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Arte e Psicologia: uma relação delicada

Alex Moreira Carvalho1

No dia-a-dia é comum ouvirmos artistas, críticos e apreciadores da arte


relacionarem, de maneira mais ou menos sistematizada, arte e psicologia. Com efeito,
muitas vezes, nessas situações, avalia-se o objeto estético levando-se em conta a
personalidade do artista que o produziu. Em alguns casos, informações sobre a história
de vida do artista estão disponíveis nos meios de comunicação, divulgados por ele
mesmo ou por biografias dos mais variados tipos, o que facilita e até estimula este tipo
de avaliação. Ao mesmo tempo, os impactos diversos gerados por uma obra de arte em
diferentes pessoas são considerados em função de mecanismos psicológicos específicos
que caracterizam, pelo menos à primeira vista, a subjetividade do receptor. Também
ocorre, nestes casos, comentários sobre as motivações psicológicas, mais ou menos
explícitas em uma obra, que poderiam explicar as ações de certos personagens em um
filme ou em uma peça de teatro, por exemplo. Seja na análise da produção e da recepção
ou na consideração de aspectos internos de um objeto artístico, a psicologia se faz, pois,
presente, como se ela fosse um elemento necessário, senão suficiente, para que se possa
dotá-lo de uma certa inteligibilidade.
Um exemplo talvez seja necessário para tornar ainda mais claro o que se
acabou de afirmar. O filme “O ponto final” (Match Point, UK/EUA/ Luxemburgo, BBC
Filmes, 2005), escrito e dirigido por Woody Allen, foi considerado, por alguns críticos e
espectadores, como surpreendente, uma vez que suas personagens, tal como foram
mostradas na trama cinematográfica, não teriam os perfis psicológicos que sempre
revelaram, em outras produções, a personalidade do autor, isto é, sua visão de mundo,
sobretudo de si mesmo. Teria Woody Allen mudado, sobretudo depois de tantas sessões
de psicanálise? Outros críticos e espectadores, no entanto, vislumbraram uma
continuidade na obra do diretor americano. Alguns lembraram que pelo menos o
desfecho do filme revela uma característica forte do diretor, sempre presente em seus
filmes: a ironia. Outros que o tema da culpa, assim como a influência de Dostoiévski
(citado no filme aqui considerado) é uma constante na vida e nos trabalhos de Woody
Allen. No campo da recepção, as opiniões sobre “O ponto final” foram variadas. Muitas recepção
pessoas se identificaram com a personagem central, apesar dos crimes por ela ambivalente
praticados, julgando a vida como um lance de sorte, pura e simplesmente; outras do público
condenaram a personagem, a partir de outras convicções pessoais e mesmo não muito
conscientes. Finalmente, certas avaliações foram feitas considerando a trama em si
mesma e a psicologia das personagens: suas motivações mais inconscientes, suas
dificuldades de toda ordem e as vicissitudes da vida contemporânea - suas contradições
sociais, políticas e existenciais.
É claro que as análises dos diferentes aspectos de uma obra de arte não
são excludentes. De fato, pode se considerar aspectos do ato criador ou da personalidade
do autor e relacioná-las com os da recepção e da trama em si mesma. No entanto, o que
cabe salientar aqui é a presença da psicologia no cotidiano, quando se trata de avaliar
um objeto estético. De fato, seja como conceitos articulados em uma abordagem
específica da psicologia, seja como uma espécie de psicologia do senso-comum, as
avaliações da arte quase sempre se nos aparecem, nos discursos de críticos e
espectadores, perpassadas por esta maneira de ver o mundo. Cabe lembrar, porém, que a
psicologia, como disciplina com a pretensão de ciência ou pelo menos de conhecimento
1
Doutor em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor do curso de
Psicologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
sistematizado e independente de outras disciplinas, é muito recente na história do
pensamento ocidental. Com efeito, surge apenas na segunda metade do século XIX.
Mais: não é uma disciplina unívoca, isto é, existem várias psicologias, diferenciadas em
função de seus pressupostos epistemológicos e ontológicos. Assim, por que tanta ênfase
neste tipo (ou melhor, tipos) de explicação? Como se verá em seguida, há bons motivos
para aliar arte e psicologia, mas estes só assim o são se for lembrado que: (1) a
psicologia como conhecimento sistematizado e com pretensão de conhecimento
específico só surge, como já foi dito, na segunda metade do século XIX, quando a
chamada subjetividade privatizada se afirma, propondo uma autonomia intelectual e
moral do indivíduo2 que, paradoxalmente, entra em crise e (2) a natureza da Arte precisa
ser discutida. Na verdade, a segunda condição se nos é primordial para discutirmos a
relação entre arte e psicologia, seja porque a atividade artística antecede a constituição
do discurso psicológico, quer porque, como será visto, a Arte ultrapassa a própria
psicologia, isto é, não se limita à análise psicológica, podendo e devendo ser objeto da
filosofia, das ciências sociais e de outras disciplinas.3
Neste artigo, será discutido, pois, ainda que de forma preliminar, as
relações entre Arte e psicologia a partir da consideração da inserção da segunda no
campo do cotidiano. Para tal dividiu-se o texto em duas partes: (1) considerações sobre
a arte, com o intuito de mostrar suas relações com a estética e as dificuldades inerentes
ao conceito de arte e (2) as contribuições da psicologia para a análise do fenômeno
artístico, a partir da lembrança de sua própria constituição e da análise de um teórico em
psicologia: Lev S. Vigotski. A escolha do autor russo se deu por dois motivos: (1) em
função de seu valor heurístico, uma vez que a discussão que faz, ainda antes de elaborar
sistematicamente sua psicologia, traz muitos elementos interessantes para a
consideração das contribuições dessa disciplina para o estudo do fenômeno artístico e
(2) por causa da relativamente recente tradução de seus estudos sobre a Arte no Brasil, o
que significa também que sua inserção nos currículos de psicologia ainda não ocorreu
de forma significativa.

Considerações sobre a Arte

O valor de uma obra de arte é tanto maior quanto é puramente artístico o meio de
manifestar a idéia.

Fernando Pessoa

Vários artistas produziram discursos sobre a natureza da arte, seja como


ensaios teóricos (por exemplo, Borges, 2000 e Cortázar, 1993) ou como proposta
filosófica (por exemplo, Schiller, 2002, Pessoa, 1998 ou Ostrower, 1987), quer como
metalinguagem (entre outros, Lispector, 1992 ou Quintana, 1977). Vê-se, pois, que a
reflexão sobre o ofício que praticam não é estranha a, pelo menos, alguns artistas.
Assim, pode ser útil começar a discutir o assunto a partir das vozes dos artistas. Mário
Quintana (1977), por exemplo, escreveu o seguinte poema:

Descobrir continentes é tão fácil como esbarrar com

2
A constituição histórica da subjetividade privatizada vai ser importante para analisar a experiência
estética, uma vez que coloca em cena a questão da interpretação pessoal, da maneira, a princípio,
particular como cada um pode interpretar os objetos artísticos.
3
Nesse sentido, uma abordagem interdisciplinar sempre é mais pertinente quando se toma como objeto de
estudo a Arte.
um elefante:
Poeta é o que encontra uma moedinha perdida...

A moedinha perdida: eis o que o poeta deve encontrar. Mas qual o


sentido ou sentidos desta metáfora? Trata-se, sem dúvida, justamente de uma metáfora,
a partir da qual se configura um fenômeno – a atividade artística, sua natureza. Assim, o
autor gaúcho não utiliza conceitos, isto é, palavras cujos significados são construídos e
instituídos socialmente, segundo um acordo mais ou menos tácito entre os membros de
uma comunidade verbal. Tais conceitos fazem parte do dia-a-dia e aparecem, inclusive,
como integrantes dos dicionários. Em outras palavras, são compartilhados por todos os
indivíduos de uma cultura, facilitando a comunicação cotidiana. Mesmo no caso dos
conceitos científicos ou filosóficos há um rigoroso processo de elaboração pelo qual as
palavras adquirem sentidos tão precisos quanto possíveis. No caso de Quintana,
obviamente a moedinha perdida não é uma moedinha perdida, tal como usamos esta
poeta é aquele expressão quando estamos à procura deste tipo de objeto. Sem dúvida há algo a ser
que sabe que encontrado, algo tão pequeno e aparentemente tão sem importância quanto difícil de ser
há algo a ser achado. Com efeito, no poema, cujo título é Descobertas, se estabelece uma espécie de
buscado
analogia: é fácil encontrar continentes (que também não são continentes, no sentido
corriqueiro do termo), mas é difícil achar moedinhas perdidas. O que foi, pois, perdido e
deve ser ávida e arduamente encontrado pelo poeta e seus leitores?
Clarice Lispector (1992) pode nos ajudar a responder esta questão. Diz
ela:

Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que
não é palavra. Quando essa não-palavra – a entrelinha – morde a isca, alguma coisa se
escreveu. Uma vez que se pescou a entrelinha, poder-se-ia com alívio jogar a palavra
fora. Mas aí cessa a analogia: a não-palavra, ao morder a isca, incorporou-a. O que
salva então é escrever distraidamente.

A entrelinha, segundo Lispector, deve ser pescada, assim como a


moedinha perdida, no poema de Quintana, deve ser encontrada. Algo deve ser
constituído pelo fazer do artista, algo que está além da palavra ou de continentes. Que
algo é este? Como já vimos, o artista-escritor forma ou elabora objetos nos quais as
palavras ultrapassam seus sentidos usuais ou cotidianos. Ao pretender pescar a não-
palavra o autor quer, pelo menos, se aproximar de um tipo de experiência humana que
nem sempre se nos apresenta de forma imediata: a experiência da sensibilidade,
experiência esta que muitas vezes não se consegue traduzir com os conceitos que
aprendemos. A Arte faz ou tenta fazer esta tradução.
Dada a importância, para o entendimento da Arte, da idéia que se acabou
de apresentar, necessário se faz aprofundá-la. Segundo Piaget (1985), o
desenvolvimento da função simbólica começa a ocorrer por volta dos dois anos de
idade. Desde então:

A linguagem, permitindo ao sujeito contar suas ações, fornece de uma só vez a


capacidade de reconstituir o passado, portanto de evocá-lo na ausência de objetos
sobre os quais se referiram as condutas anteriores, de antecipar as ações futuras, ainda
não executadas, e até substituí-las, às vezes, pela palavra isolada, sem nunca realizá-
las. Este é o ponto de partida do pensamento. Mas, aí, deve-se acrescentar que a
linguagem conduz à socialização das ações; estas dão lugar, graças a ela, a atos de
pensamento que não pertencem exclusivamente ao eu que os concebe, mas, sim, a um
plano de comunicação que lhes multiplica a importância. A linguagem é um veículo de
conceitos e noções que pertencem a todos e reforçam o pensamento individual com um
vasto sistema de pensamento coletivo. Neste, a criança mergulha logo que maneja a
palavra. (pp.27-28)

Na perspectiva psicogenética de Piaget, a aquisição da linguagem ocorre


em função de um processo de equilibração, pelo qual a criança vai cada vez mais se
acomodando aos conceitos tais como são socialmente compartilhados. O que nos
interessa aqui é que, ao final deste processo, como salienta Piaget, a criança mergulha
no sistema de pensamento coletivo, isto é, nos conceitos socialmente elaborados,
conceitos que fixam determinadas formas de perceber o mundo, dotando-o de
significados mais ou menos precisos. Vigotski (1984) também considera fundamental,
para que ocorra a constituição das funções psicológicas superiores, isto é, das
características tipicamente humanas do comportamento, o desenvolvimento da função
semiótica. Segundo ele, a invenção e uso de signos para solucionar um problema
psicológico (lembrar, relatar, comparar, escolher etc.) é análogo à invenção e uso de
instrumentos no trabalho. Mas analogia não implica identidade dos conceitos: o signo,
com efeito, é um meio de interação social; já o instrumento um meio de trabalho para
dominar a natureza. Existe, no entanto, um ponto em comum entre instrumento e signo:
ambos se constituem como mediação, isto é, como elementos que se situam entre o
homem e a natureza (o instrumento) ou entre homens (o signo). Em outras palavras, no
último caso, “...a essência de seu uso consiste em os homens afetarem o seu
comportamento através dos signos.” (p.62). Assim, para Vigotski, o uso de signos
modifica a maneira de operar do sujeito, o que significa que o comportamento humano
não é apenas biologicamente determinado. Como os signos são produtos sociais, uma
vez internalizados passam a funcionar como óculos a partir dos quais o mundo físico e
social torna-se grávido de significados. Desta forma se constituem as funções
psicológicas superiores, ou seja, as operações tipicamente humanas e que se
caracterizam pela (1) intencionalidade do comportamento; (2) independência do
controle de situações imediatas e (3) possibilidade de autocontrole, sob a forma
consciente.
Como pode ser notado, também em Vigotski a linguagem é concebida
como veículo material de conceitos forjados no campo social. As relações que os
homens estabelecem entre objetos, a maneira como avaliam as ações de outros homens,
assim como as suas, entre outras operações psicológicas, são possíveis graças à
mediação da linguagem. Se, por um lado, a construção de conceitos por esta via
humaniza o homem, por outro pode deixá-lo sob controle de visões de mundo que estão
pré-determinadas. É que, ao conceituar, deixa-se de lado vários aspectos da realidade,
isto é, acaba-se por estabelecer um processo pelo qual se iguala o que, afinal, não é
igual. Em outras palavras, o conceito é uma forma de estabelecer uma identidade para
aspectos da realidade que, afinal, são diferenciados, se os olharmos com atenção. Na
verdade, trata-se de uma escolha ontológica: busca-se, para fins práticos, igualar o não-
igual, excluindo-se, assim, as diferenças que, afinal, constituem o real. Nietzsche (1999)
analisou bem este processo. Diz ele:

Todo conceito nasce pela igualação do não-igual. Assim como é certo que uma folha
nunca é inteiramente igual a outra, é certo que o conceito de folha é formado pelo
arbitrário abandono dessas diferenças individuais, por um esquecer-se do que é
distintivo, e desperta então a representação, como se na natureza além das folhas
houvesse algo, que fosse a “folha”, uma espécie de folha primordial, segundo a qual
todas as folhas fossem tecidas, desenhadas, recortadas, coloridas, frisadas, pintadas,
mas por mãos inábeis, de tal modo que nenhum exemplar tivesse saído correto e
fidedigno como uma cópia fiel da forma primordial. (p. 56)

A análise de Nietzsche é, na verdade, uma crítica a grande parte da


filosofia ocidental que, segundo ele, desde Parmênides e Platão, procura as formas
universais dadas pelos conceitos e, assim, se esquece da avaliar a gênese dos próprios
conceitos. Isto teria ocorrido em função de um pressuposto ontológico e
epistemológico: o princípio da identidade, isto é, o relacionado ao suposto de que os
seres são e não podem deixar de ser, princípio que contradiz uma outra concepção de
mundo formulada, por exemplo, por Heráclito, que assume o real como devir, isto é,
como história. Por isso, para o filósofo alemão, se faz necessário analisar a história
social dos conceitos e discutir as visões de mundo por elas fixadas. Aliás, esta também é
a proposta de Vigotski. De todo modo, a linguagem, ao estabelecer conceitos, para fins
utilitários, forja maneiras se pensar, sentir e agir que, por um lado, permitem a ação
cotidiana e, por outro, exclui certas experiências, já que, ao conceituar, não alcança
experiências que nos são quase intraduzíveis ou deixadas de lado por não representarem
visões oficiais ou ideológicas e politicamente valorizadas. Neste sentido, a formulação
de conceitos pela via da linguagem é uma questão de poder.
Se assim o é, a Arte, como vínhamos afirmando, busca justamente
exprimir diferenças, isto é, aquilo que não se traduz, a princípio, no plano da própria
experiência estética, por conceitos pré-fixados e que diz respeito aos sentimentos e a
novas formas de conceber o real. Não é por outro motivo que Langer (2003), assim
como Duarte Jr (1986), concebem a Arte como criação ou invenção de formas
simbólicas que se dão à percepção humana e expressam sentimentos que dificilmente
aparecem na linguagem que se utiliza na experiência prática, mais utilitária ou
funcional.4 Aliás, a ausência de uma utilidade imediata da Arte causa, muitas vezes, um
estranhamento. Mas, como afirma Perrone-Moisés (1992), em um texto que homenageia
o poeta Mallarmé:

O poema vem lembrar, imperiosamente, que tudo é linguagem e que esta engana. Que a
linguagem está o tempo todo fingindo-se de transparente, de prática e de unívoca, e nos
enreda num comércio que nada tem de essencialmente verdadeiro e necessário. (...) Aos
racionalistas incomoda o vago da linguagem poética, sua ausência de sentido imediato,
claro e fixo. Como se isso fosse um luxo indecente, um atentado contra a humanidade,
que necessita de respostas concretas e soluções rápidas. O que esses críticos não vêem
é que a abertura do sentido, na poesia, é um luxo doado a todos os homens, o direito a
todos os futuros, a contra-corrente do sentido único da ética oficial, dos governos e das
finanças.

Desta forma, a moedinha perdida de Quintana ou a entrelinha de Lispector


são formas específicas, isto é, estéticas, de configurar o significado da Arte. Em outras
palavras, mostram o que quase nunca se mostra na linguagem cotidiana: os sentimentos
e outras formas de entender o mundo Mais: o escrever distraidamente, conselho de

4
Nesse sentido, apesar de fazer parte do cotidiano, a arte pretende ultrapassá-lo, uma vez que não possui
as características que, segundo Heller (1972), o constituem, isto é, a existência de ações não refletidas; o
caráter imediato ou simplesmente funcional dessas ações; a necessidade de respostas imediatas para a
solução de problemas prementes; a tendência para a construção de juízos ultrageneralizadores, entre
outras.
Clarice, surge como um apelo ao deliberado desprezo pelos conceitos já postos, como
exigência metodológica para que a forma artística se constitua, possibilitando o que lhe
é peculiar, isto é, justamente sua estrutura estética. Ao mesmo tempo, pode-se dizer que
o leitor é também convidado a ler distraidamente, ou seja, que ele, como o produtor de
Arte, fique engravidado dos diferentes estilos que constituem as variadas Artes e, fora
do mundo pensado e programado racionalmente, se deixe adentrar em um outro mundo,
também ele estruturado: o da sensibilidade. Por este motivo é que Cortázar afirma que,
na verdade, a arte, sendo o contrário da realidade cotidiana, é que é a realidade.O poema
de um outro artista pode nos ajudar a entender mais e melhor a concepção genérica de
Arte aqui apresentada. Chico Buarque (1997) escreveu e musicou Mar e Lua:

Amaram o amor urgente


As bocas salgadas pela maresia
As costas lanhadas pela tempestade
Naquela cidade
Distante do mar
Amaram o amor serenado
Das noturnas praias
Levantavam as saias
E se enluaravam de felicidade
Naquela cidade
Que não tem luar
Amaram o amor proibido
Pois hoje é sabido
Todo mundo conta
Que uma andava tonta
Grávida de lua
E outra andava nua
Ávida de mar
E forma ficando marcadas
Ouvindo risadas, sentido arrepios
Olhando pro rio tão cheio de lua
E que continua
Correndo pro mar
E foram correnteza abaixo
Rolando no leito
Engolindo água
Boiando com as algas
Arrastando folhas
Carregando flores
E a se desmanchar
E foram virando peixes
Virando conchas
Virando seixos
Virando areia
Prateada areia
Com lua cheia
E a beira mar.
Salta à vista a forma como Chico Buarque escolhe e estrutura palavras e
versos de tal modo que o poema se nos faz penetrar em um mundo lírico que não existe
exceto nele mesmo. Ao mesmo tempo, o conteúdo ou o material5 do texto – o amor
entre duas mulheres –, só existe e insiste por causa da forma pela qual foi produzido.
Não existe como algo à parte da construção simbólica que o poeta foi capaz de
conceber. Poder-se-ia fazer uma tese de doutorado sobre o amor entre mulheres ou uma
reportagem jornalística sobre o mesmo tema. No entanto, a forma artística se impõe
como única, lírica, de tal maneira que o que se diz está incrustado na estrutura do
poema. As imagens selecionadas pelo poeta, assim como o jogo das rimas e da métrica
criam, eles mesmos, uma espécie de dança pela qual o amor aparece mais forte que as
convenções sociais existentes no dia-a-dia.6 Do mesmo modo, poder-se-ia ter acesso a
um relato policial que contivesse a descrição de um crime. Normalmente, nestes casos, a
descrição pretende ser objetiva e fria, de tal modo que os chamados fatos surjam no
âmbito de uma linguagem a mais convencional possível. Já o que se observa em Psicose
(de Alfred Hitchcock, EUA, Paramount Pictures, 1960), por exemplo, é uma narrativa
cinematográfica de um assassinato em um banheiro de um quarto de motel que se nos
seduz pela agilidade da tomada de planos, da utilização da luz e da sombra, pela agonia
que tal maneira de compor a seqüência engendra em nós, espectadores, e que acaba com
a câmera ágil do cineasta se aproximando do ralo da banheira onde se misturaram cada
vez mais água e sangue. De novo: a forma de narrar, isto é, a maneira de ordenar as
imagens em movimento, é que plasma um conteúdo, assim como os sentimentos e
idéias a ele relacionado. Ou, como afirma Perrone-Moisés (1990), ao discutir o processo
de criação do texto literário:

Contrariamente ao que pensam os que têm uma concepção meramente instrumental da


linguagem, a formalização (pejorativamente chamada de artifício), na literatura, não é
alienação e sim a busca de uma certa verdade. O trabalho da forma é indispensável
porque só ela dá aquela visão aguçada que abre trilhas no emaranhado das coisas. Ao
selecionar, o escritor atribui valores, e ao fazer um arranjo novo sugere uma
reordenação do mundo. É por esse artifício da forma que a literatura atinge uma
verdade do real, e é por atingir essa verdade que escandaliza. Flaubert dizia que nunca
é o fundo que escandaliza mas a forma. (p.106)

Considerou-se, até aqui, uma idéia bastante genérica de Arte. Na verdade


não se tem, neste artigo, nenhuma pretensão de definir Arte. Sabe-se que se trata de uma
experiência relacional, isto é, que, como afirma Duarte Jr. (1985), a experiência estética
está entre o sujeito e o objeto, constituindo-se, pois, como interação. No entanto, como
5
Por conteúdo ou material se entende aqui o assunto, tema ou história que, parte do cotidiano, serve de
ponto de partida para a elaboração estética.
6
Nesse sentido, Perrone- Moisés (1990) afirma: “A literatura parte de um real que pretende dizer, falha
sempre ao dizê-lo, mas ao falhar diz outra coisa, desvenda um mundo mais real do que aquele que
pretendia dizer. (p.102) Ou ainda: “... a obra literária é construção do real e convite permanente ao seu
ultrapassamento. (...) a literatura nunca está afastada do real. Trabalhar o imaginário pela linguagem não é
ser capturado pelo imaginário, mas capturar, através do imaginário, verdades do real que não se dão a ver
fora de uma ordem simbólica. A fuga do real ou o seu oposto, o realismo, nunca se efetuam totalmente na
literatura, pois as duas atitudes têm o real como horizonte e a linguagem como mediação. A linguagem é
obstáculo, no caminho do real, mas é também possibilidade de fundá-lo. Fora da ordem da linguagem, o
real é apenas caos. Como lembra Octavio Paz, ‘a palavra não só diz o mundo, mas também o funda – ou o
transforma’. Pretendendo substituir o real ou, pelo contrário, espelhá-lo, sempre é a ele que a literatura se
refere. Tanto a fuga como o mergulho obrigam-nos a ver esse real, a questioná-lo e a reinventá-lo.”
(p.109)
salienta, Frayze-Pereira (1994), a única maneira de se estudar o fenômeno estético é
considerar a história da Arte, posto que, em geral, é comum se confundir um programa
particular de Arte (ou uma poética) com uma definição fechada desta atividade. Com
efeito, o trabalho artístico e, portanto, a maneira de fazer Arte, muda historicamente, o
que é inerente à própria atividade que se quer invenção ou criação. Uma vez que se
toma um programa como uma definição absoluta de Arte, rompe-se com o fenômeno tal
como ele sempre se apresentou na história humana: como processo de reinvenção
constante de si mesmo.
Porém, como salientam Frayze-Pereira (1994) e Cândido (1995), é
possível, olhando para a história da arte e as diferentes definições que aí surgem,
considerar três facetas que constituem o fenômeno artístico. Em primeiro lugar ele é um
fazer ou uma construção de objetos simbólicos estruturados de tal forma que se
transformam em significados. Este aspecto da Arte foi, sobretudo, valorizado na
Antigüidade quando o aspecto formador ou fabril era bastante considerado. Em segundo
lugar, a Arte pode ser vista como uma maneira de exprimir sentimentos e idéias,
sobretudo de emoções e de concepções de mundo de indivíduos e/ou de grupos sociais.
Tal visão do fenômeno artístico é típica do Romantismo do século XIX e muito
difundido até hoje, inclusive na psicologia. Finalmente, a Arte pode ser considerada
como uma forma de conhecimento, isto é, ela possui um valor cognitivo (que foi
bastante enfatizado no Renascimento), já que atribui significados ao mundo,
significados que podem ser percebidos e elaborados, por quem a usufrui, de forma
consciente ou mesmo inconsciente.
No entanto, ainda é necessário enfatizar na discussão sobre os três
aspetos da Arte acima relacionados, o papel da forma na constituição dos fenômenos
artísticos. Em outras palavras, a ciência, assim como a filosofia e mesmo o que se
chama de conhecimento do tipo senso-comum, também se constituem como fazer, como
expressão de sentimentos e idéias e, claro, como conhecimento do mundo. Qual a
diferença, pois, entre eles e a atividade artística? Sem dúvida há criação na ciência, por
exemplo – e o debate entre as várias tendências teórico-medológicas e mesmo a
discussão entre os limites entre ciência e ficção assim o mostram. Há também, neste
campo, expressão de idéias e de sentimentos – e a crítica a um positivismo tacanho
deixa clara a impossibilidade da neutralidade científica. E, sem dúvida, a ciência se
pretende produtora de conhecimento.Como, então, situar a especificidade da Arte com
relação aos outros campos da atividade Humana? Frayze- Pereira (1994) responde bem
a esta questão:

Pensar a articulação exprimir – conhecer – fazer, rompendo com a atitude isolante, que
opera com positividades, é, através de Pareyson (1984), a maneira de nos
aproximarmos de uma resposta que dê conta da concretude da arte.
Com efeito, a arte é necessariamente expressiva enquanto é forma, isto é, um ser que
“vive por conta própria e contém tudo o que deve conter”. E esta afirmação significa
que “a forma é expressiva enquanto o seu ser é um dizer”. Nesse sentido, ela não tem
significado, mas é um significado. Mas, a partir daí entende-se porque a arte é também
um conhecer, pois ao revelar um sentido das coisas, o faz de modo particular,
ensinando uma nova maneira de perceber a realidade. Esse novo olhar é revelador
porque é construtivo, isto é, formador. Nessa medida, é um olhar que se prolonga no
fazer, “como o olho do pintor cujo ver já é um pintar (Idem, p. 31). Conclusão: a arte é
um fazer. Mas é um fazer específico. Ou seja,“É um tal fazer que, enquanto faz, inventa
o por fazer e o modo de fazer”. (p.17).
Um texto de Lygia Fagundes Telles (1980), que não será aqui
interpretado, justamente para que o leitor o considere como parte de sua experiência
estética, será apresentado a seguir.

O comilão

Gostava de ostras mas tinha preconceito, evitava olhar para essa coisa que ia comendo
apressado, impaciente, a expressão de repugnância mas a boca salivante de prazer.
Exigia as ostras vivas porque então o apetite ficava insuportavelmente excitado ao
imaginá-las se contraindo na morte sob o sumo do limão. Também gostava de putas.

Pode-se sintetizar o que foi explicado, desde a introdução, até aqui, nos
seguintes pontos:

- uma obra de arte pode ser analisada em função do seu produtor, do seu receptor ou
a partir das considerações de seus aspectos internos. Leite (2002) enfatiza tal
possibilidade, embora tal divisão seja, até certo ponto, uma questão didática, uma
vez que a experiência estética se constitui como relação entre estes aspectos;

- na experiência estética, o receptor se defronta com um tipo de linguagem que não é


convencional ou utilitário; com efeito, trata-se de uma linguagem mais conotativa
que denotativa, o que significa um trabalho de leitura que vai além das regras
estabelecidas pala linguagem para uma comunicação habitual;

- esse tipo de linguagem constitui formas simbólicas que, como aponta, entre outros,
Langer (2003) se apresentam à percepção humana como modos de expressão de
sentimentos que, de outra maneira, não poderiam ser ditos;

- compreender a Arte significa compreender sua história; ainda assim, é possível


observar três facetas que lhe são constituintes, apesar das ênfases diferenciadas que
cada período histórico atribui a cada uma delas: a Arte é um fazer, é um modo de
expressão de sentimentos e idéias e uma forma de conhecimento;

- a ênfase no sentimento, pois, não retira o valor cognitivo da Arte. Trata-se apenas
de, por exemplo, uma crítica àquilo que Adorno e Horkheimer (1991) chamaram de
razão instrumental, através da qual os homens, sob o capital, têm seus
comportamentos sob controle dos meios e não dos fins; nesse sentido a Arte como
conhecimento pode ser uma denúncia de um mundo alienado e de si mesma, quando
se transforma em mercadoria sob a égide da indústria cultural; a própria oposição
entre razão e sentimento pode ser colocada em questão pela Arte na medida que,
enquanto construção simbólica e forma de expressão e conhecimento, não é possível
dicotomizar essas esferas do comportamento humano.

Assim, pode-se considerar que, sempre historicamente situada, a Arte é


uma atividade humana através da qual exprimimos nossos sentimentos e nossas
idéias, atribuímos sentidos à vida, procuramos dizer o que, se não fosse ela, não
conseguiríamos e, de tal forma – sempre específica – procuramos responder a
questão: existirmos, a que será que se destina?7 A Arte é história, mas como será
visto em seguida, não se reduz a interpretações históricas e sociológicas, embora
estas lhe sejam complementares. Ou, como diz Nunes (2003), ao analisar o ato
criador:

Os nexos causais entre a arte e a sociedade, múltiplos e complexos, são


mediatizados pela experiência criadora do artista, dependendo de sua atitude em
face da herança intelectual recebida, da utilização das técnicas que lhe foram
transmitidas, do aproveitamento da matéria com que conta para expressar-se, do
modo como reage aos imperativos éticos e às exigências estéticas do seu trabalho, e
também de sua maneira pessoal de assimilar a concepção-do-mundo inerente à sua
época e à atmosfera social de que participa. (...) Individualmente criada e
socialmente condicionada, a obra de arte une, em si mesma, na unidade da forma e
do conteúdo que a singulariza, a experiência individual e a social. Essa união é
dialética e reversiva: dialética na medida em que é uma experiência ativa e
inclusiva, que apreende, forma e interpreta os dados da realidade que condiciona a
consciência do artista, ultrapassando o unilateralismo e a tendenciosidade das
ideologias; reversiva porque o produto da criação, a obra, é sempre um objeto-
mundo, que contém, de maneira latente, a dialética da qual surgiu e que, uma vez
reconstituída, pode levar-nos à experiência qualitativa nela concretizada. (pp.97-
98)

Fonte: CARVALHO, A. Arte e Psicologia: uma relação delicada. In: Núcleo de


Estudos e Pesquisas Psicossociais do Cotidiano (Org.) Introdução à Psicologia do
Cotidiano. São Paulo: Expressão e Arte Editora, 2007.

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Verso inicial da música Cajuína, escrita por Caetano Veloso.

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