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PASSOS PARA ESCREVER UM

DOCUMENTÁRIO – parte 01
Sábado. Final da tarde. Eu, na casa dos meus sogros, recém havia saído
da piscina. Meu telefone toca. Decido atender. Acho que todo Storyteller
tem uma certa intuição, um faro para os bons trabalhos. Digo isso porque
eu poderia muito bem ter abandonado o celular e mergulhado na piscina.

No outro lado da linha um Produtor Executivo para o qual trabalho há


algum tempo. Talvez há uns quatro anos. Percebo logo no “oi” sua fala
contente, disposta a dividir uma informação. Algo bom aconteceu.

-Marcelão! Fechamos um trabalho grande. Amanhã vai acontecer a reunião


de produção. Posso contar contigo?

Meus olhos se cruzaram com os de Cícero, meu filho, que na época estava
com quatro meses recém completos. Eu, que tinha prometido ficar um
tempo sem me agarrar a grandes projetos, de cara já entro em um
dilema. Vale a pena sair, trabalhar, ganhar um cachê bom, mas me
ausentar? Pensei numa situação: se o meu filho decidisse trabalhar com
cinema, o que eu diria a ele naquele momento?
Minha resposta seria: aceite os trabalhos que não ferem sua ideologia e os
trabalhos que te façam crescer, profissional e financeiramente.

OS QUATRO PASSOS DE UM DOCUMENTÁRIO

Domingo de tarde. Reunião de produção. Um trabalho comercial com o


viés cinematográfico. Uma agência de publicidade, uma das maiores do
Brasil, com sede em Curitiba, São Paulo, Brasília e Rio de Janeiro, foi
convidada para disputar uma vaga. Esse “concurso” dará à agência a
possibilidade de administrar todas as campanhas de uma marca de
cosméticos – que trabalha com uma gama gigante de produtos de beleza.

Eu lá. Ouvindo. Ouvindo. Ouvindo. Uma característica importante do


roteirista é saber ouvir. Você filtra mentalmente. Fica em silêncio. Se
pedirem uma opinião, logicamente você oferece-a. Mas se não
perguntarem, deixe para defender depois, na hora de apresentar algo mais
concreto. Ainda não é necessário fazer uma defesa oral. Você precisa ouvir,
observar, testar e depois expor.

Tínhamos 17 dias de trabalho pela frente. Eu tinha apenas dois para


escrever o argumento de um filme com dez minutos de duração. Seriam
48h bem desafiadoras, mas depois o trabalho não necessitava tanto de
mim. Pelo menos foi o que me disseram. (Conselho: nunca acredite que o
trabalho de um roteirista termina no roteiro).

Todo o processo de um documentário busca a escrita de um


Argumento.

O argumento inicia com uma pesquisa profunda acerca de um tema. Só


para você ter uma ideia, quando dirigi o documentário Boca de Rua – Vozes
de Uma Gente Invisível, pesquisei durante seis meses para escrever o
argumento. Seis meses convivendo com integrantes do jornal, entendendo
qual era o universo que iríamos retratar.
A agência já tinha essa pesquisa extensa. Já haviam escolhido
entrevistados, fontes, especialistas no assunto. Mas isso não é um roteiro!
Isso é um caminho que leva até a história. Eu estava ali pra isso. Pra pegar
todos os ingredientes e cozinhar um bolo daquilo tudo. Realmente eles
tinham páginas e páginas de assunto, mas NADA de história. Só ideias e
mais ideias. Não tinham sequer uma projeção estética. Eu achei ótimo.
Íamos criar tudo isso.

O tema central era BELEZA, mais especificamente o charme feminino. O


tempo era curto. Em casa eu assisti tudo o que pude relacionado a isso. Eu
tinha poucas horas. Li a pesquisa da Agência por diversas vezes.
Compreendi o cerne da questão. Fui a fundo. Não estávamos fazendo um
produto apenas artístico. Talvez era algo mais filosófico, mais
comportamental. Afinal, o que é charme? É tão distante uma explicativa
lógica disso. Tão subjetivo.

Eu fiquei tranquilo.

A equipe nem tanto. Isso porque eu estou acostumado a trabalhar com o


‘nada’. Eu sempre tenho uma folha em branco. Eles não. Eles tinham 15
dias pra sair da folha em branco, produzir, gravar, logar, fazer back up,
converter, decupar, montar, finalizar áudio, finalizar vídeo e lidar com
todos os problemas (sim, eles vão existir!).
Eu precisava dar um norte para as pessoas que iriam trabalhar. Imprimi
tudo o que recebi da agência, baixei todos os vídeos de referência, ouvi
diversas músicas relacionadas ao charme (Chico, Caetano, Vinícius, entre
outros) e cruzei os braços. Pensei por horas sem mexer em qualquer
computador. Imagina o que poderia acontecer se eu desse uma guia errada
a uma equipe que já estava com uma agenda apertadíssima?

Criei um arquivo no Google Drive chamado “caminhos”.

Eu buscava uma explicação para CHARME FEMININO. Comecei pensando


nos temas secundários. Escrevi em meu quadro branco mais de 30 palavras
relacionadas a isso. Com o arquivo aberto no computador, olhando para
as palavras no quadro, selecionei seis e vomitei ideias sobre
elas. Escrevi realmente o que vinha na cabeça sobre:

-Beleza
-Mulher
-Momento
-Prazer
-Cheiro
-Sensações
O rascunho do argumento criou uma ordem para isso. Endereçou estes
temas. Fez uma amarra entre eles e terminou com um panorama do que
realmente era o charme feminino. Eu ainda não tinha narrativa. Era apenas
um rascunho, uma proposta.

Dormi. Era tarde. Duas ou três da manhã. A reunião geral era às 10h do
outro dia. Acordei às 6h30, tomei banho, passei café, assisti algumas coisas
na TV, li meus e-mails. Você precisa se desapegar. Não confie em ideias
que surgem como um vômito. Confie em ideias que você escreveu, releu,
analisou, comentou em voz alta, tomou mais café, olhou seu Facebook.

O tempo era apertado e eu não gosto de dormir pouco. Eu geralmente peço


mais dias. Mas este projeto era grande. A equipe era boa. E não tinha
escolha.

Escrevi um argumento. O que eu posso dizer a você sobre isso? Um


argumento bom é aquele que nutre as sensações de quem lê. Você
entrega sentimentos no argumento. Sentimentos que constroem por meio
de imagens. Ou seja, você escreve e dá direcionamentos racionais.
Entretanto, a junção disso tudo causa sensações subjetivas.

Uma página e meia. Só isso. E estava acabado. Já trouxe no argumento


noções de narrativa: início, meio e fim do filme. Também dei base para o
assunto que conduzia a troca de Atos. Fortaleci as fontes, já apontando
onde elas poderiam aparecer, o que falar, como conduzir, quais perguntas,
etc.
Imprimi. Sai de casa com um livro nas mãos. Sentei no ônibus e li algo que
nada tinha a ver com o tema. Me desliguei para o encontro com todos.

Na reunião com a equipe ficou evidente: estávamos no caminho


certo. Aquele era o argumento do filme. Diretores já apontaram ideias,
construíram uma linguagem de câmera, luz, simbologias em geral.
Produção teve noção de deslocamentos, de necessidades gerais, entre
outros aspectos.

Dali em diante, seriam 15 dias de gravação, decupagem, montagem e


finalização. Ufa!

Naturalmente, em uma produção mais maleável, eu espero as imagens


chegarem, sento ao lado do montador, pego um café e vamos construindo
algo. Depois o diretor alinha, escolhe, remove, corta, junta, me chama de
novo e assim por diante. Faço meu trabalho narrativo e o diretor,
juntamente com o montador, dão o olhar estético.

Até que, no final da reunião – roteiro aprovado! -, o produtor executivo me


olha, intrigado:

– Marcelo, não temos tempo para trazer as imagens de volta e você sentar
com o montador.

Percebo que todos na mesa me olham. Sim, a frase era importante mesmo.
Eu não respondo. Quem toma a frente é o Diretor Geral:

-Você poderia ir junto?

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