nos acolher alguns testemunhos que
permitem entrever as profundezas de sua alma no exer­
cício cotidiano da oração, primeira e mais comum ele­
vação da alma para Deus Nosso Senhor.
"Recordo - declarou sua irmã Júlia nos proces­
sos - que ao entrar na igreja parecia iluminar-se. No
seu lugar quedava-se de tal maneira absorta que às vê­
zes já se não dava conta de minha presença ao seu lado."
"Quando rezava na capela, acrescenta uma compa­
nheira - parecia um anjo; e só o vê-la convidava ao
fervor." "É verdade - confirma uma outra - que a
atitude de Laura diante do Santíssimo Sacramento era
edificante e que parecia absorta em contemplação; como
é também muito verdade que se distinguia entre as ou-
tras pelas suas freqüentes visitas à capela.
"A irmã Piai, que intuiu a alma piedosa e devota
de Laura desde o princípio, limita-se a afirmar que a
menina fazia tôdas as práticas religiosas "com verda­
deiro transporte".

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O P.e Crestanello por sua véz escreve: ''Durante a
oração podia-se ver que a mente de Laura seguia a ação
que estava executando. Comumente não percebia o que
se passava ao seu derredor; e muitas vêzes foi necessá­
rio chamá-la e dizer-lhe que já estavam saindo da igre­
ja." Fêz experiência Merceditas Vera também, quando
a Diretora, como já se disse, permitia às duas amigas
levarem flôres ao Santíssimo Sacramento, na capela dos
salesianos.
"Não recordo - narrava ao P.e Crestanello uma
companheira de Laura, talvez a própria Merceditas -
não recordQ tê-la jamais visto encostar-se no banco,
quando de joelhos. Conservava o olhar fixo no taber­
náculo, ou modestamente baixo e recolhido"; de modo
que "para estarem com devoção na igreja - comenta
o biógrafo - as condiscípulas compreendiam que era
preciso imitar os modos de Laura."
A Irmã Margarida Baratelli, indo a Junín pouco
depois da morte de Laura, ouviu do mesmo interessado
um fato que denota a -eficácia dêsse procedimento exter­
no da santa menina, nas suas relações com Deus Nosso
Senhor.
No domingo - narra a Irmã Baratelli - as duas
comunidades juvenis foram assistir à missa na igreji­
nha paroquial, situada no centro do arraial. Um senhor,
achando-se casualmente em tal circunstância perto do
edifício sagrado, ficou impressionado pela figura de
Laura, que jamais vira ou conhecera antes. Os olhos

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da menina cheios de luz, o leve sorriso que lhe floria nos
lábios, o passo ágil e recolhido, chamaram-lhe a aten­
ção, dando-lhe a impressão assim de uma criatura quase
angelical. Quis entrar na igreja para observar mais à
vontade. Deixando para as outras os lugares melhores,
Laura se ajoelhara no chão, juntara as mãos em prece
e fitava docemente o tabernáculo. Durante a explica­
ção do Evangelho parecia rejubilar e inflamar-se tôda
vez que ouvia os nomes de Jesus e de Maria. A elevação
inclinou a cabeça, e o ignoto observador teve de fazê-lo
por sua vez, para melhor examinar o rosto d.a menina
em adoração. Viu-a como em êxtase no momento de er­
guer os olhos para contemplar a Hóstia e o Cálice nas
mãos do celebrante. Depois observou-a enquanto, tôda
fervorosa, se aproximava da mesa eucarística, e voltava
para o seu lugar para uma prolongada ação de graças.
Parecia-lhe sonhar. Jamais vira por entre aquêles
montes e nos altiplanos de Neuquén criatura mais in­
gênua e mais luminosa nas suas intimidades com Deus
Nosso Senhor. Perguntou-lhe o nome e soube que se
tratava de Laura Vicufi.a." Desde aquêle dia - termina
a Irmã Baratelli - nunca mais faltou à missa de pre­
ceito; e tôdas as vêzes de nôvo admirou Laura, como no
primeiro encontro.
Aprendeu também as orações das alunas; e me re­
petia, - confirma a boa religiosa - que o desejo de re­
ver aquêle anjo de menina, e de rezar onde e como ela
rezav.a, tinha-o aproximado de Deus."

- 191-
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Entre os contemporâneos Merceditas Vera é, talvez,
quem melhor pode levantar uma ponta do véu que es­
condia os sentimentos de Laura. "A novena e as festas
natalinas - diz - celebravam-se em Junín com muita
solenidade e com muito fervor. Cabia a Laura e a mim
a honra de preparar o humilde presépio. E como ela
gostava! Lembro-me que numa dessas circunstâncias
surpreendia-a a chorar. A minha pergunta respondeu:
Ah! Merceditas, não posso conter as lágrimas ao pensa­
mento de que Jesus se humilhou tanto por nosso amor!"

Que Jesus fôsse o pólo magnético da sua piedade de­


monstra-o a ilimitada devoção que tinha para com a
Eucaristia. "Ninguém - testemunha o P.e Crestanello
- ignorava os ardores de Laura para com Jesus Sacra-
mentado. . . Quisera passar longas horas na sua pre­
sença e fazer-Lhe companhia na solidão do cibório. Su-
pria-o com as freqüentes visitas. Muitas vêzes foi vista
atirar os seus olhares, da aula, da sala de trabalho, do
pátio, e mesmo até do dormitório, à noite, para a capela,
e com êles os afetos do coração, e passar alguns instan-
tes em piedoso recolhimento. . . Repetia freqüentemen­
te: - "Devemos viver só para Jesus".
Tanto avançou nesse campo que um dia apresen­
tou à Irmã Azócar uma composição assinada: A doidi­
nha de Jesus.

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(ao alto, à esquerda) Dom João Cagliero
(ao alto, à direita) Pe. Augusto Crestanello
(em baixo) Pe. Zacarias Genghini
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A coisa pareceu esquisita; e antes mesmo de inda­
gar os motivos, a mestra aconselhou Laura a não usar
aquêle pseudônimo, que causara hilaridade na classe.
Depois, pensando que a menina não caía nessas
extravagâncias, perguntou-lhe confidencialmente a
razão.''
Respondeu: - "Chamei-me assim por castigo".
- "E quem te castigou?" - insistiu a Irmã.
- ''Eu mesma". E explicou: Alguns dias antes
estava brincando com as colegas no pátio. A um dos
chistes, uma das presentes em tom de burla lhe disse­
ra: - "Laura, você parece doida!"
"Aquelas palavras me machucaram: senti no fun­
do da alma um movimento de i1npaciência. Tive von­
tade de lhe dar o trôco. Logo, porém, percebi o que se
passava comigo, por isso disse ao meu coração: como
você ainda está delicado! Essas palavras o incomodam?
Pois bem, daqui por diante eu mesma me chamarei a
Doidinha de Jesus!"
A Irmã Azócar não restava senão admirar o empe­
nho que Laura, com fervor de noviça, colocava na re­
pressão dos imp11lsos naturais, amalgamando o desejo
de humilhação com a maior chama de caridade que lhe
ardia no coração.
Com efeito, ainda que o singular pseudônimo não
aparecesse mais em nenhum trabalho escolar, tornou-se
habitual nos lábios de Laura, como depõem as testem11
nhas nos seus processos de beatificação. Era um dis-

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tintivo honorífico para a santa menina, um como título
nobiliárquico que refletia os seus ideais.

Como verdadeira Filha de Maria Laura queria tam­


bém à Virgem com ternura.
Não é o caso de repetir coisas ditas. Todavia al­
guns testemunhos servem para melhor retratar sua fi­
gura espiritual e documentar sua virtude incomum.
"Laura - são palavras da Irmã Piai - tinha gran­
díssimo afeto a Nossa Senhora". Falava dela no recreio.
Honrava-a com sacrifícios e renúncias. Atraía para a
sua devoção as companheiras mais avoadas e distraídas,
especialmente no mês de Maria e na proximidade de
suas festas.
Numerosas testemunhas recordam que repetia com
freqüência: "Que felicidade para mim ser Filha de
Maria"; e que era habitual, especialmente nos últimos
t.empos, o estribilho poético: "Virgem do Carmelo, le­
vai-me para o céu, dito como oração.
Mercedes Vera, depois de haver escrito que muita
vez, à noite, sorrateiramete levantava-se com a amiga
para rezarem, acrescenta: "A cama de Laura era perto
da minha e mais de uma vez observei que ela ficava
como que absorta, com os olhos para o alto e as mãos
juntas, enquanto rezava a oração Imaculada Virgem
Maria, minha Senhora e minha Mãe ... que nós amiúde
repetíamos nas visitas."

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Por taí formá a piedade de Laura a transmuciavà
nas práticas devotas e durante o dia, nas horas de re­
colhimento e nas de lazer, na conduta com Deus e nas
relações com o próximo, que chegaram a compará-la com
a própria Virgem Maria. Sabino Cárdenas afirma:
"Laura era companheira das minhas irmãs, que freqüen­
tavam o colégio das freiras: em casa nós a chamavamoa
a segunda Maria Auxüiadora!"

Acenei às relações com o próximo. Laura não tra­


tou com muitas pessoas: seu público foram as educan­
das e as externas de Junín.
Para tôdas Laura foi um anjo de bondade. Ouça­
trou "caridosa, paciente, atenciosa."
Tratava-se quase sempre de meninas rudes, biso­
nhas, sem modos, tardas de inteligência e às vêzes aris­
cas e estabanadas.
Para tôdas Laura foi um anjo de bondade. Ouça­
mo-lo do P.ª Crestanello: "Gostava muito de se entre­
ter com as meninas mais pobres. Tinha freqüentemen­
te consigo coisinhas ou brinquedinhos para presentear;
e sabia diverti-las com inocentes brincadeiras. . . Sen­
tia muito se alguma tratava com soberba e desdém as
companheiras mais pobres, caçoando das roupas estra­
gadas ou rasgadas e da sua humilde condição."
Com ela não eram possíveis criticas, murmurações,
discussões e rixas. Estava pronta a compadecer-se, a

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perdoar, a ajudar. ''ônde estava Laura diziam as
Irmãs - não aconteciam desordens".
Não se incomodava se alguém, em tom de mofa, lhe
chamava a Doidinha de Jesus. Ficava vermelha e sor-
ria amàvelmente.
Nem se alterava ou impacientava quando as com­
panheiras, por leviandade mais do que por maldade, lhe
escondiam a lenha que ela preparara de manhã para a
estufa da sala de aula, durante os longos e rígidos meses
invernais. Como se nada fôsse, à observação da profes­
sôra corria em busca de outra; e à troça de quem fizera
a brincadeira, fazendo-a parecer negligente no dever,
se contentava com responder: "- Ganhei mais um
merecimento para o céu"
Alguma das meninas chegou a carregar frasquinhos
de água, que destramente derramava no fogo, para ver
Laura em apêrto. A "santinha", como diziam as com­
panheiras, não se zangava. Calma e tranqüila, mexia
na estufa e tornava a acendê-la, com admiração da clas­
se, cada vez mais convencidas da sua bondade; bondade
que, porém, lhe custava muito, sendo, como se viu, de
natureza pronta e fácil ao ressentimento.
Havia em Junín um pórtico aberto a todos os ventos
e às intempéries. As educandas procuravam esquivar­
se ao trabalho de varrê-lo. Laura, pelo contrário, usava
de tôdas as astúcias para reservá-lo para si. Chegava
a trocar de ocupação com a companheira a quem êle
coubera por sorte, embora as mãos lhe sangrassem por

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causa das frieiras. - "Jesus sofreu muito mais - dizia
então - e não somente nas mãos, mas em todo o cor­
po ..." Afirma-o quem aproveitou muitas vêzes da sua
caridade.
Como é fácil supor, não faltaram a Laura pequenos
incidentes próprios da vida de colégio. Uma compa­
nheira com a qual estava encarregada de varrer a sala
de aula, estando um dia de mau humor, não somente
se recusou a ajudá-la a remover as carteiras, como até
começou a esparramar papel rasgado nos lugares que
Laura tinha limpado; e acabou atirando-lhe injúrias e
insolências. Laura não conseguiu dissimular sua sur­
prêsa; mas não se alterou. Um olhar na hora, e algu­
mas palavras mais tarde, bastaram para o arrependi­
mento da culpada. Ela, ao ouvir ler mais tarde na vida
de Laura, que as companheiras às vêzes lhe faziam
exercitar a paciência, teve de confessar publicamente:
''Eu fui uma delas!''
"Ninguém - afirma a Irmã Piai - viu-a jamais
discutir; dizia com bondade, embora com firmeza, o que
lhe parecia consoante à verdade ou sugerido pelo zêlo.
Nas discussões cedia imediatamente. Era uma alma
feita para a paz e para a caridade."
Conclui uma testemunha: "Não faltaram entre as
companheiras algumas invejosinhas - mais, talvez, es­
tabanadas do que más, que zombavam dela e a despei­
tavam. A serva de Deus não se ofendia; antes, era a

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primeira a fazer o seu gesto humilde e espontâneo de
se ajoelhar para pedir desculpas."
Essa caridade Laura a estendia às almas do purga­
tório, aos pecadores, aos missionários.
Em favor das primeiras fêz o ato heroíco de cari­
dade sugerido por São José Cafasso, e que se achava no
Manual de Piedade que ela usava.
Pelos pecadores, em particular pela sua mãe, não
cessou de rezar e de se oferecer em sacrifício.
Para missionários, principalmente os de Neuquén,
invocava com reconhecido afeto as luzes e os auxílios
celestes, especialmente no tempo de suas excursões, a
fim de que o Senhor, fecundando-lhes o zêlo, lhes aplai­
nasse o caminho dos corações.

Que Laura se ajoelhasse às vêzes diante das com­


panheiras para pedir desculpas de faltas inexistentes,
11ão causará maravilha.
Era o seu modo de proceder com a Diretora, tôdas
as vêzes que a culpavam sem razão, ou quando era
acusada de ter faltado, conquanto involuntàriamente,
aos seus deveres. Escreve, com efeito, o P.e Crestanel­
lo: "Era edificante, e comovente a um tempo, vê-la
cair aos pés da Diretora no pátio, na presença das ou­
tras, e com humildade pedir desculpas e perdão, como
se fôsse verdadeiramente culpada." Também Francisca

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Mendoza a recorda nessa atitude, tão oposta ao amor
próprio juvenil.
"A virtude de um modo particular inculcada às jo­
vens estudantes é a humildade", aconselhava o Regula­
mento do colégio. Laura fêz tesouro do aviso.
Não falava de si - dizem as testemunhas do pro­
cesso informativo - não amontoava desculpas, odiava
a mentira, louvava e estimava a tôdas, respondia com
simplicidade e lhaneza, aceitava pronta e serena os en­
cargos mais humildes, a ponto de parecer apática, ao
passo que - como vimos e veremos mais tarde - era
uma perfeita dominadora de sua índole, fácil ao repente
e à impaciência.
O castigo humilhante que lhe deram e as caçoadas
devidas à fraqueza renal, acharam-na temperada na
prática da humildade, pedra de toque da santidade au­
têntica. "Laura não se opôs à injusta punição - afir­
ma Francisca Mendoza - nem jamais proferiu palavras
de queixa." Também a Irmã Grassi ajunta, a propó­
sito: "Estou em condições de assegurar que a querida
menina teve de sofrer não poucas humilhações: entre­
tanto ela, sem nunca responder, nem se desculpar, con­
tinuava a cumprir os seus deveres, embora derramando
silenciosamente alguma lágrima."
É ainda Francisca Mendoza quem afirma que "a
vanglória não tinha lugar no coração de Laura." O pro­
cedimento exemplar a autorizava a ostentar durante a
semana, uma faixa de mérito; mas comumente ela a

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recusava, dizendo à Diretora ter apenas cumprido o seu
dever. E de fato nunca foi vista na sala de visitas, em
conversas com a mãe, usando a honorífica distinção co­
legial.
"Era de rara humildade - confirma a Irmã Piai. -
Não ligava aos elogios e não fugia às censuras: antes,
alguma vez as procurava." "Qualquer demonstração de
aprêço - completa o P.e Crestanello - se transformava
para ela em motivo de confusão."
Fruto de humildade essa perfeita obediência de
Laura. Obediência alegre, pronta, inspirada no anelo
de, em tudo, fazer a vontade de Deus.
O som da sineta punha-lhe asas nos pés. Um aceno
da professôra ou da assistente bastava para lhe fazer
truncar qualquer ocupação. Deixou, às vêzes, incom-­
pleta a palavra que estava escrevendo, o ponto de agu­
lha que tinha começado, para obedecer com solicitude.
O Regulamento do colégio formava o seu código de
vida. Os avisos e os conselhos da Diretora, das Mestras,
do Confessor eram para Laura como ordens. Suas má­
ximas: "A obediência deve ser cega. A obediência can­
tará vitória."
Atente-se para o testemunho conclusivo da Irmã
Grassi: "Sôbre a obediência, a humildade, a condescen­
dência de Laura, é pouco tudo o que se disser daquela
alma bela.''
Modesta nos olhares, atenta e ponderada nas pala­
vras, composta no andar, ·educada e gentil com todos,

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era o tipo da Filha de Maria que volve os olhos para os
exemplos da Virgem, seu espelho e seu inatingível mo­
dêlo.
* * *

Nascida para o sacrifício e para a imolação, Laura


não tardou a se endereçar pelos ásperos caminhos das
austeridades e das penitências. Estimulavam-na S. Luís
de Gonzaga e Domingos Sávio; as tradições e a piedade
salesiana continuamente a estavam convidando à imi­
tação de suas virtudes. Ela quis seguir-lhes as pegadas,
e o conseguiu admiràvelmente.
O Padre Crestanello, como esperto diretor de almas,
não deixou de lhe ensinar a mortificar o coração, a guar­
dar os sentidos, a refrear a vaidade. E de sua filha es­
piritual, cujos progressos o enchiam de admiração êle
mesmo afirma: "Entregou-se com entusiasmo à mor­
tificação interna e externa, a tal ponto que o confessor
teve que lhe moderar os férvidos anseios."
Como deixamos dito, não foi sem lutas aquêle seu
domínio sôbre si mesma. "Era muito sensível - diz a
Irmã Grassi -; e pôsto que calasse e s·e humilhasse, r
rosto revelava - indubitàvelmente, no comêço da vida
colegial - o esfôrço que fazia para se controlar."
Numerosas as indústrias de que se valia para
submeter a natureza à graça. Ordinàriamente ao sen­
tar-se, na sala de aula ou de trabalho, tomava uma po­
sição incômoda, e não mudava mais. No verão, não
obstante o calor, passava tardes inteiras sem beber um

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gole de água. No inverno, então, gostava de trabalhar
ao ar livre, conquanto tivesse as mãos sangrando com
as frieiras.
Somente uma vez - confessa nos processos a Irmã
Marieta Rodríguez - fui testemunha de um leve movi­
mento de impaciência de Laura, por não terem saído na
tômbola os números dela. "Mas imediatamente se do­
minou".
Detestava delicadezas de perfumes e afetação nas
roupas e nos adereços da pessoa. Costumava pôr pedri­
nhas no calçado para se mortificar; e à mesa tudo ser­
via de pretêxto para se privar do que mais lhe agradava
ao paladar, e para tornar insípidos seus alimentos.
Convém ouvirmos tudo isso das testemunhas ime­
diatas. "Muitas vêzes - diz Merceditas - eu surpreendi
Laura pondo pedrinhas nos sapatos, lascas de madeira
na cama". E o P.e Crestanello observa que ela foi vis­
ta a colocar "sal e cinza na sopa".
Sua colega Pasqualina Ramallo escreve: "Laura
sobressaía pelo seu candor angélico, sua piedade, seu es­
pírito de mortificação. As poucas vêzes em que serviam
algum doce à mesa, ela o dividia com as companheiras,
satisfeita por vê-las contentes. Também nos trabalhos
domésticos escolhia sempre os menos agradáveis, para
favorecer as outras".
"Pela metade de 1902 - conta a Irmã Brice:fio, en­
tão simples postulante - quis a Diretora que eu ficasse
perto de Laura no refeitório. Vinha a calhar, porque

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ambas éramos de poucas palavras. Ela se mostrava
também muitíssimo mortificada".
"Nas roupas - acrescentam outras testemunhas
coetâneas - não desejava enfeitinhos supérfluos; pelo
contrário, tirava-os com habilidade, chamando-lhes fi­
guinhas do diabo".
"Quem conhece a Cruz, aprecia-a - repetia S. Ge­
ma Galgani - e quem não a conhece, foge dela". Laura
a conhecia e com fervor juvenil procurava conformar-se
ao Divino Crucificado, oferecendo-Lhe privações e afli­
ções corporais, em espírito de reparação. "Reparai as
ofensas que Deus continuamente recebe dos homens"
fôra um dos seus propósitos da Primeira Comunhão, por
isso ela não se desviava da estrada real da Santa Cruz�
Sustentava-a o pensamento de conseguir assim a
conversão de sua mãe. E tão longe foi no caminho das
penitências, que acabou conseguindo, com Merceditas,
que o P.e Crestanello lhes permitisse o uso do cilício.
As duas amigas o trançaram com cordinhas e pon­
tas molestas. Devia ter doze nós, em lembrança das
doze estrêlas de Maria: Merceditas porém percebeu que
o cilício de Laura estava com quinze, para recordar os
mistérios do rosário. Foi então que a santa menina
confidenciou à amiga que queria, assim, dar a Nosso
Senhor uma reparação por certos "bailes" da estância
de Quilquihué.

* * *

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Não admira se a algum olhar superficial - .segundo
os testemunhos - Laura tenha parecido apenas uma
menina boa, piedosa, obediente e nada mais. Em ver­
dade foi extraordinária naquilo que Pio XI chamou
o terrível cotidiano: terrível para adultos, e muito mais
para adolescentes submetidos a vida metódica e disci­
plinada.
Francisca Mendoza afirma francamente que Laura
não era como as outras: "Laura ao receber uma obser­
vação era dócil e paciente, ao passo que as outras res­
mungavam, choravam e se desculpavam. Ela aceitava
tudo e agradecia".
"Estive cinqüenta anos com as Filhas de Maria Au­
xiliadora em vários colégios - confirma a mesma tes­
temunha: - meninas boas e piedosas conheci muitas,
nenhuma, porém, como Laura".
Vale a pena trazer aqui, para concluir, uma página
de Pasqualina Ramallo, matriculada em Junín em 1903.
Eram os últimos tempos de Laura, quando as suas vir­
tudes brilhavam em todo o seu -esplendor, deixando, as­
sim, indeléveis recordações de uma como sôbre-humana
visão que fascina e arrebata.
"De índole mansa, serena de ânimo, eu a vi sempre
exata na obediência e no cumprimento do dever; antes,
estimulava-nos com o exemplo e com oportunos conse­
lhos, se o caso o requeresse.
"Sua profunda piedade se refletia no rosto e no tra­
to: mais do que uma criatura parecia um anjo diante

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do Tabernàculo, àonde ia prostrar-se nós momentos li­
vres, sempre disposta, porém, a truncar aquêles instan­
tes felizes, apenas a voz da obediência a chamasse alhu­
res. Mas é de imaginar quanta violência se devesse im..
por então, já que passando junto de alguma companhei­
ra lhe dizia: - Por que você não vai fazer companhia a
Jesus, tão sozinho? - E àquele convite nenhuma podia
resistir, dado o grande ascendente que Laura tinha sô­
bre as suas companheiras.
"Que dizer do seu espírito de caridade e de mortifi­
cação? Condescendente por natureza, secundava em
tudo a ação das Irmãs, que procurava ajudar. Empre­
gava os momentos livres para confortar as colegas en­
fêrmas, às quais levava alimentos e remédios; anima­
va-as, sugeria-lhes fervorosas jaculatórias e de boa von­
tade substituía a enfermeira .
"Numa palavra: Laura era uma menina completa:
violeta escondida, cujo perfume conquistava todos os que
dela se aproximavam. Gozava por isso das simpatias
gerais, e era considerada a amiga de tôdas as horas.
"Observei também na sua conduta muitos atos de
mortificação que tentava esconder e dissimular.
"Posso em conclusão dizer que Laura Vicufia era,
então, a mais bela flor da Missão and.ina em Junín."
Flor encantadora, sem dúvida, digna de ser trans­
plantada para os celestes canteiros . . . próximos.

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CAPÍTULO XIV

último Ano Escolar

No verão de 1903 nenhuma das superioras se afastou de


Junín para viagens a Santiago.
As férias transcorreram no repouso, na quietude, na
intimidade doce e serena da familia religiosa.
Tendo permanecido no colégio, Laura fruiu com as
irmãs e mais algumas companheiras a paz invejável da­
quele merecido respiro.
Embora delicada e franzina, sua saúde fôra sempre
boa, exceto aquêle inconveniente inicial, desaparecido
com o correr da idade. Todavia pelos fins de 1902 no­
tou-se um leve definhamneto em seu estado físico.
Estava muito crescida: tanto que parecia já uma
mocinha.
A assiduidade ao estudo tinha, por certo, contri­
buído para fatigá-la. As notas dos exames finais apon­
tam, mais uma vez, seus esforços e sucesso.s. Ei-las # Ca-

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tecismo. 10. Aritmética, 10. Geografia, 9. Caligrafia,
9. Desenho, 9. Ditado, 9.
Algo porém, havia, no íntimo de Laura que secre­
tamente a roía e consumia. O amor de Deus, a ânsia
de perfeição, as aflições corporais não deixavam de exer­
cer seu influxo numa criatura que vibrava como harpa
a qualquer imperceptível sôpro da graça.
Tôda atenta aos reclamos do mundo interior, Laura
não ligava importância ao crescente desgaste de sua na­
tureza fraca.
Mal incurável do seu espírito era a condição moral
de sua mãe. Rezava, chorava, oferecia penitências, im­
plorava piedade e misericórdia.
A só lembrança de Quilquihué a enchia de horrõr e
de espanto: entretanto sempre estava lá com o pensa­
mento, com o afeto, com a ternura de filha que se con­
some e se imola pela conversão da mãe.
Desde o dia em que se oferecera como vítima, a san­
ta menina, no dizer do P.e Crestanello, teve a persuasão
clara de ser atendida.A volta de sua mãe para Deus
Nosso Senhor valia bem o sacrifício de sua vida.
E o próprio P.e Crestanello observa, até, que a saúde
de Laura começou misteriosamente a ressentir-se pou­
cos dias depois da grande oferta; de modo que foi mesmo
necessário dispensá-la de alguns trabalhos manuais e
obrigá-la a alimentar-se melhor e a descansar mais.
Mas acrescenta. que Laura estêve em condições de "fi­
car" no colégio todo aquêle ano, 1902, e grande parte do

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(ao alto) - Junin dos And·es: as alunas do Colégio, alguns
anos depois da morte de Laura

(em baixo) - Uma procissão das Filhas de Maria,


já em época recente
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seguinte. Isso confirma que a oferta da vida foi feita
pela metade de 1902.

As férias de janeiro-fevereiro de 1903 pareceram re­


vigorar a saúde enfraquecida da menina, nos limites
dos doze anos.
Passeios, leituras amenas, conversas e longas ora­
ções tinham-se sucedido em repousante harmonia. O sol
quente e o ar rarefeito dos Andes lhe trouxeram, de vol­
ta, ao rosto redondo, o primitivo colorido e frescor, e
um brilho nôvo no sorriso costumeiro que lhe saltava
dos olhos. Parecia refeita. Só que algumas vêzes -
refere a Irmã Grassi - o seu olhar se velava de pranto.
Aquelas semanas de verão permitiram a Laura fre­
qüentar mais as superioras e mestras, a quem tanto bem
queria; e partilhar-lhes o gênero de vida e disciplina,
como se fôsse uma pequenina religiosa. Vem a pêlo uma
observação da Irmã Piai: "Laura demonstrava sempre
muito gôsto na récita das orações das alunas e das
Irmãs.
Estas, por sua vez, retribuíam o seu afeto e se con­
doíam da sua situação, ainda que ela, com prudente re­
serva, não acenasse às agruras que a afligiam.
A 1. 0 de março iniciou-se, como de costume, o ano
letivo.
Laura, embora prestando algum serviço em casa,
deveria seguir lições da Irmã Azócar, para completar, ·e

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d.e certa maneira coroàr, ó clirsó primário que em Juniri
abrangia um programa completo, pelo número de ma­
térias e praticidade de escopos, consoante à orientação
das escolas elementares argentinas e chilenas.
Nos desígnios da Providência aquêle ano escolar ia
ser o último para Laura.

* * *
Um grande acontecimento marca-lhe o início.
No mês de abril chegou a Junín a noticia que o
Papa Leão XIII, atendendo aos desejos do Venerável P.e
Rua, havia concedido a coro,ação de Maria Auxiliadora
no Santuário de Turim, por mãos do Cardeal Agostinho
Richelmy, seu Delegado. "O Vigário de Cristo - es­
crevia o P.e Rua no Boletim Salesiano de março - não
poderia dar à humilde Sociedade Salesiana mais que­
rido e m·ais comovente penhor de seu paterno afeto, e
justamente no término do ano jubilar (25.0 aniversá­
rio) do seu glorioso Pontificado. Para nós Maria Auxi­
liadora é tudo! "
Que N. Senhora fôsse de fato tudo na sua vida e no
seu apostolado, bem o sabiam os missionários da Patagô­
nia.
Ao primeiro grupo dissera D. Bosco em tom profé­
tico: "Sêde devotos de Jesus Sacramentado e de Maria
Auxiliadora, e vereis o que são milagres".
Junín de los Andes com os dois colégios e a evange­
lização da parte do sudoeste do Neuquén era uma prova
eloqüente.

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A notícia que a solene cerimônia se realizaria a 17
de maio, com a participação de D. Cagliero, represen­
tando seu Vicariato Apostólico e as Missões da América,
encheu de alegria as duas comunidades de Junín. Sale­
sianos e Filhas de Maria Auxiliadora sentiam os apelos
do Centro; recordavam com saudades o Santuário de
Turim, donde quase todos tinham partido para os ca­
minhos do apostolado; por isso não foi preciso muito
para se afervorarem e prepararem um programa de ade­
são às grandiosas celebrações da Casa Mãe.
º P.e Crestanello foi-lhe a alma com a palavra e a
·-
ação. Além de pintura, entendia também de escultura:
e ei-lo então - atesta a Irmã Azócar - às voltas com
o entalhe de uma modesta imagem de Maria Auxilia­
dora - em Junín havia apenas alguns "santinhos".
A mesma Irmã Azócar refere que, dada a grande pobre-
za e a enorme distância de outra casa do Instituto, pos­
suíam apenas um quadro de N. Sr.ª Auxiliadora, trazido
pela Irmã Piai na sua primeira viagem a Santiago.
Enquanto, pois, o P.° Crestanello cinzelava a efígie
da comum Rainha e Mãe, corria nos dois colégios um
alvoroçado fervor de práticas marianas.
Laura não foi segunda a ninguém. Amava apai­
xonadamente N. Senhora; orgulhava-se de suas insígnias
de Filha de Maria; e queria impetrar de sua clemência
a graça que mais lhe estava a peito: a volta de sua mãe
ao caminho certo.

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Flôres, mortificações, orações, foram o seu pão co­
tidiano.
A crônica nota a 15 de maio: "Começa a novena
de Maria Auxiliadora em honra de �ua gloriosa co­
roação."
No dia 17 não se registra nada. Mas com a mente
e o coração todos participaram do triunfo de Turim.
A manifestação externa foi adiada para o dia 24,
festa de Maria Auxiliadora. Na crônica diz-se lacônica­
mente: "Comunhão Geral. Missa cantada. Bênção
solene e uma bela "academia" (1); esta se realizou no
teatrinho dos salesianos com participação de autorida­
des, amigos e pais dos alunos e das alunas dos dol 3 co-
légios. Laura teve a sua parte, e multiforme, o que nos
faz imaginar os sentimentos com que terá vivido aquêle
dia histórico.
"Numa academia de maio de 1903 - lembrava mais
tarde a Irmã Piai - na presença das autoridades civis
e escolares de Junín, Laura leu com tanta graça e sua­
vidade uma composição sua à Virgem, que todo o pú­
blico ficou comovido.
"Não parecia uma menina de sua idade. Os pre­
sentes não chegavam a persuadir-se que aos doze anos
fôssem possíveis sentimentos tão ferventes e de tanta
gratidão, como aquêles expressos por Laura.

( 1) Sessão literãrio-musical (Aspas e nota do tradutor).

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"E entretanto, tão sómente seu coração ditava
aquelas palavras, sem esforças, e sem a guia ou as cor­
reções de quem quer que fôsse.".
Não há espantar-se: o veio da piedade mariana de
Laura tinha jorrado borbotões fresquíssimos como a
água st:rde das nascentes andinas: quem a conhecess-e,
não se admiraria.
Não sàmente, porém, na prosa ela brilhou.
No fundo do palco, entre pobres e escassos atavios,
campeava a estátua de Maria Auxiliadora trabalhada
pelo pe _ Crestanello. Meninos e meninas se sucederam
em porfia, com suas homenagens de poesia, de cânticos
e diálogos.
Laura executou um solo de D. Costamanha:

ó Maria, flor divina,


esplendor do paraíso;
tôda a alma a Ti se inclina,
ó Maria, flor divina.

Naquela modesta sessão estava presente também


D. Mercedes, maravilhada e comovida com os dotes e
sucessos da filha. Que contraste entre o candor virgi­
nal dela, tôda voltada para nobres ideais, e a sua cul­
pável e aviltante condição em Quilquihué!
1

Ao cantar com patético acento: tôda alma a Ti a


se inclina Laura deve ter sentido o coração estraça­
lhado pelo ctesmentido que vinha de sua mãe, e de olhar

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voltado para Nossa Senhora, há de ter implorado a tão
suspirada conversão.
1!:sse pensamento tomou-a e como que a transfigu­
rou, ao têrmo da função.
As Irmãs tinham preparado um quadro alegórico,
representando a glória da Virgem no Céu. Criancinhas
e meninas, em vestes de anjo, faziam coroa à Virgem
Santíssima. Laura foi colocada no alto, junto da estã­
tua. Com a mão trêmula apertava a mão poderosa da
Auxíliadora, em ato de amor, de oferta, de súplica.
Que dizer à sua Celeste Senhora naqueles instantes
fugazes, que deixaram em todos uma impressão para­
disíaca?
Ao descer do palco confiou à Irmã Azócar, ideali­
zadora da graciosa cena, que, enquanto segurava a mão
de Nossa Senhora, "lhe renovara a oferta da vida pela
conversão da mãe".
Agora outra aspiração não tinha senão o sacrifício.
* * *
Dois meses mais tarde, no meio do inverno - um
inverno frio e chuvoso - Junín de los Andes estava de
nôvo às voltas com a inundação.
A 16 de julho, pelas 6 horas da tarde, enquanto as
alunas estavam no salão de estudo, improvisamente as
águas do Chimehuín transbordaram, invadindo a vila;
e num átimo, pátio, salas, capela, tudo estava alagado.
"Em cinco minutos - conta a Irmã Piai - tivemos qua­
se um metro de âgua em casa.

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Imagine-se o pânico e a aflição das meninas. Tanto
mais que, ao surto das vagas lamacentas e no seu cho­
que violento contra o rodapé das paredes, as luzes se
tinham apagado. Naquela escuridão ouviam-se tão só
as batidas das portas, o surdo rumorejar das águas, que
pareciam engolir tudo, o chôro e gritos das meninas
espantadas.
Era como um fim de mundo!
Senhora de si, apenas percebeu o perigo, a Irmã
Piai mandou que as meninas fôssem para a cama, en­
quanto se providenciava um refúgio e salvamento.
A Sr.ª Felicinda Lagos de Espinós, madrinha de
Laura, que já na grande inundação de 99 acolhera as
Irmãs na sua casa de madeira, situada não longe do
colégio, em lugar mais elevado, porém, mandou logo um
índio oferecer novamente hospitalidade.
O problema era transportar Irmãs e meninas de
uma casa já inteiramente ocupada e circundada de água.
Resolveram chegar com um carro até à porta do colé­
gio e ir colocando nêle, uma a uma, as meninas, para
depois pô-las a salvo.
Levou a cabo a emprêsa o coadjutor salesiano
Eduardo Genghini, irmão do P.e Zacarias. Caminhando
com água acima do joelho, êle carregou nas costas.. uma
a uma, as alunas.
Que se passou no coração de Laura naquela hora
trágica? Pareceu-lhe ver de perto a morte, para cum-

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primento da grande oblação. Ao ser transportada para
a viatura, Merceditas ouviu-a exclamar com amargor:
- "Que felicidade para mim, ó Minha Mãe, se eu mor­
resse na tua casa! "
Quando tôdas as alunas se acomodaram no veículo,
êste se moveu lentamente, vencendo a duras penas a
fôrça da corrente. As Irmãs e as pessoas adultas deixa­
ram por últimas o colégio. Compreende-se por isso por­
que a Irmã Piai, afastando-se de suas filhas que a pre­
cediam à casa da Sr.ª Lagos de Espinós recomendasse a
Laura e a Mercedes Vera cuidassem das menores.
Foi então, na tétrica escuridão daquela noite inver­
nal, que Laura, enquanto ao redor rugiam as águas do
Chimehuín, disse a Merceditas: - "Entoe a loa: ''Sul­
cando o mar irad o!"
E a voz fraca daquele pávido pugilo de alunas, em
que refloriam a tranqüilidade e a confiança, cantou,
escandindo, palavras que pareciam de atualidade:

Sulcando o mar irado


de um mundo traiçoeiro,
ao porto suspirado
Quem nos conduzirá?

Maria, piedosa e bela,


do mar luzente estrêla,
Maria, esperança nossa,
Ela nos g_uiará.

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Laura não se desmentia: mesmo nas horas tristeN
e difíceis, seu espírito se ancorava em Deus e na con­
fiança ilimitada no auxílio e proteção de Maria San­
tíssima.
Na casa da Sr.ª Espinós alojaram-se todos, como pu­
deram, as Irmãs inclusive, que chegavam ensopadinhas.
Não houve vítimas, nem prejuízos de monta. Muito
mêdo, isso sim. E muita umidade. Mas não tardaram
a se esquentar, a retomar o bom humor, a se refazer.
Lá também se refugiou o P.e Crestanello, o qual nos
três ou quatro dias de inundação celebrava Missa em
casa, confortandp com sua presença e sua palavra.
A 20 de julho tudo tinha passado. Superioras e alu­
nas voltaram para o colégio, guardado dia e noite pelo
Irmão coadjutor Genghini, para evitar roubo e vanda­
lismo. Encontraram a casa sem avarias, mas inteira­
mente tomada de lama. Agradeceram a Deus e conti­
nuaram a marcha.

Alguns dias depois chegou a notícia da morte de


Leão XIII. Foi uma tristeza geral: todos se estavam
lembrando da recente coroação de Maria Auxiliadora,
feita em Turim, em seu nome e por sua delegação.
A 3 de agôsto a população de Junín, em pêso, com­
pareceu para o ofício fúnebre de sufrágio. A crônica
nota: "Comunhão de tôdas as Associações" Laura, co­
mo Filha de Maria, não pode te� faltado à devota home-

-217-
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nagem. Tinha um notável afeto ao Vigário de Cristo.
Também Zeferino Namuncurá se reservara, naqueles
dias, a tarefa de dobrar os sinos a finados, em sinal de
gratidão ao grande Morto "por ter mandado os salesianos
à Patagônia".
De 2 a 6 de setembro o costumeiro curso de exercí­
cios ·espirituais. Laura não estêve em condições de se­
gui-los como desejaria. Sua saúde parecia mais e mais
abalada, e começava a causar apreensões e receios.
Ninguém o queria imaginar, mas eram mesmo as
primeiras sombras da noite que desciam sôbre o duro
caminho da angélica menina, chegada aos degraus do
seu Calvário.
A inundação de julho, com suas peripécias notur­
nas, com aquêle frio e os incômodos influiu sinistramen­
te no físico enfraquecido de Laura.
Em agôsto seu rosto fizera-se pálido e macilento,
como flor que estiola . . . Caminhava a custo, quase se
arrastando; tosse implacável lhe sacudia o peitinho
débil, que em dados momentos parecia arrebentar-se.
As fôrças iam fugindo a olhos vistos.
Refere o P.e Crestanello: "Uma terrível consump­
ção, agravada por moléstias rebeldes a todo tratamento,
lenta, mas progressivamente, iam levando-a para o
fim; enquanto ela, convencida de que Deus lhe aceitava
a oferta, tudo suportava com edificante resignação".
As Irmãs fjcaram impressionadas e lhe prodigaliza­
ram cuidados maternos. "Estando eu encarregada de

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ordenhar as vacas - declara Francisca Mendoza - ser­
via-lhe leite fresco com mel". Laura aceitava por obe­
diência, como só por obediência ia deitar-se antes das
outras.
Em Junín, naqueles tempos, médicos propriamente
ditos não os havia. Um tal Sr. Cordiel abrira naquele
ano, ou pouco antes, uma farmácia rudimentar.
Parece que em S. Martín de los Andes morava um
médico, por conta da gu.arnição militar; e é de crer que
prestasse seus serviços nas cercanias. Mas não consta
que a tenha examinado, embora o P.e Crestanello registre
estas suas palavras que poderiam também referir-se ao
farmacêutico: - "Doutor, é à toa que o Sr. está usando
os seus remédios para me curar. Parece-me que se trata
da última doença. .Eu não saro mais".
Convém apresentarmos uma páginas da Irmã Piai
sôbre a paciência de Laura nos seus padecimentos.
"No tempo de sua permanência no colégio não me
lembra ter a menina pedido o que quer que fôsse que
lhe pudesse dar alívio.
"Espantava vê-la sempre alegre e sorridente, por
mais graves que fôssem os incômodos que a afligiam.
"Ao se lhe perguntar como estava, respondia co­
mumente: - Um pouco melhor. Obrigada!
"Sabia valorizar a dor, suportando-a com dissimu­
lação. Somente às pessoas com as quais tinha obriga­
ção manifestava seu sofrimento com candura e simpli-

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cidade, sem exageros ... e às vêzes concluía: - Quem
sabe se não é fraqueza de ânimo, minha doença.
Um dia o confessor lhe perguntou se estava real­
mente convencida do que dizia. Respondeu: - "Não
me parece que esteja fazendo de doente por preguiça;
mas se penso nos padecimentos sofridos por Jesus por
meu amor, compreendo que sou bastante covarde, não
suportando de boa vontade êstes meus pequenos incô-
modos. Tratada como estou, tenho mêdo que os cui­
dados dos outros acabem por me acostumar a excessivas
comodidades".

Seu precário estado de saúde - é verdade - não


a obrigava a ficar de cama continuamente. Andava de
cá para acolá pela casa; entretinha-se com as compa­
nheiras no pátio, e parecia dar desafôgo à piedade e
unção que sempre distinguiram suas conversas. Flôres,
plantas, animais, tudo lhe proporcionava argumento
para s.e elevar até Nosso Senhor e fazer bem ao próximo.
Havia tempo Laura confiara ao seu pai espiritual:
- "Parece-me que o mesmo Deus conserva viva em mim
a lembrança de sua presença. Onde quer que eu esteja,
na aula, no recreio, em tôda parte o pensamento de Deus
me acompanha, me ajuda e me consola".
"Se nos recordássemos freqüentemente - repetia
às companheiras - que Deus nos vê, quantos pecados
evitaríamos! Não seria preciso assistentes. Faríamos
tudo bem!"

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Eram os últimos lampejos da lâmpada bruxuleante.
Nos lábios de Laura naquelas últimas semanas flo­
rejava um ritorneio: Virgem do Carmo, levai-me para
o Céu!
A linda poesia mariana aprendida nos bancos esco­
lares tomava-se a mais doce e assídua oração. Laura
compreendia que não estava longe o ocaso, e o apressava
com a ansiedade do cansado peregrino divisando a meta.
A vida, sem atrativos. Os frêmitos e os sonhos ju...
venis, rotos - sublimados num ato de amor filial sem
paralelo.
Não desejava sequer ver o fruto da sua imolaçãÕ.
Se Deus a aceitasse, cedo ou tarde sua mãe haveria de
voltar à liberdade e à plenitude da vida cristã.
Uma graça ela anelava: terminar seus dias na casa
de Maria Auxiliadora, sob o seu manto, entre as suas
filhas.
Exilada, desde criança: sem teto e quase sem famí­
lia na infância e na adolescência, quando o coração pulsa
mais forte no anseio do amor, Laura tinha encontrado
no colégio de Junín um oásis de paz e uma arena de
santidade.
Não faltaram incompreensões da parte dos homens,
e provas da parte de Deus, que lhe dera um ideal para
lhe pedir depois o sacrifício dêle, e que às vêzes a fizera
passar pelo crisol da aridez, pela tritura das tribula-

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çôes: mas oihando para trás, para o quadriênio colegial,
a piedosa menina, humilde e grata, via que somente fôra
feliz, de uma felicidade que ninguém lhe podia roubar,
à sombra da Missão Salesiana de Junín.
Todavia, para que fôsse completo seu sacrifício,
também essa graça de morrer na Casa de Maria Auxilia­
dora lhe devia ser negada.

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CAPÍTULO XV

Para o Ocaso

O retiro espiritual de 1903 foi o último acontecimento


na vida colegial de Laura.
As meditações sôbre o fim do homem, a salvação
da alma., a morte, a misericórdia, o paraíso, rasgaram
uma fresta para a eternidade e a prepararam para o
grande passo. Laura o sabia, ·e não se embalava em vãs
ilusões.
Embora livre, então, de quaisquer trabalhos, e obri­
gada a tomar todos os cuidados que seu estado exigia,
compreendia que se ia aproximando do s�u fim, deva­
gar. O pensamento da morte não a amedrontava: pelo
contrário, tornara-se-lhe habitual, aumentava-lhe a es­
perança e ajudava-lhe a valorizar seu tempo no exercí­
cio das virtudes.
Também o P.e Crestanello, perscrutando no íntimo
os planos da Providência, tinha-se persuadido que o mal,

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um tanto misterioso, de Laura, constituía a resposta do
céu à oblação da vida pela conversão da mãe.
Nem por isso quis descuidar os conselhos da pru­
dência humana. E quando D. Mercedes, vindo visitar
a filha, expressou o desejo de levá-la a Quilquihué para
uma tentativa de repouso absoluto, não pôs obstáculos
na esperança que, com os cuidados maternos conseguis­
se a enfêrma a suspirada melhora.
Estava à porta a primavera, já desperta no reverde­
cer das árvores, no voejar e no chilreio festivo do pas­
saredo, na transparência das auroras e dos pores-de-sol
andinos. Por tôda parte, às doces carícias das brisas de
setembro, uma explosão de vida, uma efervescência de
energias escondidas. Por que, naquele triunfo da natu­
reza, na haste murcha de Laura não surdiam de nôvo
os rebentos como vergôntea ao encanto mágico do sol?
Para Laura foi um duplo sacrifício: deixar o suave
"paraíso" onde esperava fechar os olhos; e voltar para
a estância que lhe suscitava tristes memórias.
Sentiu o amargor do cálice que a mãe lhe ofertava
na vã ilusão de vê-la curada; pensou na triste solidão
de Quilquihué, onde lhe faltaria todo confôrto religioso;
disse cândidamente que tôda a mole de seus incômodos
não lhe pesava tanto como a partida do colégio de Ju­
nin: - "Se Jesus quer também isto de mim, seja feita
a sua amável vontade!"
Superioras e companheiras o sentiram também.
"Quando se soube que Laura, por motivo de saúde, aban-

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dotiava ó colégio - diz Francisca Mendoza - tõdas ti­
vemos um grande desgôsto, porque lhe queríamos bem".
A santa menina, nem mesmo naquela ocasião, se
desviou de su� linha. Certa de que sua vida marchava
para o ocaso, antes de deixar o Colégio quis ceder os
seus vestidos para uma família pobre de Junin.
Partiu para Quilquihué a 15 de setembro. "Como
sempre - nota a Irmã Piai - trazia un1 traje simples,
mas elegante para nosso pequeno m undo" Também a
Ir. Azócar nota que Laura, naquele dia, usava um ves­
tido roxo, modesto, mas bonito".
Que contraste entre o vermelho violáceo daquele
vestido e a palidez do rosto afilado e das mãos descar­
nadas de Laura!
No momento de tomar assento na caleça que a le­
varia à estância, agradeceu à Diretora tudo que por ela
tinham feito no tempo de sua educação, e de um modo
particular durante a doença; pediu perdão dos desgos­
tos causados e prom-eteu orações.
As companheiras que a fitavam comovidas até às
lágrimas, dirigiu um sorriso triste e afetuosas palavras
de adeus. E lá se foi pela estrada que desce para c·hi­
mehuín, como quem empreende uma viagem sem volta.
A Irmã Piai disse mais tarde, revocando aquela cena
de dor: Meu pensamento voou para Domingos Sávio:
pareceu-me que nos assistia razões de suspirar, como
D. Basco suspirava, quando viu afastar-se do Oratório o

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jovenzinho em quem depositara as mais belas esperan­
ças".
Que Laura estivesse madura para o céu, ninguém
o duvidava. Tôdas, porém, gostariam de acompanhá-la
e assisti-la até os umbrais da eternidade.
* • •

A chegada à fazenda não podia ser alegre. Dois


anos atrás tinha a menina partido de Quilquihué de
saúde flórida; voltava desfeita, como arbusto que a tor­
menta vergou.
Nada cordial, por sem dúvida, a acolhida de Mora:
não era homem para se comover com o sofrimento
alheio: muito menos com o de Laura que o enfrentara,
humilhando-o repetidamente nos seus insensatos inten­
tos. Seu rancor esperara sàmente o momento para ex­
plodir contra a heróica Filha de Maria, abatida no corpo,
mas invencível na fôrça e na resistência do espírito.
Parece, entretanto, que por então não a maltratou.
Quando muito alguma descortesia, alguma ironia amar­
ga, algum escárnio. Compreendeu, por certo, que a
permanência de Laura na estância não seria longa, e
esperou o momento de se ver livre daquela incompreen­
sível menina, aquêle estôrvo, que lhe causava sujeição
como tácito reproche, e que já então lhe parecia uma
flor murcha, indigna de um olhar.
Laura, cada vez mais cansada e abatida, suportava,
fechada na sua nobre reserva. A estada em Quilquihué,

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em vez de lhe infundir energias, lhe renovava e aumen­
tava as amarguras do coração.
Sofria com a falta da missa, da comunhão, do con­
fôrto que lhe vinha dos conselhos e dos encorajamentos
do confessor e das superioras. Mas, sobretudo, pela con­
dição abjeta e desgraçada de sua mãe, pela qual se esta­
va imolando, a desfolhar uma a uma as últimas pétalas
da sua existência de 13 anos ...
Na estância D. Mercedes não passava de um mise­
rável joguete nas mãos de Manuel Mora, que ora a aca­
riciava, como se acariciasse a crina de seus cavalos, ora
a cortava de chicote, como fazia com os novilhos e po­
tros rebeldes.
Fugir? Talvez já tivesse pensado nisso, nos úl­
timos tempos principalmente; mas lhe faltava coragem.
Refugiar-se aonde? Como cuidar de Júlia, que ia cres­
cendo ignara de tudo? E de Laura, doente, precisando
curar-se?
Muitas vêzes, durante suas visitas a Junín, Laura
lhe tinha docemente insinuado abandonar aquêle ho­
mem fatal, retirando-se na aldeia. Mas parece que nun­
ca lhe deu séria atenção. Tarde demais.
A pobre mulher assistia com melancólica tristeza
ao lento declínio da filha, sem compreender os secretos
ardores que a consumiam.
Contente por ter só de Deus conhecida e ace:ta a
oferta, a heróica menina guardava no coração o seu
arcano. Aceitava com reconhecimento as carinhosas

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atenções da sua mãe, dobrava-se dàcilmente aos seus
desejos, e em certos momentos a fitava com ternura
infinita, pensando no bem de sua alma.
D. Mercedes, embora se desfazendo em amor ma­
terno, não estava em condições de compreender. Co­
nhecia a filha: aquela filha que jamais lhe dera um
desgôsto; mas não chegava a ler na sua luminosidadg
interior que a ofuscava.
Juntas, lado a lado, como ·em tantas circunstâncias,
mãe e filha estavam longe, dessemelhantes, quase em
contraste. Parecia que um abismo tirava tôda espe­
rança de aproximação no plano da graça.
Essa foi a agonia, para não dizer o martírio, de
Laura no fim de sua vida.
A exemplo de S. Margarida Redi, padecer e sofrer
foi a sua divisa.
* * *

A demora em Quilquihué durou da metade de se­


tembro ao comêço de novembro sem que houvesse me­
lhora para a pobre doentinha.
Os dias andavam-se esquentando, -e um frêmito de
vida, como onda de sangue nôvo, invadia a natureza,
mas debalde Laura vagava pelos campos, entre os pi­
nheiros e debaixo dos balsâmicos eucaliptos que orla­
vam a estância.
Nem o ar puro, nem o sol que investia contra os
Andes, nem os recursos campestres que abundavam na
casa de Mora lhe restituíam a saúde perdida.

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A experiência não dava resultado e precisava pen­
sar -em outras soluções para o delicado problema.
Dona Mercedes, impressionada com a evidente pio­
ra, decidiu transferir-se com as filhas para Junín, a
uma casinha de aluguel. Ou melhor: Júlia voltou inter­
na com as Irmãs, e na tal casinhola, que não passava
- segundo os testemunhos - de um ranchito, isto é,
um paupérrimo casebre de duas peças, f cito de "palha
e barro" e que ficava pertinho do Colégio, se acomoda­
ram, como puderam, D. Mercdees e Laura, satisfeitas
e contentes. Laura se alegrava com a perspectiva das
vantagens espirituais que Junín lhe proporcionava;
Dona Mercedes com a assistência médica, falha total­
mente na estância.
A enfermeira, Irmã Marieta Rodríguez, atesta: "A
Mãe levou de nôvo Laura para Junín a fim de poder
ser mais atendida". A Irmã Piai, por sua vez, escreve
que D. Mercedes conseguiu passar temporàriamente em
Junín "com o pretexto de consultar um entendido em
medicina - certamente o farmacêutico Cordiel - che­
gado de pouco naquelas bandas".
As testemunhas se equivocam sôbre o valor da pa­
lavra médico. :m de crer que Laura não tenha tido ne­
nhum propriamente dito; terá sido tratada por algum
curioso mais ou menos apto a diagnosticar seus males
e a lhe sugerir remédios apropriados.
Uma coisa é certa e providencial: o desejo de ga­
rantir para a enfêrma uma forma, mínima embora, de

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assistência sanitária, reconduziu Laura a Junín, para
terminar na quietude e na paz os seus dias, ·e ter a sua
sepultura no meio dos que a admiravam por suas excep­
cionais virtudes.

* * *

"O primeiro pensamento de Laura - diz o P.e Cres­


tanello - foi uma visita ao Santíssimo Sacramento e
à sua Mãe Celeste". Depois da Capela dos Salesianos,
evocadora de tantas recordações, passou ao Colégio de
Maria Auxiliadora para cumprimentar Superioras e
companheiras. Pareceu-lhe renascer e sentir-se nova­
mente no calor da sua família de eleição.
Entanto ia-se aproximando o mês das flôres. "Pre­
vendo - observa ainda o P.e Crestanello - que para
ela seria êsse o último, dispôs-se a celebrá-lo com todo
o fervor, a fim de se preparar para o grande sacrifício".
Naqueles dias esplêndidos de novembro, enquanto
o mal fazia os seus inexoráveis progressos, quantas vê­
zes Laura não folheou seu manual de Filha de Maria,
para repetir à Virgem as orações mais bonitas. A reno­
vação mensal da consagração terminava assim: "Oh!
Sêde em tudo e sempre a nossa Mãe. Sêde propícia no
curso da existência; mas sobretudo não nos abandoneis
na hora da morte, a fim de que, depois de vos havermos
honrado e servido fielmente na terra, tenhamos a ven­
tura de estar tôdas reunidas convosco, para convosco
gozarmos a eterna felicidade". Laura saboreava aque-

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las expressões, e deixando os olhos perderem-se no azul
do céu, sonhava o encontro com a Rainha do Paraíso.
"Fôra sempre muito cuidadosa - insiste o P.e Cresta­
nello - nas homenagens a Nossa Senhora, sempre fer­
vorosa em amá-la e fazê-la amada; nunca, porém, com
a intensidade daquele último mês mariano.
"Ainda hoje - escrevia o P.e Crestanello seis- anos
depois - as colegas recordam êsse seu ardor. Pôsto que
já muito doente, procurava aproximar-se com freqüên­
cia da comunhão; fazia visitas ao Santíssimo Sacra­
mento e assistia quase todos os dias à função vesper­
tina".
A loa "Oh! Vinde e vamos todos fremia, recordan­
do-se das flôres dos anos precedentes que agora não po­
dia fazer tão numerosas.
...
Júlia Cifuentes, lembrando que costumava ir bus-
cá-la para acompanhá-la à igreja, afirma: "Muitas vê­
zes a encontrei ajoelhada sôbre pedrinhas". Acrescenta
além disso que D. Mercedes descobria pedacinhos de pau
debaixo do travesseiro, e que sofria muito, vendo-a pio­
rar cada vez mais.
De sua parte Leonardo Cifuentes, irmão de Júlia,
depôs com juramento: "Minha irmã me contou que a
Serva de Deus costumava colocar pedrinhas sob os joe­
lhos para conseguir as graças que mais lhe estavam a
peito, e que às vêzes usava pedaços de madeira como
travesseiro. . . Também ouvi de várias pessoas que ela
rezava muito pela mãe".

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Nem bastavam para afastar Laura de suas peni­
tências os sorrisos e os ditos burlescos das companhei­
ras. Respondia-lhes em tom pacato e refletido: "É
preciso que a gente ofereça sacrifícios a Deus pela sal­
vação das almas!''
As vêzes, na sua leviandade juvenil, ao convite de
Laura que a exortava a se imolar pelos outros, Júlia
Cifuentes chegou a exclamar: - "Olhe cá, os meus
sacrifícios -eu já fiz, você que faça os seus!" Laura a
corrigia amàvelmente, tentando meter-lhe na cabecinha
a beleza de uma mortificação feita por amor de Deus;
mas sem nenhuma confidência sôbre sua mãe.
Sómente mais tarde compreendeu a jovem o subli­
me heroísmo da sua colega. Pôde, assim, Leonardo Ci-
fuentes referir: "Tôdas as vêzes que minha irmã fala
da S-erva de Deus Laura Vicufia, fá-lo com palavras de
justo encômio. Exalta seu procedimento e suas virtu­
des, e repete que era uma santa".
Santa consideravam-na as outras companheiras
também, internas e externas, do seu colégio, onde ia
freqüentemente passar algumas horas de alívio. - "Co­
mo seremos felizes no céu com Jesus e Maria - lhes
dizia - se os servirmos na terra! Procuremos ser boas
em vida; Jesus e Maria nos hão de salvar. Peçamos-lhes
que não nos abandonem!"
Falava a bôca da abundância do coração: - o co­
ração de Laura andava che:o de Deus.

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"Cada vez mais persuadida - diz o biógrafo - de
que a morte se avizinhava a grandes passos, entregara­
se inteiramente à oração e à meditação". - "Já que
não posso trabalhar, e estou tão perto do fim - con­
fidenciava - é justo que reze muito por mim e pelos
outros, para que Nosso Senhor a mim me dê paciência
no sofrimento de minhas dores, e aos outros conceda a
sua santa graça".
Embora não houvesse exclusões, "os outros" para
Laura eram a sua mãe.
A digna Filha de Maria, à medida que o sol des­
cambava no horizonte de sua vida, e a luz incerta do
crepúsculo envolvia os dias derradeiros, não cessava de
pelejar o grande combate que travara e que lhe dava
horas de arroubo e de imensa confiança.
O afastamento momentâneo de Quilquihué era· para
sua mãe um arranco casual na corrente que a agrilhoa­
va a Mora; com o auxílio de Deus e da Virgem bem po­
dia marcar o início feliz da liberdade. Que mais se
precisaria para que a separação da estância se tornasse
decisiva, e a alma de sua mãe pudesse voltar a Deus?
Rezando, mortificando-se, repetindo a todo instan­
te a sua oferta, Laura confiava no triunfo da divina mi­
sericórdia. Mas com heróica prudência calava-se ainda,
e quase h.àbilmente escondia a razão profunda e secreta
de sua lenta imolação.

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CAPÍTULO XVI

Derradeira Batalha e
últimas Despedidas

Do mês mariano de 1903 a crônica do Colégio Maria


Auxiliadora ressalta: "Foi muito solene"; e da festa do
dia 8 de dezembro lembra: "Comunhão geral, Missa
Cantada". As solenidades do grande dia Laura não po­
dia faltar; ocorria o segundo aniversário da sua aceita­
ção entre as Filhas de Maria.
Os exames daquele ano se fizeram depois do Natal.
Mas, segundo a crônica, sempre muito concisa, "não se
distribuíram prêmios". Talvez não os houvesse.
Laura, evidentemente, não tomava mais parte na
vida escolar do colégio. Não só, mas até sua presença
entre aquelas paredes, naquelas salas, - seu mundo por
um quadriênio, - ia mais e mais rareando.
Custava-lhe ficar de pé e caminhar; a conversa a
cansava; por isso saía cada vez menos, e quase tão sà­
mente para se dirigir à vizinha capela dos Salesianos.

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Ninguém nos dirá do ardor inflamado dos últimos
entretenimentos com o Hóspede silencioso do Taber­
náculo. A doente não retirava nada dos seus juramen­
tos e das suas ofertas; não pedia o dom da saúde; só
uma graça implorava: a conversão da mãe: um início
para ela de vida nova, longe de Quilquihué.

* * *

No alvorecer de 1904 - ano cinqüentenãrio da de­


finição dogmática da Imaculada Conceição de Maria -
as fôrças de Laura pareciam ter chegado ao fim. A
moléstia fatal que a corroía tinha terminado o seu tra­
balho: não restavam senão as últimas e débeis espe­
ranças para derrocar.
"Devorada por uma febre que não a deixava - es­
creve o P.e Crestanello - Laura saía ainda, vez por
outra, amparada pela mãe, mas sàmente nas horas fres­
cas do dia, para respirar um pouco de ar (de que tanto
precisavam seus pulmões).
"Caminhando devagar, rosto magro e afilado, a en­
fêrma causava dó a quem parasse para vê-la".
Pobre Laura! Não era mais a ágil e graciosa me­
nina de um tempo. A frescura e o encanto daquela
criança frágil tinham ruído aos embates do mal. O P.e
Crestanello fala de um leve sorriso nos lábios, índice
aloqüente e certo "de sua perfeita sujeição à vontade
divina".

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Permanecia também a profundidade daquele olhar
tristonho e pensativo: nêle ardia, para quem soubesse
lê-lo, tôda inteira a sua alma pronta ao sacrifício.
No pov0ado todos a conheciam, e se apiedavam dela
e de sua mãe. Era por demais conl1ecido Manuel Mora
para não se falar dêle e dos seus maus tratos com am­
bas. E até, vendo Laura assim tão abalada na saúde,
havia gente que ousava apontá-la como vítima das pan­
cadas brutais do rico estancieiro.
Tratava-se mais de funesto presságio do que de
grave realidade. De fato, o prolongamento da perma­
nência de D. Mercedes em Junín deu motivo a uma cena
desagradável e selvagem que levou Laura à beira do
túmulo, abreviando-lhe os poucos dias restantes.

Uma tarde, pela metade de janeiro, Mora apareceu


na vila. Não era a primeira vez naquelas semanas: e a
Irmã Piai o compara à ave de rapina, de olhos presos
na vítima.
Queria bancar o mandão, como na estância, tanto
que pretendeu passar a noite naquela casinhola, onde
Laura consumava a sua oblação, transformando cômo­
dos baixos e enfumaçados num vestíbulo do céu.
D. Mercedes ficou aflita e tentou opor-se. Mora
insistiu, prorrompendo em palavrões, xingamentos e
impropérios. Arremeteu principalmente contra a "san-

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tinha", que uma vez mais se lhe atravessava no cami­
nho, e a cobriu de insultos.
Dos acenos da Irmã Piai se deduz que entre as duas
partes em conflito se acendeu uma daquelas violentas
altercações que faziam lembrar as horas negras de
Quilquihué.
Branca como cera à vista do homem que sempre
lhe causara mêdo, e que ousava tirar-lhe o direito de
morrer em paz, Laura não se desnorteou. Se o corpo
cedia aos ataques do mal, o espírito, fortificado pela
oração e pelo sofrimento aceito de ânimo sereno e ale­
gremente, estava mais forte do que nunca, e de modo
algum suportaria os vexames do homem.
Refere a Irmã Piai que pelo fim da borrascosa con­
tenda, percebendo, talvez, que a mãe se rendia, ou que
a insolente audácia de Mora não aceitava razões, Laura
prorrompeu nestas palavras: - "Se êle ficar, eu vou
para o colégio, com as Irmãs!" E sem mais, recolhendo
num supremo esfôrço as últimas energias, levantou-se,
saiu para fora e se encaminhou penosamente para o
colégio.
Como uma hiena, de um salto o celerado estanciei­
ro se atirou s.ôbre a menina; agarrou-lhe o braço, deu­
lhe tamanho puxão, capaz de arrancar uma planta; e
começou a bater-lhe.
Laura - diz a Irmã Piai - tentou em vão desven­
cilhar-se; e por cima a intervenção da mãe só serviu
para nova pancadaria e palavrões de inferno".

- 2·38 -
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Impedindo Laura de ir para o colégio, Mora - se­
gundo a Irmã Piai - tencionava evitar tôda publicidade
naquele momento. E ao revés, a corajosa firmeza da
doente envergonhou-o diante da vila inteira.
A Sr.ª Felicinda Lagos, madrinha de Laura, que
por acaso se achou no término daquele cruel espanca­
mento, "com seu prestígio - nota ainda a Irmã Piai
- conseguiu impedir males maiores". O fato é que,
daquela noite em diante, Laura, abatida pelo pavor e
maus tratos, "não se recuperou mais".
O P.e Crestanello também, que nesse ponto é menos
explícito e menos informado, afirma sem rodeios que
naquela dolorosa circunstância Laura foi "impiedosa­
mente surrada" sem que de seus lábios fugisse "uma só
palavra de queixa". Quem lhe referiu o fato, comen­
tava com as lágrimas nos olhos: - "Naquela noite
admiramos, uma vez mais, a virtude da nossa amiga.
Não há dúvida que era uma santa!"

Enquanto Mora, derrotado e desiludido no último


choque com a indômita Filha de Maria, esporeava o ca­
valo de volta para a estância, forjando em sua mente
exaltada sabe lá que planos de desforra, que jamais
executaria, Laura, contente com a vitória, mas exausta
de fôrças, punha-se de cama certa de que não mais se
levantaria.
Naquela noite, e nos dias seguintes, todo o povoado
se encheu do desagradável acontecimento. O ânimo

- 239 -
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perve1·so é á maivadeza de Mora, põsto qtie suscitando
por tôda a parte condenação e desdém, não causavam
maravilha: eram conhecidos seu caráter e suas afrontas.
Espantavam, sim, como fatos novos nos Andes, a pure­
za virginal de Laura, que detestava só a sombra e o
bafo pestilencial do mal, e a fortaleza com que soubera
resistir e triunfar de um audaz prepotente, qual era o
senhor de Quilquihué.
Tocavam-se com a mão os frutos da educação cristã
e se exaltava a menina de apenas treze anos, aluna do
Colégio Maria Auxiliadora como uma heroína.
Daquele dia ·em diante seu quarto assistiu a uma
procissão contínua de companheiras, conhecidas e ami­
gas, que chegavam com admiração e com veneração
àquela caminha em que ela, cândida hóstia, se imolava
em sacrifícios pela salvação de sua mãe.
A recente impudência de Mora persuadia a enfêr­
ma: somente um milagre da graça poderia arrebentar
as cadeias de sua mãe, dando-lhe a liberdade dos filhos
de Deus.
Natalina Figueroa, referindo-se às visitas daqueles
dias, escreve: "Nas suas dores, plenamente resignada
à vontade de Deus, Laura nada mais desejava senão que
sua mãe se afastasse do homem que a maltratava ...
por is� suplicava-lhe: - Peço-lhe que abandone êsse
home1n!"
Também Sabino Cârdenas ouviu-a repetir que ofe­
recia a Deus seus padecimentos para que sua mãe "fi­
casse livre" de Manuel Mora, "e pudesse salvar a alma".
- 240 -
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� conta até um fato digno de atenção: um daqueles
fatos que ficam gravados na memória de um adolescen­
te, não obstante o passar dos anos. Um dia - talvez
dep
· ois da insolência d�: Mora - vendo que a vida de
Laura marchava para o fim, o P.e Crestanello, que não
deixava de visitar freqüentemente a enfêrma, convi-
dou-o, e a outros rapazes, a fazerem com um poncho;
uma espécie de padiola para levar Laura "ao colégio".
Trata-se certamente do colégio masculino, Ceden­
do, talvez, às insistências da doente, ou mesmo por sua
iniciativa, o ótimo diretor espiritual, como verdadeiro
pai, quis assim dar a Laura oportunidade êJe se achar
uma última vez na igreja, diante do tabernãculo, para
o supremo adeus.
Não se saberia imaginar outro motivo para o sin­
gular ato de caridade que permitiu a Sabino Cárdenas
colhêr dos lâbios de Laura as ardentes aspirações de seu
coraçao.
Eram sempre as mesmas, acrescidas talvez com o
encarniçar-se da luta e a aproximação do fim.
Adeus, igrejinha, testemunha solitâria de fervores,
de oblações, de imenso padecer! - Deve ter pensado
Laura ao ser transportada novamente para a casa.
Adeus, colégio, asilo de paz, de serenidade, de ale­
gria; escola de virtude e de perfeição!
Adeus, montanhas, de píncaros furando o céu, bran­
cas de neve imaculada, como o sublime ideal da Fllha
de Marial

- 241-
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Adeus, alpestre vilarejo de Junín, lugar de exílio,
oásls de graça, obscura morada de apóstolos! Adeus!
Nunca mais t-e verei!
É o P.e Crestanello quem diz que nas últimas saídas
Laura "ia-se despedindo de tudo que lhe estava ao re­
dor" já então pressagiando a morte próxima.

* • •

Mais íntimo o adeus às companheiras de escola e


às outras Filhas de Maria que iam fazer-lhe companhia
e assisti-la. "Enquanto - escreve o P.e Crestanello -
se comovia com tantas demonstrações de afeto, e se
mostrava reconhecida com tôdas, aproveitava aquêles
momentos para inculcar (como sempre fizera) o amor
de Deus, a devoção a Nossa Senhora, o horror ao pecado,
a caridade fraterna".
A Irmã Maria Vera depôs: "Visitei-a na sua últi-­
ma enfermidade. Posso dizer que suportava as suas
dores pacientemente e que sua conversação tratava de
coisas espirituais".

Não é que tivesse longos discursos: a febre, o can­


saço e a respiração, cada vez mais lenta e afanosa, lho
impediam. Limitava-se a alguma palavra e breves ex­
pressões que, entretanto, tinham o valor e a fôrça de
um testemunho. Declara, de feito, Claudina Martínez:
"Visitei Laura alguns dias antes de sua morte. Falava
pouco. Suportava tudo. Não se queixava de nada".

-242-
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Josefina Ferré, por sua vez, recorda ter discutido
no quarto de Laura com uma companheira. "Laura -
diz - pareceu reanimar-se, quis que a companheira e
eu nos déssemos as mãos e nos perdoássemos mutua­
mente". E, segundo a narração que o P.e Crestanello
nos traz dêsse fato, sentenciou: - "É preciso que vocês
saibam compadecer-se e perdoar uma à outra as pró­
prias faltas, querendo-se bem como boas amigas".
Mesmo do leito de morte continuava Laura a ser
apóstola de fraternas correções e de santos conselhos.
Por isso - conclui Francisca Mendoza - "tôdas as me­
ninas do lugar iam procurá-la com sentimento de ve­
neração, considerando-a uma pequenina santa".

* * *

Num daqueles dias, entre 15 e 18 de janeiro, a me­


nina pediu à mãe que chamasse o P.e Crestanello, por­
que desejava confessar-se.
- "Padre - disse-lhe ao vê-lo entrar - não me
levantarei mais. Espero ir logo ver Jesus e Maria. Qui­
sera confessar-me para melhor me dispor ao grande
passo".
"Confessou-se - narra o biógrafo -; e, no dia se­
guinte recebeu a santa comunhão, durante a qual re­
novou seus propósitos e a oferta da vida por sua mãe",
que ainda não se dava conta exatamente do que acon­
tecia debaixo de seus olhos. Talvez intuísse, mas não
queria persuadir-se.

- 243-
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No dia 19, às dores de Laura se ajuntaram vômitos
tão violentos que faziam crer pudesse falecer da um
momento para outro.
Nesses instantes - declara o P.e Crestanello que
perm-aneceu quase todo o dia à cabeceira de Laura -,
quando o mal a atormentava mais duramente, unindo­
se aos sofrimentos de Jesus Crucificado, "murmurava
jaculatórias que arrancavam lágrimas aos presentes"
- "Ah! Padre - disse-lhe num momento de tré­
gua - quanto sofro!"
- "Eu o sei, minha filha - respondeu o P. e Cres­
tanello -; coragem, porém. Jesus te recompensará de
tudo. Lembra-te das graças que Lhe pedes! Invoca
Maria Auxiliadora e Ela te ajudará a sofrer com paciên­
cia e amor".
- "Sim, eu sofro contente. Meu único desejo é o
de contentar a Jesus ·e Maria. Queira Deus possa con­
segui-lo!"
O Senhor queria que a doente bebesse o cálice da
amargura até a última gôta.
Naquela tarde, ou mais provàvelmente no dia se­
guinte, visitaram-na também a Diretora, Irmã Piai, e
a Irmã Azócar. Foi uma alegria momentânea, porque
da visita soube Laura que as Irmãs estavam na iminên­
cia de partir de viagem com o P.• Cres-tanello para San­
tiago do Chile.
- "Meu Deus, - exclamou Laura - devo então
morrer sem que esteja ao meu lado nenhum dos que me

-244-
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podem ajudar? Ah! Jesus meu, quanto é duro! ....
Cumpra-se, porém, a vossa vontade!"
Todos a animaram, prometeram-lhe orações e o
P.e Crestanello lhe assegurou que o Padre Genghini ha­
veria de assisti-la no seu lugar até o último instante.
- "Se assim quer Jesus - murmurou a enfêrma
- também eu o quero. Mas o Sr., Padre, não ,deixe de
rezar por mim, para que persevere até o fim e salve
minha alma!''
Depois, voltando-se para a Diretora, que tinha sem­
pre considerado como a segunda mãe terrena, e em cujos
braços esperava morrer no aconchêgo, acrescentou: -
"Só a verei no céu! Mas falarei da Senhora a Maria
Auxiliadora: dir-lhe-ei todo o bem que me fêz!"
O P.e Crestanello, a Irmã Piai, e a Irmã Azócar
sentiram um nó na garganta, e mansamente se retira­
ram daquela casucha de barro, louvando a Providência
que havia premiado os seus esforços e sacrifícios, muito
além de todo o mérito e além de tôda a expectativa.

- 245 �
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CAPITULO :X:VII

Triunfo de Graça e de Glória

Aquêle 21 de janeiro encontrou Laura em estado de


grande prostração.
A repetição dos vômitos lhe impedia a recepção da
Sagrada Eucaristia e fazia-lhe temer a morte sem a
graça do Viático. As companheiras que a assistiam,
havia dois dias tinham começado um tríduo a Nossa
Senhora para a suspirada graça. - "Se não fôr hoje, -
diziam-lhe - será amanhã".
A ocorrência da festa de Santa Inês, padroeira das
Filhas de Maria, não passou despercebida à enfêrma,
que - segundo testemunho de Claudina Martínez -
tinha ante os olhos entrelaçada em forma de M, aos
pés do leito, a sua fita celeste com a medalha da Ima­
culada.
Terá pensado Laura naquele dia que ela era dn
ª
mesma idªge qu� virge:m e mártir de Roma, de qucrn

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era tão devota? Invocou-a para que a ajudasse a al­
cançar a volta de sua mãe para Deus? Rezou para que
ela a auxiliasse no derradeiro prélio que já se anuncia­
va? Não há dúvida. Também Laura morria em holo­
causto de amor, colhendo a dúplice palma de incontami­
nada pureza e de incruento sacrifício: ·e não parecia
mera casualidade que o ocaso da heróica Filha de Maria
dos Andes Patagônicos viesse quase coincidir com a fes­
ta litúrgica de sua celeste padroeira, de quem, a dis­
tância de séculos, renovara a gesta num recanto perdido
do mundo.
Naquele dia ocorria também o quarto aniversãrio
da entrada de Laura no Colégio Maria Auxiliadora de
Junín. Quantos favores tinha-lhe o Senhor concedido
num giro de poucos anos! Quanta predileção da parte
da Virgem Santíssima, de quem era e queria conservar­
se filha!
Embora em meio de atrozes dores físicas e morais
que a estraçalhavam, consumindo-a, sentia-se a doente
feliz e tranqüila. Tinha pelejado as suas batalhas: Não
haveria o Senhor de faltar com o galardão.
* * *
Naquele dia Laura quis junto de si Júlia Amandina,
para as últimas lembranças. É bom transcrevê-las da
vida do P.° Crestanello.
"Minha irmã, peço-lhe que tenha muita caridade
e paciência com a mamãe. Procure não lhe dar desgos�
tos� e t:rate-a sempre com grande respeito.

� 248 .....
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"Seja humilde e obediente com ela; não a abandone
nas necessidades. Mesmo que Deus chamasse você para
outro estado, não a ·esqueça.
"Seja também afável e caridosa com o próximo.
Não despreze os pobres; não trate os outros com frieza;
assim você terá a estima de todos''.
"Júlia querida, não se esqueça dessas recomenda­
ções de sua irmã que está próxima a separar-se de vo­
cê! . . . Nós nos tornaremos a reunir no céu ..."
"Não pôde continuar - nota o P.e Crestanello -
porque a comoção lhe sufocava as palavras na garganta,
enquanto Júlia Amandina com o rosto entre as mãos
debulhava-se em lágrimas".
Estavam todos admirados do domínio de si que a
doente mostrava, da sua calma, do seu zêlo, da fineza
de alma; do -espírito sobrenatural que animava tôdas
as suas palavras, seu respiro, as palpitações do coração.
Saíam do quarto edificados, recolhidos, pensativos,
como se sai de uma igreja, depois de um sermão como­
vente. E exclamavam: - "Pobre menina, como sofre!
Tão boa e ter de morrer tão criança!''
* * *
A noite cessaram os vômitos, de modo que na ma­
drugada de 22 de janeiro, que devia ser o último dia
da vida terrena de Laura, a pobrezinha "reduzida a
pele e osso - no dizer de Francisca Mendoza - mais
parecendo um esqueleto", pôde receber a Santíssima Eu­
Ç�fiªt� çomo Viático.

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Enquanto o P.• Crestanello, a Irmã Piai, a Irmã
Azócar, a Irmã Grassi e a mencionada Francisca Men­
doza, aos primeiros albores do dia se encaminhavam
para a fronteira, enviando um •extremo adeus à mo­
ribunda e invocando sôbre ela a proteção do céu, o P. 0
Genghini, de forma absolutamente particular, pois eram
as cinco da manhã, levou-lhe a Santa Comunhão.
De rosto afogu·eado de amor a enfêrma recebeu pela
última vez o Redentor da sua alma. O Amigo Divino
de tantas horas inesquecíveis de céu vinha selar e su ..
blimar o voluntârio sacrifício de expiação e de propi�
ciação que ela oferecia por sua mãe; e dar-lhe ao mesmo
tempo o penhor seguro da eterna glória que estava para
despontar sôbre a haste truncada da sua cândida exis­
tência.
"Eu - conta o Padre Genghini - fiquei ao seu
lado para ajudá-la na ação de graças. Vi logo, porém,
que não precisava, tão grande era seu fervor e recolhi­
mento".
Na sua Primeira Comunhão Laura tinha suplicado:
"Meu Deus, dai-me uma vida de amor, de mortificação,
de sacrifício! "
Deus Nosso Senhor a tinha ouvido. Não ll1e res­
tava senão pronunciar naquele último encontro de sua
alma com o Cristo o suscipe do abandono inteiro e su­
premo à sua vontade.

* * *

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Durante a manhã, como o mal se agravasse, o P.e
Genghini não hesitou em administrar a Extrema Unção.
Laura seguiu as cerimônias com mente lúcida, respon­
dendo às orações rituais. Depois adormeceu. De quando
em quando, porém, como acordando, repetia baixinho
jaculatórias, fazia atos de amor e de conformidade à
vontade de Deus.
Comp-anheiras e amiguinhas desfilavam, quase em
ponta de pé, para vê-la ainda uma vez ·e dar-lhe ainda
um adeus.
Ela se esforçava para sorrir e sussurrar uma pala­
vra a tôdas. A Josefina Ferré, que parecia sentir mais
do que as outras o golpe da separação, disse: - "Cora­
gem! Queira muito bem a Jesus e a Maria e você estará
contente na hora da morte!"
Para estar completamente feliz na hora da morte
só uma coisa lhe faltava: ver o triunfo da graça no
coração da mãe.
D. Mercedes ia e vinha no quarto de Laura, olhava,
e se aproximava da filha com imensa dor no coração,
prestava-lhe todo o cuidado, mas parecia vítima de uma
estranha agitação. O P. 0 Genghini que a observou o dia
inteiro não titubeia em afirmar que ela não estava
tranqüila e que às vêzes parecia evitar os olhares da
filha, como se lhe temesse as últimas palavras.
Essa filha, tendo-lhe, embora, dado grandes provas
de amor, apagava-se sem ver quebrados seus liames com
l\íanuel Mora.

- 251-
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Talvez na mente de D. Mercedes fulgurasse, como
espada de fogo, o pensamento da tremenda realidade:
que Laura morria por ela, para impetrar-lhe de Deus
a graça tantas vêzes rejeitada da volta à vida cristã;
mas ela o afastava como um pavoroso fantasma, e es­
piava todo movimento da doente a seu respeito, por mê-­
do de ouvir a trâgica revelação.
Também Laura sentia uma angústia na alma. Ti­
nha calado por tanto tempo, escondendo de sua mãe o
seu terrível segrêdo. Mas agora, com um pé na tumba,
não era o caso de revelá-lo? E se fôsse aquela, justa­
mente aquela, a hora de Deus?
Pela tarde foi-lhe também fazer uma visita o clé­
rigo salesiano Félix Ortiz, que se achava no colégio de
Junín por motivo de saúde.
Seis anos depois, já sacerdote, êle assim revocava
suas lembranças num jornal de Viedma:
"Também eu fui visitar Laura.
"O rosto pálido, os olhos encovados davam a im­
pressão que o anjo da morte já lhe tinh& estampado o
gélido ósculo sôbre a fronte.
"Sorriu ao ver-me chegar; pareceu reanimar-se; e
tomando nas mãos a estatueta de Maria Auxiliadora
que eu lhe tinha levado alguns dias antes, disse-me com
um fio de voz: - É Maria quem me dá fôrça e alegria
nestes momentos.
"Aproximei-me da cama, e depois de algumas per­
guntas sôl:)re as suas condições - perguntas às quai&

- 252 �
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re!pondeu com serenidade que nada mais desejava senão
o divino beneplâcito - eu quis saber o que mais a ale­
grava naqueles difíceis momentos.
"Sempre sorridente Laura me sussurrou ao ouvido:
- o que mais me consola nestes momentos é ter sido
sempre devota de Maria. Oh, sim! Ela é minha Mãe...
é minha Mãe!... Nada me põe mais feliz do que pen­
sar que sou Füha de Maria!
"Acrescentou outras frases que trago gravadas na
alma, pois que se referiam sómente a mim; a recordação
delas muitas vêzes me tem renovado as energias inte­
riores."
A guisa de comentário dessa sua evocação o P."
Ortiz ajunta: "Parece-me ainda ouvir aquelas palavras:
" - É m1n. ha M-
ae ... e' rmn
. ha M-ae ....
' "
"Naquela expressão estava o segrêdo da vida de
Laura: vida inocente, serena, sem mancha, mais de
anjo que de criatura ".
"Compreendi, ·então, até onde pode chegar uma al­
ma cristã; e não me maravilhei mais das virtudes de
Laura; da sua piedade tão profunda; do amor tão terno
ao ·Coração de Jesus e à Imaculada; da sua humildade
simples, tantas vêzes posta a prova; da modéstia tão
reservada e pudica; das suas vivas aspirações à vida
religiosa e do terrível pavor que tinha ao mundo. Nem
me espantou sequer seu amor ao sofrimento, e heróica
oferta., da vida feita quase dois anos antes pela salvação
da pessoa que lhe era mais cara no mundo.

- 253 -
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é"f'udo provinha do amor a Maria . . . E com êste
nome bendito nos lábios, com o sorriso no rosto, al­
gumas horas depois entregava plàcidamente a alma a
Deus".
* * *
Nas poucas horas de que fala o P.e Ortiz outras coi­
sas aconteceram à cabeceira da moribunda.
Chegou antes de tudo a enfermeira Irmã Marieta
Rodríguez, que ficara sàzinha no Colégio Maria Auxi­
liadora com algumas meninas em férias.
Laura tinha desejado sua presença para lhe agra­
decer os serviços, e para lhe pedir perdão das faltas
que tivesse cometido contra ela. "Encontrei-a - escreve
ela - resignada à vontade de Deus; e entre outras coi­
sas me disse: - espero que minha mãe se decida a
levar uma vida boa: depois morrerei feliz"
Depois pediu-lhe que lhe mandasse Merceditas e
Maria Vera. A amizade cobrava a sua dívida: Laura
não podia eximir-se: era uma necessidade do coração.
As duas irmãs foram logo, e compreenderam que a
grande hora estava iminente.
A menina não conseguiu erguer-se no leito. "Con­
vidou-me - narra Mercedes Vera - a chegar meu ou­
vido aos seus lábios; e permanecendo deitada cingiu-me
com aquêles braços por onde passava já o frio da mor­
te".
Depois de algumas palavras íntimas ac1.1escelltou
penosamente: - "querida Merceditas, seja sempre de-

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vota de Jesus Sacramentado e de Maria Auxiliadora ...
Seja constante na virtude ... Fomos companheiras na
terra: não deixarei de ajudar você, do céu... Adeus ...
Beijarei por você também os pés de Nossa Senhora, que
espero ver dentro em breve!"

Eram as cinco da tarde, qua11do Laura, que se ia


apagando lentamente como a chama tremulante de
uma vela, sem todavia perder o uso dos sentidos, convi­
dou o P.e Genghini a se aproximar. Talvez tivesse ha­
vido breve entendimento, ou ao menos informado pelo
P.e Crestanello, o Padre Genghini velasse trepidando
por aquilo que pudesse acontecer. Certo que custava
pouco compreender o desejo da moribunda.
O missionário aproximou-se da porta do quarto con­
tíguo e chamou D. Mercedes.
Agitadíssima, pensando que Laura estivesse nas
últimas, D. Mercedes se precipitou para o leito de Laura
º º
. ha f1lha ....
gr1·tando .· - ''F1lha.' ... m1n 1 Me deixa
.
assim soz1n a ....,,
, . h?
Desenrolou-se, então, uma cena que preparava o
triunfo da graça no coração da desventurada mãe, e
preludiava a imorredoura glória da filha.
P.e Genghini, prudente, discreto tinha-se colocado
num canto do quarto, onde entravam os reflexos do sol
que se punha sôbre as Cordilheiras; e rezava fervorosa­
mente.

- 255 -
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Á porta Merceditas e Maria Vera quedavam cómô
em sonho conhecendo pela primeira vez os segredos de
Laura. Maria depôs nos processos de Viedma: ccEu es­
tava presente, quando a Serva de Deus solicitou a pre­
sença da mãe; e naquele momento soubemos - alude
também a Merceditas - que Laura tinha oferecido a
vida para que D. Mercedes voltasse a Deus".
O P. 8 Crestanello traceja o dramático instante.
"Laura, superando a impressão que lhe causava a
dor de sua mãe, com voz interrompida, mas cheia de
amor e de ternura lhe disse: "- Sim, mamãe, eu mor­
ro. Eu mesma o pedi a Jesus: faz quase dois anos que
eu Lhe ofereci a vida pela Senhora... ; para obter a
graça da sua volta!!. . . Ah! mamãe, antes de morrer
não vou ter a alegria de ver a Senhora arrependida?
"Essa revelação - continua o P.e Crestanello -
essas palavras inflamadas da mais sublime piedade fi­
lial fizeram cair de joelhos junto ao leito da moribunda
a pobre mãe que, como alanceada, desfazendo-se num
mar de lágrimas, exclamou fora de si: - Então fui eu
a causa de teu longo sofrimento e agora da tua morte,
ó minha filha? Ai, desgraçada de mim! Minha que­
rida Laura, eu te juro neste momento que farei tudo o
que me pedes. . . Estou arrependida. Deus é testemu­
nha da minha promessa?"
A heróica Filha de Maria tinha conseguido o seu
esplêndido e incomparável triunfo: triunfo que lhe ante-

- 256 -
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( 20 alto) Região onde se localizava a Fazenda de Quiquihué
(em baixo) Particular das Montanhas Chapelco
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éipava a exultaçâo vitoriosa do céu, sem entretanto des­
tacâ-la ainda, inteiramente, da terra.
Girou em tôrno o olhar, procurando o P.e Genghini.
�te, com a alma tumultuada, achegou-se de Laura
que lhe dizia: - "Padre, minha mãe neste momento
promete abandonar aquêle homem: seja o Sr. também
testemunha da sua promessa!''
Mãe e filha se abraçaram efusivamente, a chorar.
Maria Vera ouviu D. Mercedes repetir naqueles ins­
tantes fugazes de intensa comoção: - "Sim, minha
filha, amanhã cedo vou à igreja com Amandina e me
confesso ... ,,
Parecia um sonho, e era, ao invés, uma doce rea­
lidade: do sacrifício de uma vida inocente despontava
o primeiro raio antelucano da redenção.

* * *

Seguiram-se alguns minutos em que se recompôs a


calma em volta do leito da menina.
Iam-se os reflexos do poente diluindo na penumbra
da casinhola, onde Laura se imolava consagrando o
amor filial e sublimando a santidade do lar doméstico.
A brisa vespertina que brincava no ar, aliviando o
mormaço do dia estival, parecia um sussurro de ·espí­
ritos celestes que desciam de encontro a um anjo da
terra em vôo para a eternidade.
No rosto de Laura composto e sereno, difundia-se
uma imensa paz.

-ffl-
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Nada mais a retinha então, aqui por baixo. A di­
vina Misericórdia triunfara no coração de sua mãe.
Missão cumprida. Deus a chamava à glória.
A exausta menina beijou repetidas vêzes o cruci­
fixo que tinha nas mãos. Olhou com meiguice para a
fita azul que entretecia a inicial do nome de Maria; e
enquanto D. Mercedes soluçava inconsolável na dor que
a redimia, e o P.e Genghini e circunstantes baixinho
recomendavam sua alma a Deus, ela, murmurando:
"Obrigada, Jesus! Obrigada, Maria! Agora morro con­
tente", serenamente expirou.
Júlia Cifuentes pôde afirmar: "Laura morreu fa­
lando''
Foi às seis da tarde, sexta-feira, 22 de janeiro de
1904.
Faltavam dois meses e poucos dias para ela com­
pletar 13 anos.
"A morte aceita por amor - ensina santo Afonso
Maria de Liguori - é igual ao martírio".
Que dizer da morte de Laura pedida por amor no
próprio alvor da vida?

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CAPITULO XVIII

Epílogos

Rezadas que foram as primeiras orações de sufrágio,


com a alma cheia mais de comoção do que de luto, e
com a certeza de que o espírito de Laura estava já unido
ao côro dos Anjos a hosanar o Cordeiro sem 1nancha, o
p_e Genghini, D. Mercedes, as duas Veras e mais algu­
ma outra pessoa da vizinhança pensaram em arrumar
a câmara ardente.
O único lugar que havia era mesmo aquêle mísero
quartinho onde o anjo da morte tinha colhido o lírio
dos Andes.
Sôbre o modo de compor o corpo da angélica me­
nina não podia haver nenhuma dúvida. Sua aspiração
tinha sido viver e morrer como Fi.lha de Alfaria: como
Filha de Maria baixaria à sepultura.
A Irmã Marieta Rodríguez - a única Irmã, disse­
mos, que tinha ficado em Junín n.aqueles dias - recor-

- 259 -
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da que D. Mercedes mandou imediatamente buscar no
eolégio o uniforme de Filha de Maria que Laura tinha
usado em 8 de dezembro de 1901, e com êle vestiu a
menina.
De branco, faixa azul, o véu na cabeça, puseram­
lhe também a linda fita celeste que pendia aos pés da
cama, de modo que a medalha da Imaculada lhe galar­
doasse o peito de defunta juntinho do coração. E para
que nada faltasse à primeira Filha de Maria de Junín
e do Neuquén que passava à eternidade, colocaram-lhe
nas mãos, junto com o têrço, o Manual da União, seu
fiel compahheiro de tantas horas de recolhimento e
oração.
Certamente foram outras Filhas de Maria que cui­
daram de minúcia tão expressiva e singular: e o pen­
samento voa a Merceditas Vera, a qual, melhor que
qualquer das companheiras, conhecia os apaixonados
anseios da am.iga; queria com êsse gesto intencionado
prestar homenagem à sua memória de perfeita Filha
de Maria.
Era a estação das flôres, e não foi difícil achar co­
rolas perfumadas para emoldurar a menina que dormia
o longo sono da morte.
Acenderam-se algumas velas e começou a guarda.

* * *

Entrementes correra no povoado a notícia do pas­


samento.

- 260-
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Conheciam-na todos, sabiam do seu mal incurável,
dos maus tratos de Mora e do fim próximo.
Foi um súbito acorrer de pessoas para visitar os
restos mortais, para rezarem pelo seu descanso eterno,
para dar os pêsames a D. Mercedes, que não fazia mis­
térios dos sentimentos que lhe tumultuavam o coração.
"A vila i11teira de Junín de los Andes - declarou o P.0
Pedemonte nos processos de Viedma - desfilou como­
vida ante a serva de Deus . . . Alternando com preces
de sufrágio ouviam-se expressões como estas: Era uma
santa! Laura, virgem e mártir, roga por nós! - Sim,
sim - acrescentava D. Mercedes - Mártir por minha
causa... Foi - comenta o P.e Pedemonte - um ver­
dadeiro plebiscito de afeto, de veneração e de compai­
xão, sabendo todos quanto Laura tinha sofrido".
Decidida a cumprir o juramento, D. Mercedes, an­
tes que descambasse o sol daquele dia, pediu ao P.e Gen­
ghini que fizesse a Manuel Mora saber "que não pen­
sasse mais nela, porque decidira mudar de vida".

No dia seguinte, cedo, o corpo de Laura foi colo­


cado no caixão. "Eu a vi no esquife - diz Maria Bri­
cefio - vestida de branco, com a medalha das Filhas
de Maria, o rosário e o manual . . . Parecia uma Virgen­
zinha! ''
Também o P.e Crestanello escreve que o rosto de
Laura "conservara a costumeira expressão de doçura";

- 261-
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e o P.ª Genghini assegura que os membros pareciam
conservar "a natural flexibilidade".
Quatro Filhas de Maria uniformizadas, entre as
quais Merceditas Vera, reservaram para si o privilégio
de transportar nos ombros o caixão de Laura, da casa
à igrejinha paroquial. Precediam as poucas internas
que tinham ficado nas férias e tôdas as externas.
Foi cantada missa exequial. Fizeram côro Maria
Brice:fío, as irmãs Vera e mais algumas outras. Ao har­
mônio, o clérigo Ortiz.
Durante o santo sacrifício D. Mercedes aproximou­
se dos sacramentos, repudiando publicamente o passa­
do, e dando início a uma nova vida. "Na missa prae­
sente cadavere - atesta o P.e Genghini - a Sr.ª Pino
confessou-se, recebeu a santa comunhão". Repetem as
mesmas coisas a Irmã Mercedes Vera e Josefina Ferré.
A impressão dos presentes poder-se-ia dizer que foi
das que marcam época: sobretudo num lugarejo como
Junín de los Andes, onde as tristes vicissitudes de D.
Mercedes eram largamente conhecidas.
Da morte Deus tirara a vida: o inocente sacrifício
da filha salvara a mãe.
Relembrando os exemplos e as exortações de Laura,
as companheiras compreendiam plenamente o signifi­
cado dos seu estribilho: "Devemos oferecer sacrifícios a
Deus para salvar almas". Ela propiciava a tôdas o mais
luminoso exemplo, tendo sacrificado a vida pela salva­
ção da mãe.
* • *

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Depois das exéquias o caixão - nota a Irmã Marie­
ta Rodríguez - ficou todo o resto do dia na igreja. O
entêrro foi pela tardinha. O registro de óbito assinala:
"Hoje, 23 de janeiro, foi sepultado o cadáver de Laura
Vicufi.a, de 13 anos . . . Morreu de peritonite. - O texto
diz assim, mas tratava-se de tuberculose. - Recebeu os
santos Sacramentos".
As Filhas de Maria de nôvo quiseram a honra de
levar a companheira à última morada.

O P.0 Genghini, de sobrepeliz e estola, presidiu.


Atrás de Júlia e D. Mercedes houve, como de manhã,
grande concurso de povo. "Aos funerais e ao sepulta­
mento da Serva de Deus - declarou a própria Júlia
nos processos, - acorreu muita gente, porque Laura
era benquista". Também Maria Vera afirma que tôdas
as famílias de Junín tomaram parte nos funerais de
Laura "atraídas pela fama de santidade" que já repon­
tava ao redor do nome da menina morta.

A família Herrera - uma das principais do lugar


- que dois anos antes oferecera um local no seu jazigo
para os restos mortais da Irmã Ana Maria Rodríguez,
ofereceu outro, generosamente, para os de Laura.
É de notar que, segundo os costumes da terra, nas
tumbas de tijolos, os ataúdes não eram fechados em
lóculos, mas alinhados um ao lado do outro. De modo
que, pelo menos no princfpio, mestra e discípula se en­
contraram juntas na paz e no repouso do sepulcro.

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A comoção e os sentimentos, expressos, ou escondi­
dos no fundo da alma dos presentes no mesmo cortejo,
antes de deixarem o velho cemitério, situado aos pés de
um outeiro, pouco distante da povoação, foram descri­
tos pelo P.e Ortiz alguns anos depois nestes têrmos: "Os
que tínhamos de perto conhecido e admirado as virtu­
des de Laura, saudamos uma última vez os seus restos,
murmurando com os olhos banhados de pranto: Anjo,
Virgem, Mártir, roga por nós!

Quem mais tinha necessidade da intercessão de


Laura junto de Deus era a sua mãe, para quem se pre­
paravam duros dias, talvez mais do que ela própria
pudesse prever.
Josefina Ferré, cujos pais foram generosos em au­
xílios e apoio a D. Mercedes, nas circunstâncias críticas
em que se achou após a morte da filha, assegura que a
23 de janeiro, durante os funerais de Laura, Manuel
Mora vagava, tôrvo e inquieto, pela vila. Agora já não
havia mais a "santinha". Tudo podia ser como antes.
Foi, pois, grande o seu vexame quando o P.e Gen­
ghini lhe transmitiu a mensagem de D. Mercedes, re­
solvida a não retomar o caminho de Quilquihué. Mesmo
depois de morta, a franzina figura de Laura se erguia
inatingível, mas tremenda, entre êle e a mãe. Saiu com
o inferno no coração para forjicar novos planos de
assalto.

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Daí a uns dias, enquanto D. Mercedes se entreti­
nha com Flora Urrutia e Emília Huechleff na casinha
onde morrera Laura, subitamente Mora irrompe porta
a dentro, revólver em punho, esperando certamente en­
contrá-la só.
Vendo falhar o golpe, disse-lhe com ironia zombe­
teira: - "Como você se protegeu bem entre duas mu­
lheres!"
Uma das duas senhoras, se não foram ambas, pro­
curou persuadir Manuel Mora a desistir dêsses propó­
sitos loucos.
- "Ainda que me deva custar a vida - disse D.
Mercedes - hei de manter o juramento feito à minha
filha''.
Mora se afastou rosnando entre dentes: - "Não me
foges das mãos! Não descansarei enquanto não te vejo
morta!"
A narrativa nos foi transmitida pela Sr.ª Amélia
Martínez, viúva Bricefío, que a subscreveu em presença
de testemunhas, em Junín, em 1954. Mas recebe con­
firmação de uma memória genérica do P.e Genghini:
"Dez ou doze dias depois da morte de Laura, Manuel
Mora voltou ao ataque (contra a Sr.ª Pino), mas não
conseguiu seu intento''.

A prudência aconselhou D. Mercedes a procurar


salvação alhures. Natalina Figueroa informa: "Na

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morte de Laura a Sr.ª Pino teve de se esconder, porque
Mora a ameaçava de morte, se não voltasse com êle para
a ·estância.
Pareceu, pois, oportuno que, deixando Júlia no colé­
gio, a pobre mulher, que demonstrava coragem de leoa,
ao menos por algum tempo fugisse para além das Cor­
dilheiras, na esperança que o perseguidor acabasse por
deixá-la em paz, e assim pudesse ela reconstruir uma
vida exemplarmente cristã.
Flora Urrutia, casada com um Figueroa, tendo
assistido à pavorosa irrupção de Mora na casinha onde
morrera Laura, viu-se na obrigação de ajudá-la na fuga.
Sua filha Natalina Figueroa, companheira de Laura,
assim o documenta: "Minha mãe emprestou a D. Mer­
cedes os cavalos para a fuga. Pôs também à sua dispo­
sição um ranchinho que tinha, fora da vila, para que
pudesse aí refugiar-se no momento propício, e lhe man­
dou um vestido que lhe permitisse passar desconhecida".
Amélia Martínez completa a narração: "Uma noi­
te, algumas semanas ápós a morte de Laura, estando
em casa, vi passar uma senhora disfarçada que não
pude reconhecer. A amiga Maclóvia Gutiérrez me
disse tratar-se de Mercedes Pino, que fugia de Mora,
esperando alcançar a outra parte da estância de Carlos
Richter''.
Manuel Urrutia, irmão de Flora e tio de Natalina
Figueroa, diz por sua vez que D. Mercedes se dirigia
para Pucón, no Chile.

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Tudo isso demandou tempo, não sendo possível pre­
parar uma fuga pelos Andes num fechar de olhos. Se­
ria certamente pela segunda metade de fevereiro.
De sua parte Mora, a par das tratativas de Junin,
andava de tocaia, como o falcão, para o bote. Perce­
bendo que a Sra. Pino, iludindo sua vigilância, tinha
fugido, mandou selar o cavalo e foi-lhe no encalço.
"Eu o vi a galope em direção da estância dos
Richters - narra Amélia Martínez -; e soube, pela
amiga Maclóvia, que o Sr. Richter o dissuadiu de seguir
D. Mercedes, que não queria mais ficar com êle, e que
já, então, com sua mulher, se botara para o Chile."
Na travessia dos Andes a fugitiva se encontrou com
a Irmã Piai, de volta para Junín; e a informou dos lu­
tuosos acontecimentos. Uma jovem chilena, que acom­
panhava a Diretora, recorda: "Enquanto estávamos
nas Cordilheiras encontramos uma senhora que, cho­
rando, deu à Irmã Piai a notícia da morte da filha ...
dos comentários feitos... me pareceu tratar-se da Sr.ª
Mercedes Vicufia."
* * *

Dos fragmentários testemunhos dos contemporâ­


neos não é possível reconstruir tôdas as ulteriores vicis­
situdes que acompanharam e reforçaram o renascimen­
to espiritual da mãe de Laura.
É certo, porém, que do Chile voltou logo, talvez
pa.ra não abandonar Júlia a si mesma; e que teve de se

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premunir contra as obstinadas insídias do homem de
Quilquihué.
Cabem aqui muito provàvelmente os assertas de
Josefina. Ferré: "Mora perseguia dia e noite a Sr.ª
Pino ... ; e esta, para poder pôr-se a salvo, pediu aos
meus pais que a recebessem em casa. Tratando-se de
uma casa honrada, - pensava-se - aquêle velhaco não
ousaria violá-la".
"A Sr.ª Pino - escreve noutro ponto a mesma
Ferré - voltou de nôvo a Junín e parou em casa, en­
quanto não conseguia alugar uma casinha - distinta
da em que Laura morrera -; e aí se entregou ao seu
trabalho de costureira, e ficou até o casamento de sua
filha com Horãcio Jones."
::G!sse matrimônio celebrou-se na paróquia de Junín
a 10 de novembro de 1906. "Desejo declarar - depôs
Júlia Vicufia nos processos de Viedma - que não che­
guei logo a compreender por que motivos minha mãe
me fazia contrair matrimônio aos 12 anos, em 1906.
Mas, avançando em idade deduzi, com fundamento, que
guiou-a o pensamento de me subtrair à ocasião perigosa
em que se achara ela própria com o Sr. Mora."
Deve-se, pois, crer que, mais ou menos da metade
de 1904 até o fim de 1906, mãe e filha conviveram em
Junín.
Júlia freqüentava como aluna externa o ·Colégio
Maria Auxiliadora, onde fêz a primeira comunhão, e
completou os estudos elementares. D. Mercedes vivia

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retirada, tôda entregue aos trabalhos manuais que lhe
davam o sustento.
O P.e Genghini resume aquela quadra escrevendo:
"Depois da morte de Laura, a Sr.ª Pino voltou aos tra­
balhos de antes, auxiliada nisso pelas Irmãs e outras
pessoas boas." E a Irmã Baratelli acrescenta: "Recor­
do que o P.e Crestanello procurava muito melhorar as
condições da Sr.ª Pi.no e sustentá-la moralmente nas
graves tribulações que a afligiam."
Não tinham desaparecido de todo os perigos e as
ameaças; certa calma, porém, parecia reinar em tôrno
da infeliz senhora, que estava duramente expiando o
seu passado, e pranteando não ter entendido, senão no
último instante, o heroísmo impetratório da sua Laura.
Natalina Figueroa assegura que o comissário de
polícia, Carlos Alvarez, encarregara o sargento Silva "da
defesa pessoal" de D. Mercedes; e Sabino Cárdenas che­
ga a afirmar que o mencionado comissário chegou a
prender Mora pelo estôrvo que lhe dava a ela.
Não há, porém, notícias de outros fatos violentos.

A calma completa na vida de D. Mercedes não vol­


tou senão depois da morte de Manuel Mora.
"Posso dizer - depôs Emanuel Urrutia nos proces-
sos de Laura - que a mãe da Serva de Deus viu-se li­
vre da opressão de Mora, quando êste foi assassinado
durante uma corrida de cavalos no passo Flores".

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Como se deduz de outros testemunhos foram os
meios-irmãos João Aranda e C·rescêncio Monte Negro
que o mataram.
Deu-se o triste epílogo entre 1906 e 1907. Parece
que Mora, tendo perdido, avançou de rebenque contra
um dos dois que na rixa o apunhalaram, homiziando-se
depois no Chile.
A 8 de janeiro de 1906, ao invés, a noviça Sr. Maria
xão, se limita a dizer: "Manuel Mora acabou sem sa­
cramentos, morto numa corrida de cavalos".
Houve quem visse no fato a mão de Deus pesando
sôbre a cabeça de quem tinha amargurado a juventude
de Laura.
* • *

A 8 de janeiro de 1906, ao invés, a noviça Ir. Maria


Vera fazia em Viedma, na casa central das missões pa­
tagônicas a sua profissão religiosa, tornando-se Filha
de Maria Auxiliadora_; e a Irmã Merceditas, postulante
dos afastados dias daquela visita de D. Cagliero a Junín,
vestia o hábito religioso, aproximando-se, ela também,
do ideal da vida salesiana, que cultivara com Laura, de
quem guardava intacta a memória.
A Irmã Piai, de sua parte, em 1908 deixava Junín
em demanda de outras casas da Argentina, ao passo que
desde o verão de 1904 a Irmã Azócar estava em Santiago.
última a se afastar de Junín, onde ficava o seu te­
souro e a sua glória, foi D. Mercedes. A Irmã Piai diz

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a propósito: ''Partindo de Junín, lá deixei D. Merce­
des com Júlia, já casada e mãe de um menino."
Se naqueles anos D. Mercedes habitava saltuària­
mente outros lugares também já não interessa ao leitor.
Para a história da filha e da sua incruenta imola­
ção basta saber que a volta para Deus, da mãe de Laura,
foi decidida e sem saudades.
O P.e Genghini, que se tornara desde 22 de janeiro
de 1904 o confidente de seus segredos e depositário de
sua confiança, escreveu mais tarde: "Declaro que nos
quatro ou cinco anos, talvez seis, que D. Mercedes pas­
sou em Junín, depois da morte de Laura, viveu como
boa cristã." Emília Martínez, viúva Serrano, indo a Ju­
nín em 1910, atesta: "Conheci a Sr.ª Pino mãe de Laura
e de Júlia. Era uma boa senhora: estando eu doente,
ela cuidou de mim várias noites." Também a Irmã Ba­
ratelli, que viveu em Junín de 1908 a 1913, afirma: ''Nos
meus tempos a Sr.ª Pino estava na vila com Júlia, ca­
sada cristãmente, e para nós não era mais o caso de re­
cordar as peripécias do seu passado."
Por volta de 1911 ela foi para o Chile, para onde se
transferiu Júlia também. Num lugar chamado Freire,
casou-se com um tal Parra, funcionário ferroviário, e
transcorreu as duas últimas décadas de sua movimen­
tada existência em paz e serenidade, entregue ao comér­
cio, à oração e à ·expiação.
O P.e Genghini carteava-se com ela ainda em 1928.

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Morreu cristãmente em 17 de novetnbro de 1929 em
Cherquenco, na zona de Temuco. O registo de óbito lhe
assinala cinqüenta e nove anos de idade e di-la justa­
mente "comerciante de profissão". O que corrobora a
notícia de Josefina Ferré: "A morte da mãe, Júlia
Amandina tomou as rédeas do negócio q11e ela possuía."
Desaparecia assim, purificada pela dor e reabilitada
pela graça, a mãe da nossa "pequenina santa", cuja
lembrança e cuja fama naquela época já estavam lar­
gamente difundidas no mundo.

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A paupérrima casa, perto do Colégio, onde Laura
consumou o seu holocausto
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III

RUMO AOS ALTARES

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CAPÍTULO XIX

Fama de Santidade

A virtude, especialmente a praticada em grau inco­


mum, deixa em pós de si um aroma de paraíso que fas­
cina e encanta; e suscita na lembrança admiração e de­
voção, enquanto arrasta para o recurso, mediante a
oração, e insensivelmente leva para a imitação.
Tudo isso acontece para Laura Vicufia, de maneira
espontânea e crescente, a partir da sua morte.
Pôsto que não conhecessem a intimidade do seu
espírito e os árduos caminhos por onde a graça a tinha
alcandorado às vertiginosas alturas de incruento martí­
rio, as companheiras de colégio tinham percebido seu
excepcional teor de vida. Para elas, pelo menos no úl­
timo biênio de colégio, mais que uma menina exemplar,
Laura era uma pequenina santa. Não é que tivessem
conceito exato da santidade; mas reportando-se a quan-

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to ouviam contar de Domingos Sâvio, não duvidavàm
colocá-la em pé de igualdade com êle.
Que lhe dessem o título de "santinha" declara-o a
Irmã Maria Vera nos processos: "A Serva de Deus su­
portava pacientemente as caçoadas, e não reagia quan­
do lhe chamavam santinha.". O tom, no mais das vê­
zes, de pilhéria do apelativo nos lábios das companhei­
ras, nada tirava à sua persuasão, e não maravilha nin­
guém. Por sua vez, a voluntária passividade de Laura,
como insinua a Irmã Vera, deve ser interpretada no sen­
tido de completo domínio de si, não de vã complacência.
A mesma Irmã Vera afirma, além disso, que Laura
"morreu em fama de santidade." Ninguém melhor do
que ela, presente no passamento e nos funerais da Serva
de Deus, estava em grau de emitir juízo tão fundado e
seguro.
As últimas desumanas vexações de Mora e a impro­
visada volta de D. Mercedes a Deus indubitàvelmente
acresceram e difundiram em tôrno de Laura a fama de
santidade, desabrochada e até ali contida, pode-se dizer,
no âmbito restrito do Colégio de Maria Auxiliadora.
------- Tôda Junín falou dela: do seu modo-afuiiado, da
sua piedade, da generosa e inocente imolação. Aos olhos
e na estima do povoado, que não contava trinta anos de
vida e não tinha tradições locais, aquela menina, cân­
dido lírio de pureza, rosa purpúrea de amor e de sacri­
fício, surgiu como uma heroína digna de admiração e
de especial memória. Tornava-se um como vexilo de

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vida cristã, que a mão de Deus tinha chantado nas
grimpas dos Andes e que os ventos e as procelas dos
anos não deviam derrubar nem dispersar.

• • *

No início do ano escolar de 1904 a lembrança de


Laura, de seus sofrimentos e de suas virtudes, estava
vivíssima entre as internas e externas do colégio de
Junín.
Para mantê-la acesa, além das numerosas recorda­
ções das companheiras, concorria o cuidado educativo
da Diretora Irmã Piai, que se reportava ao procedimen­
to de Laura no intuito de tornar fácil e amável o dever
a tôdas as suas discípulas e filhas espirituais.
A Irmã Carmela Martello, chegando a Junín dois
ou três mêses depois da morte de Laura, assegura que
a Irmã Piai falava dela com freqüência, exaltando a sua
"piedade sincera e alegre" e a sua "grande caridade para
com as companheiras".
E justamente o espírito de caridade pronta e gene­
rosa que informara a vida colegial de Laura, e a con­
fiança na eficácia de sua intervenção, levaram desde
então as companheiras a pedirem graças e favores por
sua intercessão. Merceditas Vera, que deixou Junín em
22 de maio de 1904 para descer a Viedma em companhia
da Inspetora, Madre Joana Borgna, escreve: "Várias
graças pedimos a Laura, depois da sua morte, e as obti­
1

vemos imediatamente. Tanto que dizíamos: "- Laura

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do céu continua a ser obsequiosa e boa como quando
estava na terra".
A Irmã Margarida Baratelli, que viveu nos Andes
de 1908 a 1913, atesta: "Haviam decorrido poucos anos
do desaparecimento de Laura, quando cheguei pela pri-­
meira vez a Junín: tôdas as meninas da missão só fala­
vam nela, com interêsse e afeto de irmãs. Para tôdas
ela era a santinha, a doidinha de Jesus."
"Também irmãs e missionários - ajunta a Irmã
Baratelli - falavam com muita estima e veneração de
Laura. "Até, no dizer da informante, a memória da
piedosa menina "sobrevivia em tôda a vila".
Conta com efeito: "Quando eu ia a passeio, as mu­
lheres de Junín, saindo das suas miseráveis habitações,
me falavam de Laura: faziam-lhe os mais amplos elo­
gios e repetiam nunca terem visto uma menina como
ela."
Freqüentes, também, as visitas à sua sepultura. Lá
iam sobretudo as companheiras, no tempo bom e du­
rante as horas de folga. Ir ao cemitério, em certas
épocas do ano escolar, tornava-se o passeio mais cobi­
çado das alunas internas que, como acenamos, no colé­
gio disputavam o canteiro que Laura cuidara.
Uma jovem daqueles tempos longínquos assegura­
va mais tarde à Irmã Vitória Barrio que, indo ao cemi­
tério, antes mesmo de visitarem a tumba dos seus caros,
costumavam ir logo ao sepulcro de Laura para depor
flôres e rezar. Isso acontecia, segundo Maria Bricefi.o,

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também com a população de Junin, especialmente a 2
de novembro, comemoração dos defuntos.
Nem faltavam os que em suas necessidades espiri­
tuais e materiais se dirigiam a Laura, pedindo auxílio.
Júlia Amanda Vicufia, relembrando os anos transcorri­
dos em Junín, depois da morte de Laura, quando ela e
D. Mercedes eram o centro de tantas conversas e tantas
recordações, afirmou nos processos: ''Ouvi minha mãe
falar com alegria de minha irmã Laura, tôdas as vêzes
que as pessoas do lugar atribuíam à sua intercessão
graças e favores que pareciam milagres".

• • •
Os que mais que os outros cooperaram para conser­
var viva a lembrança da Serva de Deus, no pequeno
mundo salesiano de Junín, foram o P.e Genghini, P.e
Ortiz, e P.° Crestanello. Convencidos do seu heroísmo
no ·exercício das virtudes não se cansavam de procla­
má-Ia digna de imitação.
O P.0 Genghini freqüentemente a recordava nas
prédicas. Uma das ouvintes afirma: "Não achava
(êle) expressões suficientes para exaltar Laura: chama­
va-lhe uma verdadeira santa".
Do P.0 Ortiz escreve a Irmã Piai: ''Admirava e es­
timava muito as singulares virtudes de Laura". Por
isso em 1910 compôs uma discreta canção que também
foi musicada. E a Irmã Baratelli atesta que nos recreios
as alunas do colégio, pondo-se em corrente, cantavam-

- 279 -
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na "por inteiro e com grande entusiasmo, em louvor e
memória da antiga condiscípula que as novatas apren­
diam a conhecer e admirar.
Naquele mesmo ano, fechando o artigo comemora­
tivo de Lal1ra, publicado em Flores del Campo, o P.ª
Ortiz assim exortava as meninas da Patagônia: ''Que­
ridas meninas, eis aí um modêlo digno de imitação: eis
uma verdadeira Filha de Maria; segui-a e não temereis
a morte . . . Felizes de vós se na hora extrema da vida
puderdes dizer com Laura: Maria é minha Mãe. O que
mais me consola é pensar que eu sou Filha de Maria."

Que dizer agora do P.e Crest&nello? Além de ser


pai e diretor espiritual, êle foi o primeiro, o mais auto­
rizado e mais estimado biógrafo de Laura.
Escreveu o seu trabalho entre 1910 e 1911, antes
de deixar definitivamente a missão de Junín, onde Deus
lhe tinha concedido conhecer, guiar e formar uma
santinha.
1!:le próprio escreve no término da sua obra: "Faz
já sete anos que a virtuosa Laura se foi para a eterni­
dade. Em tão dilatado tempo podia parecer que se
apagaram as impressões deixadas no momento da mor­
te: nada disso. A lembrança dela se agiganta cada vez
mais. Pessoas que apreciaram no justo valor as suas
virtudes, e outras que só ouviram falar delas, pedem a

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sua intercessão e são atendidas" E passa a expor gra­
ças e favores que lhe são atribuídas. Refere mesmo as
seguintes palavras de uma companheira: "Não causa
admiração qu·e, tendo Laura obtido de Deus a conversão
de sua mãe, consiga também outras graças."
A intenção do P.e Crestanello, no tra(�ar a biografia
da sua heroína, foi apresentar "a vida c'dlflcante "de
uma Filha de Maria. E o conseguiu magnlfir,nmente,
embora tocando de leve, por dever de prutlüncln, nos
pormenores desconhecidos longe de Junín, onde, pelo
contrário, D. Mercedes deixava nas famílias mais hos­
pitaleiras do lugar as tristes lembranças de sua vJda
aventurosa e das ciladas armadas contra a invicta for­
taleza de Laura.
Em 1922, do Peru, a Irmã Piai confirmava como
perfeitamente veraz a biografia do P.e Crestanello, es­
palhada no Chile, em Junín e em algumas partes da
Argentina. Também a Irmã Martello afirmava em
1923: "Li a vida de Laura escrita pelo P.e Crestanello:
nada encontro de exagerado. Tudo isso eu o sabia já
da Irmã Piai, e das pessoas que viveram em contato com
Laura".

Entrementes, enquanto o conhecimento da vida de


Laura lhe aumentava a fama de santidade, seus restos
mortais, por várias circunstâncias, passaram de um lu­
gar para o outro no cemitério de Junín.

- 281-
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Em 1916 ruía o jazigo da família Herrera; e o caixão
de Laura, que, como se disse, estava fechado, mas des­
coberto, avariou-se um tanto. Removido dêsse lugar,
foi colocado não muito distante, à flor da terra, por
cima do esquife da sua professôra, a Irmã Ana Maria
Rodríguez, e coberto do melhor modo possível com fô­
lhas de zinco.
Ficou assim por alguns anos; e foi então que, ten­
do-se despregado a tampa, não faltaram pessoas dese­
josas de ver os restos da santa menina.

Entre outras a Inspetora, Madre Delfina


pPP' .... as
·,.

Ghezzi, achando-se em 1916 em visita ao Colégio Maria


Auxiliadora de Junín, foi ao cemitério com duas irmãs,
mandou destampar inteiramente o caixão semi-aberto
e viu o corpo conservado, ainda revestido com as in­
sígnias de Filha de Maria com que tinha sido enter­
rado". Contemplamos - escreve uma das circunstan­
tes - o cadáver ressequido de Laura, com o vestido
branco enegrecido de poeira, porquanto o caixão não
estava bem fechado."
Idêntico testemunho prestam outras pessoas de
Junín". Dois anos após a morte de Laura - 1916, afir­
ma a Irmã Marieta Rodríguez, sua antiga enfer1ncjra -
pude ver o cadáver dela, ainda inteiro e todo resse­
quido" E a Irmã Maria 11:éndez declarou nos processos:
"Visitando o cemitério . . . era comum destamparmos o
caixão da Serva de Deus e contemplarmos seu corpo,
que se apresentava comprido, fino e todo mirrado"

- 282 -
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A piedade e a devoção não sõmente levavam ao pe­
dido de graças, mas também. convidavam a cortar pedaci­
nhos de roupa para relíquia.
Ali por 1918 o P.e Genghini fechou o caixão, depois
de ter tirado, para contentar as pessoas presentes, a fita
e a medalha de Filha de Maria. Fita e medalha foram
parar com Matilde Suárez; e a Diretora, Irmã Catarina
Poggio, assegura tê-las visto penduradas nn cabccclrn
da cama.
Desde aquela época os restos de Lauru l't'pouHurnm
no jazigo da família Bricefio, ao lado dos dcHpojoH dn
Irmã Ana Maria Rodríguez.
Dos testemunhos vem-se a saber que o esquife foi
aberto outras vêzes." Em outubro de 1921 - escreve a
Irmã Virgínia Mossino - fui ao cemitério de Junín com
algumas meninas; e, com a permissão da Diretora, abri
o caixão que continha os sagrados restos de Laura. O véu
de Filha de Maria, como também o vestido branco, caiam
aos pedaços. Apanhei e trouxe comigo o manital ainda
em bom estado e um lenço com as iniciais da mãe de
Laura..."
A Irmã Maria Masoero, por sua vez, viu os despojos
de Laura em 1922, e os achou intactos, com as mãos
juntas e com farrapos do véu de Filha de Maria.
Mais tarde, em 1925, os restos da Heroína dos An­
des, que exercia um fascínio singular em todos os qur.
ouviam falar dela, foram levados do cemitério velho dP
Junín, sem muros nem proteção, para um nôvo, dcpoi:;

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de serem recompostos numa urna nova resistente e her­
meticamente fechada, na presença da Madre Ghezzi,
Inspetora, e da Irmã Amina Arata, Diretora.
Só restavam os ossos.

* * *

Naquela época, enquanto a fama de Laura se es­


tendia pelos colégios argentinos e chilenos das Filhas
de Maria Auxiliadora, o nome da Serva de Deus chegava
também à Itália, ao centro do Instituto.
Estava-se celebrando o jubileu áureo das Missões
Salesianas, começadas em 1875 por D. João Cagliero, já
agora Cardeal da Santa Igreja; era intenção dar espe­
cial realce aos acontecimentos que lhe haviam acompa­
nhado o desenvolvimento e os triunfos, sobretudo na
Patagônia, a terra profética dos sonhos de D. Bosco, e
o primeiro campo de trabalho dos seus filhos.
A vida de Laura Vicu:fía, escrita pelo P.e Crestanello,
e impressa em Santiago do Chile em 1911, foi uma re­
velação.
Em 1926 saiu anônimo Botão de Rosa, ou seja
Laura Vicuiía, flor eleitíssima da missão salesiana an­
dina, que, em tradução italiana, reproduzia, embora com
diversos critérios, as notícias recolhidas pelo confessor
de Laura.
Um segundo volumezinho, anônimo também, Em
Missão nos Andes, completou as informações biográ-

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ficas do primeiro, fornecendo dados sobre o Neuquén e
o trabalho religioso desenvolvido pelos Salesianos e Fi­
lhas de Maria Auxiliadora.
A Irmã Mercedes Vera, lidos os dois opúsculos, es­
crevia: "Não acho nêles nada que não esteja conforme
com a verdade. Limito-me portanto a escrever alguma
coisa que aí não se acha e de que fui testemunha, como
íntima companheira de Laura". Também a Irmã Gras­
si, depois da leitura do Botão de Rosa disse: "Interpre­
taram bem a figura de Laura. Por quanto me foi dado
conhecê-la, eram tais sua amabilidade, caridade, e hu­
mildade".
A partir daqueles anos - 1925-27 - no mundo in­
teiro salesiano das Filhas de Maria Auxiliadora houve
uma sucessão de opúsculos biográficos, artigos e santi­
nhos, a exaltarem a figura e os exemplos da angélica
menina dos Andes patagônicos, tornada assim, como
Domingos Sávio, ideal e modêlo de santidade juvenil.
A Madre Clélia Genghini pôs-se ao trabalho, e du­
rante cêrca de trinta anos recolheu as mais miúdas in­
formações sôbre a vida de Laura, visando a preparar os
processos de beatificação e canonização, além de coligir
material para um documentado estudo biográfico.
Vozes autorizadas, entanto, assinalavam a extensão
e o refôrço, cada vez maiores, da fama de santidade que
aureolava o nome da heroica Filha de Maria, enquanto
curas corporais e graças espirituais iam sendo atribuí­
das, em número crescente, à sua poderosa intercessão.

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Em 193i o Servo de :Deus P.e Pelipe Rinaidi, Reitot
Mor da Congregação Salesiana, com a intuição dos san­
tos, não duvidava afirrnar: "A Laura eu daria duas
palmas: a palma da pureza e a do amor filial . . . Penso
que bem cedo (se conhecida) Laura Vicufia poderia ser
uma das glórias mais belas da juventude acolhida nas
casas salesianas".
O pranteado Cardeal Dalmazio Minoretti, arcebispo
de Gênova, tendo lido a segunda edição de Botão de
Rosa, escrevia a 27 de dezembro do mesmo ano, que o
sacrifício de Laura pela salvação da mãe "recorda os
triunfos da fé" e que "Martírio e Apostolado numa ·exis­
tência tão jovem são um milagre digno de ser recor-
dado".
O Instituto da Filhas de Maria Auxiliadora sentiu
sua responsabilidade e honra, e esperou as circunstân­
cias propicias para preparar a glorificação na terra da
sua pequena grande Aluna, digna rival no campo femi­
nino das virtudes de Domingos Sávio.

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CAPÍTULO XX

A Causa de Beatificação

Depois dos triunfais sucessos da Causa da Beatifica­


ção e Canonização de Maria Goretti, de doze anos, e de
Domingos Sávio, de quinze, elevados à dignidade de por­
ta-bandeiras nos exércitos juvenis do nosso tempo, pa­
receu chegar a hora propicia para se encaminhar a
Causa de Laura Vicufia, mártir do amor filial e perfeito
modêlo de Filha de Maria no exercício da vida escolar
e na perene prática das virtudes.
As incertezas iniciais relativas ao preconceito da
idade iam aos poucos desaparecendo ante a admirável
concordância dos testemunhos, dos quais transparecia,
clara e luminosa, uma virtude passada pelo crisol de
provas e de tentações, e não mais criança nas formas,
na intensidade, na constância.
Quem andava amorosamente e sagazmente reco­
lhendo fatos e juízos, lembranças e apreciações, certifi-

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cados e documentos, via esboçar-se-ihé ànte ós olhos a.
figura de uma menina incomum, sonhando-lhe a eleva­
ção aos altares.
Mesmo as poucas pessoas que a princípio tinham
imaginado descobrir em Laura uma menina boa, exem­
plar, obediente - nada mais -, sabedoras da crescente
fama de santidade que lhe acompanhava o nome, decla­
raram-se convencidas da singular perfeição por ela al­
cançada. A Irmã Marieta Rodríguez, a enfermeira de
Junín tantas vêzes lembrada, atestou com juramento:
"A princípio acreditei que Laura tivesse levado uma
vida ordinária; mas com o correr dos anos fui-me per­
suadindo que a prática de suas virtudes implica heroís­
mo. Declaro, pois, que é fundada a fama de santidade,
hoje tão espalhada, em volta do nome da Serva de
Deus."
No colégio de Junín, aliás, no passar dos anos, a me­
mória de Laura conservou sem tréguas o seu frescor e
primitivo encanto. Referindo-se aos anos de 1917-21, a
Irmã Virgínia Mossino escrevia: "As alunas se apresen­
tava Laura como modêlo de piedade, de obediência, de
humildade, de mortificação, e das outras virtudes tam­
bém que ela cultivara em grau não comum."
Por sua vez a Irmã Mendoza pôde escrever: "Estive
em Junín de 1922 a 1938; nesse tempo ouvi falar com
tão vivo interêsse e respeito de Laura, como se ela tivesse
acabado de morrer. Exaltava-se sua mortificação; lem­
brava-se e decantava-se a oferta da vida pela conversão

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da mãe; sua sepultura era visitada com.freqüência, e nos
recreios as alunas cantavam as tradicionais estrofes do
P.e Ortiz".
A Irmã Adele Camargo, filha de uma companheira
de Laura, e por oito anos - de 1938 a 1946 - aluna do
Colégio Maria Auxiliadora de Junín, diz que tema fre-
qüente das conversas eram os episódios notáveis da vida
da Serva de Deus; e que para as colegiais só o fato de
·estarem nas salas de aula e de trabalho santificadas pela
presença de Laura era estímulo para a virtude.
Outros afirmam que os primeiros anos do colégio
eram distinguidos como ''o tempo dos heroísmos de
Laura". A Irmã Antonieta Boehm acrescenta mais um
pormenor digno de especial lembrança. "Na qualidade
de Diretora do colégio de Junín nos anos de 1942-48 es­
tou em condições de atestar que uma menina chilena,
achando-se em situações domésticas semelhantes àa de
Laura, tomou a Serva de Deus como modêlo de piedade
e de mortificação com tal entusiasmo que eu tive que in­
tervir para lhe refrear os ardores".
Chegou-se assim ao inicio dos processos lnformatl­
vos para a Introdução da Causa de Beatificação e Cano­
nização junto à Sagrada Congregação dos Ritos.
Com as solenidades e fo1'malidades em uso, tais pro­
cessos sôbre a fama de santidade da Serva de Deus, sôbre
a ausência de tõda forma de culto público, e sôbre seus
pouquíssimos escritos, inir-taram-se em Viedma, sob a

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presidência do bispo diocesano, S. Ex.ª Revma o Sr. D.
Joaé Borgatti, a 19 de setembro de 1955.
Compareceram perante o tribunal, e foram examina­
das, 19 testemunhas, uma das quaii apresentou documen­
tos da maior importância.
Vinda de Santiago do Chile, percorrendo milhares
de quilômetros, chegou a Viedma, na foz do Rio Negro,
a senhora Júlia Amandina Vicufia também, satisfeita
por trazer a sua contribuição à glorificação da irmã,
cinqüenta e tantos anos após o seu desaparecimento.
Km 1956, na Cúria Mertopolitana de Turim reali­
zou-se o interrogatório oficial de mais ciuas testemu­
nhas entre as mais qualificadas no conhecimento da
vasta documentação, recolhida com tanto empenho e
sagacidade pela pranteada Madre Clelia Genghini, que
faleceu na ocasião de se apresentar, ela própria, perante
o corpo dos juízes inquisidores.

Hoje a volumosa· papelada está em Roma na Sa­


grada Congregação dos Ritos que abriu-a, mandou tra­
duzi-la e entregou a quem de direito para estudo, com
vista à futura discussão.
Ajuntaram-se dezenas e dezenas de cartas postula­
doras de Eminentíssimos Cardeais, Excelentíssimos Ar­
cebispos e Bispos da Itália, da Espanha e de quase tô­
das as Repúblicas da América Latina, que suplicam ao
Sumo Pontífice dignar-se nomear a Comissão para a
Introdução da Causa da Serva de Deus.

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Citamos algumas. O Cardeal Maurílio Fossati, Ar­
cebispo de Turin1, escreve entre outras coisas: "Em­
bora de tão verdes anos, a Serva de Deus aparece espi­
ritualmente madura na virtude, duramente provada;
simples e cândida, ardente na piedade, generosa e forte
no sacrifício levado mesn10 até ao heroísmo da oferta
da vida pela salvação de st1a mãe.
"Nestes nossos tempos de tanta fraqueza e deso­
rientação moral da juventude que foge dos sacrifícios,
ávida de prazer, a a11gélica Serva de Deus pode ser mo­
dêlo e estímulo para os fortes e !Juros ideais cristãos,
ta11tas vêzes esquecidos.
"E a heróica Me11ina não refulge menos como
exemplo e advertência para as fan1ílias, recordando-lhes
os princípios de fôrça e integridade, por ela tão nobre-
111ente afirmados em luz de martírio".
"O exemplo luminoso de Laura Vicufia - diz D. Ni...
code1no, Arcebispo de Bari - faz a nossa juventude
muita vez vazia ou superficial e não raro cética - com­
preender admiràvelmente qual seja o sentido e qual o
valor da vida. Por isto ouso humildemente suplicar a
Vossa Santidade se digne dispor que seja introduzida
st1a Causa de Beatificacão e Ca11011izacão. A América
J j

terá u111a nova flor, un1 novo astro brilhará 110 firn1a-
mcnto da Igreja!"
Também Sua Excelência l)om Gagnor, Bispo de
Alexa11dria, depois de ter bosqt1ejado a figura de Laura
conclui: "É um exem1)lo de santidacle cristã que não

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pode ficar na sombra: merece ser conhecido, -exaltado e
proposto à imitação da juventude do nosso tempo, que
tanta necessidade tem de semelhantes modelos para
imitar".
Da centena ·e mais de cartas postuladoras enviadas
ao Episcopado das Repúblicas latino-americanas basta
citarmos o que escreveu D. Luís Chávez Gonzáles, Arce­
bispo de São Salvador. "Como a Virgem Inês, Laura
Vicufía mostrou virtude superior aos anos, chegando,
através da fiel correspondência à graça, aos píncaros do
heroísmo cristão, na imolação da própria vida para a
salvação espiritual de sua mãe. Seu ftllgido exemplo se
impõe não só à juventude hodierna, mas também aos
pais e educadores, e mostra a admirável fecundidade da
Igreja que se exorna sempre com novas flôres de graça
e de santidade, suscitadas entre as verdes almas ju­
venis".
* * *

As esperanças e os desejos da glorificação de Laura


Vicufía cresceram nos últimos tempos, enquanto o seu
nome de heróica Filha de Ma ria de dia em dia é mais
conhecido, admirado ·e invocado.
"Alegrei-me muito com a notícia dêste processo -
declarou Natalina Figueiroa em Viedma - e vim depor
com entusiasmo." "Ouvi dizer que se procuravam ele­
mentos para declarar santa a Serva de Deus - depôs
Emanuel Urrutia López - e me pareceu muito propo­
sitado, porque Laura merece ser beatificada" Também

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Francisca Mendoza, testemunha imediata como as pre­
cedentes, afirmou perante os juízes: "Apresento-me
para depor com prazer e com o desejo de ver La11ra
Vicufía elevada logo à honra dos altares". E a Irmã
Maria Vera: "Tenho muito desejo que a Serva de Deus
seja beatificada, convencida como estou do seu heroís­
n10 e da sua legítima fama de santidade".

Nern se pode omitir o voto cordial de Júlia Amanda


Vicufía: "Desejo viva1nente a beatificação da Serva de
Deu.s, IJorque estou co11vencida que ela mereceu de ver­
dade essa honra, e que pode ser proposta como modêlo
das n1eninas de sua idade."

* * *

Os restos da Serva de Deus, entrementes, tinham


sido em marco"' de 1954 reconhecidos canônicamente, co-
locados numa nova urna selada por S. Ex.ª Rev.111 ª D.
Afonso Maria Bt1tler, Bispo então das Províncias de
Mendoza e do Neuquén.
Depois dos processos informativos de Viedma, em
,dezembro de 1955 eram êles transportados privadamen­
te para Bahía Blanca, centro do Instituto das Filhas de
Maria Auxiliadora da Patagônia Setentrional.
E a dois de março de 1956, com a permissão do Ar­
cebispo, D. Geminia110 Esorto, eram tumulados na ca­
pela do Instituto local das Filhas de Maria Auxiliadora.
Recobre-os 11ma Iá1Jide marmórea que reza:

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AQUI REPOUSA NO SENHOR

LAURA VICU�A

FLOR �UCARÍSTICA DE JUNÍN DE LOS ANDES


CUJA VIDA FOI UM POEMA
DE PUREZA DE SACRIFICIO
DE AlVIOR FILIAL.
IMITEMO-LA

A invicta menina dos Andes Patagônicos, a apaixo­


nada Filha de Maria, o incomparável 1nodêlo das jovens
e das alunas espera agora o albor da glória.

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INDICE

APRESENTAÇÃO • • • • • ••• • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • 7

I. PRltll ,1,DIO DISSONANTE

Cap. 1 - No Exílio .. , , , � ................................... 15


Cap. 2 - Prepara-se o C'tentelro •........................... 29
Cap. 3 - Além dos A n t1 ••• ...........•...•••..••••••...••••• 38
Cap. 4 - Fatal Passo Mnl1�1·no .............................. 49

II. lf41.f )R DE SANTIDADE


Cap. 5 - Sob o Monto r1n Auxlllnclnru ...................... 63
Cap. 6 - Primeiro Ano 11• Cnllt11ln .........•............•.. 75
Cap. 7 - O Grande lC1wott l 11 11 , , , , , , , , , •••••••••••••••••••••• g3
Cap. 8 - ....l\.mizadl' e Rntll hlM1h1 , , , , • , • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • 109
Cap. 9 - Filha de Mn1·111 , , , , , , . , , , . , .....................•• 127
Cap. 10 - As FérlnH 'l 1ttt'l'h1 1l,ie • , •••..••••......•..•.••.••.• 141
Cap. 11 - Amnrguru.- f11tln1MN •• Vntn,- Privados .......•..•• 157
Cap. 12 - A orcrt11 cf II V httt 1 1 1 1 1 • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • 173
Cap. 13 - Nos Pin<'Ul'cH• t1o I h-•ruhmu, ....................... 187
Cap. 14 - último Ano 11�•,•ulut' , , , , ..........••.............. 207
Cap. 15 - Par a o O l' u �u , , , , , , , , , , , , , , . .....•••••••••.••••.••• 223
Cap. 16 - Derrad<-lra U11h1lhn 11 1)1lhn1u1 Despedidas .•...•.• 235
Cap. 17 - Triunfo a11
Ut•"�'" • ,1,. U �\r•lu .....•......••.... 247
Cap. 18 - E1lf loai,111 , , , , , , , , , , , , , , , , , ..•••.•••••••.••.••••••• 259

111. rttJM() Ans ALTARES

Cap. 19 - Fan,a d• Ns.11Ut.hu1• ,,, ,.......................... 275


Cap. 20 - A C1u1a d .. Ht1\Ul�11�&u , , .. , ..................... 287

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