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ProfessorFerretto ProfessorFerretto

Colocação Pronominal
GR0120 - (Pucmg) Creio que muito de nossa insistência, enquanto
A importância do ato de ler professoras e professores, em que os estudantes
Continuando neste esforço de “re-ler” “leiam”, num semestre, um sem-número de capítulos
momentos fundamentais de experiências de minha de livros, reside na compreensão errônea que às vezes
infância, de minha adolescência, de minha mocidade, temos do ato de ler. Em minha andarilhagem pelo
em que a compreensão crítica da importância do ato mundo, não foram poucas as vezes em que jovens
de ler se veio em mim constituindo através de sua estudantes me falaram de sua luta às voltas com
prática, retomo o tempo em que, como aluno do extensas bibliografias a serem muito mais “devoradas"
chamado curso ginasial, me experimentei na do que realmente lidas ou estudadas. [...]
percepção crítica dos textos que lia em classe, com a A insistência na quantidade de leituras sem o
colaboração, até hoje recordada, do meu então devido adentramento nos textos a serem
professor de língua portuguesa. Não eram, porém, compreendidos, e não mecanicamente memorizados,
aqueles momentos puros exercícios de que resultasse revela uma visão mágica da palavra escrita. Visão que
um simples dar-nos conta de uma página escrita diante urge ser superada. A mesma, ainda que encarnada
de nós que devesse ser cadenciada, mecânica e desde outro ângulo, que se encontra, por exemplo, em
enfadonhamente “soletrada” e realmente lida. Não quem escreve, quando identifica a possível qualidade
eram aqueles momentos “lições de leitura”, no sentido de seu trabalho, ou não, com a quantidade de páginas
tradicional desta expressão. Eram momentos em que escritas. No entanto, um dos documentos filosóficos
os textos se ofereciam à nossa inquieta procura, mais importantes de que dispomos, As teses sobre
incluindo a do então jovem professor José Pessoa. Feuerbach, de Marx, tem apenas duas páginas e meia.
Algum tempo depois, como professor também Parece importante, contudo, para evitar uma
de português, nos meus vinte anos, vivi intensamente compreensão errônea do que estou afirmando,
a importância de ler e de escrever, no fundo sublinhar que a minha crítica à magicização da palavra
indicotomizáveis, com os alunos das primeiras séries não significa, de maneira alguma, uma posição pouco
do então chamado curso ginasial. A regência verbal, a responsável de minha parte com relação à necessidade
sintaxe de concordância, o problema da crase, o que temos, educadores e educandos, de ler, sempre e
sinclitismo pronominal, nada disso era reduzido por seriamente, os clássicos neste ou naquele campo do
mim a tabletes de conhecimentos que devessem ser saber, de nos adentrarmos nos textos, de criar uma
engolidos pelos estudantes. Tudo isso, pelo contrário, disciplina intelectual, sem a qual inviabilizamos a nossa
era proposto à curiosidade dos alunos de maneira prática enquanto professores e estudantes.
dinâmica e viva, no corpo mesmo de textos, ora de Paulo Freire
autores que estudávamos, ora deles próprios, como
objetos a serem desvelados e não como algo parado, Atente para o excerto dado:
cujo perfil eu descrevesse. Os alunos não tinham que Só apreendendo-a seriam capazes de saber,
memorizar mecanicamente a descrição do objeto, mas por isso, de memorizá-la, de fixá-la. A memorização
apreender a sua significação profunda. Só mecânica da descrição do elo não se constitui em
apreendendo-a seriam capazes de saber, por isso, de conhecimento do objeto. Por isso, é que a leitura de
memorizá-la, de fixá-la. A memorização mecânica da um texto, tomado como pura descrição de um objeto é
descrição do elo não se constitui em conhecimento do feita no sentido de memorizá-la, nem é real leitura,
objeto. Por isso, é que a leitura de um texto, tomado nem dela portanto resulta o conhecimento do objeto
como pura descrição de um objeto é feita no sentido de que o texto fala.
de memorizá-la, nem é real leitura, nem dela portanto
resulta o conhecimento do objeto de que o texto fala. Se observarmos as prescrições da gramática
normativa, é CORRETO afirmar:

1
a) Em “não se constitui” há uma facultatividade na Passam-se meses. Acaba-se o flagelo. Ei-lo de
colocação pronominal – estaria igualmente correta a volta. Vence-o saudade do sertão. Remigra. E torna
forma “não constitui-se”. feliz, revigorado, cantando; esquecido de infortúnios,
b) Em “objeto de que o texto fala”, o item lexical “que” buscando as mesmas horas passageiras da ventura
é um pronome demonstrativo e retoma, perdidiça e instável, os mesmos dias longos de transes
anaforicamente, o sintagma “o objeto”. e provações demoradas.
c) Em “por isso, de memorizá-la” há um desvio, pois a (Euclides da Cunha. Os Sertões)
preposição “de” atrai o oblíquo e demanda próclise –
deveria ser “de a memorizar”. Assinale a alternativa que atende à norma-padrão de
d) Em “Só apreendendo-a” deveria haver próclise, pois colocação pronominal.
o advérbio (palavra que denota exclusão) atrai o a) Vai-se o sertanejo no êxodo para a costa, para as
oblíquo. serras distantes – esvazia-se o sertão, ainda que a
saudade acompanhe o retirante.
GR0121 - (Enem) A colocação pronominal é a posição b) Quando acaba-se o flagelo, é como se todos os
que os pronomes pessoais oblíquos átonos ocupam na problemas fossem esquecidos, e tudo se
frase em relação ao verbo a que se referem. São reestabelecesse como antes.
pronomes oblíquos átonos: me, te, se, o, os, a, as, lhe, c) Por fim, o sertanejo se dobra e, depois de tantos
lhes, nos e vos. Esses pronomes podem assumir três retirantes à sua porta, rapidamente amatula-se em um
posições na oração em relação ao verbo. Próclise, daqueles bandos.
quando o pronome é colocado antes do verbo, devido d) Ainda que o flagelo tenha ameaçado-o, o sertanejo
a partículas atrativas, como o pronome relativo. volta ao sertão, movido pela saudade por estar meses
Ênclise, quando o pronome é colocado depois do longe de sua casa.
verbo, o que acontece quando este estiver no e) Se vê, com assombro, a primeira turma de retirantes
imperativo afirmativo ou no infinitivo impessoal regido atravessar o terreiro, e depois outras seguem-se nos
da preposição “a” ou quando o verbo estiver no dias posteriores.
gerúndio. Mesóclise, usada quando o verbo estiver
flexionado no futuro do presente ou no futuro do GR0123 - (Uems)
pretérito. Infinito Particular
A mesóclise é um tipo de colocação pronominal raro no 1 - Eis o melhor e o pior de mim
uso coloquial da língua portuguesa. No entanto, ainda O meu termômetro, o meu quilate
é encontrada em contextos mais formais, como se Vem, cara, me retrate
observa em: Não é impossível
a) Não lhe negou que era um improviso. 5 - Eu não sou difícil de ler
b) Faz muito tempo que lhe falei essas coisas. Faça sua parte
c) Nunca um homem se achou em mais apertado lance. Eu sou daqui e não sou de Marte
d) Referia-se à D. Evarista ou tê-la-ia encontrado em Vem, cara, me repara
algum outro autor? Não vê, tá na cara, sou porta-bandeira de mim
e) Acabou de chegar dizendo-lhe que precisava 10 - Só não se perca ao entrar
retornar ao serviço imediatamente. No meu infinito particular
Em alguns instantes
GR0122 - (Fgvsp) Sou pequenina e também gigante
O sertanejo, assoberbado de reveses, dobra- Vem, cara, se declara
se, afinal. 15 - O mundo é portátil
Passa, certo dia, à sua porta, a primeira turma Pra quem não tem nada a esconder
de “retirantes”. Vê-a, assombrado, atravessar o Olha minha cara
terreiro, miseranda, desaparecendo adiante numa É só mistério, não tem segredo
nuvem de poeira, na curva do caminho... No outro dia, Vem cá, não tenha medo
outra. E outras. É o sertão que se esvazia. 20 - A água é potável
Não resiste mais. Amatula-se num daqueles Daqui você pode beber
bandos, que lá se vão caminho em fora, debruando de Só não se perca ao entrar
ossadas as veredas, e lá se vai ele no êxodo No meu infinito particular
penosíssimo para a costa, para as serras distantes, para
quaisquer lugares onde o não mate o elemento Assinale a alternativa em que ocorrem
primordial da vida. simultaneamente uma colocação pronominal e um
Atinge-os. Salva-se.
2
vocábulo inaceitáveis do ponto de vista do padrão – Olhe aqui, dona Lídia, não leve a mal, mas essa
gramatical culto: menina, sua irmã, se ela pensa que pode cantar no
a) Eis o melhor e o pior de mim. rádio com essa voz, ‘tá redondamente enganada. Nem
b) Faça sua parte. em programa de calouro!
c) Só não se perca ao entrar. E, a seguir, ponderou:
d) Eu sou daqui e não sou de Marte. – Agora, piano é diferente. Pianista ela é!
e) Vem, cara, me retrate. E acrescentou:
– Eximinista pianista!
GR0124 - (Unesp) Para responder à questão, leia a (Para uma menina com uma flor, 2009.)
crônica “Seu ‘Afredo’”, de Vinicius de Moraes (1913-
1980), publicada originalmente em setembro de 1953. 1 vernáculo: a língua própria de um país; língua
Seu Afredo (ele sempre subtraía o “l” do nome, ao nacional.
se apresentar com uma ligeira curvatura: “Afredo 2 ressabiado: desconfiado.
Paiva, um seu criado...”) tornou-se inesquecível à 3 lide: trabalho penoso, labuta.
minha infância porque tratava-se muito mais de um 4 ramerrão: rotina.
linguista que de um encerador. Como encerador, não
ia muito lá das pernas. Lembro-me que, sempre depois Observa-se no texto um desvio quanto às normas
de seu trabalho, minha mãe ficava passeando pela sala gramaticais referentes à colocação pronominal em:
com uma flanelinha debaixo de cada pé, para melhorar a) “Lembro-me que, sempre depois de seu trabalho,
o lustro. Mas, como linguista, cultor do vernáculo¹ e minha mãe ficava passeando pela sala com uma
aplicador de sutilezas gramaticais, seu Afredo estava flanelinha debaixo de cada pé, para melhorar o lustro.”
sozinho. (1º parágrafo)
Tratava-se de um mulato quarentão, b) “Seu Afredo [...] tornou-se inesquecível à minha
ultrarrespeitador, mas em quem a preocupação infância porque tratava-se muito mais de um linguista
linguística perturbava às vezes a colocação que de um encerador.” (1º parágrafo)
pronominal. Um dia, numa fila de ônibus, minha mãe c) “Tratava-se de um mulato quarentão,
ficou ligeiramente ressabiada2 quando seu Afredo, ultrarrespeitador, mas em quem a preocupação
casualmente de passagem, parou junto a ela e linguística perturbava às vezes a colocação
perguntou-lhe à queima-roupa, na segunda do pronominal.” (2º parágrafo)
singular: d) “[...] seu Afredo, casualmente de passagem, parou
– Onde vais assim tão elegante? junto a ela e perguntou-lhe à queima-roupa, na
Nós lhe dávamos uma bruta corda. Ele falava horas segunda do singular [...].” (2º parágrafo)
a fio, no ritmo do trabalho, fazendo os mais deliciosos e) “Seu Afredo virou-se para ela e disse: [...].” (4º
pedantismos que já me foi dado ouvir. Uma vez, minha parágrafo)
mãe, em meio à lide3 caseira, queixou-se do fatigante
ramerrão4 do trabalho doméstico. Seu Afredo virou-se
para ela e disse:
– Dona Lídia, o que a senhora precisa fazer é ir a um GR0125 - (Eear) Em qual alternativa o pronome oblíquo
médico e tomar a sua quilometragem. Diz que é muito átono está corretamente colocado?
bão. a) Me indicaram ao cargo, mas não sou o melhor
De outra feita, minha tia Graziela, recém-chegada candidato.
de fora, cantarolava ao piano enquanto seu Afredo, b) Nós havíamos indicado-lhe vários candidatos
acocorado perto dela, esfregava cera no soalho. Seu merecedores do cargo.
Afredo nunca tinha visto minha tia mais gorda. Pois c) Não lhe dariam o cargo se não fosse competente
bem: chegou-se a ela e perguntou-lhe: para exercer tal função.
– Cantas? Minha tia, meio surpresa, respondeu com d) Em tratando-se de eficiência, ele deu provas
um riso amarelo: suficientes para merecer o cargo.
– É, canto às vezes, de brincadeira...
Mas, um tanto formalizada, foi queixar-se a minha
mãe, que lhe explicou o temperamento do nosso
encerador:
– Não, ele é assim mesmo. Isso não é falta de
respeito, não. É excesso de... gramática.
Conta ela que seu Afredo, mal viu minha tia sair,
chegou-se a ela com ar disfarçado e falou:
3
GR0126 - (Fuvest) Utilize o conteúdo a seguir para — Bom dia, cidadão.
responder à questão. O velho Lima estranhou o cidadão, mas de si
para si pensou que o comendador dissera aquilo como
poderia ter dito ilustre, e não deu maior importância
ao cumprimento, limitando-se a responder:
— Bom dia, comendador.
— Qual comendador! Chama-me Vidal! Já não
há mais comendadores!
— Ora essa! Então por quê?
— A República deu cabo de todas as
comendas! Acabaram-se!
O velho Lima encarou o comendador e calou-
se, receoso de não ter compreendido a pilhéria.
Ao entrar na sua seção, o velho Lima sentou-se
e viu que tinham tirado da parede uma velha litografia
representando D. Pedro de Alcântara. Como na ocasião
passasse um contínuo, perguntou-lhe:
— Por que tiraram da parede o retrato de Sua
Majestade?
O contínuo respondeu num tom lentamente
desdenhoso:
— Ora, cidadão, que fazia ali a figura do Pedro
Banana?
(Papaiz: http://i.pinimg.com) — Pedro Banana! — repetiu raivoso o velho
No enunciado “Mesmo porque onde colocam, Lima.
ninguém tira.”, os complementos dos verbos — Não dou três anos para que isso seja
“colocam” e “tira” não são expressos lexicalmente. Se República!
expressos por pronomes e seguindo a norma padrão da (Arthur Azevedo. Seleção de contos, 2014)
língua portuguesa, o resultado seria:
a) “... onde colocam-no, ninguém o tira.” Assinale a alternativa em que a passagem está
b) “... onde o colocam, ninguém tira-o.” reescrita, de acordo os sentidos do original e com a
c) “... onde lhe colocam, ninguém lhe tira.” norma-padrão de emprego e colocação de pronomes.
d) “... onde o colocam, ninguém o tira.” a) O nosso homem tinha o hábito de não ler jornais e,
e) “... onde colocam-lhe, ninguém tira-lhe.” como em casa nada lhe dissessem... (3° parágrafo) = O
nosso homem desconhecia o hábito de não ler jornais
GR0127 - (Fgvsp) Utilize o conteúdo a seguir para e, como em casa nada falou-se a ele...
responder à questão. b) ... ele ignorava completamente que o Império se
O velho Lima transformara em República. (3° parágrafo) = ... ele
O velho Lima, que era empregado — ignorava completamente que o Império tinha
empregado antigo — numa das nossas repartições transformado-se em República.
públicas, e morava no Engenho de Dentro, caiu de c) ... e tomou lugar no trem, ao lado do comendador
cama, seriamente enfermo, no dia 14 de novembro de Vidal, que o recebeu com estas palavras... (4°
1889, isto é, na véspera da Proclamação da República parágrafo) = ... e tomou lugar no trem, ao lado do
dos Estados Unidos do Brasil. comendador Vidal, que acolheu-lhe com estas
O doente não considerou a moléstia coisa de palavras...
cuidado, e tanto assim foi que não quis médico. d) O velho Lima estranhou o cidadão, mas de si para si
Entretanto, o velho Lima esteve de molho oito dias. pensou que o comendador dissera aquilo como
O nosso homem tinha o hábito de não ler poderia ter dito ilustre... (6° parágrafo) = Espantou-se
jornais e, como em casa nada lhe dissessem (porque o velho Lima com o cidadão, mas pensou com seus
nada sabiam), ele ignorava completamente que o botões que lhe dissera aquilo o comendador como
Império se transformara em República. poderia ter dito ilustre...
No dia 23, restabelecido e pronto para outra, e) — Qual comendador! Chama-me Vidal! Já não há
comprou um bilhete, segundo o seu costume, e tomou mais comendadores! (8° parágrafo) = — Qual
lugar no trem, ao lado do comendador Vidal, que o comendador! Me chama de Vidal! Agora não tem-se
recebeu com estas palavras: mais comendadores!
4
GR0128 - (Fgvsp) Utilize o conteúdo a seguir para dizer que desde que esse menino nasceu tento provar-
responder à questão. lhe que já não estamos — hélas! — no tempo da
Pela tarde apareceu o Capitão Vitorino. Vinha escravidão e que somos nós mesmos, brancos, pretos
numa burra velha, de chapéu de palha muito alvo, com ou amarelos, intelectuais ou estudantes em provas,
a fita verde-amarela na lapela do paletó. O mestre José que devemos encaminhar ao destino conveniente as
Amaro estava sentado na tenda, sem trabalhar. E roupas da véspera. Qual, ele não se convence. Também
quando viu o compadre alegrou-se. Agora as visitas de uma manta escocesa, de suaves lãs macias, que a mãe
Vitorino faziam-lhe bem. Desde aquele dia em que vira da gente trouxe embaixo do braço da Inglaterra até
o compadre sair com a filha para o Recife, fazendo tudo aqui, para que nos aqueça nas noites de inverno, não
com tão boa vontade, que Vitorino não lhe era mais o devia ser largada no chão, nem mesmo na companhia
homem infeliz, o pobre bobo, o sem-vergonha, o de um livro de versos. E quem é que está ligando para
vagabundo que tanto lhe desagradava. Vitorino apeou- tudo isso?
se para falar do ataque ao Pilar. Não era amigo de Ó mocidade inquieta, só mesmo o que está em
Quinca Napoleão, achava que aquele bicho vivia de ordem dentro deste quarto são os montes de discos. E
roubar o povo, mas não aprovava o que o capitão fizera estes livros, meu Deus? Como é que gente que gosta
com a D. Inês. de ler pode deixar os próprios livros numa bagunça
— Meu compadre, uma mulher como a D. Inês dessas? Coitado do Pablo Neruda, olha onde foi parar!
é para ser respeitada. E o Dom Quixote de la Mancha, Virgem Santíssima! Há
— E o capitão desrespeitou a velha, compadre? três gerações que os antepassados desse menino não
— Eu não estava lá. Mas me disseram que fazem outra coisa senão escrever livros, e ele os trata
botou o rifle em cima dela, para fazer medo, para ver assim!
se D. Inês lhe dava a chave do cofre. Ela não deu. José — Livro é pra ler! Não é para enfeitar estante!
Medeiros, que é homem, borrou-se todo quando lhe — Está certo! Que não enfeite, mas também
entrou um cangaceiro no estabelecimento. não precisam ser empurrados desse jeito, lá para o
Me disseram que o safado chorava como fundo, com esse monte de revistas de jazz em cima! E
bezerro desmamado. Este cachorro anda agora com o custava, criatura, custava você pendurar essas calças
fogo da força da polícia fazendo o diabo com o povo. nesse guarda-roupa que é para você, sozinho, que é
(José Lins do Rego, Fogo Morto) provido de cabides, que não têm outro destino senão
abrigar as suas calças?
A colocação do pronome está adequada à situação — Mania de ordem é complexo de culpa, já te
comunicativa da narrativa literária, mas está em avisei! Meu quarto está ótimo, está formidável. E não
desacordo com a norma-padrão, na seguinte passagem gosto que mexa, hein, senão depois não acho as
do texto: minhas coisas!
a) E quando viu o compadre alegrou-se. E pensar que esse menino um dia casa e vai
b) Agora as visitas de Vitorino faziam-lhe bem. levar essas noções de arrumação para a infeliz da
c) ... Vitorino não lhe era mais o homem infeliz, o pobre esposa, e que juízo, que juízo vai fazer essa moça de
bobo... mim, meu Deus do céu! Há bem uns quinze anos que
d) ... para ver se D. Inês lhe dava a chave do cofre. esse problema me atormenta, tenho trocado
e) Me disseram que o safado chorava como bezerro confidências com amigas e há várias opiniões a
desmamado. respeito. Umas acham que um dia dá um estalo de
Padre Vieira na cabeça desses moleques e passam a
GR0129 - (Efomm) pendurar a roupa, tirar pó de livro, desamarrar o
Um quarto de rapaz sapato antes de tirar do pé.
Elsie Lessa Pode ser. Deus permita! Mas que agonia,
Abro as venezianas na alegria do sol desta enquanto isso não acontece.
manhã e só não ponho a mão na cabeça porque, afinal Dizer que peregrinei por antiquários para
das contas, o correr dos anos nos dá uma certa descobrir nobres jacarandás, de boa estirpe, que o
filosofia. Essa rapaziada parece que é mesmo toda rodeassem em todas as suas horas, que lhe
assim. infundissem o gosto das coisas belas. Qual! Pendurei a
Quem sai para uma prova de matemática não balada do “If” (^1) em cima de todos esses discos de
há mesmo de ter deixado a cama feita, tanto mais jazz, e sobre a vitrola, já nem sei por quê, esse belo
quando ficou lendo Carlos Drummond de Andrade até retrato de Napoleão, em esmalte, vindo das margens
às tantas, como prova este Poesia até agora, rubro de do Sena! E ele está se importando? O violão está sem
vergonha de ter sido largado no chão junto a este cordas, e em cima do meu retrato, radioso retrato da
cinzeiro transbordante e às meias azuis de náilon. E minha juventude, ele já pôs o Billy Eckstine, a Sarah
5
Vaughan, a Ava Gardner de biquíni e duas namoradas pintados por sua irmã, a enfermeira; a criancinha é
ora descartadas! E não tira um, antes de colocar o uma boneca de olhos cerúleos, mas já meio careca, que
outro! Vai empurrando por cima e já a moldura estoura atende pelo nome de Rosinha; os instrumentos para
com essa variedade de predileções! São Sebastião, na exame e cirurgia saem duma caixinha de brinquedos.
sua peanha dourada, está de olhos erguidos para o alto Ela, seis anos e meio; o doutor tem cinco.
e, felizmente, não vê a desordem que anda cá por Enquanto trabalham, a enfermeira presta informações:
baixo. — Esta menina é boba mesmo, não gosta de
Vejo eu, olho em roda para saber por onde injeção, nem de vitamina, mas a irmãzinha dela adora.
começar. Custava ele despejar esses cinzeiros? Onde já O médico segura o microscópio, focaliza-o
se viu fumar na cama e fazer furos nos meus lençóis? dentro da boca de Rosinha, pede uma colher, manda a
E, em tempos de provas, é hora de ficar folheando paciente dizer aaá. Rosinha diz aaá pelos lábios da
livros de versos, até tarde da noite, desse jeito? O enfermeira. O médico apanha o pincenê, que escorreu
caderno de física está assim de poesias e letras de fox de seu nariz, rabisca uma receita, enquanto a
e caricaturas de colegas, não sei também se de algum enfermeira continua:
professor! E para que seis caixas de fósforo em cima — O senhor pode dar injeção que eu faço ela
dessa vitrola? E onde já se viu misturar na mesma mesa tomar de qualquer jeito, porque é claro que se ela não
esse nunca assaz manuseado Manuel Bandeira, e El son quiser, né, vai ficar muito magrinha que até o vento
entero, de Nicolás Guillén, e os poemas de Mário de carrega.
Andrade, e os Pássaros Perdidos de Tagore, e Fernando O médico, no entanto, prefere enrolar uma
Pessoa, e esse pocket book policial? Quer ler Graham gaze em torno do pescoço da boneca, diagnosticando:
Greene, e fazer versos, e fumar feito um desesperado, — Mordida de leão.
e não perder praia no Arpoador, nem broto na — Mordida de leão? — pergunta,
vizinhança, nem filme na semana e passar nas provas. desapontada, a enfermeira, para logo aceitar este faz
E em que mundo isso é possível? de conta dentro do outro faz de conta; eu já disse
Guardo os chinelos, que ficam sempre tanto, meu Deus, para essa garota não ir na floresta
emborcados. Já lhe disse que isso é atraso de vida. E ele brincar com Chapeuzinho Vermelho...
morre de rir. E ponho as cobertas em cima da cama. E Novos clientes desfilam pela clínica: uma
abro as janelas, para sair esse cheiro de fumo. E deixo baiana de acarajé, um urso muito resfriado, porque só
só uma caixa de fósforos. Mas não faço mais nada, gostava de neve, um cachorro atropelado por lotação,
porque abri um caderno, de letra muito ruim, até a outras bonecas de vários tamanhos, um Papai Noel,
metade com os seus versos. uma bola de borracha e até mesmo o pai e a mãe do
(^1) Poema célebre do escritor indiano Rudyard Kipling médico e da enfermeira.
(18651936), Prêmio Nobel de Literatura de 1907. De repente, o médico diz que está com sede e
OBS.: O texto foi adaptado às regras do novo acordo ortográfico.
corre para a cozinha, apertando o pincenê contra o
rosto. A mãe se aproveita disso para dar um beijo
Assinale a opção em que, quanto à sintaxe de
violento no seu amor de filho e também para preparar-
colocação dos pronomes átonos, é INDIFERENTE a sua
lhe um copázio de vitaminas: tomate, cenoura, maçã,
posição no período.
banana, limão, laranja e aveia. O famoso pediatra, com
a) (...) Afinal das contas, o correr dos anos nos dá uma
um esgar colérico, recusa a formidável droga.
certa filosofia.
— Tem de tomar, senão quem acaba no
b) Já lhe disse que isso é atraso de vida.
médico é você mesmo, doutor.
c) Qual, ele não se convence.
Ele implora em vão por uma bebida mais
d) Mania de ordem é complexo de culpa, já te avisei!
inócua. O copo é levado com energia aos seus lábios, a
e) (...) Da Inglaterra até aqui, para que nos aqueça nas
beberagem é provada com uma careta. Em seguida,
noites de inverno (...)
propõe um trato:
— Só se você depois me der um sorvete.
GR0130 - (Efomm)
A terrível mistura é sorvida com dificuldade e
O médico e o monstro
repugnância, seus olhos se alteram nas órbitas, um
Paulo Mendes Campos
engasgo devolve o restinho. A operação durou um
Avental branco, pincenê vermelho, bigodes
quarto de hora. A mãe recolhe o copo vazio com a
azuis, ei-lo, grave, aplicando sobre o peito descoberto
alegria da vitória e aplica no menino uma palmadinha
duma criancinha um estetoscópio, e depois a injeção
carinhosa, revidada com a ameaça dum chute. Já
que a enfermeira lhe passa.
estamos a essa altura, como não podia deixar de ser,
O avental na verdade é uma camisa de homem
presenciado a metamorfose do médico em monstro.
adulto a bater-lhe pelos joelhos; os bigodes foram

6
Ao passar zunindo pela sala, o pincenê e o excepcionais de condutor dos povos. A respeitosa
avental são atirados sobre o tapete com um gesto atitude de todos e a deferência universal que o
desabrido. Do antigo médico resta um lindo bigode cercavam, reafirmadas tão eloquentemente naquele
azul. De máscara preta e espada, Mr. Hyde penetra no banquete, eram nada mais, nada menos que o sinal da
quarto, onde a doce enfermeira continua a brincar, e convicção dos povos de ser ele o resumo do país, vendo
desfaz com uma espadeirada todo o consultório: nele o solucionador das suas dificuldades presentes e
microscópio, estetoscópio, remédios, seringa, o agente eficaz do seu futuro e constante progresso.
termômetro, tesoura, gaze, esparadrapo, bonecas, Na sua ação repousavam as pequenas
tudo se derrama pelo chão. A enfermeira dá um grito esperanças dos humildes e as desmarcadas ambições
de horror e começa a chorar nervosamente. O dos ricos.
monstro, exultante, espeta-lhe a espada na barriga e Era tal o seu inebriamento que chegou a
brada: esquecer as coisas feias do seu ofício... Ele se julgava, e
— Eu sou o Demônio do Deserto! só o que lhe parecia grande entrava nesse julgamento.
Ainda sob o efeito das vitaminas, preso na As obscuras determinações das coisas,
solidão escura do mal, desatento a qualquer acertadamente, haviam-no erguido até ali, e mais alto
autoridade materna ou paterna, com o diabo no corpo, levá-lo-iam, visto que, só ele, ele só e unicamente, seria
o monstro vai espalhando o terror a seu redor: é a capaz de fazer o país chegar ao destino que os
televisão ligada ao máximo, é o divã massacrado sob os antecedentes dele impunham.
seus pés, é um cometa indo tinir no ouvido da (Lima Barreto. Os bruzundangas. Porto Alegre: L&PM, 1998, pp.
cozinheira, um vaso quebrado, uma cortina que se 15-6)
despenca, um grito, um uivo, um rugido animal, é o
doce derramado, a torneira inundando o banheiro, a Assinale a alternativa em que a nova posição dos
revista nova dilacerada, é, enfim, o flagelo à solta no pronomes átonos, na frase reescrita, está de acordo
sexto andar dum apartamento carioca. com a norma-padrão do português escrito.
Subitamente, o monstro se acalma. Suado e a) A respeitosa atitude de todos e a deferência
ofegante, senta-se sobre os joelhos do pai, pedindo universal que cercavam-no.
com doçura que conte uma história ou lhe compre um b) As obscuras determinações das coisas
carneirinho de verdade. acertadamente o haviam erguido até ali.
E a paz e a ternura de novo abrem suas asas c) Ele julgava-se e só o que parecia-lhe grande entrava
num lar ameaçado pelas forças do mal. nesse julgamento.
OBS.: O texto foi adaptado às regras no Novo Acordo Ortográfico. d) ... uma chusma de sentimentos atinentes a si mesmo
Paulo Mendes Campos. O médico e o monstro. In: Fernando que quase falavam-lhe.
Sabino e outros. Crônicas 2. 19. ed. São Paulo: Ática, 2003. p. 20- e) As obscuras determinações das coisas,
22. acertadamente, mais alto levariam-no.
É possível o deslocamento do pronome átono na GR0132 - (Fuvest)
opção: Há uma língua sendo gestada no Brasil que não
a) (...) e depois a injeção que a enfermeira lhe passa. se pretende correta, autêntica ou mesmo eficiente. É
b) (...) gaze, esparadrapo, bonecas, tudo se derrama apenas novidadeira - ”trendy" ou ”fashion", como ela
pelo chão. própria se definiria.
c) O médico segura o microscópio, focaliza-o dentro da Nessa nova língua, não se diz mais que tal ou
boca (...). qual coisa é antiga, vinda do passado. Diz-se que é
d) Suado e ofegante, senta-se sobre os joelhos do pai, ”vintage" - embora “vintage” (ao pé da letra,
pedindo (...). “vindima”) se aplique, em inglês, ao que pertence a
e) A mãe se aproveita disso para dar um beijo violento uma dada safra, ao que vem autenticamente de uma
(...). época. Mas é sempre assim, não? Por leveza ou
ligeireza dos usuários, certas palavras, ao serem
GR0131 - (Fgvsp) transplantadas à força de uma língua para outra,
Sua excelência podem ter o seu sentido original alterado.
[O ministro] vinha absorvido e tangido por uma Daí que, na nova língua que se pratica aqui, e
chusma de sentimentos atinentes a si mesmo que mais ainda no mundo da moda, algo corriqueiro,
quase lhe falavam a um tempo na consciência: orgulho, vulgar, normal, que não se afasta dos padrões
força, valor, satisfação própria etc. etc. estabelecidos, é agora chamado de “mainstream”. Em
Não havia um negativo, não havia nele uma inglês, “mainstream" é o curso d’água ou corrente
dúvida; todo ele estava embriagado de certeza de seu principal e se refere a um rio, mas pode se aplicar
valor intrínseco, das suas qualidades extraordinárias e
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também a um estilo dominante na literatura, na mais remendos que roupa de palhaço, o acrobata virou
música, no cinema. Entre nós, meio que vem substituir paralítico, o artista é uma besta:
o que, até há pouco, costumava se chamar de - como – Com a ferradura, não!
era mesmo? - ”básico". A fonte da felicidade pública se transforma no
A secretária de um médico acaba de me para-raios do rancor público:
telefonar marcando um “apontamento” para a – Múmia!
semana. Isso era algo que, no passado, dizíamos de Às vezes, o ídolo não cai inteiro. E, às vezes,
farra: “Vou te dar um anel para marcar um quando se quebra, a multidão o devora aos pedaços.
apontamento”. Quis rir, mas me contive a tempo. A (Eduardo Galeano. Futebol, ao sol e à sombra.)
moça estava falando a sério.
(Ruy Castro, Folha de S.Paulo, 09/10/2010. Adaptado) Leia o trecho abaixo.
“Os Zé Ninguém, os condenados a serem para sempre
O trecho em que a opção pela próclise tornou-se ninguém, podem sentir-se alguém por um momento,
obrigatória a despeito do tempo do verbo com que o por obra e graça desses passes devolvidos num toque,
pronome se articula, é: essas fintas que desenham os zês na grama...” (9)
a) “como ela própria se definiria”. (L. 3 e 4)
b) “Diz-se que é ‘vintage’”. (L. 6) De acordo com a análise morfossintática dos termos
c) “costumava se chamar”. (L. 22) destacados abaixo, pode-se concluir que está
d) “Vou te dar um anel”. (L. 26 e 27) INCORRETA a afirmativa:
e) “mas me contive a tempo”. (L. 27 e 28) a) Em Zé Ninguém, há uma derivação imprópria, já que
foi utilizado um pronome indefinido como substantivo
GR0133 - (Epcar) próprio.
O ídolo b) Em “A fonte da felicidade pública se transforma no
Em um belo dia, a deusa dos ventos beija o pé para-raios do rancor público”, (7), a expressão
do homem, o maltratado, desprezado pé, e, desse destacada qualifica o sujeito.
beijo, nasce o ídolo do futebol. Nasce em berço de c) O substantivo destacado em “...esses golaços de
palha e barraco de lata e vem ao mundo abraçado a calcanhar ou de bicicleta...” foi formado a partir de
uma bola. sufixação.
Desde que aprende a andar, sabe jogar. d) Caso antes da locução “... podem sentir-se
Quando criança, alegra os descampados e os baldios, alguém...”, houvesse uma palavra negativa, o pronome
joga e joga e joga nos ermos dos subúrbios até que a se teria que, obrigatoriamente, vir antes do verbo
noite cai e ninguém mais consegue ver a bola, e, poder.
quando jovem, voa e faz voar nos estádios. Suas artes
de malabarista convocam multidões, domingo após GR0134 - (Efomm)
domingo, de vitória em vitória, de ovação em ovação. A última crônica
A bola o procura, o reconhece, precisa dele. No A caminho de casa, entro num botequim da
peito de seu pé, ela descansa e se embala. Ele lhe dá Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na
brilho e a faz falar, e neste diálogo entre os dois, realidade estou adiando o momento de escrever. A
milhões de mudos conversam. Os Zé Ninguém, os perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de
condenados a serem para sempre ninguém, podem coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco
sentir-se alguém por um momento, por obra e graça ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia
desses passes devolvidos num toque, essas fintas que apenas recolher da vida diária algo de seu disperso
desenham os zês na grama, esses golaços de calcanhar conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais
ou de bicicleta: quando ele joga o time tem doze digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao
jogadores. episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num
– Doze? Tem quinze! Vinte! flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança
A bola ri, radiante, no ar. Ele a amortece, a ou num acidente doméstico, torno-me simples
adormece, diz galanteios, dança com ela, e vendo essas espectador e perco a noção do essencial. Sem mais
coisas nunca vistas, seus adoradores sentem piedade nada contar, curvo a cabeça e tomo meu café,
por seus netos ainda não nascidos, que não estão enquanto o verso do poeta se repete na lembrança:
vendo o que acontece. “assim eu quereria o meu último poema”. Não sou
Mas o ídolo é ídolo apenas por um momento, poeta e estou sem assunto. Lanço então um último
humana eternidade, coisa de nada; e quando chega a olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que
hora do azar para o pé de ouro, a estrela conclui sua merecem uma crônica.
viagem do resplendor à escuridão. Esse corpo está com
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Ao fundo do botequim um casal de pretos São três velinhas brancas, minúsculas, que a
acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E
mármore ao longo da parede de espelhos. A enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e
compostura da humildade, na contenção de gestos e acende as velas. Como a um gesto ensaiado, a
palavras, deixa-se acentuar pela presença de uma menininha repousa o queixo no mármore e sopra com
negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda força, apagando as chamas. Imediatamente põe-se a
arrumadinha no vestido pobre, que se instalou bater palmas, muito compenetrada, cantando num
também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas balbucio, a que os pais se juntam, discretos: “parabéns
ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. pra você, parabéns pra você. . .“ Depois a mãe recolhe
Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a as velas, torna a guardá-las na bolsa. A negrinha agarra
instituição tradicional da família, célula da sociedade. finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se
Vejo, porém, que se preparam para algo mais que a comê-lo. A mulher está olhando para ela com ternura
matar a fome. — ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo
Passo a observá-los. O pai, depois de contar o de bolo que lhe cai ao colo, O pai corre os olhos pelo
dinheiro que discretamente retirou do bolso, aborda o botequim, satisfeito, como a se convencer
garçom, inclinando- se para trás na cadeira, e aponta intimamente do sucesso da celebração. De súbito, dá
no balcão um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe comigo a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se
limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente ansiosa, perturba, constrangido — vacila, ameaça abaixar a
como se aguardasse a aprovação do garçom. Este ouve, cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre
concentrado, o pedido do homem e depois se afasta num sorriso.
para atendê-lo. A mulher suspira, olhando para os Assim eu quereria a minha última crônica: que
lados, a reassegurar-se da naturalidade de sua fosse pura como esse sorriso.
presença ali. Ao meu lado o garçom encaminha a SABINO, Fernando. A companheira de viagem. Rio de Janeiro:
Record, 1972.
ordem do freguês. O homem atrás do balcão apanha a
porção do bolo com a mão, larga-o no pratinho — um
bolo simples, amarelo-escuro, apenas uma pequena Considerando-se a colocação pronominal, assinale a
fatia triangular. opção que apresenta a possibilidade de deslocamento
A negrinha, contida na sua expectativa, olha a do pronome átono.
garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom deixou a) “O homem atrás do balcão apanha a porção de bolo
à sua frente. Por que não começa a comer? Vejo que com a mão, larga-o no pratinho (...)”.
os três, pai, mãe e filha, obedecem em torno à mesa a b) “O pai se mune de uma caixa de fósforos (...)”.
um discreto ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico c) “(...) Quer nas palavras de uma criança ou num
preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai se mune acidente doméstico, torno-me simples espectador
de uma caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda (...)”.
também, atenta como um animalzinho. Ninguém mais d) “Vejo, porém, que se preparam para algo mais (...)”.
os observa além de mim. e) “Ninguém os observa além de mim”.

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