Você está na página 1de 8

Necrológio de Francisco Adolpho de Varnhagen,

Visconde de Porto-Seguro 85

A Pátria traja de luto pela morte de seu historia­dor, – morte irre-


parável, pois que a constância, o fer­vor e o desinteresse que o caracteri-
zavam, dificilmente se hão de ver reunidos no mesmo indivíduo; morte
im­prevista, porque a energia com que acabara a reimpres­são de sua His-
tória, o vigor com que continuava novas empresas, a confiança com que
arquitetava novos pla­nos, embebedam numa doce esperança de que só
mais tarde nos seria roubado, depois de por algum tempo gozar do des-
canso a que lhe dava direito meio século de estudos e trabalhos nunca
interrompidos.
Filho da nobre Província de São Paulo, iluminava-lhe a fronte a
flama sombria de Anhanguera. O desconhecido atraía-o. Os problemas
não solvidos o apaixonavam. Códices corroídos pelo tempo; livros que
jaziam esquecidos ou extraviados; arquivos mar­c ados com o selo da con-
fusão, tudo viu, tudo exami­nou. Pelo terreno fugidio das dúvidas e das
incerte­zas caminhava bravo e sereno, destemido bandeirante à busca de
mina de ouro da verdade.
Muito moço, tivera de acompanhar o pai a Portu­gal e no exílio, ao
hálito perfumoso da saudade, infiltrara-se-lhe um patriotismo profundo
e casto. A Pá­t ria aparecia-lhe suave e virginal, envolta em um nimbo
vago e puro, como a memória de um ente amado, que não tornamos a ver,
e pelos campos em que brincara, pelas matas, a cuja sombra, se acolhera,
pelos céus, sob cuja cúpula abrira os olhos à luz da existên­cia, eram as
suas mais ternas e mais cordiais aspi­rações.
A essas aspirações veio dar nova força a campa­n ha que fez sob
as ordens do Duque de Bragança, o herói legendário que a seus olhos
de férvido realista simbolizava a alma da Pátria. O estudo das ciências
físicas que então cursava, não conseguiu con­c entrar em si o pensamento
que, inquieto, almejava por outros objetos. Persistente, como já então nos

85 Publicado originalmente no Jornal do Commercio, de 16 e 20 de Dezembro de 1878,


e reproduzido em Apenso à Historia Geral do Brasil, de Varnhagen, tomo 1.°, ps.
502/508, 4. ed., 1927; ABREU, João Capistrano de. Ensaios e Estudos: crítica e his-
tória, 1. série. Rio de Janeiro: Livraria Briguiet, 1931; ABREU, João Capistrano de.
Ensaios e estudos: crítica e história, 1. série, 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Bra-
sileira; Brasília: INL, 1975. Aqui, utilizamos o texto da primeira edição dos Ensaios
e estudos, 1931, com grafia atualizada. Agradecemos a Ítala Byanca Morais da Silva
pelas informações sobre Capistrano de Abreu e o Necrológio.

58 revista ieb n50 2010 set./mar. p. 27-78


aparece, dominado pelo respeito do que considerava dever, pôde levar a
termo o tirocínio acadêmico; po­rém, no cultivo das ciências, não era o
esmero das ob­servações, a beleza do método e das experiências, a força e
o alcance das teorias e generalizações, que lhe despertavam o interesse
ou incitavam a atividade; era a aplicação que de seus conhecimentos po-
dia fazer à Pátria, o dia que projetava sobre as coisas nacionais.
Um livro existia, vasto como uma enciclopédia, interessante como
um romance, fértil como um punha­do de verdades, roteiro, corografia,
história natu­ral, crônica. Longo tempo inédito, fora afinal publi­c ado pela
Academia das Ciências, porém mutilado, anônimo, inçado de erros, eiva-
do de incorreções.
Varnhagen determinou as posições geográficas, identificou as es-
pécies biológicas, corrigiu os erros dos copistas e do escritor, provou a
autenticidade do escrito de modo irrefragável, ao mesmo tempo que des­
cobriu o nome do autor – Gabriel Soares de Sousa.
Grande parte das Reflexões críticas sobre o livro deste – o primeiro
trabalho que imprimiu – perde­ram a atualidade em consequência de no-
vos estudos posteriores, em que ninguém entrou com capital maior que
o dele. Quando foram publicadas produziram o efeito de uma revelação,
abriram um mundo novo às investigações de todos aqueles que se ocupa-
vam de nossos anais.
Essa obra e a que de colaboração escreveu sobre a Corografia ca-
boverdiana mostram-no indeciso, flutuando entre as ciências positivas
e a história. À história pertencem todas as outras publicações suas; a
contar do Diário da navegação de Martim Afonso, preito rendido a São
Paulo, na pessoa do povoador e primeiro donatário da capitania.
Depois, embarca para o Brasil, e durante o tempo que aqui demora,
comunica ao Instituto o fogo que o abrasava. Percorre a Província do seu
nascimento, mas não é só o sentimentalismo que lhe guia os passos na
peregrinação: é a sina do futuro historiador que in­vestiga os cartórios,
compulsa as bibliotecas dos mos­t eiros, examina os padrões das outras
eras, colhe glos­sários e tradições, e nas localidades comenta e veri­fica os
dizeres de Taques e Frei Gaspar da Madre de Deus.
Voltando a Portugal, nomeado adido à nossa legação, não arrefece
um só instante. Na Revista do instituto pululam as memórias que envia,
como os do­cumentos que oferece, e quase não há sessão em que seu nome
não apareça. De frente com essas ocupações, que satisfariam outros me-
nos ambiciosos, ou fatigariam outros menos diligentes, leva os encargos
de editor: reimprime o Caramurú e o Uruguai, e publi­ca a até então des-
conhecida Narrativa de Fernão Cardim, o provincial jovial, bonachão e
viveur, tão fami­liar aos leitores das Minas de prata de José de Alencar.

59 revista ieb n50 2010 set./mar. p. 27-78


Aos tempos que passou em Lisboa ou aos que de perto se seguem,
prendem-se duas obras importantes: O florilégio da poesia brasileira,
com um esboço de história literária, onde têm ido beber – muitas vezes
sem confessá-lo – todos os que se têm ocupado com o assunto, e a edição
do Roteiro do Brasil, de Gabriel Soares, um dos seus maiores e melhores
títulos à gra­t idão do porvir.
Em Madri, para onde mais tarde foi removido, possui-o o mes-
mo espírito febril, e a ideia, que se tor­nara fixa, da história pátria. Em
Simancas, como em Sevilha, na Biblioteca Columbiana, como na do Es­
corial, colige a messe opulenta que ninguém ainda teve tão completa,
e, quando enfim saiu à luz a sua História, podia gabar-se de que um só
fato não existia que não tivesse pessoalmente examinado, ao passo que
os fatos materiais por ele descobertos, ou retificados, igualavam, se não
excediam, aos que todos os seus pre­decessores tinham aduzido.
Esgotada a primeira edição da História, com uma rapidez de que
entre nós há poucos exemplos, não se dá pressa em reimprimi-la; enfei-
xa novos dados, vi­sita as províncias; explora todos os lugares históricos,
sobe o rio da Prata, tendo à mão o roteiro de Pero Lopes; imprime ou
reimprime manuscritos raros ou curiosos.
Do Paraguai traz as obras de Montoya, hoje tão accessíveis e úteis
graças a ele e a Platzmann. No Chile discute os diários de Colombo e pro-
cura fixar a posição da verdadeira Guanahani. No Peru, em Ve­nezuela,
em Cuba, como em São Petersburgo, Estocolmo e Rio de Janeiro, em to-
dos os lugares que habita, ou atravessa, levado pelos deveres de diploma-
ta ou ca­pricho de touriste, principalmente em Viena, onde ultimamente
residia deixa traços fulgurantes de sua passagem em páginas inspiradas
pelo amor do futuro da Pátria e dominados pela preocupação constante
de seu passado.
Se a história do Brasil ocupa as suas faculdades, não as ocupa ex-
clusivamente: aqui publica o Livro das trovas e cantares, o Cancioneiro
do Conde de Barcelos, o Cancioneiro da Vaticana, que tanto concorreram
para o conhecimento da poesia portuguesa antiga. Ali edita as obras de
Vespúcio, escreve-lhe a biografia, comenta-o, defende-o, sustenta os seus
direitos à descoberta do continente que guarda seu nome. Além vulgari-
za a obra de Garcia da Orta, rara tanto como pre­ciosa, ou a carta de Co-
lombo, escrita ao voltar da primeira viagem. Hoje bate-se com D’Avezac,
Major e Netscher; mais tarde disserta sobre as novelas e livros de cava-
laria portuguesa, e afirma a origem turânia dos povos americanos. Por
fim entrega-se aos traba­l hos de pura fantasia: na Lenda de Sumé celebra
a tra­d ição encontrada pelos primeiros exploradores de um homem que
ensinara aos indígenas a agricultura e os rudimentos de civilização que

60 revista ieb n50 2010 set./mar. p. 27-78


possuíam; no drama de Amador Bueno mostra-nos a literatura nacional
como a compreende, e introduz-nos na sociedade dos tem­pos coloniais.
Sempre e sempre perseguia-o a ideia da história pátria. Enquanto
não publicava a nova edição, ou antes a refusão e remodelo da obra, es-
creveu um dos mais nobres capítulos, a História das lutas holandesas,
em cuja confecção empregou documentos abundantíssimos, descobertos
nos exames a que procedeu nos arquivos de Amsterdã e Haia.
Depois de constantes revisões que lhe levaram mais de vinte anos,
publicou de novo a História geral do Brasil, e, para tornar o preço menos
elevado, cede ao editor a propriedade da edição sem retribuição alguma.
Como coroa de seus cabelos brancos, sonha uma ter­c eira edição para
que desde então começou a prepa­rar-se, e prometeu-nos a História da
Independência, infelizmente destinada talvez a não ver a luz. 86 Em se­
guida abandona a posição cômoda e brilhante de nos­so ministro em Vie-
na, para, nos confins de nossos sertões, procurar um lugar pela posição
defensável, pela situação central, pelas condições higiênicas, próprio a
servir de capital a esta pátria, que tanto amava e que não mais devia ver.
Enquanto demorou nesta cidade examinou os panfletos, jornais e memó-
rias contem­porâneos do primeiro reinado que ia agora historiar; publica
na Revista do instituto o texto mais completo e fiel que possuímos da
carta encantadora de Vaz de Caminha. De passagem por Porto Seguro,
reconhece as localidades que viu Cabral na sua viagem afortu­nada. Ape-
nas chega a Viena, envia-nos o folheto retificando um erro que deixara
escapar quando con­f undiu em um dois botânicos brasileiros.
Pouco antes de morrer, quando a enfermidade mortal o obrigava
a guardar o leito, escrevendo a um amigo, o Dr. Ramiz Galvão, mui-
to digno diretor da Biblioteca Nacional, quase nem alude às dores que
o conservam prostrado e impotente: sobre questões de história pátria,
sobre pontos obscuros que deseja escla­recidos, sobre manuscritos, cuja
existência deseja co­n hecer, é que rola toda a carta.
Nobre e tocante vida votada ao trabalho e ao dever! Grande exem-
plo a seguir e a venerar!

II

Descoberto este continente, aqueles mesmos que tinham chama-


do a Colombo visionário foram os pri­meiros a achar facílima a empresa
e a gabar-se de po­der executá-la. Depois que Varnhagen publicou sua

86 A História da Independência acabou publicada postumamente, na Revista do IHGB,


Tomo LXXIX, 1916.

61 revista ieb n50 2010 set./mar. p. 27-78


História, e apresentou a massa ciclópica de materiais que acumulara,
muitos se julgaram aptos a erguer um monumento mais considerável,
e atiraram-lhe cen­suras e diatribes que profundamente nos pungiram.
Também ele tinha muitos pontos vulneráveis. Era dos homens inteiri-
ços, que não apoiam sem quebrar, não tocam sem ferir, e matam mos-
cas a pedra­das, como o urso do fabulista. Em muitos pontos em que
sua opinião não era necessária, ele a expu­n ha complacentemente, com
tanto maior complacência quanto mais se afastava da opinião comum.
Suas reflexões às vezes provocam um movimento de im­paciência que
obriga a voltar a página ou a fechar o volume. Muitos assuntos sem
importância, ou de importância secundária, só o ocupam por serem
des­c obertas suas. A polêmica com João Lisboa, em que tinha talvez
razão, porém em que teve a habilidade de por todo o odioso de seu lado,
converteu em inimigos seus os numerosos admiradores do grande ma-
ranhense. Homem de estudo e meditação, desconhecia ou desde­n hava
muitas das tiranias que se impõem com o nome de conveniências. Sen-
sível ao vitupério como ao lou­vor, se respirava com delícias a atmosfera
em que este lhe era queimado, retribuía aquele com expressões nada
menos que moderadas.
Essas feições são as que geralmente se associam no espírito do
leitor brasileiro ao nome do Visconde de Porto Seguro. Ninguém procura
sob as aparências rudes o homem verdadeiro – o trabalhador possante, o
explorador infatigável, o mergulhador que muitas ve­zes surgia exausto
e ensanguentado, trazendo nas mãos pérolas e corais. Parece que nos
domina a fa­t alidade de perceber os objetos sob os aspectos mais desfa-
voráveis; uma idiossincrasia tinge tudo de negro ou amarelo: cedemos
a uma predisposição pessimista, niilista, anárquica, talvez bebida com
as águas, ou inspirada com as nossas brisas, talvez herdada dos Tu­pis
que, segregados por lutas intestinas e rivalidades perpetuamente renas-
centes, não conseguiram fundar um estabelecimento análogo ao que se
encontrou no México e no Peru.
Entretanto, é difícil exagerar os serviços presta­dos pelo Viscon-
de de Porto Seguro à história nacional, assim como os esforços que fez
para elevar-lhe o tipo. Não se limitou a dar o rol dos reis, governadores,
capitães-móres e generais; a lista das batalhas, a crônica das questiún-
culas e intrigas que referviam no período colonial. Atendeu sem dúvida
a estes aspectos, a uns porque dão meio útil e empírico de grupar os
acontecimentos, a outros, porque rememoram datas que são doces ao
orgulho nacional, ou melhor esclarecem as molas que atuam sob dife-
rentes ações. Fez mais. As explorações do território, a cruzada cruenta
contra os Tupis, o aumento da população, os começos da in­dústria, as

62 revista ieb n50 2010 set./mar. p. 27-78


descobertas das minas, as obras e associa­ç ões literárias, as comunica-
ções com outras nações, assumem lugar importante em sua obra.
A sua opinião sobre os Tupis tem encontrado ge­ral desfavor: julga
que a compressão exercida sobre eles era mais que necessária, era indis-
pensável, e aos seus olhos as bandeiras que os paulistas levaram até as
missões jesuíticas eram a solução mais natural que se podia imaginar.
Sem querer defendê-lo, pode-se em todo caso chamar a atenção para cir-
cunstâncias atenuantes. Ele não colocou o debate no terreno abstra­to e
absoluto da justiça, porém no da conveniência e da utilidade. Na tragé-
dia que se desenrolava nas vei­gas platinas, ou nos campos amazônicos,
não via a braços a liberdade e a escravidão, porém, jesuítas que queriam
isolar os caboclos para convertê-los em instru­mento de manejos políti-
cos, e patriotas que queriam incorporá-los à civilização transformada
em forças vi­vas do progresso. Quem comparar o estado de São Paulo
com a calma podre daquele cemitério de um povo que se chama Para-
guai; quem não esquecer que nesses dois lugares funcionaram o sistema
que ele defende e o que combate, hesitará certamente antes de conde-
nar o historiador. Além disso, o exagero a que depois levou uma ideia
justificável, se não justa, a princípio não existia: brotou de contradições
veemen­tes e polêmicas irritantes. Acresce enfim que espí­r ito introspec-
tante, natureza subjetiva, determinada antes por impulsos íntimos que
influências extrínsecas, Varnhagen não primava pelo espírito compre-
ensivo e simpático, que, imbuindo o historiador dos sentimen­tos e situ-
ações que atravessa – o torna contemporâneo e confidente dos homens e
acontecimentos.
A falta de espírito plástico e simpático – eis o maior defeito do Vis-
conde de Porto Seguro. A Histó­r ia do Brasil não se lhe afigurava um todo
solidário e coerente. Os pródromos da nossa emancipação polí­t ica, os
ensaios de afirmação nacional que por vezes percorriam as fibras po-
pulares, encontram-no severo e até prevenido. Para ele, – a Conjuração
Mineira é uma cabeçada e um conluio; a Conjuração Baiana de João de
Deus, um cataclisma de que rende graças à Providência por nos ter li-
vrado; a Revolução Pernam­bucana de 1817, uma grande calamidade, um
crime em que só tomaram parte homens de inteligência estreita, ou de
caráter pouco elevado. Sem D. Pedro a inde­pendência seria ilegal, ilegíti-
ma, subversiva, digna da forca ou do fuzil. Juiz de Tiradentes e Gonzaga,
ele não teria hesitado em assinar a mesma sentença que o desembarga-
dor Diniz e seus colegas.
Mesmo assim a obra de Varnhagen se impõe ao nosso respeito e
exige a nossa gratidão, e mostra um grande progresso na maneira de
conceber a história pátria. Já não é a concepção de Gândavo e Gabriel

63 revista ieb n50 2010 set./mar. p. 27-78


Soares, em que o Brasil é considerado simples apêndice de Portugal, e a
história um meio de chamar a emigração, e pedir a atenção do governo
para o estado pouco defensável do país, sujeito a insultos de inimigos,
contra os quais se reclama proteção. Não é a concepção dos cronistas
ecclesiásticos, que vêem simplesmente uma província, onde a respectiva
Congrega­ç ão prestou serviços, que procuram realçar. Não é a de Rocha
Pita, atormentado pelo prurido de fazer es­t ilo, imitar Tito Lívio e achar
no solo americano cenas que relembrem as que passaram na Europa.
Não é a de Southey, atormentado ao contrário pela impaciên­cia de fugir
às sociedades do Velho Mundo, visitar países pouco conhecidos, saciar a
sede de aspectos originais e perspectivas pitorescas, a que cedem todos
os poetas transatlânticos, desde os autores de Atala e do Corsário até os
das Orientaes e Clara Gazul... Não. Varnhagen atende somente ao Bra-
sil, e no correr de sua obra procurou sempre, e muitas vezes conseguiu
colocar-se sob o verdadeiro ponto de vista nacional.
É pena que ignorasse ou desdenhasse o corpo de doutrinas cria-
doras que nos últimos anos se constituíram em ciência sob o nome de
sociologia. Sem esse facho luminoso, ele não podia ver o modo por que
se elabora a vida social. Sem ele as relações que ligam os momentos su-
cessivos da vida de um povo não po­d iam desenhar-se em seu espírito
de modo a esclarecer as diferentes feições e fatores reciprocamente. Ele
poderia escavar documentos, demonstrar-lhes a au­t enticidade, solver
enigmas, desvendar mistérios, nada deixar que fazer a seus sucessores
no terreno dos fa­tos: compreender, porém, tais fatos em suas origens, em
sua ligação com fatos mais amplos e radicais de que dimanam; genera-
lizar as acções e formular-lhes teoria; representá-las como consequên-
cias e demonstração de duas ou três leis basilares, não conseguiu, nem
consegui-lo-ia.
Fa-lo-á alguém? Esperemos que sim. Esperemos que alguém, ini-
ciado no movimento do pensar contem­porâneo, conhecedor dos méto-
dos novos e dos instru­mentos poderosos que a ciência põe à disposição
de seus adeptos, eleve o edifício, cujos elementos reuniu o Visconde de
Porto Seguro.
Sinais de renascimento nos estudos históricos já se podem per-
ceber. Publicações periódicas vulgarizam velhos escritos curiosos, ou
memórias interessantes esclarecem pontos obscuros. Muitas províncias
com­põem as respectivas histórias. Períodos particulares, como a Revolu-
ção de 1817, a Conjuração Mineira, a Independência, o Primeiro Reinado,
a Regência, são tratados em interessantes monografias. Por toda parte
pululam materiais e operários; não tardará talvez o arquiteto.

64 revista ieb n50 2010 set./mar. p. 27-78


Que venha, e escreva uma história da nossa pátria digna do sé-
culo de Comte e Herbert Spencer. Inspi­rado pela teoria da evolução,
mostre a unidade que ata os três séculos que vivemos. Guiado pela lei
do consensus, mostre-nos o rationale de nossa civilização, aponte-nos a
interdependência orgânica dos fenômenos, e esclareça uns pelos outros.
Arranque das en­t ranhas do passado o segredo angustioso do presente,
e liberte-nos do empirismo crasso em que tripudiamos. Mas, ah! bem
pouco digno serás de tua missão, oh! nobre pensador, se não sentires
a gratidão inundar-te o peito, se não sentires o respeito e a veneração
domina­rem-te a alma, se não ajoelhares fervoroso e recolhido ante o tú-
mulo de um grande combatente, que jamais abandonou o campo – Fran-
cisco Adolfo de Varnhagen, Visconde de Porto Seguro.

João Capistrano de Abreu (1878)

65 revista ieb n50 2010 set./mar. p. 27-78

Você também pode gostar