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Índice

Prefácio

1. Pesquisando o personagem

2. Definindo o personagem: Coerências e contradições

3. Criando a história pregressa (Backstory)

4. Entendendo o psicológico do personagem

5. Criando relacionamentos entre personagens

6. Personagens secundários e personagens menores

7. Escrevendo diálogos

8. Criando personagens não-realistas

9. Para além do estereótipo

10. Resolvendo problemas no personagem

Epílogo
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Prefácio
Há alguns anos, fui chamada por uma produtora de
televisão que enfrentava um problema com um personagem
em seus roteiros. Um ator bem conhecido e respeitado já
tinha sido escolhido pro papel, mas era um papel limitado
na essência. Nós fizemos um brainstorm pra aprofundar a
camada emocional e dar mais dimensão, além de potenciais
transformações no personagem.
Mais tarde, o ator foi nomeado pro Emmy pela
performance.
Meses depois, fui chamada pra fazer uma consultoria
pra uma série em apuros. As avaliações estavam baixas,
a rede estava ameaçando cancelar. Apesar da atuação ser
excelente, e as linhas gerais dos personagens estarem bem
definidas, existia pouca expansão do personagem. Num
seminário matinal nós tentamos pensar em potenciais
conflitos, pontos na história que poderiam dar dimensões
pros personagens; relações dinâmicas que já existiam, mas
foram pouco exploradas na narrativa; e possíveis motivos
para a audiência se envolver com esses personagens
semanalmente.
Os produtores estavam entusiasmados e prontos pra dar
uma reviravolta no programa. Mas era tarde demais. A rede
já tinha decidido cancelar. Desde então, a estrela polivalente
e popular não conseguiu encontrar outra série, apesar de
inúmeros sucessos do passado.
Nas duas situações, personagens foram a chave de uma
história funcional. Personagens incríveis são essenciais se
você quer criar uma grande ficção. Se os personagens não
funcionarem, a história e o tema serão insuficientes pra
envolver a audiência ou os leitores. Pense na personagem
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memorável de “O vento levou”, “O sol é para todos”, “Jane


Eyre”, “As aventuras de Tom Jones”, ou da peça Amadeus,
Ligações Perigosas, À Margem da Vida, os filmes
Casablanca, “Noivo neurótico, Noiva Nervosa”, “Cidadão
Kane; séries de televisão “I Love Lucy”, “All in the Family”,
“The Honey-mooners”. Até mesmo filmes de ação/aventura
como “48 horas”, “Máquina Mortífera”, “Duro de Matar”, e
filmes de terror como “A Hora do Pesadelo” onde o sucesso
foi devido a personagens fortes e bem desenhados.
Criar personagens inesquecíveis é um processo. Apesar
de alguns disserem que isso não pode ser ensinado,
como uma consultora de roteiro, aprendi que existem
processos e conceitos que podem melhorar efetivamente
os personagens. Conversando com muitos roteiristas
aclamados, aprendi técnicas e métodos que grandes
escritores usam pra criar grandes personagens.
Também sei que os mesmos problemas dos escritores
também são enfrentados por produtores e atores. Essas
pessoas são as que mais precisam definir os problemas do
personagem, fazer as perguntas certas, e mostrar soluções
possíveis.
Os conceitos desse livro servem para a criação de todo
tipo de personagem de ficção e são baseados em conceitos
que descobri como professora e diretora de teatro e, durante
os últimos dez anos, como consultora de roteiros.
Pra esse livro, entrevistei mais de cinquenta escritores
que vêm confirmando e articulando esses conceitos;
incluindo romancistas e roteiristas de filme, televisão,
peças e comerciais. Desde que meus negócios se focaram
em roteiros, muitos dos exemplos são do cinema e da TV.
Muitos dos exemplos literários vem de romances e peças
que se transformaram em filmes, partindo da premissa
que são bem conhecidos pelo público. Durante minhas
conversas com romancistas, eles afirmaram que todos os
conceitos de personagem que discutimos em relação a
cinema e TV, também são aplicados no romance.
Já que meu livro anterior “Como Aprimorar um Bom
Roteiro”, lida com personagens em relação à história
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e estrutura, preferi não repetir essa informação. Irei


me concentrar no processo de criar um personagem
“redondo” tanto sozinho como se relacionando com outros
personagens. Se você é um roteirista novato, entender esse
processo pode te ajudar a saber pra onde olhar quando
a inspiração parecer perdida. Se você for um roteirista
experiente, você pode ter descoberto que talvez um de
seus personagens simplesmente não funciona. Rever
esses processos pode ajudar a entender o que você faz
instintivamente.
Personagens são criados através da combinação de
conhecimento e imaginação. Esse livro foi pensado
para estimular seu processo criativo e te levar através
de um método que culminará em personagens fortes,
dimensionais e inesquecíveis.
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1
Pesquisando o Personagem
Há algum tempo, uma das minhas clientes chegou com
um conceito incrível para um roteiro. Ela tinha trabalhado
e retrabalhado ele por um ano inteiro. Seu agente estava
empolgado e ansioso por uma nova história.
Apesar de ser avisada que alguns dos roteiros não
estavam fortes o suficiente pro mercado nacional, aquele
em questão estava empolgante e sólido. É o tipo de história
que muitos produtores chamam de “High-Concept” (com
um gancho forte e uma abordagem única pra história, um
conflito claro e personagens distintos uns dos outros).
Seu primeiro filme tinha acabado de ser produzido e ela
estava contando com esse roteiro pra chegar a um novo
patamar. Ela precisava finalizar rápido, mas os personagens
não estavam funcionando. Ela estava completamente
travada.
Quando analisei o roteiro, percebi que ela não tinha
conhecimento suficiente do contexto, do mundo daqueles
personagens. Algumas cenas se passavam num centro
pra desabrigados. Apesar dela ter passado um tempo
servindo sopa no lugar e conversado com desabrigados,
ela nunca tinha passado pela experiência de dormir lá ou
viver o stress do lugar. O resultado foi a perda de detalhes
e emoções. Era evidente que só havia um jeito de resolver
o problema dos personagens: ela tinha que voltar pra
pesquisa.
O primeiro passo na criação de qualquer personagem é
pesquisa. Já que a maior parte das obras são buscas pessoais
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num território novo, isso exige alguma pesquisa pra


garantir personagens e contextos coerentes e realistas.
Muitos escritores amam o processo de pesquisa. É como
uma aventura, uma exploração, uma oportunidade pra
aprender sobre mundos e pessoas diferentes. Eles adoram
ver personagens ganhando vida depois de passarem
dias aprendendo mais sobre seus mundos. Quando suas
pesquisas comprovam algo que já sabiam intuitivamente,
eles ficam radiantes. Cada nova percepção conquistada por
causa da pesquisa é uma sensação de dar grandes passos em
direção a personagens empolgantes.
Outros acham a pesquisa intimidadora, a parte mais
difícil do trabalho. Muitos escritores resistem a ela, ficam
ressentidos passando horas em ligações ou devorando
informações na biblioteca. Pesquisar pode ser frustrante,
um devorador de tempo. Você pode perder muito tempo
andando em círculos antes de chegar em algum lugar; mas
a pesquisa é o primeiro passo no processo de criar um
personagem.
A profundidade de um personagem é como um iceberg.
O público ou leitor vê apenas a ponta do trabalho do
escritor (talvez só 10% de tudo que o escritor sabe sobre
o personagem. É preciso confiar que todo esse trabalho
aprofunda o personagem, mesmo que muitas dessas
informações não apareçam diretamente no roteiro).
Quando a pesquisa é necessária? Pense nisso: Você está
escrevendo um romance. Todos que leem concordam que
seu protagonista, um cara branco com seus trinta e sete
anos, tem uma personalidade fascinante, mas existem certas
motivações que os leitores não entendem. Você decide que
precisa aprender mais sobre os mecanismos internos do seu
personagem. Um amigo sugere que você leia “Seasons of a
Man’s Life” de Daniel Levinson, sobre a crise de meia-idade
masculina. Você também arruma uma vaga num grupo de
estudos sobre homens. Você espera aprender, através dessa
pesquisa, o que acontece com um homem na transição para
a meia-idade e como isso influencia no seu comportamento.
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Ou, você acabou de terminar um roteiro, mas o


personagem de apoio do advogado negro não parece tão
realista quanto os outros. Você liga para a NAAPC pra
ver se algum advogado negro gostaria de conversar. Você
precisa ter uma compreensão de como a bagagem étnica
afetaria esse personagem nessa função específica.
Ou, você foi chamado pra escrever um filme sobre a
expedição de Lewis e Clark. Você é esperto: pede dinheiro
ao estúdio para a pesquisa, pro transporte, e um prazo de
oito meses. Sabe que precisará entender a experiência dessa
expedição e como a época afetará os personagens e seus
diálogos.

PESQUISA GERAL VS. PESQUISA ESPECÍFICA


Por onde começar? Primeiro, entenda que não se começa
do zero. Você já está pesquisando enquanto vive, então já
tem um bom material pra se debruçar.
Você faz a tal “pesquisa geral” o tempo todo. É através
da observação, da perspicácia, que se inicia a estrutura
da base de um personagem. Você provavelmente é um
observador nato de pessoas. Observa como elas andam,
agem, se vestem, o modo que falam, até seus padrões de
pensamentos.
Se você tiver alguma profissão além de escritor (talvez
médico, corretor de imóveis, professor de história) tudo
que você absorver nessas profissões pode ser aplicado,
por exemplo, na escrita de uma série médica, ou sobre
imobiliárias, ou um romance ou peça que se passa na
Inglaterra medieval.
Você faz pesquisa geral quando vai numa aula de
psicologia, arte ou ciência. O que você aprende pode prover
detalhes pra sua próxima história.
Muitos professores de escrita dizem, e com razão,
“escreva sobre o que você conhece”. Eles sabem que esse
ato constante de observar a vida e essa pesquisa geral dão
muitos detalhes que poderiam levar meses ou anos pra que
uma pessoa sem essas experiências conseguisse adquiri-las.
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O escritor Carl Sautter, escritor de “Classe Operária”


e autor do “How to Sell Your Screenplay: The Real Rules
of Film and Television”, conta como foi escolhido para
trabalhar numa história que se passava em Fort Lauderdale.
“Ele queria um filme sobre quatro garotas que iam a
Fort Lauderdale pra umas férias de primavera. Era uma
ideia legal, mas descobri que ele nunca tinha ido a Fort
Lauderdale durante as férias de primavera. Então ele disse
‘é uma pena não poder ir pra lá essa semana, será a semana
da panqueca’. Essa cidadezinha estava no festival anual de
panqueca. Ele começou a descrever todas as coisas que as
pessoas de lá fazem com panquecas, todos os detalhes do
festival. E eu disse, ‘Ai está a história. É um cenário incrível
pra um filme. Por que escrever uma história que duas mil
pessoas poderiam escrever melhor que você? Escreva sobre
algo que você conhece”.
A criação de personagem começa com o que você
já conhece. Mas a pesquisa geral nem sempre nos dará
informações suficientes. Será preciso fazer pesquisas
específicas para preencher detalhes no personagem
que talvez ainda não façam parte da sua experiência e
observações pessoais.
O romancista Robin Cook (Coma, Mutation, Outbreak,
etc) é médico, mas faz suas pesquisas específicas para seus
livros de ficção médica. “A maior parte da pesquisa está na
leitura”, afirma ele, “mas falo com doutores especializados
no tema da minha obra. Na verdade, vou trabalhar naquele
campo específico por algumas semanas. Quando escrevi o
livro Brain, que lida com um neuro radiologista, passei duas
ou três semanas com um neuro radiologista. Para Outbreak,
que é sobre uma doença contemporânea, falei com o
pessoal do Centro de Controle de Doenças em Atlanta e
pesquiseis vírus. Para Mutation, pesquisei sobre engenharia
genética. As mudanças nessa área são tão rápidas que muito
do que aprendi na faculdade não é mais válido. Lanço um
livro por ano. Costumo gastar seis meses na pesquisa, dois
meses criando a “outline”, dois meses escrevendo o livro
e dois meses fazendo outras coisas como publicidade e
trabalhando no hospital.”
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O CONTEXTO
Personagens não existem no vácuo. São produtos de
seus entornos. Um personagem francês do século XVII é
diferente de um texano da década de 80. Um personagem
médico de uma cidade pequena em Illinois é diferente de
um patologista no Hospital Geral de Boston. Alguém que
cresce na pobreza, numa fazenda de Iowa será diferente de
quem cresceu na riqueza em Charleston, na Carolina do
Sul. Um negro, hispânico, ou euro-americano será diferente
de um sueco de St. Paul. Entender um personagem começa
por entender o contexto que o cerca.
Qual é o contexto? Há uma excelente definição no livro
de Syd Field “Roteiro, os fundamentos do roteirismo”. Ele
compara contexto com um copo vazio de café. O copo é
o contexto, o redor do personagem que será preenchido
com especificidades da história de outros personagens. Os
contextos que mais influenciam o personagem incluem a
cultura, período histórico, localização geográfica e profissão.

INFLUÊNCIAS CULTURAIS
Todo personagem tem contextos étnicos. Se você é
a terceira geração de americanos originários da suécia-
alemanha (como eu), a influência desse contexto talvez seja
mínima. Se você é a primeira geração de negros jamaicanos,
o contexto étnico pode determinar comportamentos,
posturas, expressões emocionais e filosofia de vida.
Todos os personagens tem experiências sociais prévias.
Existem diferenças entre alguém que veio da classe média
agrícola de Iowa e alguém de uma família rica de São
Francisco.
Todos os personagens possuem contextos religiosos.
São católicos, judeus, testemunhas de Jeová, agnósticos ou
ateus?
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Todos os personagens possuem experiências prévias de


educação. A quantidade de anos na escola, bem como áreas
específicas de estudo, mudarão o jeito do personagem.
Todos esses aspectos culturais terão grande influência
sobre o jeito dos personagens, determinarão seu modo de
pensar e falar, seus valores, preocupações e vida emocional.
John Patrick Shanley (Feitiço da Lua) veio de um lar
Hibérnico-Americano mas absorveu coisas de seus vizinhos
italianos. Ele dizia, “Eles se alimentam melhor. Tem uma
conexão com seus corpos. Quando falam, eles falam com
o corpo todo. Existem coisas que eu gosto nos Irlandeses.
Eles podem falar mais que os Italianos. Eles têm um tipo
diferente de charme. Então levo comigo o melhor dos dois...
na minha escrita e na minha vida”.
William Kelley pesquisou durante sete anos para escrever
“A testemunha”. Estudando a cultura Amish, tentando
saber mais de pessoas que não se interessavam em falar
com estranhos como ele. “Eles eram bem desconfiados de
Hollywood então eu passei sufoco até encontrar o Bispo
Miller (Um construtor de carroças) que mencionou que
precisaríamos de cinquenta carroças para gravar o filme.
Miller as construiu e tive uma brecha para mergulhar no
ponto de vista dos Amish.
Bispo Miller foi o modelo inicial para Eli no filme “A
testemunha”. Através dessa parceria Kelley aprendeu que os
Amish eram um tanto obscenos, sabiam “identificar bons
cavalos”, tinham bom senso de humor, e que as mulheres
poderiam ser tímidas e sedutoras.
A cultura determina o ritmo de fala, gramática e
vocabulário. Leia em voz alta o diálogo a seguir, para ouvir
a voz dos personagens.
Em “Amor a segunda vista”, de Susan Sandler, o linguajar
do lado oeste contrasta com o baixo leste. Nesse caso, todos
os personagens (exceto o poeta) tem um contexto judeu e
vem de uma localidade distinta de Nova Iorque. Ambos os
contextos influenciam suas falas.
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Izzy (do lado oeste) descreve sua situação: “Conheci


alguém. Foi um encontro arranjado com um casamenteiro.
Vovó que arrumou”.
Bubba, a avó, fala em outro ritmo: “Quem quer pegar
macaco no mato, tem que subir em árvore. Cachorro é que
vive sozinho, não gente”.
Sam, do baixo leste, tem um estilo diferente: “Tô bem
feliz, cara. Curto acordar de manhã, ouvir os canarinhos.
Boto uma camisa, vou na igreja, faço as preces. As nove o
portão abre”
E o poeta diz: “Você possui uma quietude esquisita, Izzy”.
Ouça os ritmos da peça Riders to the Sea, de John
Millington Synge: “Estão todos juntos dessa vez, e o fim se
aproxima. Que Deus tenha piedade da alma de Bart-Ley e
Michael, das almas de Sheamus e Path e Stephen Shawn, e
que Ele tenha piedade de minha alma, Nora, e das almas de
todos que vivem no mundo”.
Ouça a diferença na fala de Eli, o homem Emish e John
Book, o policial da Filadélfia. Esses ritmos são bem sutis,
mas se você ler em voz alta, ouvirá a diferença entre a
melodia no discurso de Eli e a franqueza na fala de John.
Eli: Seja cuidadoso com aqueles ingleses.
John Book: Samuel, sou um policial. Meu
trabalho é investigar esse assassinato.
Muitas vezes, suas histórias terão personagens de
diferentes culturas. Os que forem da sua cultura, é possível
usar suas próprias experiências para encontrar o ritmo e a
postura. Quanto aos personagens de outras culturas, será
preciso pesquisa extra pra garantir que o jeito deles soe
legítimo, além de garantir que sejam genuínos e não meros
nomes diferentes.

O PERÍODO HISTÓRICO
É especialmente difícil situar uma história em outra
época. Geralmente a pesquisa é indireta. Um escritor não
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consegue informação direta andando pelas ruas de Londres


do XXI quando sua história se passa no século XVI. Ouvir
o discurso de um inglês moderno lança uma leve luz
no discurso de centenas de anos atrás. O vocabulário é
diferente, os ritmos são diferentes, e até mesmo a maneira
que as palavras são usadas, já que muitos significados
perdem o uso.
O romancista Leonard Tourney, professor de história
da Universidade de California, em Santa Bárbara, escreveu
alguns livros sobre a Inglaterra do século XVI, incluindo
“Old Saxon Blood” e “The Players Boy is Dead”. Seu
contexto profissional deu a ele o conhecimento da época,
ainda assim ele teve de pesquisar detalhes específicos
enquanto escrevia o livro.
Leonardo afirma, “Posso saber das hospedagens da corte
e o histórico e práticas durante o final do século XVI ou
início do século XVII. Uma dos meus romances trata do
julgamento de uma bruxa. Tive que descobrir se a acusada
era representada por um advogado no início do século
XVII. A resposta foi “não” (o que fazia o julgamento soar
estranho. Tive que descobrir quantos juízes ficavam na
tribuna, se havia um júri, e quantas pessoas compunham o
júri. Eu tinha uma noção de que qualquer comportamento
suspeito naquela época seria evidência suficiente para
enquadrar o suspeito em feitiçaria. Tive de descobrir qual
punição que as bruxas recebiam.”
Recentemente fui consultora de um projeto sobre a
caminhada Mormon para Salt Lake City por volta do século
XIX. Kieth Merrill, escritor e diretor, forneceu material de
pesquisa sobre discursos da época e detalhes da jornada. A
escritora Victoria Westermark, que escreveu alguns roteiros
situados no século XIX, fez a reescrita e o polimento.
Explicou como criou uma sensação de época enquanto
definia características e linguajares daqueles tempos para o
roteiro de Legacy.
“Normalmente busco por diários, cartas, discursos que a
pessoa possa ter escrito. Apesar da fala escrita ser diferente
da cotidiana, as pessoas se revelam através de diários, as
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cartas podem ser bem rígidas. Outra forma de captar a


sensação de determinado tempo, foi ler jornais da época. Lá
encontrei o ritmo do público geral, aquilo que gostavam ou
não gostavam, e até mesmo juramentos.
“Também pesquisei na biblioteca de Hunting, em
Passadena, onde pude ler diários originais. Fazia listas com
palavras ou frases que não eram comuns mas adicionavam
sabor ao roteiro, sem que soassem muito ultrapassadas.”
Mesmo depois de uma longa pesquisa, você
provavelmente terá que imaginar detalhes que não foram
encontrados na pesquisa. Tudo que você encontrou servirá
como base para que a época soe legítima em seu roteiro.

LOCALIZAÇÃO
Muitos escritores situam suas histórias em locais
familiares. Se você cresceu em Nova Iorque, muitas das suas
histórias ocorrerão lá. A indústria hollywoodiana produz
centenas de histórias sobre pessoas que chegaram para
conquistar seu espaço em Hollywood.
Escritores também situam suas histórias em lugares que
visitaram ou viveram por um período de tempo. Quanto
mais familiar for o local, menos pesquisa será necessária.
Contudo, escritores que conhecem o lugar, frequentemente
descobrem que precisam retornar para fazer pesquisas
específicas.
William Kelley vive em Lancaster County, na
Pensilvânia. Ele já tinha um bom começo para a pesquisa
de local para o filme “A testemunha”. Contudo, continuava
visitando a região para observar modelos para seus
personagens e expandir seu conhecimento sobre os Amish
(que serviriam para o projeto em questão).
James Darden, escritor de “Atração Fatal”, é britânico,
mas passou um tempo considerável em Nova Iorque (o
local da sua história).
Dois dos romances de James Bond “007 Contra o
Satânico Dr. Não” e “007 Viva e Deixe Morrer” e outras de
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suas histórias curtas se passam na Jamaica, onde o autor


mantém o Hotel Goldeneye. Ele visitou Tokyo antes de
escrever “007 Só se Vive Duas Vezes” e viajou no Orient
Express para escrever “Moscou Contra 007”.
A localização afeta diferentes aspectos do personagem.
No filme “A Testemunha” o ritmo frenético da Filadélfia é
diferente do ritmo pacato da fazenda dos Amish. No filme
“O Cavaleiro Elétrico” o ritmo do oeste é diferente do ritmo
de Nova Iorque no filme “Uma secretária de Futuro”. Cada
ritmo terá um efeito sobre os personagens.
Se você estivesse escrevendo “Rain, O Pecado da Carne”,
de Smerest Maugham (transformado posteriormente em
dois filmes), ou “A noite do Iguana”, de Tennessee Williams,
ou “O Poder e a Glória”, de Graham Greene, você iria
querer transmitir a sensação opressiva do calor e humidade
ou a sensação claustrofóbica da chuva constante nos
trópicos.
Se você estivesse escrevendo um livro como “In God
We Trust” de Jean Shepherd, ou o roteiro para “Os Lobos
Nunca Choram”, de Curtis Hanson, Sam Hamm e Richard
Kletter, você precisaria saber como temperaturas negativas
afetam o estilo de vida e o comportamento das pessoas.
Dale Wasserman, escritor da peça baseada no romance
de Ken Kesey “Um Estranho no Ninho”, teve que fazer
um estudo do local para compreender seus personagens.
“Como parte da minha pesquisa, visitei manicômios:
um de luxo e outros precários. Depois negociei com um
psiquiatra para passar um tempo como paciente de um
dos manicômios. No começo pensei em ficar por dez
dias. Não por ser assustador ou desconfortável, pelo
contrário, era muito confortável. Aprendi algumas coisas
que não esperava. Número 1: Se você entrega suas forças e
vontades a uma instituição a vida se torna muito simples
e é tentador simplesmente seguir assim. Aprendi sobre a
grande diversidade de pacientes, as articulações, as várias
habilidades que possuem.”
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Quando Kurt Luedtke escreveu a peça “Entre dois


Amores”, ele precisou saber tudo sobre o mundo de Karen
Blixen na África dos anos 1920/1930.
“Posso olhar pra minha prateleira agora e achar pelo
menos cinquenta livros sobre o Oeste Africano. Minha
pesquisa revelou que a fronteira africana sequer havia sido
aberta em 1982, as pessoas viviam no limite do mundo
conhecido.”
Seus livros eram suficientes para a pesquisa geral,
mas Kurt precisava fazer uma pesquisa específica, para
responder questões que iam surgindo enquanto escrevia o
roteiro.
“Eu precisava aprender como o café florescia, como
se opera uma plantação. Descobri entrevistando um
cafeicultor.
“Precisava entender como era a relação entre brancos,
essencialmente britânicos, e os negros quenianos. Entender
as tribos africanas, pois Blixen provavelmente não se valia
dos quicuios como empregados domésticos, provavelmente
eram somalianos.
“Precisava entender quantos homens brancos viviam da
caça de marfim naquela época. Sobre a situação política: era
uma colônia ou um estado parcialmente soberano? Quem
tinha autoridade pra fazer o quê? E qual era a relação entre
governo e colonos?
Eu precisava saber a história da primeira guerra mundial
no Leste Africano. Normalmente achamos que a primeira
guerra não teve algum efeito na África, mas teve. “
Todos esses detalhes (o ritmo pacato de vida, onde
longas histórias eram parte do entretenimento matinal; a
relação entre colonos e nativos; animais silvestres soltos,
e a instabilidade econômica numa plantação de café)
mostram a importância da pesquisa específica para que os
personagens funcionem.
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O IMPACTO DA PROFISSÃO
Às vezes o contexto pode ser a profissão do personagem.
Uma pessoa de Wall Street tem um ritmo e um estilo
de vida diferente de um fazendeiro de Iowa. Um analista
de computador tem habilidades diferentes de um corredor
olímpico. Um jardineiro e um pediatra têm posturas,
valores e preocupações diferentes.
James Brooks se atraiu pela ideia que usou no filme “Nos
bastidores da Notícia” por ser um fã de notícias. Apesar do
tempo que passava nas redes de notícias, do seu contexto
ele ainda teve que se dedicar a um ano de pesquisa para
escrever o roteiro. Como parte de sua pesquisa, ele passou
um bom tempo conversando com âncoras e observando
estações de notícias.
“Me interessava pelo assunto”, ele relata “tive que
passar os primeiros meses me livrando desse interesse
(desaprendendo tudo que eu achava que sabia) para
conseguir ser o mais objetivo possível.
Comecei a pesquisa falando com muitas mulheres.
Com duas em especial: uma repórter de Wall Street e uma
repórter. Estava interessado nas mulheres que conquistaram
um lugar ao sol rapidamente, logo depois de sair da
faculdade. Com a boa educação de colégios prestigiados.
“De alguma forma, as perguntas que eu fazia se pareciam
muito com perguntas que se faria para vários estágios de
um relacionamento, mas parecia algo mais clínico.”
Além de falar com pessoas, James Brooks se instruía
academicamente. “Eu lia a longa biografia de Murrow,
alguns ensaios sobre noticiários e programas de rádio e
devorava tudo que me falavam que poderia ser interessante.
Passava muito tempo na cidade, conversando com
pessoas da área. E se você passa tempo suficiente
pesquisando, suas chances de estar no lugar certo e na hora
certa aumentam”.
James Brooks via muitos detalhes que poderia incorporar
no filme simplesmente “dando uma volta”. “Eu via alguém
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correndo, literalmente correndo, quando algo dava errado


com uma fita de gravação”.
Perguntei para Kurt Luedtke como ele faria a pesquisa
pra certos personagens, por exemplo, pra um arrombador
de cofres. Já que Kurt já foi um jornalista, ele está muito
habituado com o processo de pesquisa. Ele explicou como
faria pra conseguir informações tanto pro personagem
quanto pra história.
“A primeira coisa que eu faria seria procurar por policiais
e perguntar: ‘você prendeu alguém recentemente que
é alfabetizado, meio idiota e que ficaria doido pra falar
comigo?’. Talvez depois de cinco ou seis tentativas alguém
diria ‘Sim, tem um cara que talvez goste de falar com você.
Provavelmente vai querer algum dinheiro, mas se você
pagar, ele vai adorar falar com você’.
“Mas veja, eu não procuro por informação de
personagem, mas por informação sobre essa profissão,
informação pra cena. Certamente pediria que me conte
sobre as cinco vezes que um esquema deu errado, o que
aconteceu, pelo simples lado cômico de entender como as
coisas podem dar errado. Provavelmente eu procuraria
por todas as coisas que não sejam detalhes do personagem,
pois provavelmente o cara é realmente um criminoso e
provavelmente eu estaria escrevendo sobre um criminoso
menos realista e mais simpático ao público”.
Algumas perguntas que Luedtke faria seriam: “Como
você escolhe o lugar pra assaltar?” “Pra quem você trabalha?
E se trabalha sozinho, qual o motivo?” “Quais são os
problemas da profissão?” “Por que escolheu arrombar
cofres ao invés de tantas outras possibilidades de ganhar a
vida?” “Onde aprendeu a arrombar cofres?” “O que fazia
quando criança?”
Através dessas perguntas (Quem, o quê, onde, quando,
por quê), Luedtke começaria a formar algumas conclusões
sobre o tipo de pessoa que se torna um arrombador de
cofres, e como difere de outros criminosos. “Presumo que
os arrombadores de cofres tenham algum respeito pelas
autoridades, uma certa abordagem conservadora no crime,
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o oposto de um assassino ou um assaltante onde é preciso


apontar uma arma pra alguém e lidar com a possibilidade
das pessoas estarem armadas. Arrombar cofres é um tipo
de serviço bem tranquilo. Você não se depara com ninguém
e seu objetivo é fundamentalmente financeiro. Você não é
um sociopata, é só alguém que quer viver fora das regras.
Simplesmente precisa de dinheiro.”
Kurt procuraria por vocabulário específico. Quais são as
expressões que os arrombadores usam? Isso não dá pra se
achar numa livraria. “Um livro publicado em 1970 pode ter
uma coisa ou outra, mas provavelmente está desatualizado”.
Kurt chegaria em outras conclusões com essa
informação. “Se ele é cuidadoso, provavelmente não
ficaria se exibindo, ele não iria querer ser lembrado.
Provavelmente não iria atuar nas redondezas de onde mora,
mas iria até St. Louis fazer seu trabalho e sair fora.”
A partir dessas informações, Kurt começaria a traçar
pontos na história que seriam coerentes com o personagem:
“Se ele for cuidadoso, provavelmente não vai confiar em
muitas pessoas. Um erro que ele poderia cometer na
história: ser avisado para não se envolver demais com
alguém, mas acabar se envolvendo. Então acabaria caindo
em todo tipo de problemas”.
Através desse tipo de entrevista, o escritor começa a
pegar informações básicas para um contexto que torne o
personagem mais realista. Isso também pode estimular o
processo criativo, fazendo a história surgir de forma natural
e verdadeira.

EXERCÍCIO: Se você estiver entrevistando um


arrombador de cofres, quais outras perguntas você faria?
Alguma sobre família? Estilo de vida? O psicológico
daquela pessoa? Suas motivações? Objetivos? Valores?
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CRIANDO UMA PESQUISA ESPECÍFICA ATRAVÉS DE


UMA PESQUISA GERAL
Às vezes a pesquisa geral faz os escritores a criar um
personagem baseado em alguém que eles conheceram.
Quando William Kelley fez a pesquisa para o filme “A
testemunha”, ele encontrou modelos tanto para Rachel
quanto para Eli. William afirma que “O próprio bispo
Miller se tornou o Eli (apesar de eu nunca ter contado
isso pra ele). Estudei o personagem olhando com muita
atenção pro rosto (o rosto é o espelho da alma) e ouvindo
atentamente as entonações, sotaques, senso de humor... Eu
não podia tirar uma foto dele, então eu decorei seu jeito.
“O modelo pra Rachel veio da cunhada do bispo Miller.
Certo dia ela saiu de casa, veio vindo de um jeito charmoso,
com um balançar de cabeça e um olhar tímido ela disse
‘Então você vai fazer um filme e eu vou participar?’ Eu
respondi ‘Bem, se você continuar a falar comigo eu quase
posso garantir que sim’. Ela era muito bonita, parecia a Ali
McGraw e era fácil prestar atenção nela, tinha uns 27 ou 28
anos”.
Para o filme “Nos bastidores da notícia”, James Brooks
usou quatro ou cinco mulheres para escrever Jane. Tom foi
baseado num correspondente que ouvia falar. “Alguém me
contou uma história sobre esse homem. Ele seria mandado
pro Líbano e então disse ‘Sem chance; prefiro me demitir.
Sou casado e tenho um filho. Não vou arriscar meu pescoço
lá.’ Brooks sentiu que havia um personagem interessante ali,
muitos do ramo dariam tudo pra ir ao Líbano, mas aquele
homem colocou sua família como prioridade.
Se você encontrar um modelo pro seu personagem
durante uma pesquisa, isso é um bônus, mas não uma
exigência. Depois que você conseguir entender o contexto
do seu personagem, ele pode perfeitamente sair da sua
imaginação.
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DICAS PARA A PESQUISA ESPECÍFICA


Em todos esses relatos, uma coisa fica muito clara: Todos
esses roteiristas sabem para onde olhar e o que perguntar.
Fazer as perguntas certas é uma habilidade que pode ser
aprendida. Gayle Stone, escritora de suspenses tecnológicos
(A Common Enemy, Radio Man), é também professora de
escrita. Ela diz “Há pessoas passam a vida perdendo 90%
do que está acontecendo ao redor. Todos somos capazes
de prestar atenção. Algumas pessoas prestam atenção
mais fácil, talvez por incentivo dos pais. Essas terão mais
informações em suas recordações. Se alguém te mostrar que
você é uma dessas pessoas que não prestam atenção, então
aproveite a oportunidade. Não existe razão pra não começar
agora. Nunca é tarde pra observar a vida. Enquanto você
respirar você poderá fazer. Você ficará surpreso no quanto
pode saber, no quanto seu inconsciente tem guardado até
aqui”.
Muitas pessoas estão morrendo de vontade, até
mesmo ficariam lisonjeadas de serem questionadas sobre
seus trabalhos. Seja um agente do FBI, um psicólogo
especializado em transtornos obsessivos, ou um carpinteiro
mostrando o nome e a utilidade de cada ferramenta. Quem,
o que, aonde, quando e Por quê? São perguntas que trarão
as informações necessárias.
“Conheça seu bibliotecário” é um conselho valioso
para qualquer escritor que precise de acesso rápido a
informação. Bibliotecários sabem as respostas ou têm
alguma ideia de onde encontra-las.

QUANTO TEMPO LEVA?


A pesquisa pode demorar tanto quanto qualquer parte da
escrita de um roteiro. O tempo necessário depende do seu
conhecimento prévio, e das dificuldades encontradas para
criar o personagem e a história.
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James Brooks: “Pesquisa nunca acaba. No filme ‘Nos


bastidores da Notícia’ precisei de um ano e meio de pura
pesquisa e quatro anos com o restante do processo, pois a
pesquisa continuou ao longo das filmagens”.
William Kelley: “Pesquisei os Amish por sete anos, eu e
Eral escrevemos o roteiro durante a greve dos roteiristas de
1980, que durou cerca de três meses”.
Dale Wasserman: “O roteiro de ‘Um estranho no Ninho’
levou três meses de pesquisa, comecei lendo um livro muito
interessante. Levei seis semanas pra escrevê-lo”.
Sem a pesquisa adequada, o processo da escrita
geralmente demora mais e pode ser bem frustrante.
Apesar da pesquisa continuar durante o processo de
escrita, existem momentos que você sente que já está
familiarizado o suficiente com certos assuntos. Jamos
Brooks diz que esse ponto é atingido quando “as pessoas
acabam confirmando o que você já sabia, e você é capaz de
conversar tranquilamente com peritos da área que você está
explorando”.

ESTUDO DE CASO: A MONTANHA DOS GORILAS


Em fevereiro de 1989, Anna Hamilton Phelan foi
indicada a um prêmio da Academia por melhor adaptação
com o filme “A montanha dos gorilas”. Esse estudo de caso
mostra as várias formas que a pesquisa pode ser usada para
criar um personagem, até mesmo (como é o caso) quando
um personagem é baseado numa pessoa real.
“Comecei a pesquisar a vida de Dian Fossey no meio
de Janeiro de 1986, poucas semanas depois dela ser
assassinada. Terminei a pesquisa dia 1 de Junho, comecei
a escrever o roteiro um mês depois e o entreguei dia 1 de
Setembro. Levou cerca de cinco meses de pesquisa e oito
semanas de escrita. Foi tão rápido porque eu tinha tudo que
precisava. Estava tão segura com as informações que recolhi
que não demorou quase nada pra botar tudo no papel.
“Tive que fazer diferentes tipos de pesquisa pra essa
história. Consegui as informação de primatologia nos
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livros. Lia tudo que podia sobre o gorila da montanha


(Todos os artigos da National Geographic, tudo que
encontrava na Biblioteca de UCLA sobre gorilas da
montanha de Ruanda. Aprendi sobre seus ninhos noturnos,
que se tornou uma cena do filme. Aprendi que não se deve
fazer contato visual porque isso os provoca.
“Aprendi como gorilas sobre enxergam suas famílias
e grupos. Deve haver um gorila (um jovem macho) que
guardará o resto do grupo. Isso foi conveniente pois Digit,
que era um jovem macho, era o gorila preferido da Dian
Fosseys. Ele coloca suas mãos sobre as dela no filme.
“Durante meu tempo na África, eu buscava pelo
cheiro, a sensação, as impressões que o ambiente me
causava. Apesar de não ser possível sentir o cheiro de um
personagem ou ambiente num filme, você pode alcançar
isso por entre as linhas. Eu procurava essa sensação de quão
perigosa a região era para viver. Muito do perigo vinha do
desconforto de estar a dez mil metros acima do mar. Dian
tinha enfisema (que ficava mais severo por causa do clima
frio e úmido e por fumar dois maços de cigarro por dia). A
caminhada, as trilhas pelas montanhas e os deslizamentos
me fizeram pensar “Que tipo de mulher gostaria de viver
num ambiente desses por cinquenta anos?” É muito tempo
para viver na lama e no frio congelante. Um frio de rachar
os ossos. O mais frio mais intenso de toda minha vida. É
úmido e você fica molhada o tempo todo. Nenhuma parte
de você fica seca ao sair de casa.
“Fiquei numa pequena cabana há alguns metros da que
Dian foi assassinada, já que não tínhamos permissão de
entrar na que ela morou. A cabana foi incinerada depois de
seu assassinato. Queria entrar para tocar as coisas. Às vezes
tocar objetos que foram manipulados pela pessoa pode
trazer sensações que você pode usar no seu trabalho. Se
eu tivesse conseguido entrar lá e tocado suas coisas, aquilo
teria sido benéfico. Eu podia olhar pelas janelas da cabana
dela e ver como era no interior... Foi tão bizarro ver aquela
cabana de lata com objetos de valor: toalhinhas de mesa,
vasinhos com flores secas, porta retratos de prata, porcelana
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boa, prataria boa. Isso foi o que me intrigou sobre aquela


mulher.
“A primeira vez que vi os gorilas pensei: não são de
verdade. Eram tão gentis e dóceis cuidando da própria
vida que sequer me inspirava receio. Mas não tive aquela
sensação sobre eles que eu sabia que Diana tinha (aquela
sensação de temor e admiração). Então eu tive que fabricar
aquele sentimento. Apesar disso, foi útil ver os gorilas.
“A época em que se passava a história foi mais difícil de
pesquisar pois a guerra civil, que formou uma subtrama
forte na época de Diana, já havia terminado quando eu
fazia as pesquisas. Encontrei algumas informações no livro
de Diana Fossey, onde ela mencionou brevemente, num dos
capítulos, sua breve visita à fronteira. Haviam outros livros
que li, outros registros históricos sobre o conflito no Congo.
“A população local tinha grande admiração e carinho
por Dian Fossey e por sua proteção. Os que nunca a
conheceram tinham grande carinho por ela. Ela era
chamada de Niramachebelli, que significa “uma mulher
que vive sozinha na floresta”. Mas as pessoas que conversei
que a conheciam de fato, não gostavam dela. Apenas uma
(das quarenta pessoas que entrevistei) simpatizava com ela.
Era Ross Car (interpretada por Julie Harris no filme). Ela
tinha muitos inimigos. Você poderia apontar pra qualquer
direção e encontrar um assassino”.

APLICAÇÃO
Enquanto você reflete durante a pesquisa, pense nas
seguintes questões sobre seus personagens:
■■ O que preciso saber sobre o contexto do meu
personagem?
■■ Eu compreendo sua cultura?
■■ Entendo o ritmos, a crenças, as atitudes que são parte
de sua cultura?
■■ Já conheci, conversei, e passei algum tempo com
pessoas dessa cultura?
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■■ Consegui entender a maneira que ele se assemelha ou


se diferencia da maneira que eu sou?
■■ Passei um tempo com um número de pessoas
diferentes dessa cultura, para que não acabe
estereotipando o personagem, baseando ele em uma
ou duas experiências que testemunhei?
■■ Estou familiarizado com a profissão do meu
personagem?
■■ Eu tenho uma noção da profissão, do vínculo, de
como esse personagem se sente no trabalho que atua?
■■ Tenho uma boa noção de vocabulário para usá-lo
naturalmente num diálogo?
■■ Sei onde meu personagem mora? O jeito do lugar, a
sensação de andar pelas ruas?
■■ Tenho uma noção do clima, das atividades de lazer,
dos sons e dos cheiros do local?
■■ Como esse local se difere da minha região? Que efeito
isso pode ter no meu personagem?
■■ Se minha história se passa em outra época, tenho
o conhecimento histórico suficiente em termos
de linguagem, condições de vida, vestimenta,
relacionamentos, posturas e influências?
■■ Lí diários e outras fontes literárias da época para
ter uma noção de como as pessoas falavam e que
palavras usavam?
■■ Pesquisando meus personagens, pedi ajuda para
fontes confiáveis? (seja o bibliotecário ou pessoas com
conhecimento específico da área.)
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RESUMO
Quase todos os personagens exigem certa pesquisa.
Existe mais de uma razão para que escritores novatos
escrevam sobre o que conhecem. A pesquisa pode ser
demorada e onerosa. Muitos escritores iniciantes não
podem pagar por um mês na África, ou encontrar
um arrombador de cofres, ou fechar negócio com um
construtor de carroças Amish.
Entender a importância da pesquisa e entender o que
pesquisar são passos importantes no processo de criar
personagens fortes.
Quando os roteiristas vencem o medo de pesquisar,
muitos descobrem que pode ser a parte mais empolgante,
criativa e estimulante do processo de escrita. A pesquisa
facilita o caminho da imaginação e dá vida ao personagem.
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2
Definindo o personagem:
Consistências e Contradições
Pense numa pessoa que você goste muito – amigo,
esposo, professor, parente. As primeiras qualidades que
vierem a cabeça, talvez sejam o que existe de mais forte
em suas personalidades. Pode ser aquela amiga sempre
empática e compassiva, enquanto um outro adora uma
boa festa; talvez um professor conhecido por sua lógica
analítica, ou um parente movido por um senso de vitória
nos esportes e na vida.
Mas, os próximos pensamentos que você tiver sobre a
pessoa podem ser surpreendentes, ilógicos, contraditórios.
Seu amigo mais sensato adora vestir aqueles chapéus
horríveis. Ou aquele amigo mais emocional que lê livros
de astronomia no tempo livre. Sua amiga compassiva odeia
insetos e joga inseticida assim que ouve ou vê algum pela
casa.
O processo de definição de personagem é um processo
de vai e vem. Você faz perguntas; observa; pensa nas
suas experiências pessoais e cria as experiências dos seus
personagens. Você testa a consistência do seu personagem.
Pensa nos detalhes que são únicos e imprescindíveis.
Esse processo pode parecer banal e, de alguma forma,
ele é. Mas existem certas qualidades que são encontradas
em todos os personagens dimensionais. Quando seu
personagem se recusa a ganhar vida, entender essas
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qualidades pode te ajudar a expandir, enriquecer e


aprofundar esse personagem.

COMO COMEÇAR?
Seja modelando um personagem usando como base
alguém que você conhece intimamente, ou em alguém que
você observa, ou usando a si mesmo, ou num conjunto
de características reunidas; criar um personagem começa
com um forte impacto. Aquela imagem impactante que
transmite a sensação de quem seu personagem é.
Talvez você o veja fisicamente: Como ele é? Como ele se
move? Talvez você queira explorar um personagem abatido
numa crise. Como ele irá se comportar ou reagir? Você
provavelmente começará com uma sensação visceral, com
algo que realmente importa praquela pessoa.
Existem estágios de criação do personagem. Apesar de
não necessariamente nessa ordem:
1. Ter a primeira ideia baseada em observação ou
experiência própria.
2. Criar as impressões mais gerais.
3. Encontrar o cerne do personagem para fazê-lo
coerente.
4. Encontrar as contradições do personagem para
torna-lo complexo.
5. Adicionar emoções, posturas e valores para dar
profundidade.
6. Adicionar detalhes para fazê-lo único, singular.

OBSERVAÇÃO
Muito do material usado para criar personagens virá de
pequenos detalhes.
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Carl Sautter fala sobre observar personagens incomuns


num restaurante. Essa cena da vida real ajuda a demonstrar
como observação e imaginação trabalham juntos:
“Estava dando um seminário em Washignton e
falávamos sobre a construção de personagem. Os estudantes
chegavam com todo tipo de personagem que você possa
imaginar: A prostituta com se bom coração, o gordinho
feliz que é miserável por dentro, etc. Então fui almoçar e
tinha um rapaz na cafeteria que segurava uma cumbuca de
sopa e uma faca. Fiquei observando ele, tentando descobrir
no que diabos ele estava pensando tão profundamente.
Ele segurava um prato com um pãozinho e um tablete de
manteiga (que obviamente estava muito frio e bem duro).
Ele desembrulhou a manteiga com todo o cuidado, pegou
um pouco com a faca e a mergulhou na sopa para que
derretesse. Então passou a manteiga amolecida no pão.
Aquilo ganhou sentido: um cara usando a sopa quente pra
amolecer a manteiga e passa-la no pão. Isso me deixou
pensando: Como será a personalidade desse homem? O que
aquela atitude diz sobre ele? Quando voltei pra classe, falei
disso com eles. Montamos o cenário e fizemos perguntas
sobre aquele rapaz. Os personagens que surgiram dali
(quem poderia ser o rapaz, seus motivos e sua idade) foram
dez vezes melhores que as ideias que eles estavam dando
antes de começarmos aquela especulação”.
Na criação de personagens para publicidade, observar
é particularmente importante. Joe Sedelmaier, um dos
melhores criadores de personagens para publicidade,
observa atentamente detalhes nas pessoas que encontra. Ele
geralmente escolhe atores pelas peculiaridades que encontra
nas suas personalidades, normalmente escolhe não-
profissionais pois os acha mais interessantes e mais reais.
Primeiro ele observa, depois ele transforma aquilo que
observou em um personagem. Quando ele escolheu Clara
Peller pro comercial “Where’s the Beef?” da rede Wendy’s,
ele simpatizou com detalhes que notou nela: “Precisávamos
de uma manicure pra um comercial que estávamos
gravando. Atravessamos a rua e encontramos Clara. Ela
não tinha falas no papel, ela veio até mim e falou com
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aquele vozerão “Oi querido, como está?” E eu achei incrível.


Comecei a usá-la numa série de comerciais. Quando me
chamaram pra fazer o comercial da Wendy’s, senti que a
ideia original estava toda errada, eles usavam um casal de
jovens em frente a um grande pão e diziam “Cadê o Bife?”.
Então pensei que seria bem mais engraçado com duas
velhinhas. Surgiu-me a ideia da Clara vindo até mim igual
um touro numa loja de porcelana. Podia ouvir ela dizer
“Bom, e cadê o resto do bife!?” Começamos a filmagem
mas, por causa do enfisema, ela tinha dificuldades com a
parte “cadê o resto do...” então pedi pra ela simplesmente
dizer “Cadê o bife?”

INTEGRANDO EXPERIÊNCIA
Não importa de onde você vai começar a criar seu
personagem, no final você vai ter que confiar na sua
própria experiência. Não existe outro lugar pra você saber
se acertou. Ninguém pode falar se você criou ou não um
personagem crível, realista, consistente. Você deve confiar
na sua percepção de como as pessoas são.
Escritor após escritor enfatiza esse aspecto da escrita:
“Seja lá o que eu saiba, eu sei através da minha própria
experiência”, afirma James Dearden. “No fim das contas, o
escritor desenha por cima de si mesmo. Eu tinha a Alex e o
Dan dentro de mim. Se você não vivenciou a experiência,
então vá lá e viva aquilo. Todos os personagens que escrevo
vêm de mim. Eu olho pra dentro de mim. Sempre penso
‘Como eu reagiria nessa situação?”
Carl Sauter concorda “Acho que você precisa achar o
elemento nos personagens que é você. Não é que todo
personagem seja autobiográfico, mas você deve se perguntar
‘Qual personagem eu gostaria de ser? Com qual eu
escolheria fugir?’ Quando você começa a escrever histórias
que só você poderia escrever, você eleva-se a um patamar
inédito. Portanto, não importa o que ele seja, mesmo que
seja um personagem de apoio, eu tento achar uma parte que
eu realmente me identifique”.
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Barry Morrow, que escreveu o roteiro original de “Rain


Man”, diz “Os filmes precisam ser de coisas que você tem
interesse ou não será divertido escrevê-los. Em “Rain Man”,
Raymond gosta das coisas que eu gosto. Gosta de baseball
e panquecas. E Charlie gosta do que eu gosto: dinheiro,
carros e mulheres”.
Ron Bass, que fez a reescrita de Rain Man, completa
“Eu levava Charlie e Raymond comigo. Tinha todos os
seus defeitos e suas qualidades na minha personalidade.
Certamente existe um lado em mim que não gosta
de contato humano e tenta compensar isso de forma
exagerada; e certamente eu tenho aquelas defesas do
Charlie. Existe uma parte em mim que é muito afável e quer
ser amada. Escrever é um processo muito íntimo, e eu sei
quando consigo ou não captar o personagem.”
Na televisão, é comum ter um roteirista da série
que representa o personagem. Essa pessoa se torna um
termômetro de como o personagem funciona.
Coleman Luck, co-produtor executivo da série “The
Equalizer” de 1980, e escritor de uma série de programas
e séries, se identifica com McCall. Ele permaneceu na
produção por quatro anos (quase do início) e se tornou
referência para várias decisões sobre o personagem.
“Alguns roteiristas da série se tornaram os personagens”,
ele relata. “Tinha que haver uma empatia entre o roteirista
e o personagem. Não vejo como poderia ser diferente.
Existe algo em mim que gosta do McCall. Não sou McCall,
não fui da CIA, mas já tive certa vivência. Por alguns
anos fui soldado no Vietnam, e estive em combate com
22 anos de idade. Passei por muita coisa, posso entender
suas preocupações, seu remorso, sua necessidade de
perdão, a vontade de se redimir. Se você não tiver um bom
autoconhecimento e auto análise, conhecer-se em certo
ponto, você definitivamente não será capaz de conhecer seu
personagem.”
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DESCRIÇÃO FÍSICA
Leitores irão imaginar a aparência física dos personagens
que encontram nos romances. Muitos romances dão
descrições muito vivas dos personagens para que os leitores
tenham uma sensação imediata de como são.
Algumas vezes um romance, como “Ordinary People”,
evita descrições físicas, preferindo detalhes da vida pessoal
dos personagens. Mas os leitores ainda imaginarão algo,
transformarão os detalhes psicológicos numa aparência
visível.
Peças quase sempre dão uma ou duas linhas de detalhes
físicos importantes, para fisgar o leitor ou atores em
potencial.
O que faz uma descrição física? Antes de mais nada, ela
é evocativa; sugere outros aspectos do personagem. O leitor
começa a associar outras qualidades e imagina detalhes
adicionais das poucas linhas descritivas que o escritor deu
a ele.
Deixe a imaginação rolar na descrição a seguir, de um
roteiro chamado “Fire -Eyes” de um dos meus clientes, Roy
Rosenblatt: “Um doce rapaz que provavelmente trabalhou
por tempo demais”.
Que outras características vêm à sua mente?
Provavelmente você pensou no cansaço dele. Te passou a
suspeita dele ser pessimista? Provavelmente você o sentiu
simpático, por causa de seu rosto. Mas chegou a pensar se
ele tem conflitos no trabalho por ter trabalhado tempo
demais? Talvez ele sofra de Burnout, talvez você sinta pena
dele, ou até mesmo solidariedade. Consegue imaginar seu
jeito de andar ou falar?
Às vezes, em romances, os personagens
recebem características que os fazem reconhecíveis
instantaneamente. Veja a descrição de quatro detetives
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famosos: Sherlock Holmes, Father Brown, Hercule Poirot e


Miss Marple.
Sherlock é descrito por Arthur Conan Doyle como
alto, magro, com um rosto de falcão um chapéu de feltro
e uma longa capa de viagem. Ele é frio e preciso, com
extraordinários poderes de observação.
Father Brown, criado por G. K. Chesterton, é um padre
baixo e gordinho, sempre carregando pacotes de papel
pardo e um grande guarda-chuva. Tem bastante humor,
sabedoria e reflexões sobre a natureza humana.
Hercule Poirot de Agatha Christie é um pequeno
detetive belga com uma cabeça ovalada e uma paixão por
organização; enquanto Miss Marple é uma senhora de
idade, “tão charmosa, inocente, uma coisinha rosa, branca e
fofa, com um blazer de Tweed antiquado, uma saia, um par
de cachecóis e um chapeuzinho de feltro com uma asa de
pássaro”.
Especificamente em roteiros, características físicas
podem ser fortalecidas se puderem ser interpretadas pelo
ator (como uma noção de movimento do personagem,
um jeito de olhar, uma maneira de curvar os ombros, de
menear a cabeça, um jeito de caminhar). Essas descrições
dão dicas pro ator encarnar o personagem. “Bonita” é difícil
de interpretar; “forte” e “belo” também não ajuda muito.
Em “Atração Fatal”, Alex Forrest é descrita na aparência,
o tipo de roupas que escolhe, uma noção de postura pra sua
idade:
“Naquele instante, uma garota loira, extremamente
atraente passa... Ela vira e lança um olhar de tirar o fôlego...
Tem uma aparência sensacional. Deve estar na casa dos
trinta, mas se veste como se fosse mais nova, na moda,
parece mais jovem.”
Veja a descrição do protagonista do filme “Dança
Macabra”, escrito, dirigido e produzido por dois dos meus
clientes, Katt Shea e Andy Rubin. Note quantos detalhes que
podem ajudar o ator (detalhes de movimento, sensações,
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e intenção). A descrição dá uma noção de desejo que irá


ressoar ao longo do filme:
“Ele se afasta do próprio reflexo – seu rosto é
incrivelmente bonito: etéreo, triste, com uma ingenuidade
infantil. E existe algo na maneira que ele se move, o menear
de cabeça, uma distinção, uma tentativa felina, uma graça
predatória.”
Sandi Steinberg (outro cliente meu), escreveu uma das
minhas descrições favoritas, que dá uma ideia de dimensão
cômica. Está no roteiro de Curses:
“Maria-Theresa, 50, acorda num sobressalto, uma mulher
grande com pequenas ilusões – 180 quilos guatemaltecas
espremidos numa camisola rosa de ursinho. Ela pega um
dente de alho do decote e começa a cantarolar.”
Ao escrever descrições que podem ser dramatizadas é
importante ser genérico para que um número de atores
possam interpretá-las, mas ao mesmo tempo devem ser
específicas para formar um personagem bem definido. Uma
descrição que evoca outras qualidades e associações pode
inspirar uma imaginação dramática, convencer o ator ou a
atriz que aquele personagem vale a pena.

O CERNE DO PERSONAGEM
Personagens precisam ser coerentes. Mas isso não
significa que eles sejam previsíveis ou estereotipados. Mas
que, assim como pessoas reais, eles precisam ter um cerne
de personalidade que defina quem são e dê expectativas ao
público sobre como irão agir. Quando saem desse eixo, os
personagens podem parecer incríveis, incoerentes ou com
mais camadas.
Barry Morrow explica “Parte do apelo de um
personagem num filme é sua previsibilidade. Você entende
quem ele é, seu histórico, código de honra, ética e sua visão
de mundo. O personagem terá de fazer certas escolhas que
o público pode prever e gostar de presenciar.”
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O executivo de publicidade Michael Gill concorda e


complementa: “Vejo os personagens como vejo os amigos:
quero uma certa coerência. Você não quer ver seus amigos
mudando toda vez que você vai falar com eles. Você não
quer ver uma mudança radical para cada situação, nem
emocional, tão pouco psicológica.
“Você criar personagens com personalidades que soem
familiares. Depois de criar um personagem bem feito, o
segredo é mantê-lo realista e, ao mesmo tempo, preservar
as sensações específicas e detalhes no personagem que o
público aprecia”.
Qualidades do personagem não existem sozinhas. Um
personagem coerente possui certas qualidades que levam a
outras.
Por exemplo, digamos que você esteja escrevendo
o próximo Indiana Jones. Um dos seus personagens é
um professor de religião (um expert dos primórdios do
cristianismo que leva a chave para encontrar um artefato
importante. O que esperamos desse personagem?
Se esse professor de religião tem PHD, esperaríamos que
ele fosse um perito em pesquisas e soubesse encontrar todo
tipo de informação obscura em bibliotecas e livrarias. Seria
coerente que ele fosse interessado em áreas relacionadas,
como filosofia, história da igreja, sociologia, antropologia.
Muitos professores de religião, particularmente aqueles
com formação acadêmica ou seminários, possuem
conhecimento de artes-gerais. Fizeram cursos de artes
plásticas, literatura, provavelmente uma ou duas aulas
de ciências. Não seria estranho que um professor desses
amasse literatura, música, arte, arquitetura; ou entendesse
dessas áreas.
Esse interesse na arqueologia e história da Igreja pode
levar a um amor em viajar. Talvez ele possa ter feito alguns
estudos arqueológicos na Turquia, Israel ou Egito. Não seria
de se espantar que soubesse alguns idiomas, talvez grego,
latim e hebraico.
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Veja como um conjunto de características leva a outras.


Uma pessoa sofisticada o suficiente para conhecer as
músicas de Mendelssohn pode também conhecer as
pinturas de Vermeer e Rambrandt. Alguém que cresceu
numa fazenda provavelmente conhece algo sobre consertar
tratores, carros e como prever o tempo. Alguém bem
sucedido em operações financeiras, provavelmente sabe
algo sobre os padrões econômicos no Japão.
Apesar disso parecer muito óbvio, muitos personagens
são feitos de tal forma que não parecem possuir nenhuma
qualidade que se poderia esperar daquele tipo de pessoa.
Personagens que são mães e não se preocupam com o
choro de uma criança do outro lado da rua. Personagens
que cresceram no Brasil mas não reagem ao ouvir alguém
falando em português num restaurante em Amsterdã.
Em séries de TV, vi personagens que supostamente
tinham memória fotográfica e mesmo assim não se
lembravam de datas importantes ou do autor de uma
música conhecida.
Existem inconsistências nesses personagens. Se, por
alguma razão, o escritor as fez propositalmente, isso precisa
ficar óbvio. Caso contrário, irá parecer que o escritor não
percebeu essas inconsistências.

EXERCÍCIO: Pense em quais qualidades você espera de


um negociante de arte, um assassino, um frentista de posto.
As primeiras qualidades que você pensar serão as mais
óbvias. Pense por um tempo até que apareçam qualidades
que são coerentes, mas não tão óbvias para um observador
distraído.
Se você só encontrar uma ou duas características,
corre o risco de criar um estereótipo. Um personagem
consistente não pode ser tão restrito. Pensando nas
características, você pode encontrar muitas conexões que
não são estereotipadas. Ainda será necessário escolher o
que mostrar na história, mas para o leitor ou público, ficará
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claro que você conhece e entende o cerne desse tipo de


pessoa.

ADICIONANDO CONTRADIÇÃO
A natureza humana é o que é, e um personagem sempre
será mais que um conjunto de coerências. As pessoas
também são ilógicas e imprevisíveis, fazem coisas que nos
surpreendem, chocam, que mudam tudo o que pensávamos
sobre elas.
Muitas dessas características nós só chegamos a conhecer
em pessoas que já temos contato há muito tempo. São
detalhes que não estão facilmente evidentes, mas que
atraem nossa atenção intensamente. Essas contradições
muitas vezes são a base para a criação de personagens
únicos e fascinantes.
Contradições não anulam as coerências, elas
simplesmente se somam a elas. Já tive um professor
de religião, por exemplo, que era especialista no novo
testamento. Ele era reservado, tímido, modesto, com um
grande conhecimento na sua área. Escreveu muitos livros e,
apesar de modesto em suas aulas, ele tinha uma boa noção
do próprio conhecimento. Ele tinha um posicionamento
enfático do que acreditava e não se importava em deixar
que os alunos soubessem de suas opiniões nas questões
religiosas. Ele seria um bom exemplo de personagem
consistente que mencionei.
Mas esse professor também foi um cowboy e era um
expert no laço. Uma vez a cada três ou quatro anos, alguém
pedia pra ele mostrar seus truques com o laço, que sempre
incluía laçar a perna de um voluntário. Além disso, também
foi conhecido por corridas de velocidade nas planícies
salgadas de Utah. Todas essas características faziam do
professor um personagem fascinante.
O romancista Leonard Tourney diz que as contradições
são a chave de personagens fascinantes: “Personagens
são mais interessantes se feitos de misturas, de elementos
contraditórios. Para criar elementos contraditórios, escolha
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uma característica e se pergunte ‘Que tipo de característica


poderia existir nessa mesma pessoa que criaria algum tipo
de conflito?’ Pense numa pessoa bem caseira, por exemplo.
Isso não é um elemento conflitante, mas e se nos fins de
semana ela faz algo claramente oposto com seus amigos?
Isso é realmente fora do que seria esperado. Com essa
característica, você se aproxima de um personagem que
inspira interesse.”
Anna Phelan fala sobre algumas contradições que
descobriu escrevendo a personagem Dian Fossey. Apesar de
algumas terem sido cortadas do filme, Anna considera essas
contradições uma parte fascinante da personagem. “Dian
era viciada em cigarros e chocolate. Às vezes ela comia
quinze barras da Hershey num dia só. Logo depois do seu
assassinato, enquanto eu tentava conseguir esse filme,
descobri que no closet daquela cabana de lata, horrível e
apertada, no meio das profundezas da África que ela vivia;
havia um vestido de festa de cetim verde da Bonwit Teller.
É isso que me faz escrever um roteiro: a contradição. O que
essa mulher fazia com um vestido de cetim naquele lugar?
No filme “E o Vento Levou”, vemos Scarlett como um
flerte. Esperamos que ela seja sedutora e manipuladora (é
coerente com seu personagem). Mas ficamos surpresos
que sua matéria preferida na escola era matemática, que ela
estava serena no meio de uma crise, é forte, determinada e
astuta.
Otto (Um peixe chamado Wanda), é colocado como
um pateta impulsivo e ciumento e, ao mesmo tempo, é um
leitor de Nietzche e pratica meditação. Jane (Nos Bastidores
da Notícia) que é extremamente competente, chora por
cinco minutos todas as manhãs. Essas contradições rondam
os personagens.
EXERCÍCIO: Pense nas suas próprias coerências
e contradições pessoais. Quais são as coerências e
contradições de seus amigos? Dos seus parentes mais
queridos e menos queridos?
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ADICIONANDO VALORES, ATITUDES E EMOÇÕES


Se você criar um personagem estritamente coerente,
ainda assim ele pode ter profundidade. Mas se você
colocar algumas contradições, seu personagem será mais
singular. E, caso queira aprofundá-lo ainda mais, existem
outras qualidades que você pode adicionar: expandir suas
emoções, posturas e valores.
Emoções aprofundam a humanidade do personagem.
Em “Uma Secretária de Futuro” nós simpatizamos com
Tess McGill, a secretária oprimida. Quando descobriu
que seu chefe mentiu pra ela, dá pra sentir seu desânimo,
seu sentimento de traição, sua tristeza e desilusão. Num
momento emocional breve, nos conectamos com Tess e
entendemos melhor aquilo que a motivava.
Em muitas das melhores histórias, simpatizamos com
o personagem. Podemos sentir a frustração de Rocky
(Rocky, Um Lutador). Podemos sentir a felicidade de Ben
(“Carruagens de Fogo”) quando ganha a corrida. Podemos
sentir a vontade de Shane; a depressão de Conrado em
“Gente como a Gente”; o desgosto de Sally (Harry e Sally
- Feitos Um para o Outro) quando se encontra com Harry
pela primeira vez; e a auto aversão de Valmont (Ligações
Perigosas).
O tipo de emoção que pode ser dramatizada e
compreendida pode ser definida de várias formas. Já ouvi
alguns psicólogos classificando humoradamente as emoções
assim: Furioso, triste, grato e assustado. Nada mal para uma
lista inicial, pois leva a outras emoções.
Furioso implica nervosismo, repleto de raiva, frustração,
stress, algo fora de controle.
Triste implica depressão, desesperança,
desencorajamento, autodestrutivo, melancólico.
Grato implica alegria, felicidade e êxtase.
Assustado implica medo, terror, horror e
ansiedade.
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O romance “Gente como a Gente” adiciona camadas


emocionais quando descreve a depressão de Conrad:
“Para ter um motivo pra se levantar da cama, é preciso
ter um propósito de vida. Algum tipo de crença, um
adesivo de para-choque, que seja... Deitado de barriga
pra cima, ele encara as paredes do quarto, imaginando
onde foram parar sua coleção de declarações oficiais.
Foram embora... As paredes estão vazias. Foram pintadas
recentemente. Azul claro. Uma cor angustiante. Angústia é
azul; o fracasso é cinza. Ele conhece esses tons. Ele disse a
Crawford que voltariam a sentar ao pé da cama, paralisando
e constrangendo ele...”
Nas minhas consultorias, quando sinto a falta de uma
camada emocional num personagem, normalmente
recomendo que o escritor reveja a história perguntando-se
o que o personagem está sentindo em cada cena. Apesar de
não ser necessário que todas as respostas estejam no texto,
entender as emoções pode produzir um personagem muito
mais rico e cenas bem mais profundas.
Posturas transmitem opiniões, ponto de vista, a
inclinação de um personagem em certa situação. Elas
aprofundam e definem o personagem, mostram como
o personagem vê a vida. Especialmente nos romances,
que naturalmente têm um foco mais subjetivo, é possível
trabalhar com posturas/atitudes. O escritor consegue
observar o mundo através dos personagens, dos seus pontos
de vista.
No romance “A testemunha”, podemos ver a postura
de Rachel no funeral de seu marido, Jacob. Rachel Lapp,
sentada numa cadeira, encarando o caixão, de costas para
o padre. Ouvindo atentamente e tentando se consolar no
sermão.
“Um funeral Amish deveria ser um tipo de celebração,
outra vitória cristã. Mas Rachel tinha dificuldade de viver
esse sentimento. Mesmo o falecido tendo vivido uma vida
longa e feliz, como normalmente é a vida entre os Amish,
aquela morte ainda era muito sombria para Rachel, e
nenhum sermão poderia remediar aquilo.”
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A atmosfera do funeral estava sendo vista através do


ponto de vista da Rachel, dando ao leitor uma visão do
interior de Rachel diante da morte. Esse pequeno parágrafo
também evoca um espírito de rebeldia, já que Rachel não vê
a morte da mesma forma que os Amish veem. Essa rebeldia
a fará tomar algumas decisões contrárias à sua religião;
como visitar a irmã em Baltimore, numa tentativa de atrasar
um novo casamento. Até mesmo dançar no celeiro com
John Book.
Personagens têm posturas entre si, bem como em relação
a uma situação, um assunto específico e até posturas
direcionadas si próprios. No episódio “Mama Said” da série
“Murphy Brown”, de Diane English; a mãe de Murphy chega
na cidade e todos os personagens reagem a isso.
Quando Murphy apresenta sua mãe à equipe, eles
reagem com uma postura de surpresa.
FRANK
Sua mãe? Caramba, Murphy! Você tem mãe!
A mãe de Murphy (Avery), tem uma postura em relação
ao ex-marido.
JIM
Me conta, Sra. Brown. O Sr. Brown está aqui
também?
AVERY
Não. Ele está em Chicago com uma mulher que
tem metade da idade dele. Somos divorciados há
15 anos. Peguei a casa e um bocado de dinheiro.
Ele pegou a cueca e o asfalto da entrada da
garagem.
Murphy tem uma postura sobre a visita da mãe.

MURPHY
Se nós duas escrevêssemos uma lista de
atividades favoritas, “fazer uma visita pra outra”
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ficaria perto de “comer linguiça de cérebro”.


Corky tem uma opinião/postura sobre como mãe e filha
devem se tratar.
CORKY
Mas me conta, quais são seus planos pra essa
primeira noite de reencontro?
AVERY
... Pensei em jantar com a Murphy... e depois
voltar pro hotel.
CORKY
Hotel? Murphy! Você tá deixando sua mãe ficar
num hotel?
O bartender (Phill) tem uma postura/opinião em
relação a Avery
Phill
Cara, que mulher linda! Ela tem umas
panturrilhas bonitas.
E, Avery tem uma postura sobre sua filha e sobre si
mesma.
AVERY
Você é minha maior conquista. Mas em algum
momento eu te perdi e não consegui mais
recuperar. Sei que você deve estar surpresa de
ver sua mãe admitindo o fracasso.

Diane English diz que posturas/atitudes são a chave


da graça (e do drama) de uma situação. “Sempre nos
perguntamos que tipo de postura/atitude o personagem
traz praquela cena. Se elas não ficarem claras, o roteiro pode
ficar fraco. A graça mora nas reações cada vez mais intensas
a situações que, por sua vez, vão ficando mais intensas por
causa dos acontecimentos.”
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“Escrevemos uma cena envolvendo Miles e Murphy.


Miles precisava convencê-la a usar os advogados da FYI
ao invés de lidar com o assunto diretamente. Quando
escrevemos a cena pela primeira vez, ficou meio tedioso.
Miles não tinha atitude. Era um simples mensageiro e isso
não tinha graça. Não conseguíamos encontrar uma atitude/
postura praquela situação, então fizemos ele aparecer com
um corte de cabelo novo. Ele chega em cena tentando
convencê-la de usar os advogados e ela fica olhando o
tempo todo pro cabelo dele.
“Ele sabia que precisava convencê-la e também sabia que
o cabelo estava horrível, mas tentava fingir naturalidade.
Isso fez ele ganhar uma postura diante da situação e, por
causa disso, nós conseguimos atingir a comédia. Ficou
mais que um personagem simplesmente jogando uma
informação na mesa”

EXERCÍCIO: Pense nas posturas e perspectivas dos


personagens do último filme que assistiu ou do último
livro que leu. Você entendeu com clareza as opiniões dos
personagens sobre as ideias, visões filosóficas ou situações
da história?
Pense em outros filmes. Você entendeu como Karen
Blixen se sentia em relação aos africanos em “Entre Dois
Amores”? Você entendeu a noção de justiça de James Bond?
Ou a perspectiva de amor e amizade de Harry e Sally? Você
entendeu o que Rhett Butler pensa sobre a guerra civil?
Mesmo sem mostrar a postura dos personagens de
maneira direta, a história tem o dever de insinuar isso, para
que o público sinta a perspectiva do personagem.
Nessa cena do filme “A Testemunha”, veja como Rachel
não só carrega um valor pessoal consigo (nesse caso, sobre
armas dentro de casa) mas também um valor Amish sobre
violência:
Rachel vai atrás de John Book, que estava mostrando
uma arma para Samuel.
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RACHEL
John Book, enquanto estiver nessa casa, insisto
que respeite nossos valores.
JOHN
Certo. Tome. Coloque num lugar seguro onde
ele não encontre.

Essa cena vem depois de uma outra entre Samuel e Eli.


Na cena, Eli leva consigo os valores da comunidade:
ELI
A arma. Aquela arma é pra tirar uma vida
humana. Você mataria um homem?
(Samuel olha pra ela, sem encarar os olhos
do avô. Eli se inclina e estende as mãos
cerimonialmente)
ELI
O que você leva nas mãos, também leva no
coração.
(uma pausa e então Samuel é provocativo)
SAMUEL
Eu só mataria um homem ruim.
ELI
Apenas um homem ruim. Entendo. E você
sabe identificar um homem ruim à primeira
vista? Consegue olhar em coração dele e ver a
maldade?
SAMUEL
Posso ver o que fazem. Tenho visto.
ELI
E vendo, você se tornaria um deles? E assim esse
vai atras daquele e de outro e de outro...?
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(Ele se interrompe, inclina a cabeça por um


momento e então olha seriamente pro garoto.
Coloca a palma da mão com firmeza sobre a
mesa, com grande intensidade diz:
ELI
(contiuando)
“Portanto, saí do meio deles e separai-vos, diz o
Senhor!”
(aponta pra arma, continuando a citação
religiosa) “E não tocai em coisas impuras!”

Muitos filmes partem da ideia de que vale pena lutar


e morrer por certos valores. Os filmes “Silkwood”, “A
síndrome da China” e “Indiana Jones” têm personagens
movidos por aquilo que acreditam.
Muitos filmes falam sobre personagens passando por
uma crise, que precisam fazer escolhas morais, confrontar
ideais e fazer escolhas.
O filme “O Clube dos Cinico” mostra quatro pessoas
lidando com suas identidades. “Viagem Clandestina”
aborda uma crise que leva uma garota a procurar do pai.
Tanto no filme “Ausência de Malícia” quanto em “Acusados”
vemos um personagem aprendendo sobre integridade.
Em “A Sociedade dos Poetas Mortos”, aprendemos sobre
Carpe Diem “aproveite o dia” e sobre “sugar o tutano da
vida”.
Além desses temas, existem outras forças que movem
os personagens. Podemos ver em vários filmes a busca por
perdão, o desejo de reconciliação, a saudade de um amor ou
de um lar. Indo de “Os Brutos Também Amam”, “Um peixe
chamado Wanda” até “E.T”.
Incorporar valores em personagens não significa fazê-
los verbalizar o que acreditam. Pelo contrário, comunica-
se valores através do que os personagens fazem, através de
conflito, através de posturas/atitudes.
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DETALHANDO O PERSONAGEM
Se você mergulha seu personagem numa vida emocional
com posturas e valores específicos, ele terá profundidade.
Mas existe outro passo que você pode dar para torna-lo
legítimo, único: adicionar manias e detalhes externos.
Comportamento (a maneira que as pessoas fazem
as coisas), traça a diferença entre duas pessoas que
talvez sejam semelhantes externamente. As pessoas têm
características que as distinguem. Pequenos detalhes que as
fazem especiais.
Se eu fizesse uma lista de detalhes que notei nos meus
amigos e conhecidos, ficaria assim:
■■ Uma pessoa que diz “entende?” e “claro que” em cada
frase.
■■ Uma mulher de trinta anos que leva dois animais
gordinhos na bolsa e presenteia as pessoas que
conhece com Origamis Tsurus.
■■ Uma mulher de quarenta anos com vive num clipe de
jazz.
■■ Uma mulher bem sucedida, conhecida pelos brincos
exóticos (que só usa entre amigos) de bananas,
flamingos, cacatuas e bumerangues.

Muitos dos personagens tornam-se memoráveis por


causa de detalhes assim. Murphy Brown quebra um lápis
toda vez que fica estressada; Indiana Jones odeia cobras e
sempre veste aquele chapéu; o apelido carinhoso do enteado
de Archie Bunker é “Cabeçudo”.
Detalhes podem ser ações, comportamentos, modo de
falar, gestos, estilo de roupas, a maneira de rir, um jeito
incomum de lidar com uma situação.
Esses detalhes frequentemente vêm das imperfeições
de alguém. Em “O Poder do Mito”, o autor Joseph
Campbell diz: “O escritor deve ser honesto com a verdade.
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E ele é um assassino, pois a única maneira de descrever


verdadeiramente um ser humano é através de suas
imperfeições. O ser-humano perfeito é desinteressante...
As imperfeições da vida é que são apreciáveis... Perfeição é
um saco, não é humano. O ponto chave, aquilo que te faz
humano e não sobrenatural ou imortal... a imperfeição, se
esforçar, viver... isso que é apreciável.”
Podemos ver essas imperfeições humanas em filmes
aclamados como “Um Peixe Chamado Wanda” (Ken é
gago) “Sexo, Mentiras e Videotape” (a protagonista pensa
obcessivamente nos malefícios do lixo produzido pela
sociedade), e “Harry e Sally – Feitos um Para o Outro”
(Harry fala sobre os detalhes peculiares que formam a
personalidade da Sally.)
INTERIOR FESTA DE ANO NOVO – NOITE
HARRY
O negócio é que eu te amo... Eu amo o jeito
que você fica resfriada quando faz 40 graus. Amo
você levar uma hora pra pedir um sanduíche.
Amo essa ruga de expressão quando você olha
pra mim como se eu fosse doido. Amo passar o
dia contigo e depois ainda sentir seu perfume
na minha roupa. Amo que você seja a última
pessoa que eu quero falar antes de ir dormir. Não
é porque é Ano Novo. Vim aqui porque quando
você percebe que quer passar o resto da vida
com alguém, você quer que esse “pelo resto da
vida” comece o quanto antes.

EXERCÍCIO: Pense nos seus amigos e conhecidos.


Quais são os pequenos detalhes que fazem deles únicos
e memoráveis? Quais detalhes são cativantes? Quais
são irritantes? Como você colocaria esses detalhes num
personagem?
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ESTUDO DE CASO: MIDNIGHT CALLER


“Midnight Caller” estreou no final de 1988. O criador
da série Richard DiLello, discute sobre a criação do
personagem complexo Jack Killian:
“Costumo começar pelo nome do personagem. Passei
uns dias escrevendo uma lista de nomes. Descobri que
Jack Killian tinha uns 30 anos. Queria um evento marcante
no seu passado que o fez deixar a profissão de policial
pra acabar virando o apresentador Ave Noturna. Pensei
que matar o próprio parceiro seria o mais extremo. Tinha
medo disso ser pesado demais pra audiência tolerar. Então
entendi que era preciso um pouco daquele “momento sem
volta”.
“No piloto existem duas cenas breves que mostram ele
se afundando na bebida e fugindo do mundo. Devon King
aparece e o redime. É ela quem dá a chance dele “descer da
cruz” que ele mesmo se pregou.
“Em alguns pontos, Jack é um policial bem típico.
Um peão, não tem educação formal. Vamos ser sinceros:
ninguém sai de Harvard pra ser policial. Ele gosta de
esportes e rock’n roll.
“Ele é um leitor eclético e isso faz dele uma pessoa
sensível. Ele lê ficção contemporânea (sempre achei que
ele seria um grande fã de Jack Kerouac e Raymond Carver.
Killian tenta encontrar sua própria filosofia de vida. Age por
instinto, é impulsivo e comete muitos erros. Mas, diferente
da maioria dos policiais ele não se tornou pessimista. A
maioria vive o lado sombrio da profissão, deixa a própria
humanidade. Mas ele se mantém vivo e preocupado com
as pessoas. Talvez ele não consiga lidar com a maioria dos
próprios problemas então prefira ajudar os outros. Ele
não consegue ajeitar a própria vida, não consegue manter
uma relação com outra pessoa, mas consegue te ajudar a
encontrar alguém e te falar o que fazer.
“Acho que ele sabe o quanto da vida acabou deixando
pra trás e quantas oportunidades ele perdeu de conhecer
alguém. Ele é mais emocional que a maior parte dos
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policiais (não é estoico nem reprimido), e ele não gosta


disso em si mesmo; ele preferiria ser um pouco mais frio.
Mas é reativo, fica bravo com a arrogância dos outros, a
hipocrisia e diante de injustiças. Fica frustrado por ter que
lidar com a burocracia. Ele gosta das coisas simples: uma
boa refeição, ouvir Elvis Presley, assistir jogo de futebol.
Ele é tem uma vida solitária, mas gostaria que fosse
diferente. O grande amor de sua vida tem AIDS e ele tem
raiva do homem que, propositalmente, passou isso pra ela.
Sua vida emocional ainda cresce.
“Killian segue seus próprios princípios morais, seu
conjunto de valores. A humanidade dele é a coisa mais
importante na série. Sua postura é sempre humana, mas
às vezes ele disfarça isso com toques de humor negro.
Jack ajuda o público a entender aquele mundo. No fim
de cada episódio, quando Jack bate o ponto, ele faz um
pronunciamento do que aprendeu durante aquela hora.
Sempre foi minha intenção fazê-lo heroico, mas um tipo
diferente de herói. No final, sempre se mostra um homem
de reflexão e ação.”

APLICAÇÃO
Já que grande parte da criação de um personagem vem
da observação, um escritor está em treinamento constante.
Pra se exercitar, estude uma pessoa no mercado, na padaria,
no seu ambiente de trabalho. Faça as seguintes perguntas:
■■ Se eu tivesse que descrevê-la de forma rápida e
marcante, como seria essa descrição?
■■ Quais expectativas esse personagem inspira dado o
seu contexto? Consigo imaginar contradições que
possam torna-lo interessante?

Ao buscar pelos personagens principais da sua história,


pergunte-se:
■■ Meus personagens fazem sentido? Listei um bom
número de qualidades que seriam possíveis?
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■■ O que torna meus personagens interessantes,


fascinantes, chamativos, diferentes, imprevisíveis?
Eles fazem o inesperado de vez em quando? Essas
contradições acabam trazendo inconsistências com
alguma das qualidades, ou elas de fato expandem
meus personagens?
■■ Meus personagens estão preocupados com o quê?
Esses valores são compreensíveis? Meus personagens
estão tendo postura e tomando atitudes ao invés de
gerar longos monólogos?
■■ Fica claro como eles se sentem? Cada personagem
individual tem uma boa variedade de emoções ao
invés de repetir as mesmas?
■■ Eu uso as posturas/atitudes dos meus personagens
para defini-los?

O processo para criar um personagem é contínuo.


Mesmo quando não se está escrevendo, você precisa
guardar detalhes, se inspirar na realidade. Como o diretor
de publicidade Joe Sedel-maier diz: “Sempre comece na
realidade. Se for pra copiar, que seja da realidade.”

RESUMO
Barry Morrow diz que o processo de criação de um
personagem é semelhante ao processo de modelgem: “é
como modelar um pedaço de argila ou talhar a madeira.
Não se pode chegar na coisa refinada sem antes tirar a casca
dura.”
Modelar seu personagem é um processo de seis etapas:
1. Através da observação e das suas experiências
vividas, você inicia a ideia do personagem.
2. As primeiras ideias gerais começam a defini-lo.
3. Você cria as coerências do personagem, para que ele
tenha sentido.
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4. Adiciona peculiaridades, o ilógico, o contraditório faz


o personagem fascinante e chamativo.
5. Os valores e a profundidade de suas emoções
valorizam o personagem
6. Adicionar pequenos detalhes externos (manias e jeito
de se vestir) torna o personagem único e especial.
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3
Criando a História Pregressa
Quando você conhece alguém, você se interessa pelo
passado dessa pessoa? Já fez algumas dessas perguntas?
■■ De onde você veio? Por que se mudou pra cá?
■■ Por que decidiu trabalhar nessa função? Quais foram
seus outros empregos?
■■ Por quanto tempo você ficou casado? Onde se
conheceram?
Somos curiosos pelo passado, pois sabemos que existem
histórias interessantes por detrás de cada decisão.
Algumas podem envolver intrigas (“Ela foi forçada a
sair da cidade”), ou romance (“Eles se encontraram no
topo da torre Eiffel quando estudavam na França”), ou
corrupção (“O político usava dinheiro público pra pagar
sua casa em Bel Air”).
A situação atual é o resultado de acontecimentos do
passado e as decisões feitas no presente determinarão as
escolhas do futuro.
Toda obra de ficção foca no que chamamos de História
Principal. Essa é a história que o escritor realmente quer
contar. Porém, um personagem fez o que fez e é o que é
por causa do seu passado. Esse passado possui traumas
e crises, pessoas importantes que chegaram em sua vida,
coisas boas e ruins que recebeu, sonhos e objetivos e,
claro, influências culturais e sociais.
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A história pregressa (do passado) oferece dois tipos de


informação.
1. Eventos passados
2. Influências que afetam diretamente a construção da
história.

Filmes e livros como “Sybil”, “As Três Faces de Eva”,


“Hamlet”, “Gente como a Gente” e “Cidadão Kane” todos
têm histórias pregressas fundamentais para formar a
história principal. Tanto os leitores/espectadores quanto o
escritor precisa saber das histórias pregressas pra entender a
história principal.
Algumas informações pregressas são parte da biografia
do personagem. Essas informações podem nunca chegar
ao público, mas o escritor precisa dessa informação para
construção do personagem.
Personagens nascem na mente do escritor e recebem
um conjunto específico de posturas e experiências. A
história pregressa ajuda a desvendar quais dessas posturas
e experiências são importantes para criar um personagem
completo.
QUE INFORMAÇÕES PREGRESSAS VOCÊ PRECISA
SABER?
Muitos atores trabalham bastante em cima da história
pregressa do personagem antes de interpretar o papel.
Constantin Stanislavski, um famoso ator, diretor e
professor, recomenda aos atores que escrevam biografias
exclusivas de seus respectivos personagens. Lajos Egri,
em seu livro “The Art of Dramatic Writing”, recomenda
ao escritor a mesma coisa. A biografia de um personagem
pode ser:
FISIOLÓGICA: Idade, gênero, postura, aparência,
anomalias físicas, ascendência (hereditariedade).
SOCIOLÓGICA: Classe social, Profissão, Educação, Vida
Privada, Religião, Ideologia Política, Hobbies, lazer.
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PSICOLÓGICA: Padrões morais e vida sexual,


Ambições, Frustrações, Temperamento, Posturas na vida,
Complexos, Habilidades, Q.I, Personalidade (extrovertido,
introvertido, etc).
Carl Sautter comenta: “Existe um perigo de fazer três
páginas de biografia do personagem. Eu encorajo que os
estudantes façam, mas peço para que joguem fora depois.
Faça a lista mas deixe que os elementos se desenvolvam
a medida que seu personagem se desenvolve. Esse
personagem nasceu na sua frente de muitas maneiras
diferentes. Qualquer um pode chegar com uma história
pregressa de três páginas sobre um personagem, e vai surgir
coisas muito úteis desse exercício. Mas não se limite a isso”.
Frank Pierson (“Um dia de Cão”, “Rebeldia Indomável”,
“Fantasmas da Guerra”) diz: “O que o escritor precisa
saber sobre os personagens é o mesmo que o ator precisa
saber para atuar nas cenas. O que importa são as memórias
emocionais. Não se trata do que aconteceu com eles,
mas como eles se sentiram com isso. Se você quiser fazer
perguntas, não faça aquelas do tipo ‘Em qual escola
estudavam?’, ‘Algum dia já trabalharam numa fábrica?’, ‘A
mãe era dominadora?’... O que você deve perguntar é: ‘Qual
foi seu momento mais constrangedor?’, ‘Ele já se sentiu um
trouxa?’, ‘Qual foi a pior coisa que aconteceu com ela?’, ‘Ele
já vomitou em público?’. Você precisa trazer essas emoções
pra fora, porque são elas que o personagem vai levar para as
cenas e que irão colorir tudo que ele fizer.”
A história pregressa será diferente pra cada personagem.
A biografia em si nem sempre te dará informações
relevantes. Se você estivesse escrevendo Hamlet, não
importaria saber quais brincadeiras o menino Hamlet
gostava, ou quem foi seu amor de infância. Se você estivesse
escrevendo “Um Violinista no Telhado” essa informação
poderia ser essencial.
Pra muitos escritores, o processo de criar o passado
começa na criação do personagem e segue enquanto vão
criado a história. A medida que escrevem, vão notando que
faltam algumas informações necessárias pro personagem,
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ou descobrem que os personagens estão tendo reações


inesperadas diante de acontecimentos e pessoas. Talvez
não saibam como o personagem reagirá em certas
circunstâncias. O passado é descoberto por um processo de
perguntar “Por que” e “O quê?” para seus personagens.
■■ Por que Karen Blixen foi pra África? O que aconteceu
na Dinamarca (onde vivia) que a motivou a isso?
■■ Por que Alex no filme “Atração Fatal” estava tão
desesperada pra se casar com Dan e ter um filho? O
que a levou (aos 36 anos) ao ponto da loucura?
■■ Por que Beth no romance “Gente como a Gente”
tinha tanto medo de sentimentos? O que ela fazia
quando seu filho era mais novo e ela não podia
controlar tudo?
■■ O que aconteceu no passado de Murphy pra ela se
tornar uma alcoólatra?
■■ Por que Bruce Wayne virou o Batman?
Saber a história do passado de um personagem é como
conhecer o passado de um amigo. Saber do seu passado
aprofunda o relacionamento. Coleman Luck descreve a
história pregressa da seguinte forma: “É como descobrir
quem foi seu avô. Você vai preferir se sentar e ouvir tudo
a respeito ou vai fazer perguntas-chave pra descobrir a
essência de quem ele foi?”
Encontrar a história pregressa é um processo de
descoberta. Começamos fazendo perguntas sobre o
personagem. Depois voltamos e tentamos descobrir o que
aconteceu no passado que possa ter influenciado as decisões
e atitudes do presente.
Quando Bill Kelley e Earl Wallace escreviam “A
Testemunha”, Bill ficou se perguntando o motivo de John
não ter uma mulher. Ele perguntou pro Earl e, juntos,
tentaram construir uma resposta.
“John Book era um enigma”, diz Bill. “Ele não parecia ter
tido sorte no amor; então perguntei pro Earl ‘ Por que será?’
e Earl disse ‘Bem, ele não teve tempo – ele é ocupado’. E eu
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disse ‘Fala sério, Eral! Eu conheço dois dos mais ocupados


policiais de Los Angeles e eles tem tempo pra um romance e
são casados.’ Então ele disse ‘Ele não é muito amável’, aquilo
me ajudou a defini-lo pra mim mesmo. Earl fez a maior
parte do trabalho sobre John Book no roteiro, mas quando
comecei a escrever o romance, eu tinha que defini-lo ainda
mais. Gradualmente eu fui transformando ele num tipo
durão, não muito disposto ao romance, o tipo de pessoa
que faz perguntas diretas e assustam as mulheres. Talvez
a Rachel tenha sido a terceira mulher a entrar na sua vida,
isso já contando com a irmã.”
James Dearden explica a personagem Alex Forrester:
“Alex teve um caso de longa data com um homem mais
velho e casado. O caso terminou seis meses antes da história
do filme começar. Ela pensou que ele ia se casar com ela,
mas não casou. Ela estava reativa. Originalmente tinha uma
cena sobre sua solidão e sobre seu caso, mas nós tiramos”.
História pregressa não precisa aparecer na história do
seu filme ou livro. Nos exemplos dados, o escritor precisava
da informação do passado para entender o personagem,
mas não era necessária no enredo.
Kurt Luedtke explica: “Acho que nunca será necessário
tanto trabalho na história pregressa. Nunca vi uma situação
onde a história pregressa foi completamente feita antes de
se escrever o roteiro. Você acha que está pronta até ver uma
atitude vinda do personagem que você não faz ideia de
onde veio. Às vezes uma cena parecerá rasa, talvez porque
fica muito óbvio o que o personagem vai fazer. Às vezes me
pergunto “E se ele não fizer essa atitude em específico que a
maioria das pessoas fariam? E se, ao invés dela dizer o que
você espera, ela fale o oposto?
E às vezes, (uma vez em quatro) fica interessante. E isso
exige que se explore mais a história pregressa.”
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O QUE A HISTÓRIA PREGRESSA REVELA?


A história pregressa nos ajuda a entender o motivo do
personagem se comportar daquela forma. As vezes nos
dá informações que nos ajudam a entender o psicológico
atual do personagem.
Em “Atração Fatal”, quando Alex corria com Dan no
parque, Dan cai e finge ter morrido. Essa ação traz à tona
uma informação do passado de Alex:
ALEX
Isso não se faz!
DAN
Desculpa. Eu só tava brincando.
ALEX
Meu pai morreu de infarto. Eu tinha sete anos.
Aconteceu bem na minha frente.

Saber esse fragmento de informação nos ajuda a


entender muito da reação de Alex na situação. Como
resultado da morte da figura masculina mais importante
da sua vida, ela desconfia dos homens, mas ainda se
sente dependente deles. O trauma (principalmente se
ele morreu na frente dela) contribuiu com seu medo e
insegurança.
Apesar de Alex (minutos depois) negar que o pai
morreu, Dan descobre que era verdade. Esse evento
importante na infância responde à pergunta do motivo
de Alex ter reagido daquele jeito.
Na peça “Les Liaisons”, o Marquise explica como o
contexto de sua vida social determinou sua postura:
VALMONT
Fico me perguntando como você faz pra se
inventar.
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MERTEUIL
Não tive escolha, não é? Sou mulher. Mulheres
são obrigadas a ser bem mais habilidosas que os
homens... Vocês podem nos deflorar a hora que
quiser. Tudo que conseguiríamos denunciando
seria aumentar o prestígio de vocês. (...) Então
é claro que preciso inventar, não só a mim mas
também maneiras de escapar que ninguém
jamais pensou, nem mesmo eu. Pois tive que ser
ligeira pra saber como improvisar. E consegui,
porque sempre soube que nasci pra dominar
seu sexo e lavar minha própria honra... Quando
cheguei na alta sociedade já sabia do papel que
eu estava condenada a estar. Ficar calada e só
falar quando permitida me deu a oportunidade
perfeita para prestar atenção: Não no que me
falavam, o que naturalmente era desinteressante,
mas tudo que eles pudessem estar escondendo.
Eu treinei a indiferença... Ensinei os moralistas
mais rigorosos a fazer pose; filósofos a encontrar
no que pensar, e romancistas a ver o que eu
poderia fazer passar desapercebido. E finalmente
estava bem acomodada para aperfeiçoar minhas
técnicas.

No romance “Gente como a Gente” de Judith Guest, nós


recebemos uma dica sobre essa necessidade de controle da
Beth através do seu passado (história pregressa). Isso nos
ajuda a entender a dificuldade dela em lidar com a morte
trágica do filho.
A informação vem através do ponto de vista de Calvin:
“Calvin lembrava da época em que Beth se sentia presa.
Jordan tinha dois anos e Connie engatinhava. Os dois
fazendo bagunça naquele apartamento minúsculo. ‘Aqueles
primeiros cinco anos foram bem nebulosos!’ Ele a ouvia
dizer isso alegremente nas festas. Mas ele se lembrava com
clareza daqueles anos, lembrava da cena: a figura da mãe
tensa, limpando com raiva as marcas de dedos nas paredes.
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Beth caia em pranto subitamente quando via um brinquedo


fora do lugar, ou porque atiravam uma colher de comida no
chão. Ele não se sentia melhor por agora ficar nervoso com
ela. Já havia feito isso. Gritou com ela por ter esquecido do
dia da limpeza. Ela ficou furiosa, o insultou e se jogou na
cama, histérica. Tudo tinha que ser perfeito, não importasse
as consequências disso contra ela, contra qualquer um;
não importava a profunda falta de sentido daquele tipo de
perfeição”.
O passado pode dizer o motivo de um personagem ter
medo de amar (talvez uma ferida emocional), ou porque
se tornou uma pessoa desiludida (talvez pela morte de um
ente querido). Pode dar dicas sobre os motivos, posturas
e reações do personagem. Influências específicas criam
personagens únicos no presente.

QUANTA INFORMAÇÃO DO PASSADO VOCÊ PRECISA?


Muitos escritores cometem o erro de incluir muita
informação do passado. Usando flashbacks, narração,
sonhos, eles sobrecarregam o roteiro com o passado ao
invés de focar no presente.
Aquilo que é dramático está no presente, no agora.
Aquilo que está no passado nunca será tão dramático,
mesmo que impacte o comportamento presente.
Carl Sautter diz, “O que precisamos ver é como o
personagem reage no agora, e se você como escritor sabe
o motivo dele reagir assim; se for por algum evento do
passado, tudo bem. Mas você não precisa explicar isso pro
público.”
Falar pro público tudo do passado do personagem pode
atrapalhar o que realmente importa: As revelações do
personagem no presente. Não é preciso falar muito sobre
seu passado. Personagens que normalmente fazem isso
tendem a ser maçantes e sem dinâmica. Monólogos longos,
flashbacks e exposições que entregam muita informação
do passado podem ser fatais, empurrando a história pro
passado ao invés de leva-la pro futuro.
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Lembra da metáfora do iceberg? 90% do passado do


personagem não precisa constar no roteiro, mas precisa
ser conhecido pelo escritor. O público só precisa saber
o necessário pra entender o que motiva o personagem e
também para ter uma sensação de que algo do passado
influencia no seu comportamento no presente. Quanto
mais rica a história pregressa (do passado), mais rico será o
personagem.
Geralmente a história pregressa funciona melhor
quando vem aos poucos, em pequenos pedaços de
diálogos. Assim como no exemplo acima, a incorporação
da história pregressa precisa ser sutil, concisa, e trabalhar
cuidadosamente para iluminar e expandir a história
presente.

HISTÓRIA PREGRESSA NOS ROMANCES


Ela funciona de forma parecida, apesar de ser possível
incorporá-la de diferentes maneiras. Fazendo a pesquisa
pra esse livro, levei quatro romancistas de Santa Bárbara
para almoçar e conversamos sobre maneiras de trabalhar
com história pregressa nos romances. Já que eles também
são professores de escrita, podem dar dicas específicas para
novatos e escritores veteranos.
Leonardo Tourney: “Os romances do século XIX
quase sempre colocavam a história pregressa primeiro.
Começavam com a infância do personagem. Tinham todo
o tempo do mundo pra explorar o personagem, é por
isso que os romances eram tão longos. É difícil encontrar
um romance contemporâneo que seja assim. Eles são
carregados da história central e funcionam como um filme:
a história começa antes dos créditos iniciais. O romance
contemporâneo é cinematográfico.”
Dennis Lynds, autor de “Castrata” e “Why Girls Ride
Sideseaddle”, que escreve com o pseudônimo de Michael
Collins afirma: “O que importa é a história que você está
contando. A história pregressa tem que se adaptar a história
central. Enquanto vou escrevendo , sei como foi o passado
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do personagem, mas se algo acontecer no presente eu direi


“Tenho que mudar o passado.
Às vezes quando falamos de história pregressa,
nós agimos como se ela de fato existisse. Mas ela foi
inventada, saiu da nossa imaginação. Como escritores,
nós simplesmente colocamos as coisas no papel e as
manipulamos. É como modelar argila para dar textura e
camadas ao personagem. Nós moldamos isso. Não será
dramático até que seja necessário, será importante no
momento certo (nem antes e nem depois).”
Sheley Lowenkopf, escritora de mistérios e suspenses
como “City of Hope” e “love of the Lion” comenta: “Depois
que você descobre como os personagens são e o que
querem, é preciso decidir como é a relação uns com os
outros; só então você pode começar a trabalhar na história
pregressa. Ela precisa entrar pela porta dos fundos. Quando
trabalho com história pregressa vou preenchendo o passado
dos personagens a medida que avanço na história central.
Informação pregressa não é importante até que você
precise dela! É pertinente entender que algo aconteceu
anteriormente, que alguns acontecimentos do passado
explicam os motivos do presente; mas não se faz isso de
forma cronológica.”
Gayle Stone relata “Quando começamos a escrever,
pode ser bem confuso pois há muito pra se descobrir. Você
pode se sentir frequentemente sem controle da história,
desiludido. Por isso você deve saber o máximo possível
do passado do personagem, pois esse conhecimento será
a muleta psicológica que te dará segurança. À medida que
você se torna mais experiente, não será preciso saber tanto.
Como um escritor em desenvolvimento, você precisa
saber algumas coisas sobre o personagem antes de começar,
mas só se descobre um personagem jogando ele (ou ela) nas
situações. Eu não quero saber do meu personagem antes
de começar, pois eu preciso dessa faísca, esse elemento
surpresa que aparece no processo.”
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HISTÓRIA PREGRESSA EM SÉRIES


Algumas séries de televisão “Dear John”, “Ilha dos
Birutas”, “O Fugitivo”, “The Beverly Hillbillies”, entre
outras, começam com um tipo de sequência pregressa,
já que o público precisa saber do que houve no passado
pra entender a situação; Outras séries olham pra história
pregressa para ter ideias para a narrativa e desenvolvimento
dos personagens. Em alguns episódios, uma pessoa do
passado é o foco da história.
Assim como nos filmes, algumas vezes o personagem
reage de maneira peculiar, como resultado de alguma
experiência passada. Quanto mais informação do seu
passado houver, mais potencial haverá para criar um
personagem mais complexo que pode instigar o interesse do
público (semana após semana).
Coleman Luck fala do motivo de Robert McCall, da série
The Equalizer, ser um personagem tão complexo: “Quando
se cria um personagem pra série, você precisa criar alguém
que tenha o potencial para encontrar algo novo com
frequência. Robert McCall foi da CIA. Ele foi um agente
de alto escalão ao redor do mundo. Ele saiu desse posto e
está totalmente desiludido agora, está revoltado. Esses fatos
criam todo um cenário de motivos e esses motivos precisam
ser explicados pelo roteirista. Isso forma uma trilha pro
roteirista desvendar a série”.
Esses “motivos” foram explorados com profundidade
na série através de um personagem que fez parte do
passado de McCall. Control, o arqui-inimigo de McCall, dá
oportunidades pra explorar a complexidade do personagem:
“McCall e Control tem um relacionamento
multifacetado. Quando temos um personagem profundo
e multifacetado como McCall, fica incrível trazer esses
detalhes à tona através de outro personagem que revive
todo um mundo de experiências passadas dos dois. Eles se
conheciam de longa data, então você pode explorar a raiva,
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o cuidado carinhoso e todos os muitos sentimentos que


criam conflitos e relacionamento. “
Em “Moonlighting”, os roteiristas mergulham na parte
desconhecida do passado de David para expandir mais
profundamente o personagem. Carl Sautter explica: “Numa
temporada nós descobrimos que David foi casado. Era uma
descoberta coerente e que foi útil pra construir um episódio
em específico. Muito da história pregressa se desdobrou
enquanto trabalhávamos na história central.
Essa informação surgiu como uma ideia interessante de
história. Ficamos surpresos por descobrir que ele tinha uma
ex-mulher. Nas nossas conversas descobrimos que foi um
término muito doloroso, por isso David lidava com o fato
fingindo que ela não existia. Ter uma ex-esposa “repentina”
se tornou uma história incrível sobre o David; com um bom
motivo de não termos ouvido falar dela antes.”

QUAIS SITUAÇÕES PRECISAM DE INFORMAÇÃO


PREGRESSA DO PERSONAGEM?
Apesar de não ser preciso saber tudo sobre o passado
do personagem, existem certas situações que é preciso
incorporar algumas informações pregressas.
Se o personagem está passando por grandes mudanças
no presente, normalmente será preciso alguma informação
do passado pra ajudar a esclarecer essas ações e decisões.
Em muitos filmes de Charles Bronson, a história
pregressa explica o motivo do personagem buscar vingança,
normalmente por causa de algum crime no passado que
não foi resolvido pelas autoridades competentes. Em
muitos dos filmes de Sylvester Stallone ou Chuck Norris,
história pregressa explica o motivo desses homens estarem
arriscando suas vidas numa missão específica.
Em filmes como “Karate Kid” e “O Romance de Murphy”,
aprendemos através da informação pregressa o motivo dos
personagens decidirem se mudar. No episódio piloto da
série “The Equalizer”, a história pregressa explica porque
Robert McCall decide mudar de emprego.
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Mudanças de vida não vêm do nada, são motivadas


por certas situações do passado. Se um personagem faz
algo incomum, incrível, ou que pareça fora do seu perfil; a
história pregressa pode explicar esse comportamento.
Se uma dona de casa subitamente, sem explicação, decide
passar os próximos meses resolvendo um crime, é melhor
ter alguma explicação no passado dessa personagem que
esclareça não só motivo dela estar fazendo isso, mas como
ela se acha capaz de solucionar um crime que sequer a
polícia está conseguindo.
É claro que você pode mostrar o crime na história
principal, e mostrar o marido ou filhos como vítimas,
estabelecendo assim, um motivo pessoal do seu
envolvimento. Mas você também pode inserir na história
pregressa que ela foi uma estudante de direito; ou que ela é
uma fã de longa data de histórias de detetives, ou que ela é
um membro da Anistia Internacional e tem um senso forte
de justiça, ou talvez seu pai tenha sido um policial, ou a mãe
tenha sido uma vítima de um crime que nunca foi resolvido.
Todas essas informações pregressas podem ajudar a
explicar um comportamento que não seria típico daquele
personagem.
Um detetive que investiga um crime, precisa de pouca
informação pregressa pra justificar tal coisa. Uma dona de
casa precisaria de bem mais informação que motivasse e
explicasse essa tomada de decisão.
EXERCÍCIO: Tente criar um personagem que, no
começo da história, decide fazer uma jornada para a Índia
em busca de um artefato raro hindu. Que informações
você gostaria de saber sobre o passado desse personagem?
Que informações o público precisaria saber? O que você
precisaria saber sobre a motivação? Foram interesses de
profissão ou espiritual? Ele detém habilidades especiais
ou talento inato? Ele passou por alguma situação especial,
como uma crise, uma competição ou uma missão? Por
que esse personagem fez essa jornada logo agora? Como a
informação pregressa mudaria se a história se passasse em
1920 ou 1820?
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ESTUDO DE CASO
“Murphy Brown” série lançada em 14 de novembro de
1988. As primeiras palavras ouvidas sobre Murphy Brown
no episódio piloto foram todas sobre seu passado (a história
pregressa). Descobrimos que Murphy está voltando de uma
internação no Betty Ford Center. Numa entrevista recente,
Diane English explicou sua intenção com essa informação
do passado:
“Murphy ter ficado no Betty Ford Center, somando o
fato dela ter uma personalidade de uma viciada explica
muito sobre ela. Significa que ela será compulsiva, até
mesmo rabugenta às vezes. Ao conhece-la no dia que voltou
do Betty Ford Center, nós a vemos como uma interrogada
que está sendo testada, sem nada que pudesse se apoiar. Era
disso que se tratava o episódio piloto: a personagem estar
sendo testada e tentando redefinir a si mesma”.
Então a primeira informação sobre Murphy remete
imediatamente ao seu passado (a história pregressa). Essa
informação ambienta a situação, mas também ajuda a
expandir a personagem.
“Nesse primeiro episódio, descobrimos que ela era muito
bem-sucedida. Antes mesmo que ela entrasse na sala, eu
queria dar um pouco de informação pregressa sem que essa
informação saísse diretamente dela. Então ouvimos alguns
personagens falando sobre ela: certa vez deixou Warren
Beatty mofando; é uma ex-fumante e não bebia mais. Eu
queria causar a impressão de uma pessoa extremamente
famosa, mas que não aceitasse conselho de ninguém,
uma pedra no sapato de muita gente, mas uma pessoa
querida. Isso mostrava que ela era um personagem que
simpatizaríamos e torceríamos por ela.
“No piloto descobrimos que ela é filha única, que
não sabia compartilhar, que se garantia. Sentíamos que
precisávamos criar algo sobre os pais dela, já que todos
estávamos ansiosos por saber de onde essa pessoa veio.
Quando apresentamos a mãe dela, aquilo falou tanto sobre
Murphy e de onde veio aquele jeito dela. Sua mãe era um
personagem muito mais cheio de vida que ela. Murphy
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se sentia tão pequena e antiquada perto da mãe. E o mais


importante: ela nunca disse “eu te amo” pra mãe depois de
adulta. Esse era o cerne da história.
“Certo episódio trouxemos de volta seu ex-marido, ela
foi casada com ele por cinco dias. Isso ajudou a revelar
mais sobre a vida de Murphy nos anos sessenta, quando
conheceu esse cara e ambos eram radicais, impulsivos. Se
casaram e em cinco dias estava tudo acabado. Desde então,
nunca mais apareceu esse tipo de pessoa na vida dela, e
só a possibilidade de talvez vê-lo depois de vinte anos já a
deixava completamente zonza.
Aquela situação provocou todo tipo de pergunta em
Murphy: Ainda sou atraente? Ele ainda é atraente? O que
ele vai pensar da minha vida presente? Eu me corrompi
com o tempo?”
Em certo episódio, uma sequência em flashback mostra
Murphy conseguindo seu emprego: “Esse episódio se
passa em 1977 quando ela e Frank faziam um teste para
a FYI. Podíamos vê-la no limite emocional – estava
fumando, bebendo e com o cabelo bagunçado. Estava com
um chapéu da Annie Hall e tênis. Dizia que não queria
realmente o emprego e se recusava a fazer as coisas do jeito
apropriado”.
Mas a história pregressa é útil não apenas para o
protagonista. Em “Murphy Brown”, a história pregressa é
também usada pra expandir outros personagens: “Acho
que gostaríamos de ver mais sobre Jim Dial (como era
seu casamento, se tinha filhos, como é sua vida fora do
escritório, e como ele é quando deixa o cabelo solto). O
mesmo pro Corky. Suas raízes sulistas (queríamos saber
mais sobre isso). Gostaríamos de saber mais do passado de
Miles. Como ele conseguiu aquele emprego aos 25 anos?
De que tipo de família ele veio? Essa família tinha orgulho
daquela conquista ou não? Ele tinha irmãos? Pensamos em
trazer um irmão em algum episódio, que fosse um ano mais
velho que Miles e que começasse a sair com Murphy.
“Nós também queremos conhecer o pai de Murphy.
Ele é divorciado da mãe e se casou com uma mulher bem
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mais nova; agora tem um bebê de oito meses de idade.


Esperamos que tenha um episódio que eles visitem um
ao outro. Já que Murphy era filha única, isso traria uma
dinâmica interessante. Ela agora tem um meio-irmão, e a
esposa de seu pai provavelmente tem a mesma idade que ela
ou é mais nova.
“Acho que a melhor forma de delimitar personagens é
colocando eles em situações que os forcem a abrir novas
dinâmicas emocionais ou sociais. Não se deve colocar um
personagem no palco e deixar que ele decida tudo sozinho,
isso seria uma simples externalização. Um jeito mais
interessante de desenvolver personagens é criar situações
que forcem o personagem a reagir àquilo, observar as
reações de um personagem é a melhor forma de conhece-
lo.”
No caso de “Murphy Brown”, a história pregressa (a
história do seu passado) ajudou a definir e expandir a
protagonista, mas também ajudou a criar relações entre os
personagens.

APLICAÇÃO
Faça as seguintes perguntas enquanto desenvolve a
história pregressa do seu personagem:
■■ Meu trabalho com a história pregressa é um processo
de descoberta? Estou tomando o cuidado de deixar a
história pregressa aberta ao invés de impor fatos que
não são relevantes pra história?
■■ Quando uso informações pregressas na história
central, estou tendo cuidado de contar apenas
o necessário, o que é de fato relevante? Estou
mesclando essas informações com camadas de
história central, pra não ficar cansativo?
■■ Estou contando a história pregressa da maneira mais
curta e concisa possível? Estou tentando resumir a
informação que importa numa frase só? Ela deve
revelar algo importante em termos de motivação,
postura, atitudes, emoções e decisões.
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RESUMO
Criar o passado de um personagem é um processo de
descoberta. O escritor precisa ir e vir nesse constantemente:
fazer perguntas sobre o passado para compreender melhor
o presente. O processo segue enquanto se escreve a história
central. A história pregressa enriquece e aprofunda
continuamente o personagem. É a chave para criar um
personagem consistente/crível.
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4
Entendendo o Psicológico
do Personagem
Não é preciso um psicólogo pra entender o que
influenciou seu personagem a fazer algo. Judith Guest é
uma romancista conhecida pela perspicácia psicológica,
mesmo tendo pouca base técnica na psicologia: “Minha
conhecimento formal em psicologia é mínimo. Fiz um
curso na faculdade sobre desvios sexuais e, como resultado,
fiquei fascinada pelo comportamento humano. Queria
observá-lo de todas as formas possíveis e encontrar o
motivo das pessoas fazerem o que fazem e o que pode
estimular esse ou aquele comportamento”.
Da mesma forma que construímos personagens com
características externas (aparência física e comportamento
prático), é igualmente importante que o escritor
compreenda o uninverso interno do personagem, o seu
psicológico.
Um escritor precisa entender como as pessoas
funcionam, entender por que fazem o que fazem,
desejam o que desejam. “Metade da escrita é psicologia”,
Barry Morrow afirma. “Existe um cerne coerente. As
pessoas não agem por mera aleatoriedade. Para criar um
comportamento humano consistente, é preciso saber o que
as pessoas fariam na maior parte das situações. As pessoas
não agem sem motivo. Toda ação tem uma motivação e
intenção.”
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Quando se pensa sobre o lado psicológico de um


personagem, normalmente já se pensa em personalidades
anormais do tipo “Sybil”, “As três faces de Eva”, “David
e Lisa”, “Nunca te prometi um jardim de rosas”, “Rain
man”. Mas os motivos ocultos e forças inconscientes são
importantes pra qualquer personagem que você venha a
criar.
Vamos ver mais de perto os personagens de “Rain Man”
pra entender como o psicológico do personagem pode ser
construído: Charles Babbitt e Raymond Babbitt. Mesmo
Raymond sendo o personagem que exige mais pesquisa
específica, entender o psicológico de Charlie é igualmente
importante, já que ele era a força motriz da história.
No decorrer desse capítulo, ouviremos os roteiristas
Barry Morrow (que criou a história) e Ron Bass (que fez a
reescrita).
“Quando Steven Spielberg entrou no projeto (ele era um
dos diretores cotados pro filme antes de Barry Levinson),
nós tratamos Charlie como tendo uma personalidade
análoga a um autista”, relata Ron Bass.
“Nós buscávamos um filme sobre dois irmãos autistas,
um que tinha o diagnóstico clínico e o outro que tinha
um nível de autismo considerado dentro da normalidade.
A história geral de Rain Man gira em torno da dificuldade
de criar conexões humanas, ao mesmo tempo que mostra
como elas são necessárias. Costumamos falar que podemos
viver sem isso, que estaríamos melhor sem isso, que
estamos mais seguros atrás das nossas defesas, mas estamos
enganados.”
Podemos entender melhor o psicológico de Charlie e
Raymond olhando pra quatro áreas psicológicas chave:
O passado emocional, o inconsciente, qual é o arquétipo
do personagem, e o psicológico anormal. Essas são as
coisas mais importantes na criação de qualquer tipo de
personagem.
Talvez você já esteja familiarizado com a maior parte
do conteúdo apresentado nesse capítulo, seja por intuição
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ou por estudar psicologia. Entender essas categorias é


importante, mas também é essencial lembrar-se que
personagens não são apenas seus psicológicos. Eles são
construídos pela criatividade e pelo rigor clínico.
Estar familiarizado com essas áreas da psicologia pode
jogar uma luz no personagem. Pode te ajudar a resolver
problemas no personagem, dar dimensão, responder
perguntas “Meu personagem faria isso? Diria aquilo?
Reagiria assim?”

COMO O PASSADO PSICOLÓGICO DEFINE O


PERSONAGEM
No capítulo 3 olhamos algumas circunstâncias externas
que influenciam o personagem, incluindo eventos passados;
a maneira que internalizam esses eventos (às vezes
reprimindo ou ressignificando eles, dependendo do efeito
positivo ou negativo que essas coisas tiveram em sua vida).
Todos esses elementos devem ser analisados. Normalmente
não é um acontecimento concreto que determina a
configuração psicológica de um personagem; mas como ele
reagirá a essa situação.
Freud descobriu a grande influência que eventos do
passado têm sobre a vida presente. Eles moldam nossas
posturas, ações, e até mesmo nossos medos. Para Freud, os
eventos traumáticos do passado são a causa de complexos
e neuroses do presente. Quando esses acontecimentos são
reprimidos, surgem os comportamentos mais anormais.
Carl Jung descobriu que as influências do passado
podem ser uma fonte positiva de saúde mental, ao invés
de sementes de doenças mentais. Algumas vezes nós
recuperamos nossa saúde mental quando redescobrimos os
valores da nossa infância.
Muitos escritores usam seus entendimentos sobre
as influências da infância como suporte para criar seus
personagens. Coleman Luck relata: “Na época que
eu ensinava a escrever roteiros só existia uma área da
psicologia que era importante pra mim: entender a criança
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interior. Se existe uma coisa mais importante que qualquer


outra é entender que dentro de todo adulto existe uma
criança interior do seu passado. E se você conseguir
entender essa criança, você pode criar os eventos críticos
que ela vivenciou e que influenciaram seu personagem a ser
quem é”.
Em seus estudos sobre a infância, o psicanalista Erik
Erikson encontrou pontos importantes que as pessoas
precisam confrontar em certa idade para se tornarem
indivíduos saudáveis, completos e bem ajustados. Enquanto
essas questões não forem resolvidas, elas continuarão
exercendo controle sobre o desenvolvimento dessas pessoas,
algumas vezes de forma prejudicial.
Uma das primeiras questões que a criança enfrenta é a
confiança. Um bebê precisa se sentir seguro no mundo, e
isso começa confiando nos pais. Se a confiança for frágil, a
criança seguirá pela vida sem confiar nos outros.
Em “Rain Man”, vemos eventos positivos e negativos do
passado de Charlie. Ron Bass conta sobre essas primeiras
influências que mudaram a capacidade de Charlie em
confiar:
“Quando tinha dois anos, Charlie vivia na casa onde o
pai (um homem de negócios de sucesso e muito atarefado)
não dava atenção a ele. Porém isso não impactou tanto
Charlie, já que ele tinha uma mãe carinhosa e cuidadosa,
além do Rain Man, esse irmão que tinha dezesseis ou
dezoito anos, que vivia em casa, sem nunca sair, que
adorava o irmão, cuidava dele e o ninava.
“Mas, subitamente sua mãe morreu, algo que já seria
muito traumático pra qualquer criança de dois anos, mas
foi pior especialmente para aquele menino que não tinha
um pai carinhoso. Foi somado ao evento, a despedida de
seu amigo: “Tchau-tchau, Rain Man, Tchau-tchau, Rain
Man”. Temos aqui uma criança que teve todo seu suporte
emocional retirado bruscamente aos dois anos de idade”.
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Charlie se lembrava de pouca coisa do seu amigo especial


“Rain Man”. Já adulto, quando voltar do funeral do pai, ele
lembra-se subitamente do amigo especial. Fala para Susan
CHARLIE
Eu tive um flash na minha memória. Sabe
quando você é criança... Você tem esse tipo
de... amigos imaginários? Sabe, o meu tinha
nome... Como era mesmo? Rain Man. Isso. O
Rain Man. Se eu ficasse com medo de qualquer
coisa, era só eu me enrolar com o lençol que o
Rain Man cantaria pra mim... Cantava por uma
hora inteira. Agora pensando nisso, eu devo ter
ficado com medo frequentemente. Caramba, faz
bastante tempo.
SUZAN
Quando ele desapareceu? Seu amigo.
CHARLIE
Não sei, eu acho que só cresci...
Se a criança não encontrar um lugar seguro ainda
pequena, essa questão permanecerá em outros
relacionamentos de vida. Caso aconteça alguma
instabilidade na vida adulta dessa pessoa, a questão da
insegurança pode ressurgir.
Anna Hamilton Phelean, enquanto escrevia “A
Montanha dos Gorilas”, viu que era preciso entender
mais sobre transtornos compulsivos, já que muitos
comportamentos de Dian Fossey pareciam compulsivos.
Ela falou com um psicólogo que perguntou “Onde ela
estava quando tinha onze anos de idade? O que ela fazia
nessa época?” Quando Anna pesquisou mais a fundo a vida
de Dian, descobriu que a mãe da menina havia se casado
novamente naquela época; e que esse casamento mudou
sua capacidade de confiar no seu núcleo familiar. “Dian foi
deixada sozinha quando tinha onze anos. Acho que foi a
primeira vez que ela foi rejeitada e teve que ficar sozinha.
Comer sozinha na cozinha. Acho que de algum modo
ela era constrangida a ficar mais no quarto, pra se manter
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distante da mãe e do padrasto. Ela aprendeu a ficar sozinha.


Aprendeu a desconfiar de seres humanos. Aprendeu a se
sentir mais confortável com animais. Ela ficou receosa de
seres humanos até o dia de sua morte”.
Se não houver segurança, amor e confiança na primeira
infância; a criança se sentirá sem apoio, acabará tendo
pouca autoconfiança. Numa família, a crítica pode acabar
substituindo o carinho. Quando a criança começa a ir pra
escola, é possível que use essa crítica contra si mesma,
tornando-se rígida, controladora, obcecada em seguir
regras, ou se torne competitiva, numa tentativa de se sentir
boa o suficiente. Essa raiva pode ser introspectiva (“Não sou
boa o suficiente”) ou externalizada (“eu te odeio”).
A falta de autoestima ou autoconfiança afetará a
identidade. Se a criança é criticada constantemente, ela
terá a tendência de ser o que os pais querem que ela seja
e não aquilo que ela realmente poderia ser. A questão da
identidade se torna mais grave especialmente no ensino
médio, quando os adolescentes se preparam para entrar na
fase adulta e tomar decisões como adultos.
Muitos filmes adolescentes focam nessa questão da
identidade. “Negócios Arriscados, “Karate Kid”, “Clube
dos Cinco”, “A Garota de Rosa Shocking”, todos lidam com
jovens que tentam descobrir suas próprias ideias e opiniões,
geralmente em contraste com valores e ideias dos pais ou da
sociedade convencional/conservadora.
Erikson diz que crianças com um passado sadio são
mais propensas a se tornarem independentes. Enquanto as
demais serão crianças (e mais tarde adultos) com menos
liberdade de tomar decisões por medo de serem criticadas
ou rejeitadas.
Em “Rain Man”, a questão central foi a busca de Charlie
pelo afeto do pai. Durante seus primeiros anos de vida,
Charlie foi muito controlado, tentando agradar o pai para
ganhar seu amor.
Ron Bass explica: “A resposta do pai em relação à criança
autista foi afastá-la e trata-la como um tipo de aberração
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que não merecia um tratamento normal. Porém ele tratava


seu outro filho quase da mesma forma. Nada que Charlie
fizesse era bom o suficiente. Charlie não conseguia ser
perfeito. O pai tinha um filho que era imperfeito, autista,
então o segundo teria que ser perfeito e preencher sua vida
(mas esse segundo filho não era perfeito). É verdade que o
filho era incrível: tinha boas notas, era bonito, mas não era
bom o suficiente. Nada que ele pudesse fazer seria bom o
suficiente, pois o pai sentia que o mundo estava devendo
algum tipo de perfeição para ele.
“Não acho que Charlie tenha sido um rebelde na
juventude. Ele sentia tanta necessidade do amor e afeto do
pai, que quanto menos amor paterno recebia, mais buscava
por isso. Acho que Charlie passou a infância se esforçando
pra ser perfeito e nada era bom o suficiente pro seu pai.”
Quando Charlie tinha dezesseis, ele teve um momento
de rebeldia: pra testar se o pai ainda o amaria, mesmo se ele
fosse “mau”. Charlie falou desse momento com a namorada,
Susan.
CHARLIE
Te contar uma história, só uma. Sabe aquele
conversível ali fora? Era o xodó dele. Aquilo e a
porcaria das rosas. O carro tava fora dos meus
limites. ‘É um clássico’, ele diria. ‘Impõe respeito.
Não é pra criança.’ Eu tava no segundo colegial,
tinha dezesseis. E uma vez cheguei com o
boletim cheio de A... Fui até meu pai. ‘Posso sair
com meus amigos no Buick?’ Tipo um passeio
do campeão. Ele disse não. Mas fui mesmo
assim. Roubei as chaves. Saí na surdina.
SUSAN
Por que logo naquela ocasião?
CHARLIE
Porque eu merecia. Fiz algo incrível. Ele mesmo
disse, mas não era homem suficiente pra fazer
o certo. Então fomos pela via Lakeshore Drive.
Quatro jovens sarados. A polícia nos pegou. Ele
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fez uma denúncia de roubo. O próprio filho não


pegou o carro sem permissão... simplesmente
roubou.
(beat)
Prisão de Cook County. Os pais dos outros caras
tiraram eles de lá em uma hora. Ele me deixou lá
por duas... noites.
Bêbados vomitando. Malucos em volte de mim.
Um cara tentou me estuprar duas vezes. Foi a
única vez na minha vida que eu tava apavorado.
Cagando nas calças, sem ar, com o coração na
mão. Um cara me apunhalou nas costas, essa foi
a...
SUZAN
...cicatriz. No seu ombro.
CHARLIE
Saí de casa e nunca voltei.

Esse acontecimento fez Charlie entender que seu pai


nunca o amou.
Ron explica, “Ele desafia seu pai e faz uma quebra muito
clara na própria vida. É um momento crucial de sua vida:
aos dezesseis anos se afasta pra sempre do pai. E, fazendo
isso, ele desiste de todas as coisas que tanto se esforçou pra
alcançar (a faculdade, por exemplo). Charlie é um cara
brilhante, poderia ser um executivo promissor em algum
lugar, mas se rebelou contra o pai e se vingou negando o
sucesso que o pai tanto queria dele. No processo de rebeldia
contra o pai, ele destruiu a própria vida.
“O que dizer pra si quando se é brilhante e se deseja as
coisas mais refinadas da vida? Seu pai é um milionário bem
sucedido, e você passa dezesseis anos buscando por isso.
Não é que você estivesse sempre querendo se rebelar contra
isso. O tempo todo você estava querendo alcançar isso
e fazer seu pai ficar orgulhoso de você. Então o que dizer
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quando você desiste de tudo? Não dá pra falar que você tá


se destruindo pra atingir seu pai, seria aburdo demais pras
pessoas. Ao invés disso você diz: ‘Meu pai era um babaca,
e tudo que eu queria da vida eram coisas superficiais,
materialistas, falsas... quem precisa desse caminho
robotizado de sucesso? Estou melhor do que meu pai já
esteve, vou viver melhor e com menos custos. Vou sair por
aí contando só comigo mesmo. Eu posso fazer isso.’
“E foi isso que ele fez e se tornou um vendedor de carros.
Ele era esperto, e seus negócios atuais provavelmente
vinham de uma lista de várias outras tentativas. Ele não
está indo bem e também não está falindo pois, apesar de
não fazer as coisas da forma ideal, ele é muito esperto e
consegue algum êxito. Ele é um cara que quer falhar. Lá
no fundo sempre acreditou que seu pai tinha razão. Por
mais que ele odiasse seu pai na superfície, ele sabia em
algum lugar lá dentro que seu pai tinha razão, e quando
seu pai dizia que ele era um perdedor, ele precisava ser um
perdedor”.
Essa falta de confiança na infância impediu que Charlie
fosse capaz de amar na fase adulta.
Erikson diz que a fase adulta é o momento de resolver
conflitos entre ter intimidade e se isolar. Para aprender a
relacioná-los de forma a criar amizades, matrimônios e
alianças. Se essas questões não forem resolvidas (problemas
de desconfiança, dúvida, culpa) elas podem vir à tona num
relacionamento, minando o potencial de ser íntimo.
“Charlie está num relacionamento sem compromisso
com Susan”, Ron Bass explica “com alguém que ele não
precisa se preocupar em magoar pois ela pode cuidar
de si. Ela não pede pra ele se casar com ela. Ela é legal, e
ambos seriam capazes de deixar um ao outro. Isso é um
relacionamento que não exige nada comprometedor. Ele
é sorridente, charmoso. Ele a convence que realmente se
importa com ela e é isso que importa pra ela. Se fosse um
tempo atrás (antes do incidente com Raymond) ele poderia
perfeitamente perdê-la sem sentir falta. Foi a mudança que
ocorreu enquanto viajava pela estrada com o irmão que
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o fez perceber a mulher incrível que perdeu e o quanto


gostaria de reatar com ela. Ele liga, e isso a desarma pois
nunca tinha visto ele daquele jeito”.
A transformação de Charlie o ajudou a se reconectar
com uma influência positiva do seu passado: seu irmão.
Uma das surpresas do filme, foi Charlie descobrir que
Raymon era seu amigo imaginário (Rain Man), que havia
um elo emocional sadio entre eles.
Na verdade, a história é sobre essa transformação. Ron
explica “Você leva uma esperança ao sair do cinema. A
esperança de que Charlie será capaz de amar Susan, as
pessoas e ter um filho e aproveitar um mundo de pessoas
carinhosas por causa do que aprendeu na sua jornada com
seu irmão”.
Se esses problemas não fossem resolvidos em Charlie,
ele acabaria em outra crise que Erik Erikson chama de
“generatividade vs. Estagnação”. Ela ocorre quando alguém
não viveu aquilo que ama fazer. Às vezes isso se torna a
crise de meia idade, onde as pessoas tem que encarar o
rumo que deram para suas vidas e o que conquistaram.
Quando alguém chega nos quarenta pra cima, existe
outra crise: “integridade vs. Desespero”. Essa crise não
tem a ver só com conquistas e contribuições profissionais,
mas sobre significado e valor do que fez. Nesse ponto,
as pessoas questinam se suas vidas tiveram algum valor,
alguma profundidade. As consequências de não resolverem
essas questões podem leva-las ao desespero, alcoolismo,
depressão e até suicídio. “O Veredito”, “Uma Cilada Para
Roger Rabbit”, apesar da grande diferença de gênero, ambos
os filmes são sobre resolver questões do passado, confrontar
uma crise no presente, e aprender a ser uma pessoa mais
envolvida, e carinhosa.

EXERCÍCIO: Imagine-se criando uma história sobre um


futuro de Charlie Babbitt. Como ele seria na crise de meia
idade, com uns quarenta anos ainda falhando por sentir
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inconscientemente que seu pai estava certo sobre não ser


bem-sucedido? O que Charlie faria pra compensar?
Como Charlie seria aos sessenta, tentando achar
significado na vida enquanto ainda é controlado pela figura
do pai? Como ele expressaria seu desespero?
Como ele seria se tivesse resolvido sua crise da meia
idade? Como você acha que seria sua relação com o irmão
se o filme continuasse?

COMO O INCONSCIENTE AFETA O PERSONAGEM?


Muitos psicólogos acreditam que nosso consciente é
só 10% da nossa psiquê. O que nos move e nos motiva
vem mais do inconsciente, que consiste em sentimentos,
memórias, experiências, e impressões que foram impressas
em nossas mentes desde o nascimento. Esses elementos,
normalmente reprimidos por causa das associações
negativas, guiam nosso comportamento, nos fazendo
agir de maneiras que talvez contrariem nossas crenças
conscientes ou o entendimento que temos de nós mesmos,
podem até mesmo contradizer nossa identidade.
Todos nós já ouvimos pessoas falando como enxergam a
si mesmas. Na medida que vamos ouvindo, sentimos que a
imagem que têm de si mesmas é um pouco diferente da que
temos sobre elas.
Uma mulher talvez diga que é uma pessoa aberta,
quando na verdade ela é defensiva, fechada, relutante. Um
homem pode parecer gentil, mas pode revelar uma natureza
violenta que nem mesmo ele sabia ter. Essas pessoas podem
ser guiadas pelo poder do inconsciente ou desejo de
controle ou crueldade/má fé.
As pessoas costumam ter pouco conhecimento
de como essas forças inconscientes influenciam seus
comportamentos. Normalmente são elementos negativos
que negamos ou racionalizamos. Psicólogos chamam de “a
sombra” ou “o lado sombrio da personalidade”.
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Já vimos vários exemplos no noticiário de como esse lado


sombrio opera na vida das pessoas. Jimmy Swaggart é um
“moralista” que foi desmascarado pela “sexualidade não
assumida”. Nixon, um presidente da “lei e da ordem”, foi
desmascarado pelas ilegalidades cometidas no seu mandato.
Junto do lado sombrio do inconsciente pode-se
encontrar muitas forças reprováveis.
Essas forças inconscientes alcançam maior poder
quando estão reprimidas ou quando são negadas. A falta
de conhecimento delas, pode nos levar a falar e fazer
coisas contrárias a nossa vontade. Reprimidas, elas têm um
potencial de levar pessoas a problemas.
As vezes escritores decidem que esse lado sombrio é
o lado que querem explorar. Barry Morrow diz: “Minhas
histórias ‘Bill’ e “Bill on His Own’ exploram o lado
positivo da humanidade. Queria que o filme Rain Man
falasse sobre o oposto: O lado sombrio nas motivações
da vida (ganância, avareza, a visão limitada de mundo, a
impaciência). Charlie é meu lado sombrio, o lado sombrio
de todo mundo. Tive uma sensação de que Madre Teresa
ficava nervosa de vez em quando. Aposto que o Papa ficava
impaciente com aquelas reverências. Sei que todos temos o
lado bom e o ruim, a luz e a sombra, o yin e o yang dentro
de si. Bill foi sobre luz e esperança. Rain Man foi sobre o
oposto”.
Explorar o lado sombrio não significa que sua história
irá acabar num tom negativo. “Eu me desafiei a acreditar
que a história iria acabar da mesma forma que meus
dois primeiros filmes. É uma sensação de criar conexões
humanas e também de juntar os pedaços, peneirar a dor e
seguir em frente.” Barry conclui.
Charlie não tinha lucidez que seus atos eram
direcionados por sua necessidade de aprovação e o
amor do pai. De acordo com Ron Bass “ Charlie era mais
reservado para se proteger do sentimento de rejeição. O
que guia Charlie é querer o amor do pai, sabendo que não
terá, sabendo que o pai pode estar certo sobre ele ser um
fracasso. Os maiores problemas nas nossas vidas são aqueles
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que insistimos, na esperança que será diferente da próxima


vez, que vamos fazer melhor. Seu maior objetivo é provar
que o pai estava errado, mas lá no fundo ele se mantém
provando que o pai está certo. Ele poderia provar que o pai
estava errado, era só se tornar um homem bem-sucedido,
da sua própria maneira e termos, sem a ajuda ou conselhos
do pai. Isso provaria que ele não precisava do amor do pai.”
O inconsciente se manifesta nos seus personagens
através dos comportamentos, gestos e discursos. Toda essa
camada interna, esses significados desconhecidos irão afetar
o que os personagens dizem e fazem.

COMO AS DIFERENÇAS NA PERSONALIDADE


CARACTERIZEM O PERSONAGEM?
Apesar de sermos da mesma espécie, não somos o
mesmo tipo de pessoa. Cada um vive de um jeito. Temos
várias percepções de vida.
Por séculos os escritores vêm usando um entendimento
de temperamentos para desenhar as linhas gerais de seus
personagens.
Na idade média e na renascença, os escritores
acreditavam que, assim como o mundo se dividia em
quatro elementos (terra, ar, fogo e água) o corpo poderia
ser dividido em quatro elementos ou humores: Bile negra,
sangue, bile amarela e fleuma. Um temperamento (ou tipo
de personagem) era determinado pela predominância de
um humor sobre os outros.
A personalidade controlada pela bile negra era
melancólica, pensativa, sentimental, afetada, pouco
dinâmica. A indecisão triste de Hamlet e o taciturno
Jacques são exemplos de temperamentos melancólicos.
Uma personalidade dominada pelo sangue será
acolhedora (beneficente, alegre, amoroso. Falstaff se encaixa
nesse temperamento).
O temperamento colérico, dominado pela bile amarela,
é facilmente irritado, impaciente, obstinado e vingativo.
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Tanto o ciúme de Otello quanto a imprudência de Lear


mostram uma cólera extremada.
A personalidade fleumática é composta com uma solidez
calma e fria, como por exemplo Horácio, em Hamlet.
O temperamento perfeito é aquele onde os quatro
humores são balanceados. O desequilíbrio pode causar
desajustamento e loucura.
Brutus em Júlio César possuía um temperamento quase
ideal. Marco Antônio o chamava de “O mais nobre romano
de todos”: ... os elementos são tão misturados nele que a
natureza pode se levantar e dizer ao mundo: Isso sim foi um
homem!”
Ian Fleming, em “007 contra Octopussy”, atualiza
esses quatro elementos na sua descrição de um bêbado.
“O bêbado sanguíneo fica radiante ao ponto da histeria, a
pele fleumática em um pântano de escuridão sombria; o
colérico é o bêbado brigão dos cartunistas que passa grande
parte da vida na prisão para esmagar pessoas e coisas; e o
melancólico sucumbe à autopiedade, rabugice e lágrimas”
Shakespeare era interessado na relação entre os
personagens. Alguns tipos se davam bem pois viam
o mundo de formas compatíveis. Mas outras relações
causavam conflitos. Por exemplo, alguém que é colérico,
que exige atitudes e respostas rápidas, ficará louco com
alguém que é fleumático e quer pensar nas coisas. Alguém
que é sanguíneo vai achar deprimente estar perto de um
melancólico.
Nos últimos cem anos, houveram muitas
reinterpretações desses tipos de personalidades e, estar
familiarizado com essas teorias pode te ajudar a diferenciar
seus personagens, além de dar mais força aos conflitos
vividos por eles.
Carl Jung diz que a maior parte das pessoas vão para a
extroversão ou para a introversão. Extrovertidos sociais
focam no mundo externo, enquanto introvertidos focam
na realidade interna. Extrovertidos tendem a se sentir
confortáveis em multidões, se relacionar com facilidade,
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amar festas e pessoas. Introvertidos são mais solitários,


buscam por atividades solitárias como ler ou meditar. O
fundamento de suas vidas se encontra para dentro, ao invés
de para fora.
Nos dramas, assim como na vida real, a maioria dos
personagens são extrovertidos. Eles movem a ação e
produzem o conflito e a dinâmica do filme. Eles funcionam
“pra fora” e possuem uma dinâmica boa com os outros
e uma interatividade com a vida. Mas “Rain Man” prova
que um introvertido pode ser um personagem poderoso
quando somado a um personagem mais ativo para mover a
ação.
Ron Bass explica “Raymond é certamente introvertido.
O autista clássico não vê muita diferença entre pessoas
e árvores (ou objetos). Não entendem que pessoas são
pessoas.”
“Charlie é um introvertido em roupas chamativas. Sente-
se confortável numa multidão porque sente que pode lidar
com ela. Ele é bonito e charmoso, mas não acho que ele
realmente curta ficar na multidão. Está sempre pensativo
‘O que eles querem de mim? O que eu quero deles?’ Ele é o
tipo de solitário que dá a sensação de nunca compartilhar
o que está realmente sentido. Ele é tão deslocado, sua raiva
fica na superfície, ele é comunicativo, agressivo, dominador,
mas não consegue partilhar verdadeiros sentimentos, estão
escondidos tanto dele próprio quanto dos outros.”
Carl Jung adiciona quatro outras categorias ao
introvertido e extrovertido para uma compreensão mais
profunda dos tipos de personalidades: O tipo sensorial, o
tipo pensativo, o tipo sensitivo, o tipo intuitivo.
O tipo sensorial experimenta a vida pelos sentidos. Estão
conectados em seu redor físico (cores, cheiros, formas,
gostos). Tendem a viver no presente, reagir ao redor. Muitos
do tipo sensorial sabem cozinhar bem, construir casas,
são médicos, fotógrafos, qualquer ocupação que é física e
voltada às sensações.
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James Bond provavelmente seria considerado o tipo


sensorial: sensual, amante de carros velozes, atividades
físicas e mulheres bonitas.
O tipo pensativo é o oposto. Eles pensam na situação,
resolvem problemas, tomam controle para trazer uma
solução. Fazem decisões baseadas em princípios não em
sentimentos. São lógicos, objetivos, metódicos. Tendem
a ser bons administradores, engenheiros, mecânicos,
executivos. Personagens que possuem forte função
pensativa: Perry Mason, Jessica Fletcher, MacGyver e
Marquise em “Ligações Perigosas”.
O tipo sensitivo tem uma tendência de se conectar
aos outros. Ele se importa, é empático e afetuoso. Seus
sentimentos estão sempre acessíveis e estão acima de
qualquer coisa. Professores, assistentes sociais e enfermeiros
são normalmente do tipo sensitivo. Nos filmes e novelas:
Madame de Torville em “Ligações Perigosas”, Eriksson em
“Pecados da Guerra”, Tess McGill em “Uma Secretária de
Futuro”.
O tipo intuitivo se interessa em possibilidades futuras.
São sonhadores, visionários, com novos planos e ideias. Eles
dão palpites, tem premonições, e vivem antecipando o que
acontecerá. Normalmente são empreendedores, inventores,
e artistas que recebem uma súbita inspiração de uma ideia
completa. Alguns assaltantes de bancos e jogadores são
intuitivos, buscando uma vantagem para sua fortuna. Obi-
Wan-Kenobi de Star Wars é um intuitivo que reconhecia
a natureza invisível da Força. Sam em “Cheers” é também
intuitivo: ele sempre tem uma intuição de que vai conseguir
qualquer mulher que desejar. Even Gordon Gekko em
“Wall Street” parece ter uma intuição forte ao fazer planos e
esquemas.
Essas funções nunca existem sozinhas. Muitas pessoas
têm duas funções dominantes e duas funções auxiliares
(podem também serem chamadas de “Funções sombra”).
Muitas pessoas e personagens tenderão a obter informações
do mundo tanto pela sensação (experiências diretas) tanto
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pela intuição. E eles tenderão a processar a informação


tanto pelo pensamento quanto pela sensação.
“Charlie é um pensador e um cara intuitivo”, Ron Bass
explica. “Aquele tipo de pessoa que vive pelo passado e pelo
futuro. Apesar dele parecer ser do tipo que vive o momento
de um jeito meio hedonista, ele é bastante movido pelos
fantasmas do passado e é cheio de sonhos de um dia
ficar rico e se dar bem. Então ele acaba nessas confusões:
Colocando dores do passado nas glórias do futuro. Não
tenho certeza se ele vive o momento.”
Entender essas categorias pode ser útil para criar
personagens mais singulares, pra criar relações mais
dinâmicas.
As pessoas normalmente têm grandes conflitos com
seus opostos. O detetive sensitivo pode ter problemas com
o detetive intuitivo que dá palpites sem base em evidências
sólidas. O tipo pensador pode não gostar do emocional que
parece muito sentimental e ignora os fatos.
Outros admiram pessoas que são fortes naqueles
pontos em que elas são fracas. Se a pessoa é fraca em
intuição talvez ela procure o guru intuitivo para suprir esse
sentimento nela. Mulheres que são fracas no lado sensitivo
são particularmente simpáticas aos homens afeminados, ou
intensos.
Dependendo da história que você quer contar, pode
ser útil tentar encontrar outras formas de definir os tipos
de personagens. No livro “O Despertar do Herói Interior”,
Carol Person descreve os “cinco arquétipos que vivemos”
como o ofrão, o inocente, o sonhador, o mártir, o guerreiro
e o mágico. Mark Gerzon, no livro “A Choice of Heroes”,
discute alguns tipos de personagens masculinos, como
o soldado, o homem que vive nas fronteiras distantes, o
provedor/nutridor. Jean Shinoda-Bolen, em seus livros: “As
Deusas e a Mulher: Nova Psicologia das Mulheres” e “Os
Deuses e o Homem: uma Nova Psicologia da Vida e dos
Amores Masculinos”, usa a imagem de deus e deusa para
compreender a natureza humana. Qualquer um desses
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livros pode ajudar a expandir algum personagem e entender


como construir as diferenças entre os personagens.

EXERCÍCIO: Escrever é um ato de explorar seu interior.


Muitos escritores entrevistados pra esse livro dizem que
cada personagem é, de algum modo, parte de quem são.
Pense em qual tipo de temperamento você se identifica:
pensador, intuitivo, sensorial, emocional. Imagine que você
responde isso para criar seu opositor. Se você é do tipo
sensorial, imagine ser intuitivo. Se você é do tipo pensador,
imagine-se do tipo emocional. Como que a ênfase nessas
características modificam seu personagem? Pense nos seus
conhecidos. Que tipo de temperamento eles têm? De que
forma são diferentes de você?

COMO COMPORTAMENTOS ANORMAIS DEFINEM UM


PERSONAGEM
Tenho certeza que você conhece o velho ditado “Todo
mundo é um pouco doido, mas você é mais que eu”. Muitos
psicólogos reconhecem que a linha entre o normal e o
anormal não é tão fácil de traçar.
Se você está escrevendo um roteiro sobre personalidades
anormais, seja sobre esquizofrenia, maníaco-depressivo,
um paranoico ou um psicótico, você precisará fazer uma
boa pesquisa específica sobre as complexidades desses
transtornos de personalidade.
Para criar o personagem Raymond Babbit, Barry
Morrow precisou conhecer as características de um autista
(o autista savant e o retardado mental). Barry relata como
ficou interessado pelo autista savant: “Me voluntariei
algumas vezes na Associação para Cidadãos com Retardo.
Numa manhã estávamos numa pausa e senti um toque no
ombro e ali estava o nariz do Rain Man. Kim era seu nome.
Ele inclinou a cabeça com um jeito questionador e me disse
‘Pense nisso, Barry Morrow’. Dei um bom passo pra trás,
inclinei minha cabeça e pensei no que ele tinha dito. Ele me
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olhou como um mestre Zen de um jeito peculiar e, ainda


bem, seu pai chegou pra explicar aquilo.
“Ele me apresentou pra Kim e disse que ele estava
empolgado pra me conhecer por isso tinha misturando as
palavras. O que Kim queria dizer era “Eu penso em você,
Barry Morrow”. Ele olhou pro outro lado e começou a
grunhir e mover as mãos muito rápido, e começou a dizer
alguns nomes.
“Não sabia o que estava acontecendo, mas reconheci um
nome que parecia familiar e então outro. Percebi que o que
ele estava fazendo era recitar os créditos dos meus filmes,
‘Bill’ e ‘Bill on his own’ na ordem certa. Então começou
de novo com números, mas iam tão longe que ficava sem
sentido. Seu pai pediu pra ele desacelerar pois eu não
entendia. Então eu percebi que ele estava falando meus
números de contato dos últimos oito ou dez anos. Seu pai
disse que ele decorava listas telefones como passatempo.
Ele normalmente decorava só as páginas amarelas, mas no
meu caso ele abriu uma exceção. Ele decorava tudo que
lia. Quanto mais perguntas eu fazia, mais admirado eu
ficava com as respostas. Parecia não haver limites de coisas
incríveis naquela pessoa. Voltei pra casa e minha cabeça
girava com tudo aquilo. Eu sabia que tinha conhecido uma
das criaturas mais incríveis e como eu tive sorte.”
de acordo com Ron Bass, Kim era o modelo original
para o Raymond, mas Dustin Hoffman escolheu alguém
diferente.
“Dustin fez uma pesquisa tremenda sobre a
personalidade clássica do autismo. Modelou seu
personagem de acordo com um cara bem peculiar. Essa
pessoa tinha um irmão que não era autista. Então fizemos
um acordo com o irmão não-autista. Ele imitaria seu irmão
autista para que eu pegasse o jeito do rapaz. Precisava ver
o jeito estranho que o rapaz fazia as coisas, mas transmitir
isso de alguma forma cativante. Por isso usamos o
conceito de “lista de agressões graves”. É universal, todos
nós fazemos isso de alguma maneira. É bem familiar. Nós
adicionamos uma forma de ritual (podem haver rituais
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desagradáveis, mas também rituais muito adoráveis).


Com apenas duas horas de filme, escolhemos o que seria
charmoso e interessante e o que seria desconfortável”.
Entender comportamentos anormais é essencial
quando escrevemos personagens como aqueles. Mas
esse conhecimento não serve só para personagens com
deficiências. Todos nós temos alguns desses elementos
conosco. Dar algumas dessas características a um
personagem normal pode adicionar conflito e interesse.
David Williamson, o escritor australiano de “Gallipoli”
e “Phar Lapp”, tem mestrado em psicologia. Ele acha útil
pensar nos personagens como modelos de personalidades
anormais. Apesar de não ser o jeito que ele os cria, ele
retorna a esse modelo frequentemente durante a fase de
reescrita, empurrando levemente seus personagens para
fora do limite da normalidade para criar mais drama e
interesse.
A psicologia clínica identifica alguns tipos de
temperamentos que dificultam o funcionamento
psicológico das pessoas. Williamson esquematiza esses
temperamentos da seguinte forma:

Um personagem com algum transtorno nem sempre vai


caber perfeitamente num tipo de categoria. Os maníacos
depressivos flutuam entre Extrovertidos e Introvertidos,
bem como os esquizofrênicos-paranóicos.
Você pode usar esse esquema na criação de personagens
comuns, para fazer um rascunho rápido e dar consistência
a eles. Também é possível usá-lo para criar uma dinâmica
mais forte entre os personagens.
Indivíduos maníacos acham que podem fazer qualquer
coisa. Parecem otimistas e demonstram uma certa
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euforia emocional (muito empolgados e frequentemente


sociáveis). Maníacos são facilmente suscetíveis a explosões
emocionais, podem ser fúteis e muito falantes. A atenção
deles é muito curta e não demoram a ficar entediados. Por
outro lado, quando perseguem o que desejam, não ligam de
pisar nos outros.
Personagens que são normais, possuem traços
maníacos, podem se transformar em pessoas viciadas no
trabalho, obcecadas em serem bem sucedidas. Podem ser
gananciosos, como é Gordon Gekko em “Wall Street”, ou
por uma crença de que tudo vai dar certo e que podem
construir um mundo novo, como é Allie em “A Costa do
Mosquito”, ou convictos de que podem fazer qualquer coisa,
como os vilões em “Super-homem”.
Charlie Babbitt é um pouco maníaco as vezes. Ron
Bass diz, “Charlie é muito frenético, muito defensivo,
autocontrolado demais pra ficar deprimido. Charlie não
faz o tipo de cara que se senta, cruza os braços e faz caras e
bocas.”
Depressivos são o outro lado da moeda. Tendem a
represar a energia emocional. Tem um clima pesado,
sentimento de inferioridade, pouco valor. Alguns tendem
a ser hipocondríacos, ou a culpar a si mesmos mesmo
quando não têm culpa. Personagens que são considerados
normais, mas que têm algum traço disso são: Hamlet,
Martin Riggs em “Máquina Mortífera”., e David da
peça “Strange Snow” (transformada mais tarde no filme
“Jacknife”).
Personagens esquizofrênicos aparecem em vários filmes
de sucesso: “Nunca te Prometi Um Jardim de Rosas”, “David
e Lisa”, e o filme para televisão “Promise”, entre outros.
Esquizofrênicos tendem a ser tímidos, constrangidos, muito
sensíveis, e se envergonham com facilidade. Protegem seus
egos evitando confrontos abertos. Eles se retraem, ficam de
mau humor e geralmente têm dificuldades de comunicação.
Arthur “boo” Radley em “O Sol é Para Todos” pode ser
considerado um esquizofrênico com boderline, e Macon “O
turista acidental” pode ser considerado uma personalidade
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normal com algum traço de esquizofrenia, gerada pela


tristeza da morte do filho.
Paranoicos acreditam que os outros estão perseguindo
eles. Por isso tendem a ser agressivos. Querem ser
líderes, ter poder e prestígio em cima dos outros. Eles são
decididos, insistentes, opinativos, defensivos, competitivos,
arrogantes, vaidosos e orgulhosos. Frequentemente
guardam rancor irracional, se ofendem com facilidade,
são muito sensíveis a qualquer crítica pessoal, o que
reforça a crença de que os outros não gostam deles. Muitos
personagens dos filmes de Charles Bronson e Sylverster
Stallone demonstram essas características.
Neuróticos ansiosos se preocupam e temem qualquer
coisa. Se preocupam com a segurança pessoal, ataques-
terroristas, efeito estufa, camada de ozônio, chuva ácida,
estupro, e outros aspectos da vida. Para eles, o desastre
está sempre à espreita. Passam a vida tentando evitar a
ansiedade. O neurótico ansioso favorito dos cinéfilos é
Woody Allen, nos filmes “Hannah e suas irmãs”, “Noivo
Neurótico, Noiva Nervosa” e Zelig.
O obsessivo compulsivo também é neurótico. A
obsessão de Alex pelo relutante Dan em “Atração Fatal” e
a compulsividade de Raymond Babbitt, que tinha que ver
o programa “People’s Court” todos os dias, são exemplos
de comportamento obsessivo que influenciam esses
personagens.
Vemos o sociopata (que é antissocial) ou psicopata (que
também é mentalmente desequilibrado) em muitos filmes
e também nos jornais. Normalmente são os vilões das
histórias, “criminosos endurecidos”, pessoas sem princípios
morais, destemidos, indignos de confiança, buscando
vantagens e autopreservação, sem nenhuma empatia pelos
outros. Como antagonistas, um sociopata ou psicopata fará
de tudo para impedir as boas intenções do protagonista.
Esses personagens não mudam. Se você decidir ter
personagens psicopatas ou sociopatas na sua trama, lembre-
se que eles não podem se tornar normais (mentalmente
sadias) ao final do filme.
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Quase todos os filmes famosos de Edward G. Robinson


e James Cagney focam no sociopata. O sociopata também
aparece no “O Poderoso Chefão”, “Helter Skelter” e “Bonnie
and Clyde”.
Drama e conflito podem surgir na relação entre
esses personagens. Paranoicos precisam de alguém para
prossegui-los e para eles a agressividade do maníaco é vista
como uma ameaça. Para o maníaco, a falta de vida e energia
do indivíduo depressivo é frustrante. E o psicopata não
entende os medos do neurótico ansioso.
Se você estiver criando um personagem anormal,
provavelmente terá de fazer uma pesquisa psicológica
mais exaustiva. Aqui vai alguns passos que você pode
seguir nessa pesquisa: Ler revistas especializadas em temas
médicos e livros de psicologia, entrevistar psicólogos, além
de conhecer e observar pessoas que tenham traços de
personalidade anormal.
Mesmo que toda essa análise técnica intimide,
escolher personagens anormais pode adicionar conflito e
complexidade ao seu roteiro. Alguns escritores tentam criar
personagens legais demais, muito amáveis, muito sóbrios,
destruindo possibilidades de torna-los interessantes. Olhar
pra essas categorias que foram citadas, pode ajudá-lo a
delinear seus personagens, mostrar que até personagens
bacanas podem ter um pouco de loucura.
Barry Morrow diz: “Seja fazendo um estudo
convencional de psicologia, ou observando o
comportamento humano, você precisa ter um
conhecimento sólido pra escrever sobre isso. Precisa ter
contato o suficiente com pessoas estranhas para entender o
comportamento humano.”
O romancista Dennis Lynds concorda: “Um escritor é
certamente alguém interessado no psicológico e no lado
sociológico do personagem. Assim como é melhor que um
pintor se interesse em teoria cromática ou ele não será um
bom pintor, nós escritores precisamos nos interessar por
psicologia.”
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James Dearden adiciona: “Nós não aprendemos


psicologia enquanto escrevemos um personagem. Você
espera ter uma noção de como as pessoas funcionam, mas
qualquer parte da psicologia que você aprenda, você tenta
aprender de maneira geral, não de uma forma específica.
Você não está ali pra aprender psicologia só porque está
criando um personagem específico. Com sorte você terá
uma ideia geral de psicologia, o que te permitirá criar
um personagem. Sempre temos alguma base elementar
de psicologia. Talvez não saibamos nomes sofisticados
pra comportamentos e motivações, mas sabemos que
se você maltratar uma criança, existem chances dela
maltratar pessoas quando crescer. Não precisa ser um
gênio pra entender isso. Esse conhecimento é parte da
nossa experiência. Creio que é por isso que sempre acabo
voltando ao autoconhecimento. Se você conhece bem a si
mesmo, poderá conhecer aos outros. Enquanto você não se
conhecer, não poderá conhecer aos outros”.

ESTUDO DE CASO: GENTE COMO A GENTE


Esse é um romance psicológico sobre um menino
atormentado pela culpa da morte do irmão. Um romance
sobre identidade, transformação e mudança. A versão
cinematográfica, escrita por Alvin Sargent, ganhou
alguns prêmios. Para o propósito desse livro, vamos tratar
do romance, mas talvez os leitores queiram ver o filme
para observar como as informações psicológicas foram
adaptadas para o cinema.
A romancista Judith Guest aborda a psicologia través da
sua própria experiência, mergulhando em si para entender
o cerne do personagem.
“Apesar de só ter tido uma aula de psicologia na
faculdade, eu coleciono artigos de jornais e leio vários livros
de psicologia. Não li muitos livros de Jung, mas decidi que a
teoria jungiana é a que mais me alinho.
“Faço uma pesquisa inconsciente para entender
psicologia. Sou uma esponja absorvendo todo tipo de
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informação de todos os lados, mas nem sempre tenho


consciência disso. Por ser um tema que me interessa, meus
ouvidos, olhos, e mãos estão sempre abertos pra isso o
tempo todo.”
Judith molda o psicológico de seus personagens, seus
comportamentos, suas relações mútuas e seus potenciais
para se transformarem. Muitos dos traços que dá aos
personagens vêm de um entendimento intuitivo do motivo
das pessoas agirem como agem.
Note que quando ela fala sobre seus personagens, ela fala
sobre seu universo interior. Seu interesse não é somente o
comportamento externo, mas como pensam, como veem
o mundo, como se relacionam com a realidade interior e
exterior.
“A maioria dos personagens foram desenvolvidos com
minha intuição de como deveriam ser. Quando desenvolvi
Burger, queria criar o melhor psiquiatra para Conrad (o
filho suicida). Pensei “Que tipo de cara ele seria?” Ele teria
de ser tão perspicaz quanto seu filho e ter um bom senso
de humor, pois essa era a forma que Conrad enfrentava o
mundo. Eu queria um cara que usasse esse mesmo método
para lidar com o mundo, mas usar o humor de forma mais
construtiva do que seu paciente. Queria um homem que
fosse capaz de olhar pra vida de um jeito esperançoso,
acolhedor. Não um sujeito que segregou parte da realidade
e ignora os próprios sentimentos a respeito do que acontece
com o mundo.
“Beth (a mãe) é muito parecida com várias pessoas
que conheço. Queria criar uma personagem que estivesse
muito ferida e o único modo de lidar com isso fosse negar
e se afastar cada vez mais da realidade. Ela tinha medo das
próprias emoções, de lidar com elas. Acho que ela tinha
medo de não suportar, caso tentasse lidar com a situação.
Esse era seu modo de se manter firme, o que não a faz
muito diferente de tanta gente por aí.”
Judith Guest foi aprendendo uma parte do interior
dos personagens à medida que escrevia sobre eles. Por
exemplo, sua postura em relação a Beth mudou à medida
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que a observava. “Acho que quando comecei a escrever


a Beth, eu a odiei. Culpava ela pelo que aconteceu com
Conrad. Quanto mais escrevia, mais complexa a situação
ficava e cada vez menos eu a culpava. Ela era do jeito que
era. Ele também era do jeito que era, mas ele aprendeu a
ser diferente, já ela não. Ela não era capaz de superar aquela
situação.”
Para um romancista, comunicar a psicológico do
personagem deixa aberta a possibilidade de entrar em sua
mente; deixar o leitor ciente de como o personagem sente
e pensa. Com os personagens Calvin (o pai) e Conrad,
Judith escolhe fazer isso. Mas escolheu propositalmente não
mostrar a mente de Judith para o leitor.
“Não acho que seria difícil entender a mentalidade de
Conrad ou Calvin. Por isso explorei a mente dos dois e
escolhi não entrar na mente de Beth pois senti que seria
difícil demais. A verdade é que eu não entendia aquela
personagem. Sei que existem pessoas assim e que existem
razões de serem como são, mas entrar na mente dela e
tentar retratá-la, parecia muito difícil pra mim”.
Judith precisava entender a relação e uma potencial
transformação de uma pessoa em outra (e como isso
alteraria o que se passava em suas mentes). Perguntei se ela
achava que Beth era transformável. “Com certeza. Apesar
de precisar de tempo. O que aconteceu naquela família foi
que dois de seus membros estavam preparados e o outro
não estava. Quando isso acontece, você tem que escolher
entre ficar e se modificar ou ir embora. Ela escolheu ir
embora.
“Calvin era capaz de se modificar pois era menos
defensivo. Suas defesas foram superadas quando Conrado
tentou suicídio. Sua determinação principal era de que
aquilo não aconteceria de novo e ele faria de tudo para se
assegurar disso. Calvin percebeu que a tentativa de suicídio
de Conrad foi por causa da incapacidade de conversar sobre
seus sentimentos. Ele não deixaria aquilo acontecer de
novo, nem que ele precisasse sentar na soleira da porta todo
santo dia para importunar o menino.
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“Na minha opinião, Conrado se parecia muito mais


com sua mãe do que com o pai. Creio que isso era o que
os mantinha distantes: os dois tinham medo da vida.
Ambos eram típicos perfeccionistas e o fracasso em suas
vidas (o irmão de Conrad ter se afogado) era demais para
eles. Além disso, perfeccionistas são invadidos por um
forte sentimento de culpa. Conrado, apesar de não ter sido
sua culpa, sentia-se culpado e via a própria incapacidade
de enfrentar as coisas como prova de sua culpa. Não acho
que Beth o odiava ou o culpava pelo acidente. Mas acho
que nenhum deles foi capaz de lidar com o luto, tentaram
enterrar esse luto, mas ele reaparecia de outras formas.
Quando Conrado tentou deixar esses comportamentos
destrutivos, ele não conseguia mais suportar os que sua mãe
ainda tinha.
“Acho que a maneira de Conrado lidar com os problemas
era brincando e tirando a importância deles. Ao invés de
enfrentar a hostilidade de Stillman (o atleta), ele reage com
algumas piadas, mas não soluciona nada com isso. Para
mim, ao se meter numa briga com Stillman, ele demonstra
estar melhorando sua saúde mental. Ele já estava cansado
de Stillman. Foi uma reação bem direta.”
O movimento no romance “Gente como a Gente”
é um movimento em direção tanto a saúde mental e
transformação de Conrad e Calvin, quanto de encontrar
um sentido pra vida. “Existem coisas na vida que não tem
sentido” Diz Judith “Você pode enlouquecer tentando
entender o motivo de alguma coisa. Quando Conrado diz
para Burger na cena final deles “Não vê? Tem que haver
um culpado, ou qual seria o sentido pra tudo isso?’ Burger
diz: ‘Não existe sentido, só acontece. É verdade que as
pessoas buscam por explicações, mas quando acontece uma
tragédia, essa busca pode ser fatal”.
“Tanto Calvin quanto Conrado reforçam suas
identidades. Ao final do livro, se tornam pessoas com mais
desenvoltura, mais profundas, mais sociáveis e sensíveis.
Tornaram-se mais atentos e acredito que também mais
honestos.
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Eles se conectaram com suas essências, com o tipo de


pessoa que realmente eram e deixaram de ser críticos. “No
final, algo de bom veio disso tudo”.

APLICAÇÃO
Conhecer o universo interno do seu personagem pode te
ajudar a criar um personagem mais forte e compreensível.
Pra começar, pergunte a si mesmo
■■ Quais acontecimentos traumáticos do passado do
meu personagem podem afetar seu comportamento
presente? Existem boas influências no passado que
podem influenciar uma transformação no presente?
■■ Quais forças inconscientes influenciam meu
personagem? Como elas afetam as motivações, ações
e objetivos dele?
■■ Quais tipos de temperamentos usei de modelo para
o meu protagonista e coadjuvante? Criei contraste e
conflito no relacionamento deles?
■■ Será que criei personagens muito bonzinhos, muito
superficiais, muito normais? Existe algo anormal
neles? Como as anormalidades deles poderiam causar
conflitos com outros personagens?

RESUMO
As pessoas são mais que sistemas. Mas existem certos
padrões de comportamento e posturas que são governadas
pelo psicológico delas. Entender que as pessoas se parecem
em certos desejos básicos, mas são diferentes na maneira
de reagir à vida, pode ser a chave para criar personagens
dimensionais com riquezas de detalhes da vida externa e
interna.
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5
Criando
Relacionamentos entre Personagens
Raramente um personagem existe isoladamente, mas em
relacionamentos. Com exceção de uma história de apenas
um personagem (por exemplo, “A Última Gravação de
Krapp”, escrito por Samuel Beckett, ou “Encurralado” de
Steven Spielberg), muitas histórias são sobre a interação
entre pessoas. Em muitas obras, a dinâmica entre os
personagens pode ser tão importante quanto qualquer
qualidade individual de um personagem.
O romancista Leonard Tourney enfatiza que a mudança
é o foco do século XX. “Os casais têm se tornado cada vez
mais importantes na ficção. Existem inúmeras histórias
com parceiros (equipe policial ou de marido e mulher).
Isso introduz um tipo de química na história, cria uma
nova pessoa, uma nova identidade, algo novo. Quando
colocamos duas coisas ou pessoas juntas, você gera algo
novo. Casais acabam gerando algo diferente do que se
fossem duas pessoas separadas. Não é algo consciente, mas
casais tendem a se comportar de maneira diferente.”
Alguns dos filmes e séries de maior sucesso são
estrelados por duas pessoas, não uma.
Uma lista parcial incluiria: “Cheers”, “Kate and Allie”, “
A Gata e o Rato”, “Mork and Mindy”, “Starsky and Hutch”,
“Cagney and Lacey”, “Jogo Duplo”. Muitos filmes de sucesso
também enfatizam relacionamentos de personagens: “Uma
Aventura na Africa”, “Butch Cassidy”, “A Costela de Adão”,
“48 HRS.”, “Máquina Mortífera”, e Rain Man.
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As histórias de relações focam na química entre


personagens. Cada indivíduo ganha elementos na
personalidade que gerem as maiores “faíscas” no
relacionamento. Essas são as combinações que geram as
maiores faíscas:
1. Personagens que tenham coisas em comum que os
façam ficar sempre unidos. Isso gera atração entre
personagens.
2. Criar conflito persistente que tenda a afastar os
personagens. Isso gera muito drama (as vezes
comédia) no roteiro.
3. Personagens com qualidades contrastantes (são
opostos). Esse contraste cria novos conflitos e
fortalece os personagens através da oposição.
4. Personagens que tenham o potencial de transformar
um ao outro: para o melhor ou para o pior.

COMO BALANCEAR ATRAÇÃO E CONFLITO?


Conflito é um elemento essencial em quase toda escrita
de ficção. Muitas histórias dependem do conflito para que
as cenas nos deixem positivamente tensos, cause interesse e
drama à história. Mas muitas histórias são também histórias
de amor, retratando a atração entre pessoas. Nos filmes e
romances é relativamente fácil encontrar o equilíbrio entre
conflito e atração. Conflito inicia a história mas é resolvido
ao final, normalmente levando a finais felizes.
Mas em séries de televisão existe um problema especial.
Uma serie pode rodar por cinco ou dez anos, atrasando a
resolução de um relacionamento. Se a atração se sobrepõe
ao conflito, e os personagens ficam juntos cedo demais,
a faísca pode se apagar do programa. Se houver muito
conflito, mas pouca atração; os personagens podem se
tornar desagradáveis e o público irá se desconectar deles. É
mais complicado do que parece pois não é natural manter
personagens separados, particularmente quando a força
da série depende do interesse mútuo dos personagens.
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Encontrar esse equilíbrio é um desafio para produtores e


escritores.
James Burrows (criador de “Cheers”) explica como a
equipe lidou com esse dilema no começo da série: “Nosso
programa está em evolução. A crítica não estava apaixonada
pelo desenvolvimento de Diane e Sam. Sentimos que se
Sam e Diana ficassem sempre se alfinetando isso invalidaria
Sam. Você só pode mantê-los afastados por algum tempo.
Claro que se ele é um mulherengo, ele teria que acertar
com Diane em algum momento, ou ele não seria um
mulherengo. No fim das contas, gostamos do resultado da
união desses personagens e a nova configuração que essa
união proporcionou. Depois, pareceu interessante separá-
los de novo.”
Em programas como “Quem é o Chefe?”, “A Gata e o
Rato”, e “Cheers”, a atração e até mesmo a amizade entre
esses personagens é real. É evidente que eles gostam de
verdade uns dos outros em diferentes níveis. Os criadores
Marty Cohan e Blake Hunter de “Quem é o Chefe”
descrevem as semelhanças entre Ângela e Tony:
“Tanto Tony quanto Ângela são conservadores na
maneira de ver a vida. São pessoas bem simples, ligadas
a família e ao lar. Eles prefeririam ver televisão e comer
pipoca em casa do que sair pra passear. Eles apoiam muito
um ao outro”.
O diálogo entre Maddie e David em “A Gata e o Rato”
e suas fantasias um com o outro, revelam sentimentos que
eles seriam incapazes de expressar diretamente. No episódio
chamado “Um Serviço Maravilhoso”, escrito por Carl
Sautter e Debra Frank; Maddie é um fantasma vendo como
sua vida teria sido se ela tivesse fechado a agência há dois
anos. Albert é seu anjo guardião vai acompanhando Maddie
pela experiência. David está pronto pra casar com Cheryl
Tiegs, mas não consegue esquecer Maddie (mesmo sem
poder vê-la ou ouvi-la, ela responde às reflexões de David.
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DAVID
Eu estava pensando... Maddie Hayes... É um
nome que não ouço há algum tempo. Ela me
esbofeteou uma vez. Ela sabia dar um tapa...
Tinha algo, ela tinha classe, força. Eu a admirava,
de verdade.
FANTASMA MADDIE
Você admirava?
DAVID
Talvez tivesse sido ótimo nós dois.
FANTASMA MADDIE
Mas nós éramos ótimos juntos... não se lembra
daqueles casos? O disco jockey, o tocador de
piano, meu retrato idiota. Você me seguiu até
Buenos Aires... Te segui até Nova Iorque. Como
você se esqueceu disso? Você até me beijou uma
vez na garagem.
ALBERT
Não, ele não beijou, Maddie.
FANTASMA MADDIE
O quê?
ALBERT
Nada disso aconteceu
FANTASMA MADDIE
Hum?
ALBERT
Tudo que aconteceu depois que você fechou a
agência, esses dois anos, tudo se foi

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DAVID
Ah, que doideira. Olha eu aqui comparando a
Cheryl com uma mulher que eu nem conheço.

Em outra situação, essa atração seria o foco do programa,


você veria uma história de amor digna de 1950 com
personagens se apaixonando, casando e tendo filhos.
Mas foram criadas barreiras para manter os personagens
afastados de um jeito convincente. Normalmente a
barreira vem de alguma situação (tipo um relacionamento
trabalhista, onde o relacionamento se dá num coleguismo
de trabalho (como em “A Gata e o Rato”), ou numa relação
patrão-empregado (como em “Cheers” ou em “Quem é
o Chefe?”), a barreira funciona já que pelo menos um dos
personagens reconhece que pode haver problemas ao
misturar amor e trabalho.
Construir a barreira pode ser difícil. Precisa ser fraca
o suficiente pra que o amor possa ir e vir, mas forte o
suficiente pra que pelo menos um dos personagens entenda
a importância de não ceder. Em “Quem é o Chefe?” os
dois personagens têm o mesmo pensamento. Eles têm uma
atração recíproca, mas enquanto vivem com as crianças
na mesma casa, não dormem juntos. Em “Cheers”, Diane
(e depois Rebecca) estão duplamente determinadas a não
ceder às investidas amorosas de Sam.
Nesse tipo de série o roteirista sempre joga com essas
barreiras. Normalmente as variações nesses limites são
consequência desse jogo. Se isso mexer demais com as
paixões dos personagens, o público pode não gostar da
indecisão deles. Por outro lado, se não surgir nenhuma
atração entre os personagens, a audiência pode não gostar;
pois não verá sentido em duas pessoas tão atraentes que, de
alguma forma, não provocam nada uma na outra.
Tanto em “A Gata e o Rato” quanto em “Cheers” essa
linha é eventualmente cruzada. David e Maddie, e Diane
com Sam, de vez em quando dormem juntos.
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Em 1985, na terceira temporada de “Quem é o Chefe?”


houve uma oscilação de limites e retorno ao equilíbrio:
ÂNGELA
Não vai acontecer nada porque somos pessoas
adultas e porque...
TONY
E porque as coisas estão bem como estão
ÂNGELA
Isso. Mas poderia ficar bem do outro jeito
também, né.
TONY
Seria incrível, Ângela.
ÂNGELA
É, seria.
TONY
Mas não seria a mesma coisa, e eu não quero
arriscar perder o que temos.
ÂNGELA
Nem eu.

Apesar da situação servir para mantê-los distantes,


as características individuais dos personagens também
contribuem. O decoro de Ângela, por exemplo, a obriga a
questionar até onde deveria ir com Tony. O intelectualismo
esnobe de Diane a faz pensar que não cairia no papo de
Sam. E o medo de compromisso de Maddie a impede de se
entregar a David.

CONTRASTE DE RELAÇÕES ENTRE PERSONAGENS


O contraste, mais que qualquer outra qualidade, define
os casais de personagens. Os opostos de fato se atraem e,
através do contraste entre dois personagens, dinâmicas
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muito fortes são alcançadas. “Máquina Mortífera”, “48


hrs.”, “The Odd Couple”, “Atirando para Matar”, “Perigo na
Noite”, quase toda história que envolve um relacionamento
(seja romance, parceria ou amizade) provavelmente terá
personagens contrastantes.
Através do contraste é possível refletir comportamento
e posturas. No filme “Fuga à Meia-Noite” escrito por
George Gallo, o comportamento e modo de viver de Jack
(o caçador de recompensas) e Jonathan (o Contador) são
diametralmente opostos. Suas qualidades contrastantes
incluem o tipo de trabalho, relacionamento com as esposas,
escolhas morais e até mesmo a alimentação.
JONATHAN
Você conhece o termo “Arteriosclerose”? Se
quiser posso te passar umas dietas balanceadas.
Por que você come essas coisas?
JACK
Por que? Porque é gostoso!
JONATHAN
Mas não é saudável.
JACK
Eu sei.
JONATHAN
Por que faz o que não te faz bem?
JACK
Porque não fico pensando nisso.
JONATHAN
Mas isso é viver em negação.
JACK
Eu sei.
JONATHAN
Então mesmo sabendo, você continua fazendo...
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Isso parece meio idiota, não acha não Jack?


JACK
Roubar 15 milhões de dólares do Jimmy Serrano
parece idiota...
JONATHAN
Pensei que não me pegariam.
JACK
Isso sim é viver em negação.
JONATHAN
Eu sei.

Algumas vezes o contraste é estabelecido através


da origem étnica, da classe social e da forma que os
personagens escolhem pra resolver problemas. Marty
Cohan e Blake Hunter descrevem esse tipo de dinâmica:
“Na série ‘Quem é o Chefe?’ existem muitas inversões
de papéis: entre o operário e o executivo; a mulher
independente e o homem dono de casa, toda uma série de
contrastes entre Nova Iorque e Connecticut; a branquitude
protestante e os italianos, etc. Tony é muito honesto,
sincero, meio rude às vezes. Pode ser temperamental,
propenso a excessos de raiva. Tony pode sair do prumo
mais rápido que Ângela, que tenta dizer ‘Vamos ficar em
paz’.
Ângela tenta amenizar as coisas, reprimir, ficar meio
tensa as vezes; enquanto Tony é direto e vai no coração
do problema. Ângela, como a típica executiva controlada,
tenta manter a calma, sem explodir em frente ao cliente ou
chefe. Já o Tony é bem diferente. Ele não fica tomando esse
cuidado.
Ambos são muito ligados à família, mas Ângela é meio
estabanada na cozinha, provavelmente tem dificuldade de
manter o jogo de cintura que a maternidade exige. Tony é
direto, sem noção, é duro com as crianças. Ângela é mais
conservadora, mais tensa, permissiva com as crianças. Ela
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tem mais condições de escalar posições sociais e possui


mais ambições pessoais; enquanto Tony só tem ambições
para a filha. Podemos dizer que existe um contraste de
ambições, objetivos e atitudes em direção aos filhos.”
Às vezes o contraste é psicológico. Em “A Gata e o Rato”,
o contraste entre Maddie e David pode ser descrito como
medos e características externas. Olhando superficialmente
eles são bem diferentes.
Carl Sautter explica: “Ela é fria, ele é quente. Maddie
fica numa bolha longe das próprias emoções, enquanto
David vive a flor da pele. Ele é um homem impulsivo. O
maior medo deles é se apaixonar, serem expostos. Mas eles
lidam com isso de formas diferentes. Maddie se protege
com sua beleza estonteante e sua frieza exterior. David se
protege falando muito rápido. À primeira vista temos dois
personagens com muita coisa em comum e fica aquele
empurra-empurra no relacionamento dos dois.
“Muito dos contrates que eles têm são inesperados.
Fizemos um episódio que eles discutem sobre Deus. A
escolha mais óbvia, olhando pros personagens, seria
Maddie tendo uma visão bem formal e apropriada de Deus
enquanto David teria uma visão mais irreverente. Glenn
Caron (o criador da série) disse ‘Vamos dimensiona-los
dando o exato oposto a suas posturas’. Então ele inverteu
as posturas e fez de David o detentor de crenças bem
religiosas em Deus, e Maddie aquela que é muito cética.
Isso funcionou bem melhor que a outra opção, pois era algo
inesperado.
“Você vê a as diferenças de como reagem na frente
do cliente. Num episódio que eu e Debra Frank
escrevemos, uma mulher fala que é um leprechaun. David
imediatamente quer acreditar nela, enquanto Maddie acha
que ela é maluca. Eles têm atitudes diferentes na vida. Nesse
episódio, Maddie diz pra David, ‘Você não tem poesia na
alma. Você é estúpido e analfabeto’. E a resposta de David
foi basicamente ‘O que você tem é uma noção artificial de
poesia, exposição artística, e o lado formal disso. Sua noção
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de romance e poesia é artificial. Você é o tipo de pessoa que


não aplaudiria Tinker Bell.’ “
Aqui o contraste se estende até chegar no lado
psicológico que os direciona. Para revelar um personagem
para o público é preciso mostrar sua vida emocional, seus
medos e vulnerabilidades. Ajudar o público a ver para por
detrás da máscara/persona. Talvez mostrar alguma dor,
alguma ternura te faça chegar em camadas mais profundas
do personagem.
Mesmo num comercial curto, os personagens
normalmente são criados pelo contraste. Às vezes esses
contrastes são relacionados a aparência física e a função.
Nos comerciais da bartles & Jaymes para colecionadores
de vinhos, escrito por Hal Rainey, vemos dois agricultores,
Ed e Frank. São descritos através de seus contrastes. Frank
fala pelos cotovelos, Ed é um ajudante silencioso. Ed é
conhecido como o cérebro da equipe. Ele é mais inteligente
que Frank (Ed usa a palavra “insípido”, e Frank admite não
entender). Ele também é o cara dos experimentos. Num
dos comerciais, “Ele se engaja numa empreitada científica
para descobrir que tipo de comida poderia ser cultivada em
climatizadores de vinhos. Até o momento, Ed tinha achado
só duas comidas que não funcionavam: o nabo alemão e o
milho doce. Até fisicamente eles são diferentes. Ed é alto e
magro, enquanto Frank é um fortão de suspensórios.
Esses comerciais, que ganharam o prêmio Clio (o
óscar dos comerciais), fizeram de Bartles & Jaymes os
climatizadores de vinhos mais vendidos; e Frank e Ed os
garotos propaganda mais conhecidos do país.

ONDE ACHAR CONFLITO?


Conflito vem do contraste entre personagens. Pode vir
de diferentes ambições, diferentes motivações, histórias
de vida, diferentes objetivos e desejos, posturas, de valores
totalmente opostos entre si.
Às vezes esses conflitos são psicológicos. As qualidades
mais irritantes que um personagem encontra, são aquelas
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que ele reprime dentro de si, mas que estão expostas no


outro personagem. Qualidades opostas ora atraem, ora
repelem esses personagens.
Às vezes o conflito ocorre por falta de franqueza.
Desentendimentos levam a conflitos. Na série “Cheers”, até
o primeiro beijo entre Sam e Diane é cheio de conflito:

SAM
O que você quer Diane?
DIANE
Quero que você me diga o que você quer
SAM
Vou te falar o que quero. Quero saber o que você
quer
DIANE
Não vê? Esse é o nosso problema o tempo todo.
Nenhum de nós dois é capaz de se abrir e falar o
óbvio
SAM
Tá certo. Vamos falar o óbvio.
DIANE
Ok. Você primeiro.
SAM
Por que eu primeiro?
DIANE
Estamos fazendo de novo
SAM
Diane, só me fala uma coisa: por que você não
está com o Derek?
DIANE
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Porque gosto mais de você.


SAM
Sério? Bom, eu gosto de você mais do que o
Derek também.
DIANE
Sam...
SAM
Todo ciúme que já senti do meu irmão não foi
nada comparado ao que senti nos últimos cinco
minutos.
DIANE
Ai, Sam. Acho que estamos prestes a começar
algo que pode ser incrível, né?
SAM
É, é. Você tem razão. Acho que a gente devia
tipo, se beijar, né?

E porque nada é direto com Sam e Diane, o beijo ainda


demora mais sete páginas de diálogo e discussão antes de
finalmente acontecer.

COMO OS PERSONAGENS MUDAM UM AO OUTRO?


Não é difícil ouvir um executivo ou produtor perguntar:
O personagem se modifica e cresce ao longo da história?
Algumas das histórias mais fortes mostram o impacto
que um personagem pode ter sobre o outro.
Carl Sautter explica, “A Maddie (que é fria) se permite
ser espontânea por causa da influência de David. Ele a
ensina algo sobre calor humano, e ela o ensina algo sobre
disciplina. Maddie faz David ser menos superficial, mais
maduro. David dá senso de humor pra Maddie”.
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Em “Quem é o Chefe?” Ângela deixa de ser tão arrogante


por causa da influência do Tony, e Tony ganha mais
segurança por causa do apoio de Ângela. De acordo com o
criador da série, “Tony foi pra faculdade no começo do ano.
Isso nunca teria acontecido se ele não tivesse conhecido
Ângela. Acho que lá se soltou um pouco. Aprendeu a
relaxar um pouco, se tornar uma pessoa mais calorosa”.
Nas séries, se os personagens passassem por uma
grande mudança, a dinâmica da série seria destruída. Por
isso mudam o mínimo possível. Em filmes ou romances,
conflitos podem ser resolvidos e transformações podem ser
completas ao final da história.
Rain Man é uma história sobre dois personagens que
transformam um ao outro. Raymond era muito limitado
emocionalmente. O desafio na criação desses personagens
era descobrir quão radicais seriam as mudanças num
filme como esse. O filme usa todos os elementos que
mencionamos nesse capítulo: atração, conflito, contraste
e transformação. Barry Marrow revela: “Uma das escolhas
foi fazê-los irmãos. Isso os manteria juntos. A relação
que ambos têm com a herança os une. Qualquer outra
característica deles os afastaria: Idade, altura, inteligência, a
maneira que andam e falam. Qualquer parte deles desejaria
ir em direções opostas. Acho que atração e repulsa é uma
dinâmica em constante movimento e o contraste é o
resultado dessa dinâmica. A transformação acontece porque
Charlie fica desgastado... São seis dias num carro, quase
dois dias a mais do que ele aguentaria, e esses dois dias
tornam ele humano.
“Uma coisa curiosa acontece durante o arco do filme.
Raymond, daquele jeito único, começa a vencer o lado
desagradável de Charlie através de algo simples como a
linguagem. No começo do filme, Charlie xinga muito mas,
ao ver-se forçado a se importar com alguém e, graças às
surpresas que cruzam seu caminho, se torna uma pessoa
civilizada. Grande parte de sua aspereza de desfaz e ele se
torna uma pessoa sensível.”
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EXERCÍCIO: Pense nos relacionamentos com seus


amigos, namorados, cônjuges e familiares. De que
forma seus relacionamentos preenchem os critérios de
atração, conflito, contraste e transformação? Você tem um
relacionamento com alguém onde a dinâmica dos dois é tão
forte que poderia ser a base pra criação de uma história?

CRIANDO PERSONAGENS USANDO ATRAÇÃO,


CONFLITO, CONTRASTE E TRANSFORMAÇÃO
Podemos aplicar esses elementos a qualquer tipo de
relação que exista entre personagens.
Em “Cagney e Lacey”, os vários contrastes entre os
personagens davam vida à série. Alguns desses contrastes
nascem das linhas gerais das personagens:

Chris Cogney Mary Beth Lacey


• Ela é solteira e sem filhos • Ela é casada com filhos
• Sua vida gira entorno dos amigos • Sua vida gira em torno da família
• Ela foca na carreira • Ela foca na família e vida pessoal

Alguns desses contrastes surgem das posturas diferentes em


certos assuntos:
• Ela é mais do tipo “lei e ordem” • Ela é mais humana, direitos
individuais
• Ela acredita no direito da • Ela acredita no direito da escolha
escolha, porém não abortaria e fez um aborto, por isso defende
fortemente o direito da escolha
• Ela é contra a censura e nunca • Ela é contra o que a pornografia
censuraria a pornografia propaga, não gosta de ser
bombardeada por imagens que
difamam as mulheres.
• Ela é contra greves. • Ela nunca participaria de uma
greve.

E alguns dos contrastes vem da diferença de seus


temperamentos e emoções:
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• Ela acha a convivência difícil e • Ela vive uma relação acolhedora


por isso prefere morar sozinha. e íntima com seu marido
• Ela tem pavio curto • Ela é paciente.
• Ela é viciada em trabalho e bebe • Ela é equilibrada em sua vida
demais

Note nesses exemplos de conflitos e contrastes, que


muitas possibilidades de história surgem quando a
dinâmica dos personagens é clara e forte. Só de olhar pra
essa lista é possível ver o potencial de interrelações entre
as personagens quando, por exemplo, encaram a notícia
de um atentado contra clínicas de aborto, ou da indústria
pornográfica, ou sobre abuso infantil e por aí vai.
Ao começar a criação de um personagem que irá
interagir dinamicamente com outro, é possível fazer um
brainstorm baseado nos quatro princípios do início desse
capítulo. Isso funciona com qualquer tipo de história
(num romance, numa peça, num filme, em programas de
televisão), mas pode ser particularmente importante nas
séries já que elas dependem do máximo de material possível
pra seguir contando histórias (semana após semana). Esse
brainstorm também pode ser útil na criação de personagens
de apoio (coadjuvantes), já que eles normalmente interagem
com os personagens principais.
Usei essa técnica quando me pediram pra dar uma aula
para a equipe de produção e roteiro da série “MacGyver”.
Parte do nosso objetivo foi desenvolver um personagem
que já havia passado pela série, mas parecia ter potencial
para expandir seu papel. Os produtores sentiram que
esse personagem ajudaria a dar mais profundidade ao
protagonista (MacGyver), até porque tinha o risco de
MacGyver acabar se tornando um personagem solitário
demais.
O personagem analisado foi Colton, o caçador generoso.
Queríamos gerar contraste entre Colton e MacGyver, além
de estabelecer uma amizade que se consolidasse depois de
um certo número de episódios. O ator que fazia Colton
(Richard Lawson) se juntou a nós.
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Usando os conceitos desse capítulo, decidimos jogar


ideias dos possíveis contrastes e conflitos entre os dois
personagens. Nossa lista ficou assim:
MacGyver Colton
• Gosta do campo • Prefere a cidade
• É responsável • Despreocupado e independente
• Vive num barco • Vive num furgão
• Solitário • Solitário por ser inseguro
• Pondera e age • Age primeiro, pondera depois
• Estratégico, não-violento • Acredita na abordagem direta e
armada
• Introspectivo • Falante, extrovertido
• Se preocupa com os meios • Se preocupa com os fins
• Vegetariano • Come bobagem
• Preocupado com o ambiente • Joga lixo na rua
• Diplomático • Rude

Quanto mais discutíamos os personagens, ia ficando


mais importante entender o passado de Colton. Parte
disso foi modelado usando Richard de modelo, já que ele
se sentia à vontade com todos do grupo. Colton foi um
médico no Vietnam, como Richard. Richard descreve como
os soldados se sentem muito próximos do médico que cuida
das suas feridas. Pedem conselhos, compartilham medos
ou simplesmente batem um papo. Quando Colton deixou
o Vietnam, decidiu nunca mais depender de ninguém e se
tornou um cara solitário.
Expandimos algumas das ideias de nossa lista. Colton
não iria gostar do barco de MacGyver. Ele não se sentia
seguro numa casa fora da terra firme. Teria problema com
o senso de responsabilidade de MacGyver, e questionaria o
motivo de MacGyver assumir os problemas dos outros. Ele
é hostil com um cachorro feio que MacGyver herdou depois
da morte de um amigo.
Apesar de Mac particularmente não gostar do cachorro,
ele se solidariza com o animal. A discussão sobre o
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cachorro nos leva a tratar sobre o arco de transformação


dos dois. À medida que analisamos o efeito que um
personagem tem sobre o outro, nossa nova lista ganha
características de peso:
1. MacGyver aprende que, às vezes, é melhor seguir o
coração e instintos do que a razão.
2. Colton aprende a ser paciente, a esperar antes de
atirar e, em alguns casos, a ponderar antes de agir.
3. MacGyver ganha conselhos amorosos de Colton.
Alguns são bons.
4. Colton aprende a confiar de novo. Aprende a
trabalhar em equipe e que, às vezes, existem coisas
que não podem ser feitas sem ajuda.
Quanto mais trabalhávamos com aquele personagem,
mais nosso entendimento sobre Macgyver se aprofundava.
Sua postura, vulnerabilidades e história de vida, tudo ficava
mais claro quando contrastávamos com o Colton.
As ideias que colocamos na mesa, certamente foram
apenas os primeiros passos para um desenvolvimento
profundo que os escritores fariam; mas descobrimos que
dar ênfase ao personagem secundário estimulou novas
ideias sobre o protagonista e a relação entre eles. Isso
poderia expandir a série como um todo.
Quanto mais forte a dinâmica entre os personagens,
mais sucesso a série pode ter (e mais possibilidades de
permanecer no ar por muitos anos).

COMO CRIAR UM TRIÂNGULO


Normalmente dois personagens formam um
relacionamento. Ocasionalmente um trio (o triângulo)
é o foco. Tais relacionamentos são dinâmicos, às vezes
assustadores, e normalmente muito difíceis de se trabalhar.
Eles seguem muitos dos conceitos já discutidos, mas com
alguns outros elementos.
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“Atração Fatal” e “Nos Bastidores da Notícia” giram


em torno de um trio. Analisando esses filmes, é possível
conseguir uma visão geral de como trabalhar com esse tipo
de relacionamento.
Em ambos os filmes os relacionamentos são construídos
em cima de contrastes. Em “Atração Fatal”, Beth e Alex são
personagens contrastantes: Uma é leve a outra é depressiva;
uma é a esposa carinhosa, a outra é a amante manipuladora;
uma é engajada na família, a outra é solteira; uma é otimista
sobre a própria vida, a outra é pessimista e desesperada
sobre a direção que a vida está tomando.
Em “Nos bastidores da Notícia”, Tom, o garoto bonito
que não é lá muito esperto, contrasta com Aaron, o cara
esperto que não é muito atraente para Jane. Tom é mais
seguro, Aaron mais inseguro. Tom é bem sucedido e
consegue o que quer, enquanto Aaron falha miseravelmente
quando alcança seus planos de curto prazo de ser um
âncora.

No triângulo, o homem ou a mulher solitária é


confrontada por uma escolha.

O drama de um triângulo pode vir tanto da dificuldade


da decisão quanto das consequências da decisão.
Em “Atração Fatal”, o Ato Um foca na escolha de Dan.
Ele começa escolhendo se deitar por uma noite com Alex.
No final do Ato Um ele decide não vê-la de novo. As
consequências de sua escolha são a base do Ato Dois e Três.
Em “Nos bastidores da Notícia”, Jane tenta escolher
entre Tom e Aaron durante o filme. A história é sobre a
dificuldade dessa decisão. James Brooks explica: “Queria
escrever um verdadeiro triângulo, e pra mim isso significa
não dar todas as cartas. Geralmente, num triângulo, há pelo
menos um cara mau ou imperfeito ou não-atraente (uma
escolha fácil). Eu decidi que não determinaria no começo
do filme com quem ela ficaria no final (a obra por si não
determinaria a decisão). Quando ela se aproximava de um,
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eu a jogava em direção ao outro. Nunca imaginei que, no


final das contas, ela não conseguisse decidir com quem
ficar. Mas foi assim que aconteceu”.
O principal desafio do escritor é explorar a dificuldade
da escolha e os possíveis atrativos das opções amorosas
disponíveis. Apesar de Dan ter elegido muito rapidamente
a Alex em “Atração Fatal”, desde o Primeiro Ato ficou
evidente que era uma mulher atraente e inteligente, tinha
energia e parecia mais divertida que Beth, era obviamente
mais acessível sexualmente que sua esposa. No Ato 1 existia
a possibilidade de Dan iniciar uma relação duradoura com
Alex. Porém, ele não escolheu isso e Alex decidiu lutar pelo
homem que era obcecada.
As escolhas não devem ser óbvias nem pender
exageradamente para um dos vértices do triângulo, caso
isso aconteça o triângulo será prejudicado. Se a escolha
também for uma escolha moral, a dinâmica ganha força.
Em “Nos bastidores da Notícia”, Jane sente sua
integridade seria posta em jogo caso escolhesse Tom,
especialmente depois que ela descobriu que ele manipulou
uma matéria jornalística. Em “Atração Fatal”, Dan encara o
dilema moral: quando contar para a esposa? Como ser justo
com Alex? Quais são suas responsabilidades com ambas as
mulheres?

Os triângulos mais efetivos são aqueles onde cada


personagem exercita sua vontade e intenção.

Se um dos personagens fica estagnado e se nega a agir ou


reagir, o triângulo é prejudicado. Um Triângulo só alcança
seu potencial quando são três (não dois) personagens que
criam reviravoltas e fazem a dão força para a história.
Em “Atração Fatal”, a decisão de Dan dá movimento à
história. Parecia que seu desejo seria facilmente alcançado
(ter um caso de uma noite). Mas ele não contava com a
obsessão de Alex. A intenção dela é que dá movimento
ao Segundo Ato, tecendo uma teia que Dan tenta escapar.
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Nesse ponto, a ênfase do relacionamento foi em Dan e Alex.


Mas Beth é uma personagem com profundidade e que tem
suas ideias e reações aos eventos. No começo do Terceiro
Ato, quando Dan revela seu caso, a intenção dela é que guia
a ação, forçando Dan e Alex a resolver essa relação.

A intenção leva ao conflito.

Em cada dupla de personagens existe potencial para


dois conflitos: o ponto de vista que cada um tem daquele
relacionamento. Com um triângulo, isso se transforma
subitamente em seis conflitos.
Em Atração Fatal, várias vezes Dan tem um conflito com
Alex e um com Beth. Beth tem um conflito com Dan e um
com Alex. Alex tem um conflito com Dan e com Beth. A
natureza desses conflitos, é ligeiramente diferente de acordo
com o ponto de vista de cada personagem. Alex quer afastar
Dan da Beth. Beth quer preservar sua vida familiar estável
e a própria autoestima, o que não permitiria que ela vivesse
com um homem que a traiu. Dan quer preservar o “Status
Quo” (algo que ele já não pode fazer). Cada um desses
conflitos é bem complexo e instável de acordo com o ponto
de vista de cada personagem.
Pelo fato do escritor ter explorado as dinâmicas internas
e externas de cada personagem, a história se torna um
crescendo contínuo de intensidade com cada reviravolta na
trama.

Cada conflito revela inseguranças, falhas, más escolhas e


emoções desesperadas de cada personagem.

Nenhum dos personagens é perfeito (todos são guiados


pelo próprio psicológico e pelos problemas não resolvidos
de suas vidas).
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Em “Nos Bastidores da Notícia”, Jane nunca foi capaz de


entender o que realmente queria. Ela era teimosa, obsessiva
no trabalho, demasiadamente sagaz para seu próprio bem.
Aaron passa por uma crise de identidade, sem entender que
seu sucesso não depende de ser um âncora. Ele algumas
vezes é petulante, inseguro, até mesmo contraditório. Já
Tom desistiu da angústia de tentar a perfeição, é menos
esperto, menos alerta, menos preocupado que Jane e
Aaron. Como James Brooks explica “Trabalhei duro pra
criar três pessoas com defeitos e que soassem realistas. Eu
sabia dizer os problemas internos de cada personagem,
o que precisava ser consertado no âmago deles. Tom não
tem qualificação pro trabalho, não tem ideais que não
sejam para o próprio benefício. Mas ele sabe se portar, tem
boa intuição, decência, uma noção de que a vida deve ser
divertida e que a responsabilidade começa e termina no seu
lar. Aaron é brilhante, dedicado, tem um grande senso de
integridade, mas tem uma pitada de arrogância intelectual
nele. Ele alfineta as pessoas. Janes beira ao comportamento
compulsivo. Mas ela é uma idealista, sempre luta pelas
pessoas. Ela é tão correta, tão especial, que acaba sendo
vítima do seu cérebro ao invés de ter controle sobre ele
(um sinônimo de comportamento compulsivo). Pensei nos
personagens através das falhas. Mas eu constantemente
tento descobrir o que faz de alguém um herói (quais são
as qualidades especiais?) Acho que todo mundo sabe falar
sobre fraquezas. Podemos pegá-las de nós mesmos e da
nossa imaginação. Mas entender o que existe de heroico no
ser humano, isso exige um tempo de reflexão. “
As falhas dos personagens podem ser catalizadores
da história. Certamente a decisão de Dan em ter um caso
discreto pode ser visto como uma falha de caráter. Jane tem
dificuldades de tomar decisões por causa de suas próprias
imperfeições.
Esses dois triângulos são mais fortes pois os personagens
são complexos, com suas próprias lutas, suas próprias
direções emocionais, suas obstinações.
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Frequentemente, falhas e imperfeições internas ocorrem


quando pelo menos um dos personagens é guiado pelo lado
sombrio de sua personalidade.

Dan, em “Atração Fatal” é um tradicional e feliz


homem casado (um cara bacana). O lado sombrio da sua
personalidade é dissimulado, luxurioso. É esse lado sombrio
que atrai Alex e não o lado “casado, fiel, homem de família”.
Por fora, Alex é uma mulher atraente e bem sucedida. Mas
por dentro, seu inconsciente é guiado pela insegurança e
desespero causados por sua má interpretação sobre como
Dan a tratou.

Quando se cria um triângulo, geralmente um dos


personagens (talvez mais de um) será guiado por sua
sombra. Apesar de não ficar tão claro no filme “Nos
Bastidores da Notícia”, é evidente que em vários triângulos,
como no “Fantasma da Ópera” e em“Ligações Perigosas”.
Em “Ligações Perigosas” Madame de Torville
é tremendamente virtuosa, mas seu lado sombrio
(sensualidade e desejo) a leva a ter um caso com Valmont.
Surpreendentemente, o lado sombrio de Valmont é
virtuoso. Isso é raro, já que o lado sombrio geralmente
segue pelo lado obscuro e negativo da personalidade. Mas
a sombra, tecnicamente, significa “o que está encoberto”, ou
o lado reprimido da personalidade. No caso de Valmont,
ele tem uma decência inata. Foi sua capacidade de amar
e sentir que foi reprimira e que despertou por causa de
Madame de Torville. O lado consciente da personalidade
dele é traiçoeira, manipuladora; o lado inconsciente tinha
empatia e afeto.

O triângulo é fortalecido se algo é escondido dos outros


personagens.
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Alguns exemplos dos motivos foram escondidos: Beth


não sabe que Alex está ativamente a procura do seu marido
para tirá-lo dela.
Alguns exemplos de ações que foram escondidas:
Jane não sabe que Tom adulterou uma notícia.
Alguns exemplos de inclinações pessoais que foram
ocultas: Beth não sabe da atração de Dan por Alex. Jane não
sabe que Aaron está apaixonado por ela.
O que é escondido pode ser algum traço psicológico do
personagem que guiará a história e o próprio personagem,
mesmo que nem a própria pessoa tenha conhecimento
disso. Alex provavelmente não sabe do poder do seu
desespero. Ela não tem consciência da projeção que faz
em cima de Dan, da sua confusão sobre o relacionamento
que eles têm. Seu inconsciente complica profundamente a
história.
As qualidades ocultas (sejam internas ou externas) têm
potencial de direcionar o personagem a uma crise. Um
momento importante nesse tipo de história é a revelação,
o momento em que aquilo que estava oculto se externaliza.
Quando Beth fica sabendo sobre Alex, suas ações criam
uma crise no casamento. Quando Jane fica sabendo sobre
a desonestidade de Tom, o relacionamento entre eles entra
numa crise.
Trabalhar em triângulos é como fazer malabarismo
com vários objetos e não deixá-los cair. O desafio mais
complicado que já encontrei num roteiro foi relacionado
à criação de um triângulo entre personagens. Existe
muita coisa pro escritor organizar e resolver. Apesar da
complexidade, as relações mais poderosas vêm de relações
complexas.

ESTUDO DE CASO: CHEERS


“Cheers” é um exemplo de uma série que explora várias
dinâmicas novas entre personagens, desde seu começo
houveram muitas mudanças no seriado. Sua estreia foi
em setembro de 1982. Na temporada de 1984, um dos
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atores principais, Nicholas Colasanto, que interpretava


Coach, morreu. Os atores tiveram que decidir que tipo
de personagem o substituiria da melhor forma, um
personagem que mantivesse a mesma dinâmica. Em 1987,
Shelley Long, que interpretou Diane, deixou a série. Os
autores tiveram que decidir quem a substituiria para criar
uma nova dinâmica.
James Burrows, um dos criadores (junto de Glen e Les
Charles) e diretor de muitos episódios, explica o processo:
“Queríamos fazer um seriado sobre um bar de esportes
e o relacionamento entre Tracy e Hepburn. Gostamos
do contraste desse relacionamento: Senhor “subúrbio” e
senhora “do centro da cidade”; o pragmático e a idealista; o
cara que diz “não vai dar certo” e a mulher que diz “pode
dar certo!”. É um embate conhecido, cria casamentos
incríveis. Então a ideia original era ser uma série sobre
uma garota que tinha um bar e um cara que trabalhava pra
ela. Mas os escritores vieram com uma ideia de colegas de
faculdade sonhando em ter um bar para ex atletas.
“À medida que modelávamos mais profundamente os
personagens, fizemos Sam um ex-alcoólatra, e demos a
Diane um pai e um gato que morreram. Criamos novas
dinâmicas aos personagens ao aproximá-los ou afastá-los.
“O desafio foi manter Diane elevada e empática enquanto
Sam permanecesse um atleta mas sem deixá-lo muito
idiota.
“Outra coisa que decidimos foi que essa série seria
uma sitcom que teria uma evolução ao longo do tempo,
os personagens iriam se transformar durante a série. Os
críticos não acharam não gostaram, a maioria das sitcons
não possuem evolução de personagens, mas nós gostamos,
parecia que os personagens seriam melhor definidos e nos
dariam mais material para explorar.
“Então escrevemos um roteiro. Foi incrível, tivemos
sorte de termos dois atores com uma boa química para
interpretar os papeis. Foi isso: tivemos sorte no elenco.
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Aquelas duas pessoas vieram e deram vida aos personagens,


tornaram eles mais importantes que o bar.
“Tentamos criar relações fortes com personagens
secundários (coadjuvantes). Sempre sentimos que Carla
tinha um tesão por Sam, e que agia de um jeito esquisito
com Diane por ciúmes do Sam. Carla criticava muito
Diane, mas você sentia pena dela e isso a livrava do rótulo
de hostil. Com o passar dos anos, essa dinâmica evoluiu e
o resultado foi incrível. Acho que Carla inconscientemente
se deu conta que Diane foi mais esperta do que ela. Diane
podia ser mais esperta no nível intelectual, mas Carla tinha
a esperteza das ruas. A vida familiar de Diane era feliz, da
Carla não. Carla era sobrecarregada com filhos, Diane era
livre.
“A sitcom é movida pelo conflito de personagem. No
começo, era a química entre Sam e Diane que guiava a série
(e como Carla reagia a Sam, como todos reagiam ao Cliff
e como ele era boca suja). Com esses tipos de personagens
nós poderíamos fazer uma série simples do tipo: Diane
pegando dinheiro emprestado do Sam e, mais tarde, ao
invés de pagá-lo primeiro, ela prefere comprar roupas; e
Sam tendo uma reação do tipo “Por que ela não me pagou?”
“Quando Shelley deixou a série, voltamos à premissa
original, que era sobre uma mulher que tinha um bar.
Todos amavam Sam, ele era a cara da série. Se perdêssemos
ele, não poderíamos continuar. Era o bar do Sam e era com
ele que as pessoas se sentiam confortáveis. Com a entrada
de Kirstie (que interpretava Rebecca), todos os personagens
voltaram a ser importantes e a série se tornou algo mais
coletivo.
“Quando criamos Rebbeca, pensamos numa personagem
que fosse uma completa cretina. Decidimos não ir pelo
lado comediante, pois ninguém seria mais engraçado
que Shelley. Decidimos não fazer mais uma loira, mais
uma garçonete. Kirstie foi a primeira atriz que vimos. Jeff
Greenberg, nosso diretor de elenco, disse ‘Tenho a pessoa
certa pra vocês’. Então Kirstie fez o teste. Ela tinha jeito
vulnerável, e ninguém tinha pensado no papel com aquela
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perspectiva. Depois do teste, Teddy disse que queria ela no


papel. Pensamos a respeito, seria um caminho diferente do
que planejávamos, mas achamos que seria uma boa escolha.
“Kirstie adicionou à personagem um jeito neurótico e
desmiolado. Funcionou. A série ganhou uma nova vida.
“Quando vimos essa direção pra Rebecca, começamos a
criar seu passado. Descobrimos que ela foi pra Universidade
de Connecticut e tinha um apelido, era um fracasso nos
antigos empregos.
“Com essa nova personagem, existia todo um conjunto
de dinâmicas para serem criadas entre Rebecca e Sam.
Decidimos que seria engraçado que ela fosse uma mulher
sem qualquer atração por Sam e ele ficasse perplexo com
isso. Ele obviamente reagiria como normalmente faz com
qualquer garota: ‘Eu posso tê-la quando eu quiser’. Não
progredimos com isso tanto quanto fizemos com Sam e
Diane (seus personagens não se moveram muito nesses dois
anos), apesar de terem virado amigos.
“Rebecca também mudou a dinâmica com outros
personagens. Ela e Norm tem um relacionamento incrível.
Eles se importam um com o outro. Sentimos num dos
episódios, que Rebecca precisava falar um pouco de si
mesma. Se usássemos Sam pra isso, ele iria querer levar
ela pra cama. Então fizemos Norm ouvi-la falar. Ele não
tinha nenhuma segunda intenção. Era um ouvinte. Assim
conseguimos mais informações sobre sua vida.
“Carla sofreu um pouco pois Rebecca foi sua chefe e
não podia provoca-la. Então a relação delas não era muito
dinâmica como a que Carla tinha com Diane. Mas demos a
Carla um marido, pra que ela pudesse descontar nele.
“Tivemos que substituir Nick Colasanto ao final da
terceira temporada. Já sabíamos há um ano que ele estava
doente. Tivemos algum tempo pra descobrir o que fazer
antes dele falecer. Precisávamos de um bartender, isso não
havia escolha. Queríamos alguém jovem. ‘Caras e Caretas’
estava fazendo bem mais sucesso com o público jovem que
a gente. Tínhamos que colocar um pouco de jovialidade
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na série. Queríamos alguém mais sóbrio, pois Nick fazia


as piadas bobas. Na comédia é sempre bom ter alguém
que não é muito vibrante pra que possamos ir explicando
a trama para os espectadores através de piadas bobas
com aquele personagem. É uma boa estratégia de escrita.
Decidimos que ele seria um cara mais rural. Woody não se
encaixava no estereótipo. Pensamos num rapaz mais magro
com dentes grandes, mas Woody apareceu como um cara
másculo da fazenda e histérico. Foi a melhor solução.
“Woody e Coach eram bem parecidos (faziam o mesmo
tipo de piada). Woody tinha um ar de filho e com isso se
perdia a “figura paternal” que Nick representava, mas
Woody fazia um pouco mais que isso.
“A verdade é que fizemos várias mudanças e revisões na
serie. Foi quase um milagre que tantas mudanças tenham
funcionado.”

APLICAÇÃO
Os conceitos que abordamos podem funcionar em
qualquer tipo de relacionamento. Sejam personagens
principais ou secundários, criar uma dinâmica de
relacionamento forte pode trazer vida e empolgação a
sua história. Enquanto pensa em seus personagens faça as
seguintes perguntas:
■■ Existe conflito entre meus personagens? Isso é
expressado através de ação, posturas, valores?
■■ Contrastei meus personagens pra criar diferenças
entre eles?
■■ Existe potencial nesses personagens para que mudem
um ao outro? O público irá entender o motivo dessas
duas pessoas estarem juntas? A atração entre eles é
clara? O impacto que um tem sobre o outro também
é claro?
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RESUMO
Drama é essencialmente relacionamento. É raro que se
resuma a pessoas. São pessoas interagindo, influenciando e
sendo influenciadas. Sofrendo mudanças por causa dessas
interações.
Sem a dinâmica dos relacionamentos, os personagens
podem ficar desinteressantes. São os conflitos e contrastes
que geram drama entre os personagens, que provam que
relacionamentos podem ser tão cativantes e memoráveis
quanto qualquer personagem singular.
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6
Personagens Secundários
e Personagens Menores
Adicionar personagens secundários expande a paleta da
história. Assim como um pintor que continua adicionando
detalhes para aprimorar a pintura, o escritor adiciona
personagens secundários para dar mais profundidade, cor e
textura à história.
Muitos princípios para criar personagens principais são
usados nos personagens secundários. Eles precisam ser
consistentes, ter posturas, valores e emoções, além de ter
suas contradições.
Mas existem diferenças importantes. Imagine uma
fotografia de um casamento. Existem vários detalhes ao
redor das duas figuras principais (a noiva e o noivo). E
existem várias figuras, muitas delas são indistintas umas das
outras. Mas algumas delas são bem definidas na multidão:
uma jovem de vermelho, por exemplo, ao fundo, brincando
com um filhotinho que estava passeando pelo cenário;
o padre, com ar presunçoso. Na visão panorâmica, onde
o padre está ao topo da escadaria, a mãe da noiva em seu
vestido amarelo de laço, chorando de alegria, próxima à
filha.
Nessa cena, os personagens secundários são tão
memoráveis quanto os principais. Apesar de existir alguns
sem muita distinção (os convidados extras), existem outros
rondando a história, que expandem a premissa de amor e
matrimônio.
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Muitas vezes, personagens secundários roubam a cena,


tornando-se mais importantes do que o escritor pensava
que seriam. Às vezes isso aprimora a história. Nas séries,
os personagens secundários às vezes tornam-se os favoritos
do público, como aconteceu em “Dias Felizes” e “Caras e
Caretas” quando Fonz e Alex se destacaram.
James Burrows diz, “Se você tem um bom personagem
secundário, faça uso dele até o talo. Não o dispense. O
namorado da Diane (Fraiser) inicialmente era um mero
pretexto para colocar Diane de volta no bar. Mas ele se
tornou algo maravilhoso e continuamos a usá-lo.”
Dale Wasserman explica: “Às vezes personagens
secundários são mais interessantes que os principais, pois
os principais carregam o fardo de mover a história adiante;
já os secundários não e, consequentemente, podem ter mais
liberdade.”
Às vezes esse “roubo de cena” pode ser perigoso. A
história pode ficar desbalanceada se os personagens
secundários não tiverem seus lugares. Para uma melhor
compreensão sobre que lugar seria esse, vamos olhar para
o processo de criação de personagens secundários. Esse
processo inclui:
■■ Decidir que função esse personagem precisa ter.
■■ Fazer desse personagem alguém que contraste com os
outros personagens para preencher essa função
■■ Preencher esse personagem com detalhes

A FUNÇÃO
Para começar, pergunte-se: Além do meu protagonista,
quem seria necessário para contar essa história? Quem
meu/minha protagonista principal precisa por perto?
Ao esclarecer isso, você evita criar personagens
desnecessários e começa a entender quem é necessário
de fato. O objetivo é achar o equilíbrio entre personagens
principais e personagens secundários, além de não deixar
a história confusa por excesso de personagens.
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Um personagem secundário pode ajudar em várias


funções: definir o papel do protagonista, ajudar no
desenvolvimento da história, além de transmitir o tema
principal.
O personagem secundário ajuda a definir a importância
e o papel do protagonista.
Se um personagem é definido por seu papel ou ocupação
(como uma mãe, um presidente de empresa, o caixa de
um restaurante), você precisa criar personagens ao redor
dele que ajude a esclarecer esse papel.
Mães precisam de crianças ao seu redor para mostrar
que são mães. Presidentes de empresas precisam ter
vices, secretários, motoristas e seguranças. Caixas
de restaurante são cercados de garçonetes, garçons,
cozinheiros, ajudantes e clientes. Quantos desses
personagens usar, quanta ênfase dar a eles, tudo vai
depender das necessidades da história. Mas, seja como
for, sem os personagens secundários o lugar do seu
protagonista não será claro.
Quando “Midnight Caller” foi criada, os roteiristas já
notaram que Jack Lillian dependeria de personagens
para exercer sua profissão. Richard Dilello, criador da
série explica: “Criamos três personagens secundários. Ele
precisava de um engenheiro (uma espécie de operador
que atendia as ligações), esse personagem era Billy Po.
Claramente era necessário um tipo de “infiltrado” na
polícia para ajudar nas histórias mais criminais. O que
poderia ser mais convincente do que seu comandante
aposentado, Lieutenant Zymak? Devon é a produtora, o
anjo salvador. Ela precisava ser cheia de vida, atraente e
inteligente, alguém que já foi tão forte quanto ele um dia
foi.”
Note nessa cena como Devon, o produtor, e Po, o
engenheiro, exercem suas profissões e dão sustentação ao
personagem principal.
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Killian está revisando sua cópia. Ele olha pra Billy Po na


sala de controle. Billy liga o computador. Jake pega sua
cópia e joga na lata de lixo.
DEVON
O que você tá fazendo?
KILLIAN
Não consigo ler essa porcaria.
DEVON
Como assim não consegue ler?
KILLIAN
Me deixa improvisar...
DEVON
Não. Desculpa. Eu escrevi isso pra você.
KILLIAN
Você acha mesmo que a gente tem tempo pra
discutir isso agora?
Killian balança a cabeça para o aviso de “AO VIVO” que
acende. Devon suspira fundo e com resignação. Se inclina
em direção ao microfone.
DEVON
Essa é a Midnight Hour, eu sou Devon King na
Rádio KJCM, 98.3 FM --- Essa noite, na KJCM,
temos o prazer de anunciar o nascimento da
Midnight Caller. Um programa que põe você
no comando... Jack Killian, recentemente
retornou à vida civil. Ele atenderá suas ligações
e responderá perguntas sobre o trabalho policial
e procedimentos... Contudo, é importante frisar
que as opiniões de Jack Killian não refletem
necessariamente a opinião do Departamento de
Polícia de São Francisco.
DEVON
...nem as opiniões e políticas internas da KJCM.
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PO
KJCM, Midnight Caller. Obrigado pelo contato.
Qual seu nome e de onde fala?
DEVON
Agora, sem mais demora, temos o prazer de
apresentar Jack Killian
KILLIAN
A ave noturna!
Devon lança um olhar pra Jack, mas continua sem perder a
pose.
DEVON
Nosso convidado no Midnight Caller.
(mais tarde)... O sinal “AO VIVO” se apaga. Devon vira-se
para Jack.
DEVON
A ave noturna?
KILLIAN
É. Você gostou?
DEVON
Não muito.

Personagens secundários ajudam a transmitir o tema


principal da história.

A maioria dos escritores tem algo importante e


significativo que desejam comunicar com suas histórias
e personagens. Os personagens secundários são uma
oportunidade de transmitir o tema, sem que a história fique
muito pedante ou com diálogos demais.
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Para isso, o escritor precisa primeiro pensar no tema.


Pode ser sobre identidade, integridade, comunidade,
tirania, fama, amor, ou outras ideias.
Então, cada personagem pode começar a expressá-lo.
“Gente como a Gente” é uma busca por significado
e identidade. Judith Guest explica, “Conrado e Calvin
conseguem se modificar com os desafios de suas vidas, mas
outros personagens permanecem numa vida superficial
(eles representam a vida “não experienciada”). Cada
personagem serve para mostrar uma das faces desse tema.
O psiquiatra Burger, Calvin, Conrad, Jeanine e Carole,
expandem a ideia de “vida experienciada”, são os que vivem
a vida mais profundamente. Stillman, Ray, e Beth mostram
a face das pessoas que vivem superficialmente, e que não
tem vontade (ou capacidade) de se modificar.”
“Um estranho no ninho” explora o tema da relação
de um rebelde com a autoridade. Temas relacionados:
repressão, tirania e empoderamento.
Os personagens secundários dessa peça representam
o medo, o desejo de segurança, a repressão, e o anseio
de serem fortes. Aqui estão três declarações de três
personagens secundários que expandem esses temas.
Dr. Spivey representa as regras repressivas, mas também
um peão da tirania da Enfermeira Ratched.

DR. SPIVEY
Comunidade terapêutica. Significa que essa
ala é uma sociedade em miniatura e, já que
a Sociedade decide o que é ou não sadio, é
preciso medi-la. Nosso objetivo aqui é uma ala
completamente democrática, governada pelos
pacientes – trabalhando para reintegrar vocês
na vida lá fora. O importante é não deixar que
nada apodreça dentro de vocês. Falar. Discutir.
Confessar. Se você ouvir algum paciente falar
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algo importante, escreva no Livro de Registros


para todos verem. Sabem como isso se chama?
MCMURPHY
Dedurar.
O paciente Heading reconhece sua fraqueza, mas não
pode fazer nada a respeito.
HARDING
O mundo pertence ao mais forte, amigo. O
coelho reconhece a força do lobo, por isso cava
e se esconde quando o lobo se aproxima. Ele não
desafia o lobo. Sr. McMurphy, meu amigo. Não
sou uma galinha, sou um coelho. Todos aqui
somos coelhos, saltitando pro nosso mundo da
Disney! Billy pula em volta do Sr. McMurphy
aqui. Chesqick, mostre pra ele como você é
peludo. Ah, ele é tímido. Não é meigo?
O índio do rio Columbia, Chief Bromden, vê claramente
a repressão, mas não se considera suficientemente “forte”
pra lutar.
CHIEF BROMDEN
Não posso te ajudar, Billy. Nenhum de nós
pode. Quando um homem vai ajudar alguém,
ele se torna vulnerável. É isso que McMurphy
não consegue entender em nós: queremos ficar
seguros. É por isso que ninguém reclama da
neblina. Por pior que seja, você pode se esconder
nela e se sentir a salvo.

Cada um desses personagens representa uma parte


diferente do tema (repressão). Dr. Spivey é o porta-voz da
autoridade, que limita as respostas alheias, sempre pronto
para delatá-los. Harding e Bromden representam a falta
de ânimo para lutar contra a repressão e o desejo de se
sentirem a salvo.
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Personagens secundários podem ser elementos


catalizadores, externalizando informações que movem a
história adiante.

Samuel, em “A Testemunha”, dá informações que John


Book precisa para o trabalho.

BOOK
Sou policial. Samuel, quero que me fale tudo que
viu quando estava lá.
SAMUEL
Eu o vi.
BOOK
Quem?
SAMUEL
O homem que matou ele.
BOOK
Certo, Sam. Pode me dizer como era a aparência
dele?
SAMUEL
Era igual a ele (Samuel aponta pra Carter, o
parceiro de John)
BOOK
Era um homem negro? De pele escura?
SAMUEL
Mas não era mirradinho.
BOOK
Não era o quê?
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RACHEL
Na fazenda, o menor porco da ninhada é
mirradinho. Pequenininho.

PERSONAGENS SECUNDÁRIOS ADICIONAM COR E


TEXTURA
O tipo de personagem que você vai criar pra uma função
na história não pode ser uma escolha aleatória. O primeiro
passo é saber o que você precisa, o próximo é decidir que
cores e texturas poderiam ser usadas para definir ainda
mais os contornos da sua história. Existem várias decisões
possíveis.

Contrastar seus personagens te proporcionará traços mais


fortes.

Pode significar contrastar o personagem secundário


com o protagonista, ou contrastar personagens secundários
entre si.
Esse tipo de contraste pode ser físico: claro/escuro,
pesado/magro, rápido/vagaroso.
Pode ser em posturas: pessimista/otimista, ingênuo/
articulado, reativo/despreocupado, apaixonado/frio.
Contrastar personagens é especialmente importante nas
series. Bill Finkel, escritor e produtor de “L.A Law”, fala dos
contrastes construídos nos personagens da série. Apesar
de alguns personagens serem considerados personagens
principais, Bill diz que não saberia fazer uma distinção
exata. Eis sua opinião:
“Existem contrastes nas posturas deles em
relação ao trabalho. Brackman é do tipo
administrativo, ele dá prioridade ao financeiro
da firma, enquanto Kuzak é mais ideológico, dá
prioridade a uma agenda mais política, ativa,
moral. Becker é muito materialista, mais do tipo
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egoísta, de autopromoção (mais que qualquer


outro da firma). Markowitz dá mais importância
pros resultados, devido a sua profissão de
contador e de assessor fiscal. Kelsey, por sua vez,
tem uma grande consciência social e inclinações
feministas.
Também existem contrastes na origem étnica e
classe social. Victor Sisifuentes é um hispânico
do leste de Los Angeles. Seu considerável
sucesso no âmbito legal trouxe alguns problemas
para ele. É solteiro e bonito, tem consciência
social e ideias de cunho progressista. Markowitz
é um judeu de classe média-alta, mais velho (por
volta de quarenta anos), casado e no processo de
começar uma família. Ele é do tipo controlador,
detalhista, é meio sufocante no jeito de lidar com
uma situação, define compulsivamente as opções
e alternativas.
McKenzie é o sócio sênior, provavelmente nos
seus sessenta anos, num estágio de vida onde
outras coisas ganham certa importância. Ele
também tem poder na firma por ser um sócio
sênior.
Jonathan Rollins é um negro de classe média, o
que diz alguma coisa sobre a diferenciação entre
ele e outros negros que cresceram em Compton.
Roxanne, a secretária, é desesperada por algum
tipo de relacionamento seguro e significativo. Ela
ganha bem menos que os advogados, portanto
está numa situação material e numa classe social
diferente deles.
Existe um contraste entre casados/solteiros.
Rollins e Sisifuentes são solteiros; Kelsey e
Markowitz são casados; Abby e Brackman
são divorciados. Abby é mãe solteira, Kelsey e
Markowitz estão no processo de começar uma
família.
Existe contrastes de valores, como a consciência
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social versus materialismo. Kuzak trabalha no


sistema criminal de justiça. Ele e Sisifuentes
podem representar um estuprador condenado,
enquanto Becker, que é um advogado
matrimonial, não teria o menor interesse em
representar alguém assim.
Existe também contraste no estilo. Seja no
que vestem (Becker é bem estiloso), no tipo de
carro que dirigem (Grace Van Owen dirige uma
BMW), o tipo de casa que moram, o tipo de
mobília do escritório (Sisifuentes tem posters
de Diego Rivera no escritório, Becker tem uma
mobília fria, de impacto dramático; Kelsey tem
um escritório mais confortável”.

Personagens de menor importância podem ser


apresentados ao público através do contraste. No filme
“Jogos de Guerra”, de Lawrence Lasker e Walter Parkes,
existem dois personagens menores que dão informações
para David (personagem principal), sobre como invadir um
computador. Eles poderiam ser tediosos e sem graça, mas
pequenos detalhes contrastantes e ritmos são adicionados
para criar uma cena interessante.
Malvin é descrito como um “cara magro, exagerado e que
se comporta como um adolescente”, e Jim é descrito como
“obeso, mal vestido, com ar de arrogante”. O nervosismo de
Malvin contrasta a premeditação de Jim.
DAVID
Deixa eu ver uma coisa.
MALVIN
O que é isso? Onde conseguiu?
DAVID
Tava tentando invadir a Protovision... Queria
pegar os programas pros novos jogos deles.
Jim pega uma cópia impressa
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MALVIN
Espera. Não terminei de ler.
Jim pega mesmo assim. Olha com atenção, meio pelo
canto dos óculos fundo de garrafa.
JIM
Guerra termonuclear global... Isso não é da
Protovision.
MALVIN
Eu sei que não. Pergunta pra ele onde conseguiu.
DAVID
Já te disse.
MALVIN
Parece coisa militar. Definitivamente militar.
Provavelmente sigilosa.
DAVID
Se for militar, por que eles teriam jogos tipo 21 e
damas?
JIM
Talvez porque são jogos de estratégia básica.
Jennifer olha curiosa pro grupo de esquisitos.
MALVIN
Quem é ela?
DAVID
Ela tá comigo.
MALVIN
Por que ela tá ali? Ela tá perto do drive. Não
deixa ela tocar naquilo. Tô tendo um monte de
problema com aquela unidade.
JIM
Se você quiser mergulhar nisso, descubra tudo
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sobre o cara que desenvolveu o sistema...


DAVID
Fala sério. Como eu vou achar esse cara?
Jimi pondera o problema. Mas Malvin o interrompe
impaciente.
MALVIN
Vocês são tão idiotas. Nem acredito. Aposto que
eu consigo, eu consegui descobrir.
DAVID
Ah é, Malvin? Como você faria?
MALVIN
Primeiro jogo da lista, espertões. Vou entrar
usando o nome Falken’s Maze.

Apesar da cena ser curta e Malvin e Jim não aparecerem


mais, veja como eles são claramente diferentes. A cena
por si só é simples. Feita para dar uma informação que
permitirá que a história continue. Mas esses personagens
transformaram uma cena previsível, numa cena intrigante e
cativante.

EXERCÍCIO: Pense em como contrastar dois advogados,


dois policiais, dois trapezistas, dois carpinteiros, dois
irmãos gêmeos.

Às vezes os personagens são propositalmente parecidos.

Ao invés de usar cores e texturas contrastantes,


os personagens funcionam de maneira parecida. Por
exemplo, “E o Vento Levou”, os pretendentes de Scarlet são
indistintos, para que Rhett Butler consiga se destacar deles.
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Vilões e guarda-costas normalmente são parecidos,


bem como dançarinos próximos ao coro, marinheiros ou
funcionários de escritório, isso acontecerá sempre que você
quiser personagens que não chamem muita atenção pra si.

Às vezes uma característica se desenvolve, até mesmo é


exagerada, ao ponto de definir um personagem por completo.

Isso é particularmente presente em personagens de


quadrinhos. Wendy, esposa de Achrie, no filme “Um Peixe
Chamado Wanda”, é apresentada como alguém que está
sempre vivendo uma grande frustração. Tudo dá errado pra
ela: O pneu do carro fura, a filha tem acne, os pratos estão
trincados, problemas numa partida de bridge, a bebida vem
sem gelo (a vida dela é cheia de pequenos problemas).
Uma característica exagerada pode ser física. Em
“Platoon”, Barbers (Tom Berenger) é definido fisicamente
pela sua cicatriz, que denota uma série de experiências
negativas. O temperamento desse personagem transmite
dureza, vingança, distorção e corrupção de alma.

Às vezes personagens secundários são definidos pelos


contrastes e contradições nas suas próprias personalidades.

Isso pode adicionar um toque memorável que dará uma


dimensão extra ao personagem.
Em “007, Marcado Para Morrer”, o vilão, um grandalhão
interpretado por Joe Don Baker, amava brincar com
bonequinhos. Esse detalhe o tirou do estereótipo comum de
um vilão.
Em “Loucademia de Polícia” existe um capitão de polícia
que ama seu peixinho dourado. Em “Apertem Os Cintos, O
Piloto Sumiu” existe uma mulher de classe média que sabe
falar de um jeito malandro e uma freira que não hesita em
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dar umas bordoadas para recobrar o bom senso de uma


mulher em pânico.
Esses toques, apesar de sutis, acrescentam tanto humor
como dimensões a personagens que talvez só tenham
alguns instantes em cena.
Existe certo perigo ao fazer isso. Já vimos personagens
com algum tique ou característica física que, ao invés de
criar interesse e profundidade, acabam deixando confuso e
limitando tanto o personagem quanto a história. Tornam-se
uma caricatura.
Trejeitos e características funcionam melhor quando
realmente contribuem com a história ou quando existe ao
menos uma boa razão de existir. Em “Um Peixe Chamado
Wanda”, Otto lê Nietzsche para provar que não é burro. Em
“Apertem Os Cintos, O Piloto Sumiu”, a situação perigosa
causa pânico e confusão. Tanto a mulher das gírias quanto a
freira espancadora estão ali para solucionar o problema.

Às vezes, a cor ou a origem do personagem cria um


personagem-tipo.

Personagem-tipo não significa estereótipo. Não são


definidos por seu papel, gênero ou etnia (a “secretária
burra” ou o “negro maneiro”, por exemplo), mas são
definidos por suas ações. Eles estão caracterizados de
uma forma tão característica que o público os reconhece
imediatamente.
Ao longo da história da escrita de ficção os escritores
têm usado os personagens-tipo. Nas peças romanas, os
tipos utilizados eram: soldado braggadocio, o estudante
pedante, o parasita, o pai tolo, a megera, o almofadinha, o
escravo astuto, o bufão, o trapaceiro, o rústico. Nas últimas
peças, notamos a donzela intrigante, o rapaz apaixonado,
e o louco. Por último, o melodrama levou o tipo a limites
inéditos. Como o vilão que enrola o bigode, o herói bonitão,
e a jovem bela.
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Nesses casos, as características definidoras (tolo, pedante,


etc) nunca significavam que “todos os pais são tolos”
ou “todos os estudantes são pedantes”, mas que dentro
do prisma de pais e estudantes, uma parte deles é tola e
pedante.
Enquanto o personagem-tipo pode ser um elemento
importante na história, o estereótipo simplesmente limita a
história. (O estereótipo será discutido com mais detalhes no
Capítulo 9).
Às vezes é importante usar um personagem-tipo.
“Quando se está criando personagens menores pra séries...”,
explica James Burrows, “você tenta deixar a coisa evidente.
Se você tem um valentão, você tenta escolher um ator que
pareça ser assim. Se você escolher alguém que é, mas não
parece, você vai perder muito tempo fazendo o público
entender seu personagem. Porém, se você escolher um cara
que pareça valentão, pode aproveitar o tempo para deixa-lo
mais interessante, engraçado”.
O personagem-tipo pode ser desenhado de forma mais
genérica (sem tantos detalhes), ou pode ser feito com
atenção extra aos detalhes. Tartuffe (da peça Moliere) é um
personagem-tipo, um hipocondríaco; Polonius de Hamlet é
um pai manco, mas ambos detém detalhes consideráveis.
Quando o professor de atuação e diretor Constantin
Stan-islavski, trabalhou com atores, ele os encorajou a
adicionar detalhes aos seus personagens continuamente.
A descrição do processo pode te ajudar a criar um
personagem-tipo.
“É possível interpretar um personagem no palco de
forma genérica – como um soldado. Normalmente ele
mantém uma postura ereta, marcha de lá para cá ao invés
de caminhar, bate continência, fala alto... Mas isso é muito
genérico... É aceitável pra uma impressão, mas não pra um
personagem... Fica muito sem vida, tradicional, um retrato
banal. Não passa a impressão de uma pessoa, mas de uma
simples figura num ritual. Outros atores, que possuem um
poder mais apurado de percepção, são capazes de escolher
sutilezas dessa figura. São capazes de fazer distinções no
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corpo militar, entre um soldado raso e da mais alta patente,


entre a cavalaria e a infantaria. Eles conhecem soldados,
oficiais, generais... Outros atores adicionam detalhes ainda
mais sofisticados, uma observação ainda mais apurada.
Agora temos um soldado com um nome, Ivan Ivanovich
Ivanov, com características únicas que se sobressaem de um
soldado qualquer.”
Apesar de não ser a função do escritor colocar pausas,
gestos, troca de olhares (isso é trabalho do ator), ainda
é necessária alguma definição específica da essência do
personagem, aquilo para além dos traços genéricos.
Atores não conseguem interpretar coisas genéricas (e um
personagem genérico não atrai um ator para o papel, nem
um leitor para um livro).

PREENCHENDO UM PERSONAGEM
Ao entender a função, adicionar cor e textura, você
estará perto de criar um personagem completo. Mas talvez
também seja necessário adicionar detalhes que você tire da
sua própria observação e experiência.
Às vezes isso pode significar se colocar na pele do
personagem. Seth Werner, criador dos comerciais da
California Raisins comenta “ Muitos dizem que os
personagens que coloco nos comerciais têm um pouco de
mim. Alguém disse que dá pra me achar na fila de uvas-
passas dançantes. É o jeito que eu ando e é o jeito que eu
dançaria. O comercial é um pouco fora do normal. E é
isso que gera um pouco de personalidade e magia. Mesmo
quando os animadores faziam as uvas-passas de modelar,
dava pra ver eles olhando para o espelho e copiando as
próprias expressões para o rosto das uvas-passas. Quando o
trabalho é feito com coração, as pessoas sentem isso. Isso as
toca. Talvez sejam esses pequenos detalhes, essas sutilezas
que deixam a coisa especial.
Robert Benton criou uma série de personagens do “Um
Lugar no Coração” usando lembranças e observações de
pessoas que já conheceu. “Eu tinha um tio-avô que era cego.
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Estava sentado com minha família falando sobre o roteiro


quando alguém me lembrou do meu Tio Bud. Começamos
a contar histórias sobre ele e ele se tornou o base para Mr.
Will. Queria criar um homem bem inteligente, que perdeu
a visão, que se isolou da vida e que acaba voltando a viver
ao longo do filme. Queria um tipo de inteligência, um tipo
de raiva a respeito da sua vida. Meu tio tinha a inteligência,
mas não a raiva. Eu quis mostrar que Will se dava bem com
as pessoas, que era um pouco mais sofisticado, um pouco
mais neurótico que os demais. Will gera contraste e uma
textura diferente pra história. Nem todo mundo ali poderia
ser uma pessoa legal de cidade pequena. Alguém tinha que
ser diferente.
“Margaret e Vi são uma mistura de duas ou três pessoas
que conheci no ensino médio. Eu particularmente amo a
personagem Wayne. Cresci no sudoeste, nos anos 30 e 40,
com música hillbilly (que fala sobre grandes paixões). Eu
queria alguém com uma grande paixão e um conjunto de
problemas incomuns para uma pessoa do interior, temente
a deus. Música country fala sobre “Não roube o castelo
de outro homem”. E sobre ir em botecos, sobre paixões
arrebatadoras, no sentido mais comum possível”.
Personagens secundários são feitos de pequenos detalhes
tanto quanto os personagens principais. Mesmo que sejam
menos importantes, eles podem ser desenhados com
precisão.

CRIANDO O VILÃO
Tudo que já foi mencionado até aqui será útil para cria-
lo. Mas o vilão tem alguns problemas incomuns.
Por definição, ele é o personagem maligno que se opõe
ao protagonista. Vilões normalmente são antagonistas,
apesar de nem todos os antagonistas serem vilões. Por
exemplo: Antagonistas não são vilões quando se opõe ao
protagonista por mera função na história, sem que exista
alguma má intenção.
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Se o protagonista quer passar em Harvard, mas não tem


pontuação suficiente pra isso; os avaliadores da instituição
serão os antagonistas já que acabarão recusando a entrada
do protagonista, mas não serão violões. O papel do vilão
sempre significa maldade.
Sejam vilões que vestem chapéus negros (como nos
filmes de faroeste), ou voam em jatinhos cometendo
crimes corporativos, eles colocam problemas no caminho
do “mocinho”, normalmente causando estragos sociais e
pessoais.
Num nível bem simplista, histórias com um vilão
normalmente são histórias sobre o bem contra o mal.
Normalmente o protagonista luta pelo bem e o vilão se
opõe ao bem. A maioria dos vilões são orientados pela ação:
roubam, matam, traem, ferem, e trabalham contra o bem. A
maioria deles são parecidos. Existe uma tendência de terem
uma motivação fraca, serem unidimensionais. O motivo de
serem maus é raramente justificado, é como se as pessoas
fossem más porque gostam de ser.
Porém, é possível criar um violão mais profundo.
Dependendo do estilo da história, e da profundidade que
você queira atingir, vilões podem ser tão inesquecíveis
quanto qualquer outro personagem. Quando se trata
de violões bem desenhados, esses com certeza serão
lembrados: Capitão Blich em “O Grande Motim”, Salieri em
“Amadeus”, ou os violões bem dimensionados na minissérie
“Holocausto”.
Para entender o vilão, é importante entender a relação
entre o bem e o mal que existe na maioria das histórias.
M. Scott Peck, no seu livro “O Povo da Mentira”, define
o mal (evil) como a palavra “vivo” dita ao contrário (live).
Usando essa definição, o personagem bom defende uma
afirmação da vida (live). Luta pra salvar o rancho (Os
Brutos Também Amam e Um Lugar No Coração), para
superar abusos (Filha de Ninguém, Cama Ardente), pela
auto estima (A Cor Púrpura), para florescer o potencial de
alguém (Karate Kid, “Heart Like a Wheel”), para alcançar o
outro (Rain Man), para reconhecer a humanidade naqueles
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diferentes de nós (Bell, E.T.), para promover o crescimento


e a transformação (Momento de Decisão).
O mal se opõe ao bem. Ele tiraniza, restringe, reprime,
deprecia, desafia, põe limites aos outros. Seja fazendo
maldades óbvias, como o assassinato e outras formas de
violência, seja em formas mais sutis de abusos, o vilão tem a
mesma função: jogar contra o bem.
Quais são as abordagens diferentes para criar vilões
dimensionais? Antes de mais nada, é preciso se perguntar
o porquê eles agem assim. Seus motivos podem ser
esclarecidos quando tentamos enxerga-lo como uma vítima,
ou como alguém egoísta. No primeiro caso (vítima), ele é
definido pela reação; no segundo caso (egoísta), pela ação.
Na maioria dos violões, os atos de maldade são
resultados de influências negativas nas suas vidas. Caso
você esteja criando um personagem assim, é preciso
explorar o passado do personagem, olhar pros fatores
sociais e pessoais que tenham criado essas características
negativas. Você verá que ninguém é totalmente mal, e irá
deixa-lo “redondo” mostrando pontos positivos, complexos
psicológicos e emoções como medo, frustração, raiva, ódio,
e/ou inveja. Muitas análises de crimes violentos da vida
real, focam no vilão como uma vítima, buscando motivos,
poréns. Qual o motivo de um cara quieto e modesto
matar alguém? As ênfases normalmente vêm de uma vida
familiar difícil e instável, frequentemente abusos e pobreza,
repressão dos sentimentos, um estilo de vida solitário, sem
relacionamento humano.
Se você escolher criar um vilão ativo ao invés de
reativo, você pode dimensiona-lo explorando os fatores
inconscientes complexos que motivaram suas ações. Como
dizem “Ninguém se acha o vilão”. Ninguém acredita que
está fazendo o mal. A maior parte dos vilões acredita que
está agindo pelo bem maior. Essas pessoas costumam ter
mecanismos fortes de defesa. Não estão cientes das forças
inconscientes que as direcionam. Geralmente são movidas
pelo lado sombrio, e ficam continuamente justificando suas
ações.
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Don Corleone em “O Poderoso Chefão” é parcialmente


motivado pelo amor à família. Apesar de Gordon Gekko
(em Wall Street) admitir ser movido pela ganância, na visão
dele “ganância” é uma palavra positiva, conota sucesso e
ambição.
Se você estiver criando vilões, tente descobrir o bem
maior, ou o que eles acham que é o bem maior que os move.
É um desejo por segurança? Amor à família? Proteção para
si e para as pessoas próximas? Um mundo melhor (talvez
um onde haja apenas uma classe social e uma cor)? Mesmo
que haja aspectos positivos nessas motivações, elas serão
praticadas com ações negativas (por causa do desejo do
vilão de impor seu sistema de valores aos outros). De forma
última, resultará em algum tipo de repressão.
É possível que vilões desconheçam o que fazem. Me
atreveria a afirmar, e não pretendo justificar seus atos
com isso, que suas ações malignas são fruto das forças
inconscientes que eles não compreendem. A violência e
a repressão vindas desses personagens tendem a ser mais
sutis, mas continuam sendo efetivas. Esses vilões negam
suas ações e motivações, uma forma de negação que pode
ser encontrada em comportamentos compulsivos, vícios
e abusos. São o tipo de personagem que diz “Foi só uns
tapas; isso não machucou meu filho”, ou “só tomei uns
copos, não foi tanto pra ficar bêbado e violento”, ou “Amo
minha esposa, tenho certeza que ela não tem medo de
mim”. Os violões de “Cama Ardente” e “Filha de Ninguém”
desconhecem os efeitos negativos de suas ações.
Qualquer tipo de vilão sofre de algum tipo de
narcisismo, uma incapacidade de ver e respeitar a realidade
do outro. É a incapacidade de reconhecer a humanidade da
outra pessoa, ou de respeitar o direito dessas pessoas serem
quem são.
EXERCÍCIO: Você já se sentiu oprimid_? O que seu
opressor fez pra te fazer se sentir assim? Foram métodos
passivos ou diretos? Imagine as respostas que seu opressor
daria pra justificar essas ações. Você conseguiria criar um
vilão usando essa pessoa como modelo?
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ESTUDO DE CASO: UM ESTRANHO NO NINHO


Um Estranho No Ninho começou como um romance
de Ken Kesey, foi desenvolvido pra ser uma peça de Dale
Wasserman, e então se tornou um filme em 1975, com
os créditos pela escrita dados a Bo Goldman e Lawrence
Hauben.
Quando Dale Wasserman escreveu a peça, ele recriou os
personagens secundários. Eles eram memoráveis por seus
traços gerais, sua função temática e por sua relação com o
personagem principal, McMurphy.
Dale Wasserman vê cada personagem como um efeito
colateral do tema. “O romance de Ken Kessey lida com
o significado de um rebelde na sociedade. É o protótipo
de um rebelde contra a autoridade e o que acontece com
ele. Curiosamente, Man of La Mancha (também escrito
por Wasserman) e Um Estranho No Ninho, que são
drasticamente diferentes, são considerados quase a mesma
peça pois cada qual lida com um rebelde, um abandonado
pela sociedade, um homem que não se adequa. E em ambos
os casos, a sociedade se dedica a reprimir ou exterminar
esse homem.
“O argumento que fiz na peça era sobre a padronização
da sociedade e a supressão do indivíduo. O argumento
girava em torno de que vivemos numa sociedade que
precisa reprimir e disciplinar o indivíduo para preservar a
si mesma. Protegendo-se das aberrações dos indivíduos ela
preserva seu poder, pois pessoas indisciplinadas significam
uma ameaça ao poder.
“Pra dar esse sentido, tive que mostrar a relação entre
a repressão e as vitimas da repressão. Então todos os
personagens secundários são vítimas de alguma forma.
Era necessário diferenciar cada personagem com precisão,
pois vítimas em massa (feito um campo de concentração)
são bem desinteressantes. Elas precisavam representar algo,
mas não seriam personagens bem desenhados. Entendi que
não funcionaria fazê-los um grupo uniformizado; seria um
voltar ao índice

grande problema individualiza-los o mais precisamente


possível.
“Cada um deles era uma vítima de um jeito ligeiramente
diferente. O indiano era uma vítima, pois indianos são
vítimas nos Estados Unidos. O homem com tendências
homossexuais (Harding) é uma vítima pois a sociedade ri
e despreza esse tipo de pessoa, então ele voluntariamente se
retirou da sociedade. O garoto gago foi vítima de uma mãe
monstruosa. O homem que fica sentado fazendo bombas
foi vítima do exército norte americano, que destruiu sua
capacidade de viver em sociedade. O homem que parece
crucificado na parede é vítima da sociedade médica,
que fazia lobotomias para tentar criar comportamentos
aceitáveis. Até mesmo a enfermeira Ratched é uma vítima
da sociedade disciplinar e padronizadora que a transformou
num monstro.”
Para iniciar o preenchimento dos personagens, Dale
passou dez dias num sanatório.
“Uma das coisas que eu procurava era o nível de
inteligência, educação e articulação dessas pessoas. Queria
observar padrões peculiares que faziam essas pessoas serem
tidas como insanas. Existia uma grande variação nisso. Em
alguns, você quase não notava a diferença de uma pessoa
normal, mas era por causa das drogas que eles tomavam.
“Observando antes e depois de serem medicados,
consegui ver toda uma variação de comportamento.
Depois de tomar as drogas, existe pouca tonalidade em
suas falas. É o que se chama de discurso utilitário. Antes de
tomarem as drogas a fala se revelava em padrões selvagens,
até mesmo fascinantes. Eles têm uma lógica própria,
maluca. Às vezes eu ficava impressionado com a beleza de
articulação nessas pessoas. Não era convencional, coerente
ou gramaticalmente correta.”
Dale cria interesse trabalhando contra a lógica dos
personagens.
“É sem graça a lógica perfeita na maneira que os
personagens falam e agem. Normalmente é mentira. Então
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busquei pelo inconsistente, o ilógico, a coisa deslocada no


personagem, pois essas coisas são mais reveladoras do que
personagens alinhados. Por exemplo, se tiver alguém de
natureza violenta, eu também observo atentamente ela
revelar atributos completamente inconsistentes e, às vezes,
esses atributos revelarão verdadeiramente o personagem.
“McMurphy parece ser um homem duro e violento, mas
ensina os colegas a dançar e faz isso com delicadeza. Ele
também recita poesia. Às vezes cita errado, mas em algum
lugar lá dentro, existe amor pela poesia. Quando busco por
personagens, faço isso partindo da premissa que a lógica
perfeita é sem graça.”
Dale também analisa os aspectos ocultos dos
personagens: “Busco pelas forças ocultas e então tento
encontrar maneiras de deixar o público ver o que o próprio
personagem não sabe sobre si. Acontece com aquelas
pessoas que parecem agir guiadas por um suposto conjunto
de motivos mas que, na realidade, agem com base em
impulsos totalmente diferentes.
“Billy Bibbit não entende o que sua mãe fez com ele. Ele
protege a mãe, que é de fato a influência destrutiva em sua
vida. Harding se culpa pelo que não é de fato sua culpa: sua
sexualidade. A enfermeira Ratched é de fato uma mulher
poderosa e artificialmente reprimida que representa o
modelo perfeito de um membro do exército. A repressão
a fez odiar os homens mas, curiosamente, ela é cordial e
decente. Essas são as contradições interessantes. Ela age
daquela forma por boas razões, mas não muda o fato de que
faz coisas bem ruins.
“Existe um elemento que amo enfatizar que é o elemento
surpresa. Personagens principais raramente têm isso, mas
personagens secundários sim. Isso desperta o público e o
mantém alerta. Em “Um Estranho no Ninho”, Candy Starr
era o elemento surpresa. Quem imaginaria encontrar uma
prostituta bonita num lugar como aquele? Até mesmo
quando ela traz sua amiga é uma surpresa. Não só uma
prostituta, mas duas. E, além disso, eram mulheres bem
divertidas.”
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Perguntei a Dale quais os problemas podem surgir com


personagens secundários.
“Um dos piores problemas é não os preencher o
suficiente. Existe tempo na história pra preencher seu
personagem principal. Mas normalmente personagens
secundários interessantes acabam sendo deixados
incompletos. E eu acredito que, a audiência notando
isso ou não, é bem frustrante. Houveram casos que quis
desesperadamente saber o que aconteceu com personagens
secundários e não havia tempo.
“Existe também a tendência de fazer um esboço
simplificado, só pra fazer o personagem funcionar, mas
isso deixa ele meio sem brilho. Nos filmes isso é quase
necessário, já que você não quer dar muito destaque
para personagens de apoio. Isso me incomoda pois todos
os personagens deveriam ser interessantes e não deixar
ninguém perplexo ou insatisfeito.

APLICAÇÃO
Olhe para os personagens secundários no seu roteiro e se
pergunte:
■■ Meus personagens possuem uma função na história?
Qual é?
■■ De que forma cada um dos meus personagens ajuda a
expandir o tema da minha história?
■■ Tomei a devida atenção na criação dos meus
personagens menores? Caso eu tenha utilizado
“personagens-tipo”, me certifiquei de que não são
estereótipos?
■■ Contrastei os personagens? De que formas eles
adicionam cor e textura à história?
■■ Quais os traços gerais que usei para definir meus
personagens secundários e menores? Esses traços
têm relação com a história ou com o tema? (caso
contrário irão soar desnecessários ou forçados)
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■■ Tenho vilões na minha história? Qual é o passado


deles e as forças inconscientes que os motivam?
Existe algum bem perceptível que perseguem através
de suas maldades?

RESUMO
Muitas das melhores histórias são memoráveis por
causa dos personagens secundários. Eles podem mover
a história, esclarecer o papel do personagem principal,
adicionar cor e textura, aprofundar o tema, expandir
a atmosfera, adicionar detalhes até na menor cena, no
menor momento.
James Dearden resume da seguinte forma: “Dentro
do plausível, sem exagerar, você pode deixar seus
personagens menores interessantes. Entretenimento é
o elemento mais importante numa história. Não num
sentido cabal, mas é sobre manter os olhos das pessoas
em movimento, suas orelhas em pé e seus cérebros
funcionando. São esses pequenos detalhes que dão vida
pra algo.
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7
Escrevendo Diálogos
Muitos escritores e professores de escrita têm me dito
“Não dá pra ensinar como escrever diálogos. Ou você
tem jeito pra isso ou não tem”. Concordo que diálogos
incríveis, assim como pinturas incríveis, músicas incríveis,
não podem ser ensinadas. Mas diálogos bons podem.
Existem métodos de pensar uma cena e um personagem
que podem melhorar o diálogo. Os escritores podem treinar
seus ouvidos pra ouvir ritmos e padrões de fala assim
como músicos podem treinar para ouvir melodias e ritmos
musicais.
Primeiro você precisa entender o que é um diálogo bom
e um diálogo ruim.
Um diálogo bom:
■■ É como uma boa música. Tem uma batida, um ritmo,
uma melodia.
■■ Tende a ser curto e econômico. Nenhum personagem
costuma falar mais que duas ou três linhas.
■■ É como uma partida de tênis. A bola vai e vem entre
os jogadores, representando a constante troca de
poder (sexual, físico, político ou social).
■■ Carrega conflito, posturas, intenções. Ao invés de
falar sobre o personagem, ele revela o personagem.
■■ É fácil de ser lido, graças ao seu ritmo. Ele transforma
qualquer um num grande ator.
Existem vários escritores incríveis de diálogos. Um
deles é James Brooks. Leia em voz alta e ouça os ritmos dos
voltar ao índice

diálogos a seguir do filme “Nos Bastidores da Notícia”. Veja


que cada linha revela algo sobre os personagens. Note a
diferença entre as falas.
O assistente diz pra Jane:
ASSISTENTE
Você é um modelo que me espelho em todos
os aspectos, menos no social.

A Conversa entre Jane e Tom:


JANE
Vi as gravações da entrevista com a garota. Sei
que você fingiu uma reação depois da entrevista.
Fez com que vissem você chorando pelo set de
notícias. Você perdeu a linha...
TOM
É difícil não perder a linha; eles sempre
promovem os puxa-sacos, não é?

Ou a conversa entre Aaron e Jane:


AARON
Você poderia pelo menos fingir que essa é uma
situação constrangedora? Eu te encontrar se
arrumando pra um encontro.

JANE
Não é um encontro. São apenas colegas indo a
um compromisso profissional.
Sem ser notada, Jane vai até a sacola de papel,
pega uma caixinha de preservativos, e deixa
escorregar para dentro da bolsa que irá usar pra
sair.
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Vendo os elementos contidos nesses exemplos. O


diálogo do assistente contém uma postura em relação à
Jane. O diálogo de Tom mostra tanto emoção (frustração)
quanto conflito de valores, já que ele luta para ser íntegro
numa área profissional onde esse conceito de integridade
muda constantemente. O diálogo de Aaron mostra conflito
e postura. O diálogo de Jane mostra um conflito interno
enquanto tenta balancear seus relacionamentos com Tom e
Aaron.
Dos exemplos acima, podemos ver que bons diálogos
têm conflitos, emoções, e posturas. Também há um outro
componente essencial: o subtexto.

O QUE É SUBTEXTO?
Subtexto é o que o personagem está dizendo
nas entrelinhas. Normalmente os personagens não
compreendem a si mesmos. Não costumam falar
abertamente aquilo que realmente querem dizer. Podemos
dizer que subtexto é todo o instinto e propósitos ocultos
que não são óbvios para o personagem, mas que ficam nas
entrelinhas para o espectador/leitor.
Um dos exemplos mais encantadores de subtexto é do
filme “Noivo Neurótico, Noiva Nervosa”, escrito por Woody
Allen. Quando Alvie e Annie se encontram pela primeira
vez, ficam se observando dos pés à cabeça. O diálogo é uma
discussão intelectual sobre fotografia, mas o subtexto deles
está escrito nas legendas do filme. Ela divaga no subtexto
se ela seria suficientemente inteligente pra ele. Ele divaga se
está sendo superficial, ela divaga se ele é um babaca igual
o outro homem que saiu, ele divaga sobre como ela seria
pelada.
Em “Noivo Neurótico, Noiva Nervosa”, tanto Annie
quanto Alvie entendem o subtexto daquela conversa.
Mas normalmente os personagens estão inconscientes do
subtexto. Não sabem o que realmente estão dizendo, o que
realmente estão querendo expressar.
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Na peça de Robert Anderson “I Never Sang for My


Father”, existe uma cena de subtexto forte no primeiro
ato. Se passa num restaurante e parece ser sobre um
filho levando o pai para jantar. O subtexto da cena é bem
diferente disso. É sobre a falta de comunicação e sobre a
tensão entre pai e filho. Sobre a raiva reprimida do filho que
não supriu as expectativas do pai.
Apesar do subtexto depender parcialmente da
interpretação do ator, eu destaquei o que deveria ser o
subtexto de várias linhas de diálogo. A cena na peça ocorre
entre o pai (Tom), a mãe (Margaret), e o filho (Gene), mas
para o objetivo dessa discussão, resumi a cena e foquei na
relação entre Tom e Gene.
A garçonete chega para anotar o pedido:

GARÇONETE
Dry Martini?
TOM
(um olhar malicioso) Você me pegou. Faça um
seis pra um.
(SUBTEXTO: Sou muito homem e vou beber um
Martini bem seco)
Do que você gosta, Gene? De um Dubonnet?
(SUBTEXTO: Na visão de Tom, Gene definitivamente
não é tão viril quanto ele. Por isso provavelmente não
beberia Martini; mas Dubonnet.)

GENE
Vou pegar um martini também, por favor.
TOM
Mas não vai ser seis pra um.
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GENE
Sim, será o mesmo!
(SUBTEXTO: Te desafio a achar que sou menos do que
você!)
TOM
Tudo bem!
(SUBTEXTO: Mas que arrogante!)
TOM
Mas o jantar é por minha conta, certo?
GENE
Não, eu te convidei.
TOM
Uh-uh, você já teve todo esse gasto para vir até
aqui.
(SUBTEXTO: Veja que pai justo e generoso eu sou!
Lembre-se, você não ganha o suficiente para pagar essa
viagem e ainda pelo jantar!)
GENE
Não, deixa comigo. E peça o que quiser. Não vai
ficar vendo o preço primeiro... Sempre que eu te
levo pra jantar você fica vendo o preço antes.
(SUBTEXTO: Deixa eu dar isso a você. Quero aproveitar
o jantar e eu posso pagar sim por ele.)
TOM
Não faço isso. Mas acho ridículo pagar, veja só,
$3,75 por um camarão ao curry.
GENE
Você gosta de camarão. Peça o camarão.
TOM
Se você me deixar pagar por ele.
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GENE
Não! Vai, vamos logo.
(SUBTEXTO: Pelo amor de deus, me deixa pagar esse
camarão pra você, por favor!)
TOM
Olha, eu admiro isso, Gene, mas no que você
trabalha...
(SUBTEXTO: Você não é tão bem sucedido quanto eu ou
o quanto eu gostaria que você fosse.)
GENE
Eu posso pagar. Não vamos discutir.

A raiva cresce antes mesmo que consigam pedir algo pra


comer. Tom declara: “Acho que nada me apeteceu. Estou
sem fome”.

O QUE É UM DIÁLOGO RUIM?


Os elementos que fazem um bom diálogo incluem
conflito, posturas, emoções e subtexto. Então o que faz um
diálogo ruim?
■■ É travado, difícil de falar.
■■ Faz os personagens ficarem parecidos entre si,
ninguém soa realista.
■■ Narra o subtexto. Ao invés de revelar o personagem,
ele recita cada pensamento e sensação.
■■ Simplifica as pessoas, ao invés de revelar suas
complexidades.
Então como melhorar um diálogo quando ele está
achatado, sem graça, empolado?
Comecemos com uma cena que vemos em muitos
roteiros. Um Roteirista é chamado para uma reunião com
o produtor, que está interessado em produzir algo. O que
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virá a seguir foi pensado para parecer o pior diálogo já


escrito (Sou totalmente responsável por ele. Foi escrito
especialmente pra esse livro).

PRODUTOR
Bem, entre. É um prazer encontrar você. Sabe, eu
gostei bastante do roteiro, é algo tão bom.
JOVEM ESCRITOR
Oh, obrigado. É meu primeiro roteiro, eu estava
com muito medo de que você não gostasse
dele. Sou do Kansas, nunca estive numa cidade
grande, me sinto muito sortudo de encontrar
uma pessoa como você. Admiro seu trabalho há
muitos anos.
PRODUTOR
Ah, foi muito gentil da sua parte dizer isso.
Vamos conversar sobre fechar negócio.

Bem desagradável, né? É desajeitado, é chato (nenhuma


vida ou energia no roteiro). Os personagens simplesmente
falam o que pensam e o que sentem. Eles soam de maneira
idêntica.
Pra começar, esse diálogo pode ser melhorado
em 5% escrevendo contradições ao invés de “é...” “eu
tenho”. Podemos substituir por “bem”, “hum...”, “sabe...”.
Simplesmente deixando o roteiro mais coloquial ele começa
a melhorar. Mas pra fazer o diálogo funcionar, a cena
precisa ser repensada.
Pedi ajuda pra uma das minhas clientes, a escritora
Dara Marks, que sabe fazer diálogos com energia e ritmo.
Trabalhamos nesse processo da mesma forma que eu faria
numa consulta profissional para aprimorar um diálogo. Fiz
as perguntas, conversamos; ela reescreveu.
Começamos observando diferentes aspectos da cena.
Primeiro perguntamos “Quem são essas pessoas?”
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Sabíamos que o escritor é do Kansas, novo em Los Angeles


e que admira o produtor. Não sabemos nada sobre o
produtor.
Como produtores são? O estereótipo de produtor é de
um negociante frenético, que está a solta pra fazer muito
dinheiro, ou um cinquentão fumante, doido pra explorar
um jovem talento. Dara e eu concordamos que, mesmo
que um estereótipo leve alguma verdade consigo, muitos
produtores são bem diferentes disso. Falamos sobre
produtores que já conhecemos: Aqueles que são bem
tranquilos ou descontraídos (ou chapados), aqueles que
jogam tênis toda tarde, aqueles que são nervosos, aqueles
presunçosos, aqueles que entendem bem dos aspectos de
um filme.
Falamos das vários cenários que já encontramos
produtores: no escritório deles, em restaurantes, num
quarto de hotel se fossem de outra cidade, em home
office, em festa, numa quadra de raquetebol. Já que ambas
já tiveram reuniões num barco, decidimos que a cena se
passaria em um. Criamos um produtor nos seus cinquenta
anos, bem sucedido, que toca o negócio de um salão amplo,
e arejado, do seu iate de 28 metros.
Escolher um cenário incomum (mas que seria crível
em Hollywood) nos deu a oportunidade de nos afastar do
tradicional e previsível (e criar personagens mais reais e
interessantes).
Depois pensamos sobre as posturas dos dois
personagens. Decidimos que o produtor estaria cochilando
no topo da cena e o jovem escritor estaria extremamente
empolgado e ansioso.
Com esses três elementos em mente, nós refizemos a
cena desse jeito:
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INT. IATE – DIA


SUPER CLOSE um lápis vai pra lá e para cá
no topo da escrivaninha com o movimento
suave do iate em sua escotilha. A CAMERA
AFASTA e primeiro revela as solas de sapatos
apoiados um sobre o outro em cima da
escrivaninha. Logo a figura do PRODUTOR é
FOCADA. Feito um bebê no berço, ele balança
suavemente de lá para cá com um roteiro semi-
finalizado deitado sobre o peito.
O JOVEM ESCRITOR aprece na porta
da cabine, meio sem equilíbrio, e bem
desconfortável de estar num barco
(provavelmente sua primeira vez fora de terra
firme). Meio sem jeito, ele olha em volta e vê que
o produtor está dormindo. Ele não sabe muito
bem como lidar com isso.
JOVEM ESCRITOR
(pigarreia) Ah-ham!
O PRODUTOR não se move
JOVEM ESCRITOR
(mais alto) Ah-ham...
O PRODUTOR abre os olhos casualmente e olha pro
relógio.
PRODUTOR
Você tá atrasado
JOVEM ESCRITOR
Desculpa, senhor. Mas o ônibus...
PRODUTOR
(se sentando) Você veio de ônibus?
JOVEM ESCRITOR
(meio inquieto) Ah, sim senhor...
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PRODUTOR
Nunca conheci ninguém que andasse de ônibus.
(faz uma anotação pra si mesmo). Preciso
experimentar isso.
O PRODUTOR acende um cigarro, o que só deixa o
JOVEM ESCRITOR ainda mais enjoado pelo movimento
do mar.
PRODUTOR
Então, criança. O que posso fazer por você?
JOVEM ESCRITOR (surpreso)
É meu roteiro, senhor. Você pediu pra me ver.

PRODUTOR
Pedi?
JOVEM ESCRITOR faz que sim.
PRODUTOR
Qual é o nome?
JOVEM ESCRITOR
“Todos vêm correndo”, senhor.
O PRODUTOR vasculha pela escrivaninha.
PRODUTOR
Deixa-me ver... correndo... sarrento...
O JOVEM ESCRITOR vê seu roteiro e aponta.
JOVEM ESCRITOR
Aquele ali.
PRODUTOR
Ah é, o roteiro da corrida.
JOVEM ESCRITOR
Não é bem sobre corrida, Sr. Dinglemy. É sobre o
Kansas, sou de lá.
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PRODUTOR
Kansas, ein? Tipo milharal e coisa modesta?
(pensa por um instante) Pode começar uma
nova tendência. Gostei! Certo, garoto, você
conseguiu um acordo!

Nessa remodelagem do diálogo, veja que a postura do


produtor está movendo a cena. Ele tem um posicionamento
sobre novas experiências (ele vai tentar pegar um ônibus
um dia desses), sobre Kansas (é um milharal modesto), e
um posicionamento sobre tendências comerciais (ele é bem
sucedido porque tem um “faro” pro que é “quente” e pro
que não é).
O diálogo agora tem certo ritmo, um cenário incomum
que pode ser usado pelo ator e diretor, uma certa
personalidade e uma certa postura no produtor. Mas
continuamos sem ter muito o que transmitir do jovem
escritor.
Para desenvolver esse personagem, começamos com
seu passado. Nós decidimos que ele veio pra Los Angeles
decidido que tinha um ano pra vender um roteiro. Aquele
era o último dia do ano, e a essa altura, ele já não tinha o
que perder. Ele estava nervoso, frustrado e meio sem
esperança com a situação toda.
Já que o produtor guiou a cena com sua postura,
decidimos que o jovem escritor guiaria a cena com conflito
e emoção.
Então remodelamos a cena, mantendo a maioria dos
elementos que gostamos do último tratamento, mas agora
focando na contribuição do personagem do jovem escritor
pra cena:
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INT. IATE – DIA


O JOVEM ESCRITOR mete a cabeça pela
porta, e fica bem aborrecido ao achar que o
PRODUTOR está dormindo.
JOVEM ESCRITOR
(pigarreia)Ah-ham
O PRODUTOR não se move.
JOVEM ESCRITOR (bem alto)
AH-HAM...
O PRODUTOR acorda subitamente, constrangido por
ter sido pego dormindo.
PRODUTOR (tentando se arrumar, meio
atrapalhado)
Você tá atrasado!
JOVEM ESCRITOR (impressionado)
Eu tava aqui desde às 9 da manhã.
PRODUTOR
Bom, sou um homem ocupado.
(remexe nuns papéis pela escrivaninha). O que você
conseguiu?
JOVEM ESCRITOR
Cerca de seis horas atrás consegui pegar um
ônibus de volta pra Wichita.
PRODUTOR
Você anda de ônibus?
JOVEM ESCRITOR
Alguma coisa errada com isso?
PRODUTOR
Não, eu só nunca conheci alguém que faz isso
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JOVEM ESCRITOR
Bom, são as pessoas que assistem seus filmes.
Deveria tentar um dia desses.
PRODUTOR
Não tô gostando dessa postura
JOVEM ESCRITOR (respira fundo) Não tô
vendendo minha postura, senhor! Tô vendendo meu
roteiro, então ou você compra ele ou eu vou voltar pra
fazenda.
PRODUTOR
Que fazenda? Que roteiro?
JOVEM ESCRITOR (exasperado)
O roteiro que você queria falar a respeito.
PRODUTOR
Eu queria? Como se chama?
JOVEM ESCRITOR
“Eles vêm correndo”
O PRODUTOR vasculha pela escrivaninha.
PRODUTOR
Já foi o tempo dessas histórias de corridas.
JOVEM ESCRITOR
Não é exatamente sobre corrida. Pelo amor de
deus, é sobre a situação do agricultor no Kansas.
PRODUTOR
Terra, ein? Quem se importa com terra?
JOVEM ESCRITOR (levanta a mão pro alto)
Eu desisto! Vou voltar pra casa...
PRODUTOR
Espera um pouco! (pensando alto), Terra,
planeta-terra... Simplicidade, gostei. Pode
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começar uma nova tendência. Certo, trato feito!


O JOVEM ESCRITOR está espantado. Ele para no meio
do caminho e dá meia volta.
JOVEM ESCRITOR
(empolgado) Tá falando sério?
PRODUTOR
Claro, garoto... Mas temos que mudar o título!

Agora temos dois personagens de igual pra igual, cada


um contribui pra cena através de postura, conflito, história
passada e intenção. Com personagens fortes, o diálogo se
torna mais forte.
Se continuarmos trabalhando na cena, existem várias
direções que poderíamos tomar.
Talvez você note que a cena é muito “ácida” e que os
personagens parecem nervosos demais e conflitantes.
Talvez você decida dar essa “acidez” pra um deles, mas não
pro outro. Talvez o escritor esteja bravo, mas o produtor se
recuse a cair nesse tipo de atmosfera.
Talvez você decida adicionar um ar de “técnico” na cena.
Detalhando a atividade profissional de cada personagem.
Pense por um momento nas reuniões mais curiosas que
você já teve. O que aconteceu nelas além de uma mera
conversa?
Uma vez eu estava numa reunião onde o empresário
tinha mais de cinquenta bonecos do Mickey na sua mesa.
Se você usasse isso no roteiro, poderia colocar o produtor
tirando pó deles durante a reunião.
Já estive em reuniões onde o empresário jogava dardos
na maior parte do tempo. Ou quando o produtor passava
a maior parte do tempo no telefone, enquanto ficava me
medindo do outro lado da mesa.
Talvez algo possa estar acontecendo na outra sala que
contribua com o “profissionalismo” da cena. Dara e eu
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consideramos criar uma esposa para o produtor. Ela estaria


criando uma grande escultura fora do deck, usando todo
tipo de equipamento. Durante a cena, o escritor tentaria
identificar sons que lembrassem metralhadoras, britadeiras,
ou um motor com problemas. Isso poderia levar a uma
postura de medo, curiosidade ou uma simples incapacidade
de focar em qualquer coisa que o produtor estivesse
dizendo.
Qualquer uma dessas sugestões para uma atmosfera mais
profissional poderia ser usada para revelar o personagem, e
comunicar subtexto para que a cena não ficasse óbvia.
Você pode explorar a atmosfera da cena criando outras
direções para os diálogos. A sala é quente ou fria? Clara
ou escura? Tem alguém fumando? A sala tem um cheiro
estranho? Como é a mobília? Existem muitos livros e
roteiros espalhados de um jeito que nem dá pra se sentar?
Você pode mudar a raça, sexo, idade ou peso de um
dos personagens. Qualquer uma dessas mudanças pode
mudar o diálogo. Uma vez tive uma conversa alguém (não
era produtor) que pesava uns 200 quilos. Ele se sentou
numa cadeira bem larga e não se moveu. Minha surpresa
com sua aparência deixou os primeiros instantes bem
desconfortáveis, e tudo que foi dito no começo da reunião
foram balbucios.
As expectativas que alguém tem sobre uma reunião
afetará o diálogo. Se o seu personagem espera ver um
produtor que tem cinquenta anos, e o produtor na verdade
tem vinte e cinco, a situação inesperada pode mudar o
diálogo. Se algum dos personagens estiver usando um tapa
olho, um colar cervical, tiver um tique no olho, ou esteja
tentando esconder uma espinha bem pequena no queixo.
Tudo isso pode afetar o diálogo.
O vocabulário, o linguajar usado também mudará o
diálogo. Se um personagem tem um sotaque, usa palavras
muito rebuscadas que outros personagens não entendem,
ou fala de uma maneira pouco clara; o tipo de comunicação
entre os personagens irá mudar.
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O contexto da cena também pode impactar no que está


sendo dito. Talvez o produtor estivesse passando por um
divórcio, ou o jovem escritor tivesse acabado de voltar do
funeral de um amigo próximo. Essas situações afetarão
a direção da cena. Outros contextos possíveis: A cena é
o começo de um caso amoroso, ou o fim de um longo
relacionamento profissional entre produtor e escritor, ou o
produtor havia acabado de contratar outro escritor, mas se
sentiu na obrigação de aceitar aquela entrevista.
A cena do produtor e do escritor já foi escrita várias
vezes ao longo da história. Um dos cenários mais inusitados
ocorre na autobiografia de Moss Hart “Ato Um”. Esse livro
foi adaptado para um filme de um dos meus clientes, Treva
SIlverman (“The Mary Tyler Moore Show”), produzido por
Laurence Mark (Working Girl) e Scott Rudin (Mrs. Soffel).
A cena se passa em Nova Iorque. Moss Hart, um escritor
novato, tinha acabado de terminar uma peça, e tinha a
palavra do grande produtor de teatro Jed Harris, de que
queria encontra-lo pra falar sobre o roteiro. Veja como o
diálogo parece simples mas, combinado com negociações e
posturas, comunica muito sobre os dois homens.

INTERIOR MADISON HOTEL – DIA


É meio dia e Moss está ansioso e empolgado, no
balcão do recepcionista
MOSS
É Moss Hart para ver Jed Harris.
RECEPCIONISTA
Suba. Suite 1201. Senhor Harris está a sua espera.
MOSS
(sorri) Obrigado

CORTA PARA:
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INT. HOTEL MADISON, 12º ANDAR – DIA


Moss sai do elevador, segue bem humorado pelo
corredor. Vai até a suíte 1201, bate suavemente na porta.
Está meio aberta. Sem resposta. Ele bate novamente, então
toca a campainha.
VOZ (abafada, distante)
Entre, entre.

CORTA PARA
INT. SUITE 1201 – DIA
Moss entra hesitante na suíte. Passa do pequeno trocador
para a sala de estar. Está impecavelmente limpa, quase
como se não estivesse habitada. Nenhuma bituca de cigarro
ou jornal ao redor. Será o lugar certo?
MOSS
(fala suavemente) Com licença.... Moss Hart,
vim falar com Jed Harris.
VOZ
Sim, entre.
Ele segue a voz, hesitante. Atravessa a sala de estar para o
quarto.

CORTA PARA:
INT. QUARTO – DIA
Uma cama está bagunçada, sem os cobertores. A outra
está empilhada de roteiros. Dois cinzeiros cheios com
cigarros meio-usados. A persiana está abaixada, o lugar
está a meia-luz. Moss está bem confuso, assustado de ter
cometido algum engano.
MOSS
Olá?
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VOZ (do banheiro)


Entre. Entre.
Ele se aproxima do banheiro e dá alguns passos. A
expressão de Moss: Assustado, impactado.
CORTA PARA
Vemos JED HARRIS de costas, de frente pra pia, se
barbeando. Está nu.
JED HARRIS
(casualmente) Bom dia. Sinto muito, eu não
pude te ver antes.
MOSS (totalmente perplexo, trêmulo)
Tudo... tudo bem.
Moss olha ao redor, procurando algum lugar pra focar.
JED HARRIS
Na verdade, queria ler seu roteiro mais cedo, mas
sabe como essa temporada tem sido...
MOSS (arrumando o sapato)
Ah sim, sim.
JED HARRIS
De noite teve uma festa em comemoração aos
Lunts... Parece que todo mundo gosta dos Lunts.
Se quer saber, um Lunt já tá de bom tamanho.
Moss ri, de um jeito breve e sem jeito. Jed Harris começa
a enxugar o rosto.
JED HARRIS
Mas fui à festa por causa daquela atriz italiana
baixinha. Tem tido muito burburinho sobre ela e
eu queria checar.
Uma toalha cai da pia ao chão. Moss olha pra ela, sem
saber se deveria pegar. Ele decide não pegar. Jed Harris
continua a conversa, pisca pra Moss. Moss tenta se lembrar
do que Jed Harris estava falando.
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JAD HARRIS
A fofoca acabou sendo mais verdadeira do que
eu esperava.
Ele ri presunçoso para Moss. Moss tenta sorrir,
mas não consegue. Acaba saindo uma espécie de
tique facial.

A cena, em muitos sentidos, é bem simples. Mas veja


quantas camadas são adicionadas através do diálogo
e da “negociação” na cena. A postura de Moss inclui
antecipação, choque, constrangimento. Existem insinuações
de conflito: entra ou não entra; pega ou não pega a toalha,
falar ou não falar.
Jed demonstra indiferença e alegria sobre a aventura
noturna com a atriz italiana. Treva criou essa conversa pois,
como ela disse, “Moss Hart escreveu seu livro de memórias
em 1950, num tempo mais inocente. Eu tinha que despistar
qualquer suspeita da nudez de Jed Harris soar como uma
brecha homossexual.”
A cena no livro de Moss Hart inclui o mesmo cenário e
circunstâncias: A nudez de Jed Harris e Moss constrangido,
mas o foco é diferente. Hard relata essa cena da obra
original:
Não resta a menor dúvida que Jed harris é
um dos conversadores mais refinados na
questão do teatro... Mesmo no meu estado
desorientado, poderia dizer que aquela era um
tipo de conversa sobre teatro que nunca havia
testemunhado e, à medida que meu desconforto
ia diminuindo, à medida que ele botava a roupa,
comecei a ouvir atentamente. Sua crítica de
“Once in a Lifetime” foi afiada, penetrante, cheia
de rápidas notas sobre suas potencialidades
e falhas, incluindo um entendimento
surpreendentemente profundo da literatura
satírica em geral. Ele passava num piscar de
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olhos da peça Ocen in a Lifetame, para Chekhov,


e então para a produção de Uncle Vanya que
ele ponderava a crítica mordaz de seus colegas,
e uma rápida classificação de certos autores
norte-americanos indignas das folhas em que
estão escritas. Voltando a “Once in a Lifetime”,
numa cascata fascinante de palavras argutas e
articuladas, que me deixaram meio sem fôlego.

Converter esse parágrafo num diálogo de roteiro pode


facilmente se tornar uma cena carregada de falas. Treva
diz “Para recriar essa cena, teria que incluir informação
obscura, exotérica que seria extremamente exaustiva para o
público.”
Eu era a consultora do projeto, e decidimos cortar a
cena já que o filme era sobre a relação de Moss com George
Kaufman e não com Jed Harris. Contudo, essa cena é minha
favorita, por sua clareza de emoções e um certo charme
silencioso.

TÉCNICAS PARA CONDUZIR DIÁLOGOS


Muitos escritores adoram os sons, ritmos e cores de
um bom diálogo. O dramaturgo Robert Anderson diz,
“Me apaixonei por diálogos quando meu irmão trouxe
da faculdade o livro da peça de Noel Coward. Perguntei
pra minha mãe do que se tratava e ela disse que era uma
peça. Desde então fiquei fascinado. Sempre escrevo
diálogos em romances. Quando leio romances, pulo direto
para os diálogos, o que é um erro, já que os romances são
conduzidos na narrativa, não nos diálogos.
“Acho que você sequer deveria começar na dramaturgia
se não tiver uma sensibilidade para o diálogo. Penso que
um dramaturgo deve ter o dom pra situações dramáticas e
para diálogos dramáticos.”
Escritores possuem vários modos de se preparar para a
escrita de diálogos. O primeiro passo pra a maioria deles é
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passar um grande tempo esculpindo/trabalhando a história,


antes de sequer escrever os diálogos.
Robert Anderson continua, “Penso muito bem nas
dinâmicas da história, na estrutura, nos personagens, no
que estão fazendo, no subtexto, no que está acontecendo em
cada cena e na progressão de cada cena.
Passo meses tentando definir o tema da peça. Chamo
isso de pescaria: Toda manhã, sento-me em frente à
escrivaninha e jogo minha ideia geral como se fosse um
anzol. Faço anotações, mas não guardo nenhuma. Então,
no dia seguinte, jogo o mesmo anzol e espero algo ser
fisgado. Sinto o tema ganhando forma: consigo ver aonde
os personagens estão, para onde se direcionam e tenho
uma noção geral da história. Puxo o anzol rapidamente,
escrevo o primeiro tratamento em duas ou três semanas
mais ou menos. Vou escrevendo no impulso, sem ler nada
até finalizá-lo. É uma espontaneidade dentro daquela
forma que consegui fisgar na pescaria (que ainda está em
formação).
“Desenho a estrutura da cena, passo seis ou sete meses
(talvez mais) estudando minhas anotações. Conheço
bem os personagens. Podem falar de qualquer coisa que
quiserem, contanto que cumpram com o propósito da cena.
Escrever diálogos me lembra de uma conversa que tive com
meu amigo e dramaturgo Sidney Kingsley. Sidney estava
escrevendo uma peça e perguntei como andava. Ele disse
“estou quase terminando, começo a escrever os diálogos
amanhã”. Portanto, o diálogo vem depois de mapearmos
todo o resto.”
Dale Wasserman aborda o diálogo analisando primeiro
o assunto e a intenção de cada cena. “Pra mim, o diálogo
vem por último. Quando sei pra onde minha história vai
e quando sei a ideia e o propósito de cada cena. Só então
adiciono os diálogos. A essa altura o diálogo e seu conteúdo
se tornaram quase inevitáveis. Claro, a cor e estilo do
diálogo não é algo fácil de se fazer. É bem difícil passar a
simplicidade e estilo necessário.”
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Muitos escritores treinam para ouvir cuidadosamente a


fala das pessoas em várias situações diferentes:
John Millington Synge diz que foi ouvindo a conversa
das copeiras que ele aprendeu a ter uma noção de diálogo.
Robin Cook diz que ama ficar ouvindo a conversa das
pessoas no avião, jogar basquete no parque para ouvir as
crianças provocando umas as outras.
Robert Benton às vezes grava um diálogo para ouvir o
ritmo. “No filme Um Lugar No Coração, Margaret Sarling
foi baseada numa amiga minha. Sentei-me com ela e a
gravei por dois dias. Nós simplesmente conversamos e
conversamos até eu captar o jeito dela falar.”
Mas conversas reais não são iguais a diálogos.
Desenvolver a audição pra ouvir diálogos é só o primeiro
passo. O próximo é traduzir conversas reais em diálogos de
ficção.
“Eu nunca uso palavras que as pessoas normalmente
usariam”, afirma Robert Anderson. “Se você ouvir uma
gravação de pessoas conversando, verá como é ridículo.
Diálogos são estilizados. São verossímeis, não puramente
realistas. É preciso ouvidos pra preencher essa lacuna.
Anos atrás, quando escrevia pra um programa de rádio
chamado “The Theatre Guild no Ar”, fiz uma adaptação de
“A Farewell to Arms” para que Humphrey Bogart estrelasse.
Pra minha desilusão, descobri que poderia usar bem poucos
diálogos de Hemigway, já que ele não movia a história
ou desenvolvia os relacionamentos dos personagens.
Quando o programa foi ao ar a crítica disse “Os diálogos
de Hemigway moveram a história”. Fiquei lisonjeado que
consegui escrever diálogos de um jeito “Hemigwayano”, que
movessem a história”.
Robin Cook relata, “Sempre que escrevo um diálogo, leio
em voz alta. Busco uma semelhança. Quero que soe como
duas pessoas conversando. É tão óbvio pra mim ler um livro
com um diálogo que não soa realista. Uma das partes mais
incríveis de diálogos realmente bons é que te dá a sensação
voltar ao índice

de estar lendo o âmago da linguagem, quando na verdade


não se está”.
De acordo com Shelley Lowenkopf,”O diálogo num
romance nunca tem a intenção de ser a exata representação
da realidade; ele representa a postura dos personagens.
Você deve ser capaz de identificar quem está falando só de
escutar o desejo oculto naquela fala. Portanto o diálogo é
uma forma de transbordar a parte secreta do personagem.
Parte da construção de um bom diálogo é pensar através do
personagem e entender o que ele quer manter em segredo”.
Leonard Tourney complementa: “Diálogos realistas
não são falas reais, são um artifício. Diálogos devem
caracterizar, ser bem compactos. Dar um sabor de
realidade.”
Existem exercícios e processos para ajudar na escrita de
um bom diálogo.
Treva Silverman começa gravando a si mesma e depois
ouvindo a gravação no dia seguinte. “A essa altura já me
esqueci de 90% do que disse, então consigo ouvir como se
fosse pela primeira vez. Nesse estágio do processo, procuro
por alguma dica de como o personagem soa. Quando eu
consigo captar a voz dele posso finalmente relaxar, mas
é infernal até isso acontecer. É bem mais fácil usando um
gravador, intimida menos, pois não estou olhando pra uma
página ou uma tela em branco.”
Robert Anderson explica, “Muitos escritores começam
escrevendo o diálogo primeiro, ao invés de deixa-lo por
último. Uma vez, Neil Simon me disse que trabalhava
dessa forma: descobrindo os personagens e o fio da história
através dos diálogos. Depois de tentar isso várias vezes
(afinal, eu amava diálogos, não a história) descobri que
isso me deixava em vários becos sem saída após quarenta
páginas. Não descobria nada. Descobria coisas que eu não
sabia sobre mim mesmo, coisas que eu não sabia que sabia,
mas não conseguia descobrir a história em si. Eu precisava
saber qual seria meu final.
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“O diálogo não irá fluir se você estiver com a situação


errada. Se não houver pessoas numa situação interessante
(interessante no sentido de progressão de cena), isso será
fatal.
“O dramaturgo John Van Druten às vezes diz que não
consegue fazer o personagem falar adequadamente até
mudar o nome do personagem. Eu mesmo digo isso. Digo
que Laura falará de um jeito diferente de Hazel. O diálogo
não vai funcionar até você conseguir o nome certo.
“Costumava dar exercícios de diálogo pros meus alunos.
Num dos exercícios, eu dizia que alguém encontrava uma
nota de dez dólares e essa pessoa discutia as possibilidades
com a família de como esses dez dólares seriam gastos. O
movimento da cena está em quem irá gastar o dinheiro
e como ele será gasto, porém o subtexto pode iluminar as
tensões geradas na família com aquele evento.
“Na minha peça ‘You Know I Can’t Hear You When the
Water’s Running’, existe uma cena onde duas pessoas de
meia idade discutem se vão comprar duas camas de solteiro
ou uma de casal. Eles estão discutindo sobre as camas,
mas o casamento inteiro é revelado naquela discussão.
O subtexto é sobre o que aconteceu na vida deles, sobre o
amor deles, sobre a meia idade.”
Quando Jules Feiffer deu uma aula de dramaturgia na
Escola de Arte Dramática de Yale, ele ensinou os estudantes
a melhorar o diálogo “deixe de lado sua presunção e
sentimentos semelhantes. Decida qual é o sentido daquela
cena (o objetivo dela), corte tudo que não seja esse sentido
(esse objetivo). Corte as firulas que especialmente jovens
escritores gostam de colocar pra mostrar como são
requintados (deixe de lado sua presunção).”
A chave para escrever um bom diálogo começa em
aprender a ouvir os ritmos e nuances.
“A coisa mais importante”, afirma Robert Anderson “é
desenvolver a voz do personagem. Não é só um diálogo,
é uma postura, uma personalidade. Se você tiver a voz, os
diálogos funcionarão corretamente”.
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ESTUDO DE CASO: JULES FEIFFER


Muitos estão familiarizados com os cartoons semanais
de Jules Feiffer. Seu filme (e mais tarde a peça) Carnal
Knowledge tem sido frequentemente comentado por causa
de seus diálogos brilhantes. Ele também adaptou Popeye
para o cinema, escreveu Little Murders e Elliott Loves. Seus
apontamentos sobre diálogos são relevantes para todos os
formatos de ficção.
Nessa entrevista, ele fala sobre a diferença na escrita de
diálogos para cada meio.
“Quando me mudei dos cartoons para o teatro e
depois para os filmes, aprendi que os diálogos são bem
diferentes. No teatro e no cinema, quando você lida com
relacionamentos, é preciso mostrar o começo, o meio e o
fim, que é o que eu faço nos quadrinhos. O que as pessoas
conversam nos quadrinhos é bem direto e suscinto. É
preciso ser assim, por causa do espaço disponível. No palco,
você consegue adicionar mais nuance, uma quantidade bem
maior de coisas indiretas. Diálogos de palco podem ser
mais completos e mais expositivos (mais gratificantes pro
ego) do que em diálogos de filmes. Nos filmes você investe
bem mais em comunicação não verbal (troca de olhares,
movimentos físicos, etc).”
Perguntei a Jules sobre seu processo de criar diálogos.
“Antes de mais nada, não vejo como diálogo. Diálogo
é algo que vem naturalmente depois que você captura o
personagem, depois de colocar o personagem na situação.
Uma vez que você coloca duas ou mais pessoas em algum
tipo de situação (e já decidiu quem e o que elas são), eles
vão automaticamente dizer certas coisas. Uma coisa vai
levar a outra e você descobrirá com seu público do que é
que eles estão falando. Sempre fico surpreso com o que
meus personagens terão que dizer um pro outro. Você
coloca eles pra seguir uma trilha e eles próprios saem
dela e é aí que as coisas ficam divertidas. Descobri que se
eu seguir a outline (o rascunho geral da história), não vou
conseguir nada muito interessante ou muito vívido. O que
os personagens têm a dizer um pro outro é o que dá (em
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grande parte) a energia para a história. Quando falamos de


relacionamentos, a energia é o que importa. Mesmo quando
a situação é essencialmente passiva, é necessário haver uma
presença real de energia.
“Essa energia vem do subtexto. É o conflito oculto/
subjacente que está em guerra com a superfície da peça,
então o único conflito real será entre esse personagem
com ele mesmo. Não se constrói subtexto a partir de várias
anotações. É uma questão de compreender perfeitamente o
que está e o que não está acontecendo, os motivos do que
está ou não acontecendo e o quanto disso virá à tona. O
grande esforço de uma história é segurar até o último
segundo, quanto todas as coisas começarão a explodir,
criando o clímax dramático.
“Em algum momento o subtexto virá à tona, mas não
acho vantajoso que todo o subtexto seja revelado. Alguma
parte dele deve surgir, mas você não pode abrir mão
de todos os seus segredos. Deixe alguns pra audiência
desvendar. Quero que o público seja um personagem no
filme, seja ativamente envolvido. Se você colocar todos
os pingos nos i’s, tratar a audiência igual uma batata, não
restará energia fluindo entre o filme/o palco e a audiência.
Eu sei que eu, como parte do público, amo ser forçado a
pensar, ser desafiado pela obra que se apresenta diante de
mim, por isso quero proporcionar o mesmo com meu
trabalho.
“Se o cartoon é mais pessoal, frequentemente uso o
subtexto. Se for político, farei um roteiro mais direto;
porém, como normalmente são irônicos, tenho que
fazer com subtexto. No meu trabalho ao menos, a maior
parte das pessoas que falam não querem se abrir muito.
As pessoas normalmente dirão o oposto do que querem
realmente dizer ou disfarçam o verdadeiro significado
usando todos os tipos de rótulos (seja na vida pública ou
privada). Esse tem sido o foco do meu trabalho desde o
começo: despir esses rótulos e mostrar do que realmente se
trata a coisa.
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“Se eu estiver tendo problemas pra conseguir a situação


ideal, normalmente me ajuda começar com um diálogo
do tipo ‘Olá, como vai. Vou bem. O que você tá fazendo
hoje? Nada demais. Bem, eu tô com um problema...’, e
vou seguindo por páginas de puro papo furado até que eu
consiga uma situação. Outas vezes eu consigo captar a coisa
da metade em diante, então completo a parte que ficou
faltando. Às vezes fico travado por dias, até semanas. Uma
peça me levou seis anos porque eu não conseguia entender
pra qual direção eu estava indo.
“Se você conseguir pegar o espírito desse processo e
colocar tudo de uma forma cotidiana (numa linguagem
que usaria no cotidiano), você vai chegar longe. Então, no
próximo tratamento, revise com uma maneira diferente de
falar, que dê personalidade aos personagens. Em muitas
peças e roteiros, os personagens soam parecidos. Gosto
que meus personagens sejam tão peculiares que nem
precisem de nomes para que os leitores reconheçam quem
está falando. Você precisa treinar seus ouvidos pra captar
tiques comportamentais numa conversa. Mas a coisa mais
importante é ouvir sua voz interior.”

APLICAÇÃO
O diálogo é a chave da escrita na dramaturgia, mas
também é essencial para qualquer tipo de obra de ficção,
seja drama, romance ou uma história curta.
Olhe pros seus personagens e pergunte-se:
■■ Eu defini o personagem usando ritmo de diálogo,
vocabulário, sotaque (se necessário), e até mesmo na
extensão das falas?
■■ Existe conflito nos diálogos? O diálogo contrasta a
postura dos personagens?
■■ Meu diálogo contém subtexto? Consegui expressar de
alguma forma o que meus personagens querem dizer,
mesmo diante do que realmente disseram?
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■■ É possível sentir a etnia ou o contexto cultural


daquele personagem nos diálogos dele/dela? E o nível
de educação? A idade do personagem?
■■ Se eu não visse o nome dos personagens, seria
possível identificar os personagens que estão
conversando? O diálogo está diferenciando o
personagem?

RESUMO
Um escritor está sempre em treinamento. Aprender a
escrever diálogos inclui: ouvir, escrever e declamar bons
diálogos para internalizar como soam e seus ritmos.
Alguns escritores fazem aulas de teatro para entender mais
profundamente o que um ator precisa deles.
Diálogo é a música da escrita de ficção (com ritmo e
melodia). É possível pra qualquer escritor desenvolver
um ouvido pra isso; escrever diálogos que transmitem
posturas e emoções, além de expressar as complexidades do
personagem.
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8
Criando Personagens
Não realistas
Até agora, discutimos personagens realistas: aqueles que
são como nós. Nos identificamos com eles por dividirem
as mesmas falhas, os mesmos desejos e metas. Eles não são
super-heróis, não têm características subumanas, ou falhas
exageradas.
Mas o mundo da ficção é também repleto de
personagens não realistas. Pense na grande variedade
de personagens que vieram de um mundo especial da
imaginação: E.T, Mr. Ed, sereias, monstros do pântano,
tomates assassinos, Super-homem e Batman, King Kong,
Bambi, Dumbo, Jolly Green Giant, California Raisins.
Nesse capítulo, veremos os quatro tipos diferentes de
personagens não realistas. Personagens que você, como
escritor, talvez crie. São eles: personagem simbólico,
personagem não-humano, personagem de fantasia e,
personagem mítico. Os personagens em cada categoria
são determinados por seus limites, contexto, associações e
respostas que o público pode trazer para cada um deles.

O PERSONAGEM SIMBÓLICO
Personagens realistas são os mais dimensionais, são
definidos por coerências/paradoxos, por seu psicológico
complexo, posturas, valores e emoções. Se você estiver
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escrevendo uma lista de qualidades de um personagem


realista, você acabará tendo uma lista bem longa.
Personagens simbólicos são unidimensionais. Não foram
pensados para ter dimensionalidade. Eles personificam uma
qualidade, normalmente baseada num conceito tal como
o amor, a sabedoria, a piedade, a justiça. Eles funcionam
melhor em histórias não-realistas; em mitos, fantasias, ou
até mesmo em quadrinhos exagerados como os de super-
heróis.
As raízes dos personagens simbólicos vêm da tragédia
grega e romana. Os deuses e deusas eram normalmente
definidos por um atributo. Athena/Minerva era a deusa
da sabedoria, Afrodite/Venus era a deusa do amor, Hades/
Plutão era o deus do submundo, Poseidon/Netuno o deus
do mar, etc.
Apesar de limitados na dimensionalidade, eles não são
desinteressantes ou superficiais, pois aquela qualidade
possui uma série de outras qualidades relacionadas.
Por exemplo, Marte (ou Ares) era o deus da guerra.
Odiado por seus pais, Zeus e Hera, ele era implacável,
assassino, sanguinário. Discórdia e Conflito o
acompanham, bem como Terror e Pânico. Na mitologia
romana, ele usa uma armadura brilhante, os soldados “se
apressam para a morte gloriosa” quando veem que irão
morrer no campo de batalha de Marte. Sua ave é o abutre, a
ave da morte.
Tudo que é relacionado à guerra pode ser encontrado no
contexto de Marte. Os sons da guerra, as vestes da guerra,
as qualidades da guerra; são todas partes desse personagem.
Tudo que não é guerra, não é parte dele. Ele não possui
nenhuma ambivalência realista sobre guerra e paz. Não
existe nenhuma alegria nele, nenhuma incerteza, nenhuma
contradição.
Poderíamos traçar uma linha de continuidade entre o
personagem simbólico e o realista.
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Se você colocar Marte nessa linha, ele seria um


personagem simbólico unidimensional. Existem vários
personagens multidimensionais que você pode colocar na
outra extremidade: Rick de Casablanca, Scarlett O’Hara,
Shane, ou Rose de “Uma aventura na África”.
À medida que você classifica os personagens (indo de
unidimensional até multidimensional), é possível encontrar
personagens que ficam em algum lugar entre esses dois
polos.
“As Mulheres Perfeitas” são personagens simbólicas que
representam a esposa perfeita. Tudo que é associado a esse
conceito é parte do que as compõe, incluindo submissão
aos seus maridos, um comprometimento com casa limpa,
comida boa, e manter as crianças felizes. Elas não possuem
nenhuma característica que não seja relacionada a esse
papel ou qualquer traço negativo da vida de casada que
interfira em suas personalidades.
Outros exemplos são “O Homem Comum” em “O
Homem que Não Vendeu Sua Alma” de Robert Bolt, e
“Todo Homem” da peça medieval de mesmo nome, que
representa a frivolidade das pessoas.
Muitos vilões, assim como muitos super-heróis, também
são personagens simbólicos. O Coringa do Batman
representa o mal, enquanto o Super-homem luta pela
“verdade, justiça e o jeito americano de viver”.
Os criadores de personagens simbólicos propositalmente
não adicionam muitos detalhes, apenas o suficiente pra
transmitir a ideia.
Ao colocar esses personagens na linha contínua,
talvez você decida de Clark Kent e Bruce Wayne são
intencionalmente mais dimensionais que suas personas
Super-homem e Batman, e também propositalmente menos
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dimensionais que personagens como Rick, Scarlett, Shane,


ou Rose. A ordem pode ficar assim:

EXERCÍCIO: Crie um personagem que represente a


Justiça. Comece listando as qualidades da justiça. Uma lista
parcial deve incluir: equidade (incluindo de cor e gênero),
neutralidade, uma noção de moral e entendimento concreto
da lei. Você deve ser capaz de criar doze ou cinquenta
características da justiça. Para desenvolver essa ideia,
pense sobre quem seriam os pais da Justiça. Talvez um
seja advogado, representando a Legalidade, e o outro um
filósofo, representando a Sabedoria. Se você estiver criando
um deus ou uma deusa, você poderia parar aqui.
Agora comece a dar mais dimensionalidade a esse
personagem. Acrescente qualidades relacionadas que não
sejam contraditórias. Compaixão, sabedoria, perspicácia, e
a capacidade de negociar são algumas possibilidades.
Pense nas diferenças entre Justiça (como um personagem
simbólico) e um personagem realista que tenha a justiça
como qualidade dominante. Um personagem realista
também terá contradições, ambivalências e paradoxos que
são parte de uma pessoa totalmente dimensional.
Personagens simbólicos podem ser úteis para expressar o
tema da sua história (por transmitir uma ideia muito clara).
Porém é preciso tomar cuidado para que essas limitações
não os façam parecer personagens planos.

O PERSONAGEM NÃO-HUMANO
Muitos de nós crescemos lendo histórias com
personagens não-humanos, como “Beleza Negra: A
Autobiografia de um Cavalo”, Lassie, A Teia de Charlotte,
Bambi, Dumbo, O Corcel Negro. Mas personagens
não-humanos não se limitam às histórias infantis. Nos
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fascinamos com “A Revolução Dos Bichos” de George


Orwell, o Caliban em “A Tempestade” ou Harvey da peça
com o mesmo nome.
Ocasionalmente personagens não-humanos são
humanos com alguma característica animal: um latido,
um jeito de morder, um rabo peludo. São animais
antropomórficos. Apesar dos personagens em “A revolução
dos Bichos” não serem tão dimensionais quanto os
personagens humanos, eles são propositalmente pensados
para lembrar humanos. Podemos dizer que são gente em
pele de bicho.
A criação de um personagem não-humano deve começar
enfatizando o lado humano do animal. Lassie é muito leal e
gentil. Rin Tin Tin é muito esperto. Napoleão, o porco de “A
Revolução dos Bichos”, manipula e tiraniza os outros. Mas
essas características ainda não são suficientes para formar
os personagens. Não adianta ficar observando um cachorro
inteligente por uma semana ou um cavalo meigo. É preciso
uma técnica diferente para criar personagens não humanos
possíveis de serem trabalhados.
Um personagem humano atinge dimensionalidade
através da ênfase e acréscimos em suas características
humanas. Mas enfatizar os aspectos não-humanos de um
personagem, raramente fortalecerá um personagem não-
humano. Enfatizar as características de um cachorro (latido
alto, correr pra tigela de comida) não o fará mais cativante
aos humanos.
Portanto, uma personalidade precisa ser criada para o
personagem. Esse processo de construção de identidade
pode incluir:
1. Escolher cuidadosamente um ou dois atributos que
começarão a identifica-lo.
2. Enfatizar as associações que a audiência projeta no
personagem para expandir sua identidade
3. Criar um contexto forte para aprofundar o
personagem
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Personagens realistas são mais difíceis de categorizar


do que personagens não-humanos. Personagens realistas
podem ser leais, mas sob certas circunstâncias (um perigo
de vida talvez enfraqueça essa lealdade); podem parecer
otimistas, mas uma situação trágica talvez mude isso.
Já os personagens não-humanos têm atributos bem
claros e imutáveis. Apesar desses atributos se basearem em
qualidades humanas, eles não terão o lado sombrio, ou a
variação que os personagens humanos possuem. Lassie
sempre será leal, Rin Tin Tin sempre será inteligente.
Al Burton, produtor da nova série “Lassie”, relata: “Existe
uma constância na Lassie que é rara nos humanos. Ela é
protetora, leal, confiável, corajosa, um cobertor seguro para
uma criança”.
Somente esses atributos não darão diversidade e interesse
suficientes. O público precisa fazer associações. Como
elas funcionam? Vejamos o método usado pelo mundo
publicitário para criar personagens para produtos como
carros, vegetais, cervejas.
Michael Gill, vice presidente da agência J. Walter
Thompson, explica como eles fazem para criar uma
identidade para a marca, que também pode ser usada
para criar a identidade de um personagem. “Muitos
consumidores não conseguem diferenciar cervejas,
detergentes, até mesmo Pepsi e Coca-Cola. Então o trabalho
da publicidade é deixar a marca com personalidade, uma
identidade, torna-la distinta. É como marcar o gado:
você vê aquela marca e instantaneamente reconhece.
Aquela marca é usada pra diferenciar tudo que pode
ser semelhante. Por isso Mercedes se tornou o carro da
engenharia, Ford luta pela qualidade. Certos caminhões
lutam pelo poder e durabilidade. Esses personagens não-
humanos (seja um carro ou um computador) se tornam
a personificação de certas qualidades. Ao associar um
carro (uma coisa física) com um valor (a qualidade, por
exemplo), você consegue criar uma atmosfera para o
produto (efeito halo)”.
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Na propaganda, essa atmosfera causa o desejo de


adquirir o produto. Quando aplicada à criação de
personagens não-humanos, isso fortalece o elo de
identificação com o público.
Às vezes a personalidade do personagem do comercial
vem de uma análise das propriedades do produto. O
Pillsbury Doughboy nos faz pensar no processo de sovar
e crescer da massa. Snap, Crackle e Pop (personagens
da Kellogg’s) vêm do som que o Rice Krispies faz. Spuds
Mackenzie (personagem não-humano da cerveja Bud
Light) investe na nossa associação de que cachorros são
os melhores amigos do homem, e nesse caso, um animal
ousado, engraçado e festeiro.
Outras vezes a identidade do personagem vem das
associações extras. As uvas-passas que dançam no
comercial da California Raisins tem pouca relação com as
características e propriedades desse alimento. O criador
não enfatiza suas rugas, ou o tamanho diminuto, ou as
propriedades benéficas pra saúde. Foi feito um grande salto.
O criador Seth Werner, explica o começo daquela ideia:
“O cliente nos disse: ‘quero uma campanha de
celebração, que seja maior do simples uvas passas. Acho que
uma celebridade poderia dar personalidade e uma presença
marcante que não o produto isolado não conseguiria
atingir’. Dissemos que poderíamos criar uma celebridade
vinda das próprias uvas passas, dando personalidade a
elas. A ideia original (com meu parceiro Dexter Fedor),
era um bando de passas dançando ao som de “I Heard It
Thorugh the Grapevine”. Pensamos na aparência delas.
Decidimos que seriam maneiras e um pouco intimidadoras.
Em contraste, outros aperitivos seriam menos maneiros,
com menos gingado. Criamos um relacionamento entre
as passas e outros alimentos (uma batata frita que murcha,
doces que derretem, uma bala que fica grudada na mesa,
enquanto as passas permanecem elegantes em seus ternos
e óculos escuros. Os pretzels tinham sapatos antiquados, os
doces tinham botas antiquadas – tudo para dar um aspecto
menos estiloso em relação às passas).
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“Queríamos que o consumidor acreditasse no realismo


desses personagens. Precisa estar ancorado na realidade
ou o público não é persuadido. Isso significa que tínhamos
que criar, não só os traços gerais, mas as sutilezas e
detalhezinhos que tornasse a coisa especial”.
Todos esses personagens ganham personalidade através
das associações que surgem à partir de certos sentimentos
que despertamos com o personagem. Essas associações
podem ser fortalecidas se esclarecermos o contexto do
personagem.
Lassie é definida pelo contexto familiar. Ela existe
num relacionamento. O coprodutor Steve Stark afirma
“Consideramos a cachorra como parte da família. Ela
realmente é a melhor amiga de todos da casa. A nova série
da Lassie não é só um programa infantil, mas para toda a
família pois Lassie participa da família como um todo.
Quando ela fica doente, a família fica ao seu lado, e vice-
versa (igual uma família de verdade. Rin Tin Tin era um
cão de resgate, Lassie é a confidente e a amiga”.
O produtor Al Burton diz, “O contexto familiar é a
herança do antigo programa, e é enfatizado nessa série.
Acrescentamos uma garota ao programa que tem relação
com Lassie. Lassie sabe que é importante na família, que
precisam dela. A família não faz muito sem que o público
sinta “Caramba, ainda bem que eles têm a Lassie”. Lassie
é um animal muito mais sensível que Rin Tin Tin, mais
racional, ela parece estar conectada automaticamente ao
espírito daquela família.
“Lessie é uma companhia incrível, uma amiga
maravilhosa e, nessa época de relações ruins (eu acredito
que vivemos numa época de realções ruins) é incrível ter
uma cachorra que traga aquele relacionamento tranquilo
que não existe mais hoje em dia”.
Compare o contexto da Lassie com outro personagem
não-humano: King Kong. Ele veio dos mares do sul, de
um contexto primitivo, sombrio, misterioso e assustador.
As associações que ele inspira são: um vago conhecimento
de rituais antigos, sacrifícios humanos, uma sexualidade
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sombria e irreprimível. Suas origens são desconhecidas,


o que o acalma ainda é desconhecido. Temos ainda mais
medo de King Kong por ele nos fazer associá-lo ao nosso
medo pelo desconhecido.
EXERCÍCIO: Crie uma criatura escamosa de outro
planeta através do processo:
1. Escolha um atributo
Que qualidades você dará para essa criatura? Ela
será mais defensiva, mais amedrontada, mais
manipuladora? Ou será mais piedosa, companheira e
leal?
2. Expanda esse atributo usando associações
Que associações você tentará inspirar? As associações
mudarão dependendo do lado que você escolher.
Serão atributos humanos positivos ou negativos?
3. Crie um contexto claro
Qual será o contexto dessa criatura? Ela mora nas
profundezas da terra (enfatizando o lado primitivo,
sombrio?) Virá do céu (enfatizando algo do outro
mundo, talvez até um contexto mais bondoso?)
É uma criatura que vive na superfície da terra
(deixando-a mais fácil de relacionar com nosso
mundo?)

O PERSONAGEM DE FANTASIA
Personagens de fantasia vivem num mundo romântico,
mágico, estranho. Habitado por criaturas como os duendes,
gigantes, goblins, trolls, e bruxas. Pode haver os sombrios e
malvados, mas nunca é algo cabal. Os personagens podem
ser perigosos, mais não horripilantes. Podem ser malvados,
mas o bem sempre triunfa. Personagens de fantasia podem
até mesmo se redimir no final.
Personagens com esse contexto mágico têm um número
limitado de qualidades. Às vezes são definidos por exageros
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físicos, gigantescos como Paul Bunyan ou diminutos como


Liliputians (Viagens de Gulliver).
Outros são definidos por seus poderes mágicos (Merlin
do Rei Arthur ou a bruxa má do Mágico de Oz).
Alguns são definidos por serem super-bondosos, super-
geniais, ou super-malvados. Quase todas as heroínas,
heróis e vilões de contos de fadas se encaixam numa dessas
descrições.
Apesar da maioria dos personagens de fantasia ter suas
raízes nos contos de fadas e no folclore, novos personagens
tem sido criados. Alguns deles incluem a sereia em “Splash”,
o garoto preso no corpo de um adulto em “Quero Ser
Grande”, e os anterianos em “Cocoon”.
Na série de televisão “A Bela e a Fera”, um personagem de
fantasia (Vincent) é colocado com uma personagem realista
(Catherine). O contexto de Vicent: submundo, grosseiro,
primitivo, sempre intimidado pelas luzes. Ele contrasta
com Catherina no seu apartamento alto e moderno. Assim
como um personagem realista, ela tem uma abrangência
muito maior de emoções. Ela pode ficar deprimida,
triste, frenética, desgastada, bem como amar, ser gentil,
compreensiva, ter compaixão.
As qualidades de Vicente são mais limitadas. Ele não é
um personagem realista vestindo a cabeça de um leão. Ele
permanece nos limites da fantasia. Apesar da aparência
disforme, as qualidades de Vicente são positivas. Ele é
gentil, tem compaixão, é carinhoso. Às vezes existe uma
ânsia, mas isso nunca compromete a bondade de sua
alma. Na verdade, bondade é sua característica dominante.
O estilo do programa é romântico, e Vicente é heroico
(fazendo desse programa um conto de fadas moderno).
Nas propagandas, um dos personagens de maior sucesso
é Jolly Green Giant. A história da sua criação mostra como
a escolha cuidadosa de atributos podem produzir um
personagem claro e memorável.
Em 1924, uma nova marca de ervilha foi lançada no
mercado. Por causa da sua grande lata ela foi chamada de
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“Gigante Verde”(Green Giant). A agência Leo Burnett foi


contratada pra desenvolver o personagem. Eles começaram
desenvolvendo o contexto positivo do gigante colocando-o
num Vale Verde e criando uma associação de saúde e
abundância.
Huntley Baldwin da agência Leo Brunett relata: “Lá
no fundo, no coração do que sentimos pela comida está a
sobrevivência. Em quase toda cultura primitiva, grandes
deuses guiaram a caça e garantiram a colheita. Um panteão
de deuses garantiu que tudo fosse abundante, fresco e
saudável. O Gigante Verde (Green Giant) é um descendente
direto desses deuses. Assim como outros personagens de
fantasia, existem alguns detalhes conhecidos sobre ele. Ele
vive num vale de onde todas as coisas boas vêm. Ele guia
o destino daqueles que vivem e trabalham lá. Ele cuida
pessoalmente de cada detalhe, do plantio, colheita até
envase”.
Certas qualidades especificas foram criadas para
expandir o personagem. “O Gigante Verde é a ‘estrela’ do
comercial”, Baldwin explica, “mas visualmente ele faz um
papel de apoio. Ele é mais uma presença para ser sentida
do que um personagem para ser visto. Ele é sério, mas não
sisudo. Ele é amigável e acolhedor (por isso o “ho-ho-ho”).
Mas essa coisa discreta contribui pra sua fantasia. Ele é o
que todos imaginam que ele seja, não o que o artista ou o
cameraman determinam.”
Baldwin enfatiza que o gigante precisa ficar no contexto
de fantasia. Em certo comercial eles colocaram o Gigante
Verde entre as pessoas reais. Não funcionou. “Pessoas
reais podem destruir o clima e a fantasia nos lembrando
que o Gigante é de faz de conta. A fantasia dá às pessoas a
permissão de ‘acreditar’ no que, em outras situações, seria
rejeitado, tido como exagero. A animação estende a fantasia
e permite ao espectador lidar com as histórias num nível
simbólico ao invés de racional”.
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O PERSONAGEM MÍTICO
Cada um dos três tipos de personagens não realistas que
discutidos possuem atributos enfatizados, contexto e/ou
associações. Para criar um personagem mítico usaremos
esses mesmos elementos, mas adicionaremos um outro: o
conhecimento do público.
A diferença entre uma história comum e um mito
depende de como a audiência irá se conectar com a obra.
A maior parte da ficção nos comove de alguma forma, seja
em lágrimas, risos ou nos fazendo pensar. Mas a maioria
dos filmes e romances terminam assim que a história acaba.
Talvez lembremos de uma cena ou um personagem por
algum tempo, mas não nos manteremos na experiência.
Porém, quando terminamos de ler ou assistir uma
história mítica, nós adicionamos um processo de reflexão
duradoura nessa experiência. A cena ou o personagem
retornam, nos perseguem. Não nos deixam ir embora.
Uma história mítica representa o significado das nossas
próprias vidas. Transmite uma história que pode nos ajudar
a entender melhor nossa própria existência, nossos próprios
valores e anseios. A maioria assiste um filme (ou lê um
romance) projetando sua própria história naquela que está
sendo contada.
Às vezes mitos e personagens míticos nos encorajam, nos
motivam ou nos empurram para novos comportamentos
ou compreensões. Nos tornamos, de certo modo, pessoas
melhores à medida que nos identificamos com o heroísmo
dos personagens míticos.
Histórias míticas são normalmente histórias sobre um
herói mítico, contendo uma figura heroica que supera
obstáculos e permanece em sua jornada para atingir um
objetivo ou tesouro. Como regra, o herói se transforma ao
longo da jornada. À medida que vemos o desdobramento
da história, talvez pensemos nas nossas próprias jornadas
heroicas. Pode ser aqueles obstáculos que um escritor
tem que superar para vender o roteiro ou o romance, ou
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problemas na busca de um amor, num trabalho, num estilo


de vida significativo. A jornada da história pode também
nos lembrar das nossas jornadas interiores, já que buscamos
valores e significados em nossas vidas.
Muitos filmes contêm elementos míticos, como um
personagem heroico que supera obstáculos pela jornada.
Porém, se eles não inspirarem reflexão ou identificação, não
serão um mito verdadeiro. O teste é ver o que a audiência
projeta na história, e se a história e os personagens ajudarão
a audiência a entender suas próprias vidas num nível mais
profundo.
Por exemplo, no filme “Indiana Jones e a Última
Cruzada”, existe um herói que supera todos os obstáculos
enquanto busca pelo Santo Graal. Superficialmente, isso
pareceria um mito já que contém a maioria dos elementos
necessários.
Olhando mais profundamente para o filme, vamos fazer
algumas perguntas míticas:
■■ A jornada de Indiana Jones para encontrar o Santo
Graal se parece com nossas próprias jornadas em
direção à realização?
■■ A história nos encoraja a encontrar os obstáculos em
nossas próprias vidas?
■■ Esse filme nos proporciona uma relação mais
profunda com nossa própria história de vida?
Pra maior parte do público, as respostas dessas perguntas
provavelmente seriam “não”. Isso não prejudica a diversão e
aventura do filme, mas significa que o filme provavelmente
não está operando como um mito.
Você pode fazer as mesmas perguntas para outro
filme que foi considerado mítico, como “E.T”, “Contatos
Imediatos do Terceiro Grau”, “Blade Runner”, “Star Wars”,
ou “Robocop”.
Vejamos outro personagem, um dos maiores sucessos na
propaganda, que é considerado um personagem mítico: O
Homem Marlboro.
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“Na propaganda, assim como na maior parte da ficção”,


diz Michael Gill da J. Walter Thompson, “você precisa tocar
no subconsciente do público. O homem Marlboro parece
ter conseguido isso. Nos estudos de Joseph Campbell sobre
mito, ele menciona que, desde os tempos em que cavalo e
homem estão por aí, existe o mito do homem montado a
cavalo. Normalmente esse homem é um grande rei, um
deus, um cavaleiro, um guerreiro. E é claro que o homem
Marlboro é o símbolo do oeste (o cowboy). As pessoas
respeitam e idolatram essa figura. Quando fumam ou
bebem não estão fazendo por fazer, estão fazendo por causa
das associações emocionais que melhoram o que sentem
sobre si mesmas.
“Quanto mais realizado o personagem é, mais as pessoas
conseguem fazer associações e gostar do personagem. Nas
propagandas da Marlboro existe o bigode, a tatuagem, o
chapéu branco (um chapéu negro daria uma interpretação
diferente). Normalmente ele está montado a cavalo, num
espaço aberto e selvagem, não em cidades. Cidades são
malignas, arriscadas, perigosas. O campo é bom. Nós
sempre o colocamos cercado de coisas bonitas e animais
belos (um animal é a expressão primordial de liberdade,
indulgência e prazer). Ar fresco e saúde são muito
importantes. Existe um sentimento de confiança, que aquele
homem está no controle. Ele ou está sozinho ou, às vezes,
com outro homem (mas nunca com uma mulher. Isso não é
parte do mito). Tocar na dimensão mítica num comercial é
muito raro, mas o homem Marlboro parece ter conseguido
isso.”
Muitos consumidores de Marlboro provavelmente
passam pouco tempo longe da cidade, e talvez nunca
tenham montado um cavalo. Mas eles projetam um
significado no homem Marlboro. Esse personagem
representa o desejo deles por ar fresco, espaços abertos e a
sensação de auto confiança.
Cabe mencionar o caso de Vicent de “A Bela e a
Fera”, que é tanto personagem fantástico quanto mítico.
Superman também pode ser considerado um personagem
mítico. Batman também parece ser mítico, já que a história
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de Batman fala sobre escuridão e psicoses da nossa


sociedade.
Michael Besman, vice-presidente de produção da Guber-
Peters Entertainment, nos fala sobre o desenvolvimento do
Batman: “Batman é meio vingador (é como o Robocop).
Bruce Wayne é o milionário, o personagem com uma
dupla personalidade. Atormentado pela morte dos pais,
ele está a solta para se vingar. Ele se sente desconfortável
por ter crescido sendo herdeiro rico, obrigado a lidar com
a imprensa e com o público. Porém, quando se torna o
Batman, não precisa camuflar sua raiva, pode exterioriza-
la. Bruce Wayne se vê obrigado a viver cercado pelo mundo.
Bruce Wayne tem identidade. Batman não”.
Bruce Wayne precisa lidar com sua identidade humana.
Ele é um personagem realista que escolhe se tornar não-
realista por ser mais simples e direto assim. Perdendo sua
dimensionalidade, ele também pode perder a dor dessa
humanidade (a qual é muito difícil de lidar). Bruce Wayne
criou o Batman por desejar que ele estivesse lá para salvar
seus pais.
Besman contrasta a diferença entre Super-homem e
Batman: “Clark Kent é bem mais ciente da identidade
secreta. Quando vem pra terra, ele cresce dentro do
papel de super-herói, quase como uma extensão dos seus
poderes. Mas Batman veio da dor, raiva e da necessidade de
expressar isso.
“A reação da audiência é bem diferente pra cada um
desses personagens. Eu era um grande fã dos quadrinhos
do super-homem. Lembro de pensar que seria incrível
realmente ter um Super-Homem no mundo. É quase como
saber que Deus existe. É seguro. Eu não queria ser o Super-
Homem. Eu gostaria de ser amigo dele. Batman, contudo,
é uma escalada íngreme, ele teve que passar por tantas
dificuldades. Existe mais do que uma conexão emocional.
Ele é como nós, menos mágico que Super-homem. Super-
Homem é muito puro. Batman é como o outro lado da
moeda”.
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O contexto que Batman vive também determina quem


ele é. Em alguns desses heróis dos gibis, o contexto é
bem sombrio. Michel Basman continua: “A forma que
Gothan City é retratada é bem realista, corajosa, sombria
e psicológica. É um exagero de um lugar pro público
entender o que leva um homem a se tornar um Batman.”
Um recente sucesso de bilheteria apresenta outro
personagem mítico, “O Fantasma da Opera”, que simboliza
a vítima ferida. James Dearden, que escreveu o roteiro
adaptado, enfrentou o desafio de fazer esse personagem
mítico. “No roteiro, o que tentei foi criar um fantasma. Mas
como tentar escrever sobre um cara que é horrivelmente
deformado, que vive numa caverna subterrânea por toda
a vida e que, ao mesmo tempo, tem uma alma bonita,
e é capaz de sentir amor? Claramente esse não é um
personagem realista, pois um personagem real nessas
circunstâncias seria fedorento, e deformado tanto por fora
quanto por dentro. Porém o que temos é algo baseado no
mito. Acho que criamos um personagem que foi, dentro do
contexto do filme, consistente. Um personagem simbólico
que você poderia acreditar. O ponto inicial na sua criação
foi o valor ou a ideia. A ideia, nesse caso, é esse pária
horrivelmente mutilado com uma alma linda e generosa
dentro de si. ‘A Bela e a Fera’ era minha referência para o
Fantasma. “
Personagens míticos tendem a ter certas qualidades
específicas. Eles normalmente são heroicos. Muito é
cobrado deles, e eles são capazes de encarar o desafio.
No decorrer de uma história, os personagens míticos
mudam, ficam mais fortes ou mais sábios. A figura mítica
frequentemente tem um passado misterioso e sombrio.
Existe uma sensação de que parte do seu passado não foi
revelado pro público, apesar de estar implícito.
Às vezes o escritor e o personagem sabem do passado,
mas mantém em segredo por ser muito doloroso contar. O
personagem talvez seja incapaz de lidar com isso. O passado
nesse caso é uma parte essencial do personagem, mas por
ser misterioso, o público cria sua própria interpretação do
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que aconteceu. Shane, que se adequa parcialmente ao mito


do Velho Oeste, pode se encaixar nessa categoria.
Às vezes o passado é conhecido ou revelado durante a
história. O terrível acontecimento que motivou e obcecou
Batman toca em nossa compreensão sobre o poder da
vingança e da obsessão.
Toda época cria novas histórias míticas para nos ajudar
a entender nossas vidas. Nos anos 30, Charlie Chaplin em
“Tempos Modernos” expressou a sobrecarga e o desamparo
que muitos trabalhadores sentem numa sociedade super
industrializada. Mais recentemente, Blade Runner nos
mostra as consequências naturais da corrupção irrefreável
e do superpovoamento. Oliver Stone explica personagens
míticos em seu conto de ganância em “Wall Street” e na
história sobre o bem, o mal e a inocência perdida no filme
“Platoon”. “Campo dos Sonhos” explora nossa nostalgia
pelo passado e pela resolução, enquanto “Vítimas de uma
Paixão” e “Atração Fatal” exploram a solidão e o perigo de
muitos relacionamentos modernos.
Personagens míticos podem ser difíceis de criar. Além de
ter um certo mistério, eles precisam de alguma dimensão
para soar com seres humanos reais. Mas, ao mesmo tempo,
não podem ser tão específicos (devem ser mais que uma
individualidade, precisam representar uma certa ideia).
São humanos e simbólicos, sem deixar que uma coisa se
sobreponha à outra.
O teste cabal para ver se o personagem possui
características míticas, é ver se ele se conecta com a vida do
público.
Além das vantagens citadas, trazer alguma dimensão
mítica ao seu personagem pode aprofundá-lo e fortalecer a
conexão entre a história e a vida pessoal do público.
Na reunião com a equipe da série “MacGyver”, nós
discutimos maneiras de acrescentar dimensões míticas
ao personagem. O executivo da rede ABC, William
Campbell III, disse que seria muito importante que
MacGyver continuasse de alguma forma misterioso para
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ainda ser heroico. Ao mesmo tempo, a força da série vinha


da combinação de ação, inteligência e emoção. Sugeri
discutirmos um novo tipo de herói e que talvez pudéssemos
expandir o personagem e a relação com o público através de
uma perspectiva mítica.
O modelo de herói vai mudando sutilmente através
do tempo. Heróis tradicionalmente são definidos como
guerreiros, conquistadores, competidores (como homens
de ação). Certamente Macgyver é um homem de ação. Mas
ele é um tipo diferente de herói. Ele reage de maneira não-
violenta e não-competitiva às situações. O herói do passado
partiu para conquistar a vastidão; MacGyver quer proteger
a terra. O herói do passado era um individualista grosseiro;
MacGyver é humanista, alguém que trabalha em equipe. Ele
pode ser um novo tipo de herói para a juventude. Nesses
tempos que muitos jovens sucumbem às drogas, depressão,
e ao sentimento de impotência, MacGyver representa uma
alternativa, respostas e posturas.
Expandir o MacGyver de uma maneira mítica poderia
tomar duas direções diferentes:
1. Poderiam criar mais histórias sobre os problemas
mais sérios da nossa época (corrupção, ecologia,
engenharia genética) mostrando esse herói reagindo a
essas questões e encontrando soluções não-violentas.
2. Poderiam investir em algo misterioso ou mal
resolvido em seu passado. Isso permitiria que o
público projetasse suas próprias interpretações do
passado do personagem.
Contudo, já que grande parte da força do personagem
(e do ator) está na sua dimensionalidade, na capacidade de
transmitir emoção e cuidado (qualidades que nem sempre
encontramos em personagens míticos), talvez fosse um
erro torna-lo um herói mítico clássico. MacGyver é um
personagem claramente emocional, sem mistérios reais do
seu passado.
Ao invés disso, seria possível inserir suas qualidades
numa sociedade tecnológica. Se o contexto e associações
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fossem expandidos, a relação com o público poderia


ser pensada em termos míticos, sem comprometer as
qualidades humanas e dimensionais do personagem.

ESTUDO DE CASO: A HISTÓRIA SEM FIM II


No primeiro trimestre de 1989, trabalhei como
consultora para o filme “A História Sem Fim II” (a
sequência) que foi filmada a partir do segundo semestre
daquele ano para ser lançada no final de 1990. A história
em si começa com personagens realistas (Bastian e seu pai),
e então vai para o mundo de fantasia chamado “Fantasia”,
onde encontramos personagens fantásticos não-humanos,
simbólicos, e/ou míticos. Nesse filme, muitos personagens
se encaixam em mais de uma categoria.
Alguns personagens exclusivamente não-humanos:
Nimbly duas caras, Falkor o dragão e Rockbiter (que
também está no primeiro filme).
Personagens que, além de não-humanos, são
personagens simbólicos: Wambos, Wind Bride, Lava Man e
Mud Wart.
Karin Howard, a roteirista, nos explica como os criou:
“Alguns dos personagens foram baseados na obra original
de Michael Ende de 1979. Já os Wambos (as criaturas que
ajudam a invadir o castelo) foram inspiradas nos posters
do Rambo. Já que a realidade deles é parecida, ao invés de
chamá-los de Rambo, chamei de Wambos. Pensei no que
existe num exército (tipo barulho e poeira), então essas
criaturas criam a ilusão de batalha sem realmente fazer
nada mais que barulho e poeira.
“Os personagens da nave das tramas secretas – Terra,
Ar, Vento e Lava – foram criados para fazer a parte da
exposição. No primeiro filme, existe um patriarca que faz
essa função. Mas um patriarca pode ficar muito verbal
e filosófico demais. Eu queria algo mais visual. Esses
mensageiros explicam a situação a Bastian. Me baseei em
terra, vento e fogo, e fiz a criatura de lama, a criatura de
vento, a criatura de fogo. Para expandi-los dei nomes pra
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eles. Assim que ganharam os nomes, comecei a pensar nas


associações que poderiam ser feitas com esses nomes.
A criatura dos instrumentos parecia meio chata e
solitária, então a transformei na solitária dos instrumentos
que representa o som. O Mud Wart é obviamente algo que
grunhe e representa a terra. O Lava Man é o fogo, e a Wind
Bride é o vento.
“Na obra original de Michael Ende, há um parágrafo
que descreve os Ninblies: os mensageiros têm uma certa
semelhança com coelhos. Essas criaturas estão entre os
corredores mais velozes de Fantasia. Peguei a ideia e criei
um personagem chamado Ninbly que tem calçados de
corrida e um boné de baseball. Percebi que se ele estiver
correndo muito rápido, acabaria fazendo aterrissagens
estranhas, talvez até tropeções. Dei a ele uma função:
ele estaria a serviço da bruxa, provavelmente um espião.
Fiquei pensando no termo “vira-casaca”. O departamento
de produção teria que pensar numa maneira literal
de transmitir esse termo. Nós concretizamos isso o
transformando numa criatura que poderia dobrar suas
plumas pra trás (mostrando seu lado ruim quando está
com a bruxa, mas quando está com os mocinhos (Bastian
e Atreyu) ele coloca suas penas pra frente e mostra seu lado
bom.
“Nimbly trabalha com Três-Faces, o cientista meticuloso
que anseia ser a ferramenta perfeita. Ele é a combinação de
um gênio maluco, com Frankenstein e o porteiro da cidade
da Velha Imperatriz.
“Originalmente eu o imaginava num corpo de resina
(daria pra ver todos os canos passando pelo corpo, ele
seria mais um robô). Agora ele é mais como um mágico de
chapéu branco e três olhos.
“Minha criatura favorita no primeiro filme foi Rockbiter.
Ele come pedras, é grande e desajeitado, tem olhos
pequenos e uma cabeça engraçada e pontuda. Depois de
fazermos brainstorm tivemos a ideia de um bebê Rockbiter.
No primeiro filme, Fantasia foi ameaçada pelo Nothing.
Mas no segundo filme ela é a ameaçada pela Emptiness.
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Junior está com fome, já que as pedras em Fantasia eram


vazias, assim sua função amplia a ideia de Emptiness.
“Falkor o dragão já veio muito bem definido do primeiro
filme. Ele é o favorito do diretor de da equipe de marketing.
Falkor é o personagem que mais se relaciona, o melhor
amigo. Ele tem um entendimento incrível da natureza
humana e um humor refinado, pois entende as fobias
humanas e sempre vê as coisas de uma maneira positiva”.
Cada um desses personagens não-humanos têm uma
função diferente. Nimbly e os Wambos têm uma função
na história, as Criaturas estão lá pra fazerem a parte da
exposição, e os Rockbiters ampliam o tema.
No filme, existem vários personagens humanos. Bastian
e seu pai são personagens realistas, da terra. Os outros são
personagens fantásticos vindos de Fantasia. Bastian e os
personagens fantásticos de Xayide (a bruxa), a Imperatriz
infantil, Atrayu, o guerreiro de Fantasia são personagens
míticos também, tendo parte na jornada de salvar Fantasia
da Emptiness.
Karin continua: “Bastian é o personagem humano e,
apesar de ter o maior livre-arbítrio e ser o mais imprevisível,
ele pode fazer as escolhas mais erradas ou mais certas. Ele e
seu pai são os personagens mais dimensionais.
“Atreyu, o guerreiro de Fantasia, era um problema pois
ele poderia acabar ficando chato, muito tacanha. Na obra
original, Atreyu tinha inveja de Bastian; mas os produtores
sentiram que os garotos precisavam ser amigos no filme.
Nós insinuamos alguma inveja por interesse, mas essa
relação era apenas uma história menor (a história C) então
era importante que ela não dominasse o filme.
“Xayide é a bruxa de Fantasia. Eu queria fazê-la sexy,
uma mulher muito obstinada, bem moderna, cantando na
sala do trono, batendo o pé e sendo bem impaciente quando
as coisas não estão indo ao seu modo. A imperatriz infantil
era muito tacanha e eis que chega Xayide, aquele mulherão
e finalmente diz “Já chega! É minha vez de brilhar. Quero
dominar Fantasia e caramba eu vou fazer isso!”. Foi bem
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chato quando todos os seus tanques e gigantes deram


defeito. Então criei bastante humor com o incidente. Xayide
pirou quando as coisas não aconteceram do seu jeito. Ela é
uma representante de Emptiness, é uma personagem contra
as histórias e a imaginação.
“A imperatriz infantil foi outro importante personagem
fantástico. Passei um bom tempo trabalhando nela. Ela
era claramente definida no primeiro filme, mas teve um
papel que durou apenas um dia de filmagem. Ela é uma
menininha linda com uma voz meiga, linda demais para
desperdiçar com qualquer palavra. Então tentamos criar
palavras lindas para colocar em sua boca. Ela não conhecia
o bem ou o mal. Tudo era igual pra ela, ela não julgava. Na
Alemanha, nós diríamos que ela é cafona/brega, mas por
alguma razão funcionou.”

APLICAÇÃO
Se o seu roteiro possui personagens não realistas,
pergunte-se:
■■ Qual ideia está sendo comunicada por esse
personagem?
■■ Que associações essa ideia inspira? Eu testei essas
associações para garantir que são coerentes com meu
personagem?
■■ Qual o contexto do meu personagem? Se eu mudar
ou expandir o contexto, isso ajudará a fortalecer o
personagem?
■■ De que maneira o personagem se conecta com a
história pessoal do público? Se o meu personagem é
mítico, eu explorei as várias dimensões do mito pra
deixa-lo claro?
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RESUMO
Os personagens não realistas estão determinados por
quatro critérios:
1. Até que ponto eles exemplificam uma ideia?
2. Como o contexto do meu personagem ajuda a defini-
lo (como o contexto o influencia)?
3. Quais associações o público faz com o personagem?
4. Esse personagem ajuda o público a entender o
significado de suas próprias vidas e histórias pessoais?
Personagens não realistas têm feito sucesso nos
romances, filmes e séries (“Alf ”, “Lassie”, “Rin Tin Tin”). Os
recentes sucessos de bilheteria (“Batman, Super-homem”,
“Uma Dupla Quase Perfeita” e “Fantasma da Opera”)
criaram mais mercado. Isso significa mais necessidade de
escritores que sabem escrever histórias com personagens
não realistas.
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9
Para além do Estereótipo
A ficção pode ser poderosa. Personagens podem afetar
nossas vidas em muitos níveis. Eles nos inspiram, motivam
comportamentos, ajudam a entender a nós mesmos e aos
outros, expandem nossa percepção da natureza humana,
e até mesmo são modelos para novas decisões em nossas
vidas.
Mas, assim como eles podem ser influências positivas,
também podem nos afetar negativamente. Existem
fortes evidências que comportamentos criminosos são,
algumas vezes, copiados de programas de televisão. Vários
estudos têm mostrado um elo entre violência televisiva e
violência entre crianças e adultos. Existem evidências que
estereótipos colaboram para uma visão negativa do público
a respeito de uma série de pessoas. Como escritor criando
personagens dimensionais, é sua obrigação entender o que é
estereótipo para desconstruí-lo.
Podemos definir estereótipo como uma representação
continua de certas pessoas, com o mesmo conjunto
superficial de características. Normalmente um estereótipo
é negativo, mostra um viés cultural preconceituoso,
pintando um personagem de fora da cultura dominante de
maneira limitada e até desumanizada.
Quem é estereotipado? Qualquer um diferente de nós.
Qualquer um que não entendemos. Podemos incluir
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minorias étnicas, como negros, asiáticos, hispânicos, índios


(no caso de você ser um escritor branco), ou pode incluir
brancos, se você é um escritor de algum grupo minoritário.
Pessoas com deficiências físicas frequentemente são
estereotipadas, bem como os deficientes mentais, ou que
sofrem transtornos psicológicos.
Grupos religiosos são frequentemente estereotipados,
sejam muçulmanos, católicos, judeus, fundamentalistas,
protestantes, hindus ou budistas.
O sexo oposto pode ser estereotipado, seja homem ou
mulher. Pessoas com orientações sexuais diferentes das
nossas também (até mesmo os heterossexuais).
Pessoas mais velhas ou mais novas são estereotipadas,
assim como aqueles vindos de outras culturas.
Estereótipos variam em diferentes grupos. Mulheres e
minorias são frequentemente retratadas como vítimas. Em
muitos filmes, esses grupos particularmente, tendem a ser
descartáveis. Seja como as primeiras a morrer, ou salvas por
um homem branco.
Pessoas com deficiências normalmente são retratadas
como “deficiente do horror”, com certa deformidade no
corpo que simboliza uma deformidade na alma. Ou são
retratadas como vítimas dignas de pena, ou então como
“super deficientes”, pessoas que conseguem fazer coisas
inacreditáveis, superando aquela deficiência de maneiras
miraculosas.
Negros são normalmente retratados como pessoas
engraçadas, ou como alvo da piada, ou como criminosos.
Mulheres asiáticas normalmente são retratadas como
exóticas/eróticas, enquanto os homens asiáticos são massas
estúpidas ou, algumas vezes, até mesmo como modelo
minoritário: bem de vida e comportado. Apesar desse
último caso não parecer negativo, é limitado e estereotipado
uma vez que não reconhece que asiáticos sofrem dos
mesmos problemas que qualquer outro grupo.
Pense em quantas vezes os índios foram retratados como
selvagens sanguinolentos ou como bêbados, covardes fora
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da lei. Nas tantas vezes que hispânicos são retratados como


integrantes de gangues ou bandidos, ou como Luiz Valdez
diz “A premissa é que as histórias hispânicas só podem
ocorrer no sudoeste, atrás das paredes feitas de tijolo de
argila, debaixo de um telhado de telha”.
Até o homem branco não escapou do estereótipo. Ele é
enfatizado como um homem da ação, seja do tipo forte
silencioso ou o super macho. Isso nega todo um grupo
de homens: aqueles que são donos de casa, massagistas,
professores... Essas pessoas podem se sentir desvalorizadas
na sociedade. O homem pensador ou o homem que tem
compaixão raramente encontra obras que refletem sua
realidade.
Secretárias, loiras, jogares de basquete, “WASPS”,
veteranos de guerra, advogados, já foram retratados de
uma maneira estereotipada. Poucos grupos são imunes ao
nosso desejo natural de simplificar personagens humanos
complexos. Ninguém está a salvo.
Um personagem tipo não é o mesmo que estereótipo. O
pai vacilante ou o soldado fanfarrão são personagens tipo,
pois o retrato é equilibrado com outros conceitos de pais e
soldados. Os leitores e o público não chegam a conclusões
como “todos os pais são vacilantes” ou “todos os soldados
são fanfarrões”. O personagem tipo não resume um certo
grupo a mesma característica. O estereótipo sim.

SUPERANDO O ESTEREÓTIPO
Apesar das boas intenções de muitos escritores, os
personagens de ficção são predominantemente brancos e
não retratam a realidade. A população dos Estados Unidos
consiste de 12% de negros, 8.2% hispânicos, 2.1% de
asiáticos, 2% de índios, 20% de pessoas com algum tipo de
deficiência física. Porém, a maioria das histórias de ficção
retrata uma realidade um tanto diferente.
Numa análise recente de programas de televisão, um
estudo da Comissão De Direitos Civis Norte Americana
descobriu que apesar de 39% da população dos EUA ser
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de homens brancos, personagens assim ocupam 62% dos


personagens na televisão.
Enquanto 41,6% da população dos EUA consiste em
mulheres brancas, e 9.6% da população ser de minorias
femininas, elas são sub representadas nos dramas de TV.
Numa análise, apenas 24,1% da totalidade de personagens
eram mulheres brancas, e apenas 3,6% eram mulheres de
grupos minoritários.
Num país onde 95% de todas as mulheres trabalham
fora, o estereótipo da “mulher dona de casa” não é mais
verdadeiro. Num país onde 40% dos estudantes de teologia
e direito são mulheres, é equivocado retratar apenas
ocasionalmente as mulheres como advogadas, juízas
ou pastoras nos filmes ou na televisão. Num país onde
as mulheres são pilotas, mecânicas, técnicas de reparo
telefônico e rabinas; um retrato mais preciso da sociedade
mostraria personagens femininas nesses papéis. Reproduzir
exclusivamente esses papeis no homem branco, ignora uma
variedade de pessoas na nossa cultura.
Tais estatísticas podem ser úteis para um escritor decidir
que tipo de personagens adicionar numa história. É um
bom ponto de partida, até mesmo com as diferenças sociais
de cidade pra cidade. Se você quiser verdadeiramente
representar a realidade na sua história em São Francisco,
você terá uma boa porcentagem de asiáticos e gays. Se
você estiver escrevendo uma história que se passa em Los
Angeles, uma quantidade de hispânicos seria incrível. Uma
história passada em Detroit ou Atlanta terá uma grande
porcentagem de negros.
Superar o estereótipo significa treinar nossas mentes para
ver para além da branquitude. A criação de personagens
é parte da reeducação do nosso poder de observação. Em
qualquer cenário, estamos acostumados a primeiro ver o
grupo dominante. Por exemplo, se você visitasse minha
cidade natal Wisconsin (2,504 habitantes) na década de 50,
você facilmente a estereotiparia como uma comunidade
branca, classe média, de protestantes e católicos e algumas
pessoas do tipo “Não vamos à igreja”.
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Mas, se você olhar com mais atenção, começará a notar


a diversidade dentro da comunidade. Naquele tempo,
a cidade tinha uma família judia dona de uma loja de
eletrodomésticos, uma família que fugiu da Letônia depois
da guerra, alguns mexicanos que colhiam pepinos para a
fábrica de picles no verão; um índio menominee da reserva
próxima que, ocasionalmente, comprava na drogaria do
meu pai. Uma pessoa de baixa estatura que ajudava as
crianças a atravessar a rua depois da escola; uma menina da
quinta série com retardo mental, uma outra da oitava série
que perdeu um braço por causa do câncer, quatro famílias
muito ricas e outras três muito pobres.
Alguns anos mais tarde, se você olhasse novamente,
você veria outros detalhes que quebrariam o estereótipo:
três ladrões de banco que foram pegos seis horas depois
de roubarem o Banco Estadual de Peshtigo (eles pegaram
a única via sem saída da cidade!), um pastor antiguerra
que (pro desgosto de sua congregação) liderou marchas de
protesto locais durante a Guerra do Vietnã. Nos últimos
anos, houve a adição de três figuras de renome nacional:
o advogado F. Lee Bailey, que tem uma segunda casa na
cidade vizinha; Sargeant Medina, que era associado com
o incidente My Lai no Vietnam, e o mercenário Eugene
Hasenfus.
Como pode notar, muitas dessas pessoas não são
definidas pela sua etnia: “a família judia”, “o protestante”;
mas pelo papel que desempenham: “o dono de uma loja”, “o
pastor antiguerra”.
Como ponto inicial, olhar para a diversidade dentro
do seu contexto pode ajudar a consolidar a pesquisa geral
que você já tinha feito. Qualquer pessoa da sua história de
vida pode ser um excelente modelo para um personagem
minoritário.
Adicionar minorias a um romance ou história curta
pode ser relativamente fácil: você simplesmente os
coloca na história. Para roteiros, pode parecer uma coisa
simples escolhê-los para o elenco, um indiano para fazer
um médico ou uma coreana para fazer a mecânica. E
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normalmente é simples, o problema é que os diretores


e produtores de elenco não são de pensar sobre colocar
minorias na história. Mas existem atitudes que podem ser
tomadas pelo escritor.
Shelley List, ex produtora e principal criadora de
“Cagney & Lacey” diz: “por eu me importar que as minorias
sejam retratadas, eu normalmente as adiciono. Ao invés de
deixar algo vago, ou deixar que o diretor de elenco resolva,
eu especifico que a escola é composta de asiáticos, negros
e brancos. Ou menciono o juiz negro, o engenheiro negro,
ou a âncora asiática. A equipe normalmente não questiona,
ou nota. Os roteiros vão pro diretor de elenco, que
simplesmente segue as descrições.”
Um dos artistas mais aclamados dos últimos anos vêm
de grupos minoritários e interpretou papéis que não eram
especificamente minoritários, papéis que poderiam ter
sido interpretados por brancos. O papel de Eddie Murphy
em “Um Tira da Pesada” foi originalmente pensado para
Sylvester Stallone. O papel de Lou Gosset em “A Força do
Destino” foi pensado para uma pessoa branca. O papel
de Sigourney Weaver em Alien foi originalmente escrito
para um homem. Muitos dos papeis recentes da Whoopi
Goldberg não são específicos para minorias, e alguns
deles sequer foram escritos para uma mulher. Em cada
personagem desses o ator acrescenta algo especial por causa
do seu contexto cultural, apesar do papel não ser definido
por gênero ou etnia.
Muitos membros de minorias preferem ser escolhidos
dessa forma, ao invés de ser um negro interpretando um
negro, ou uma pessoa com deficiência interpretando uma
pessoa com deficiência.
EXERCÍCIO: Imagine-se criando uma cena num hotel de
uma grande cidade. Estatisticamente falando, o hotel possui
a mesma porcentagem de minorias que a cidade. Que
tipos de personagens negros você colocaria? E quanto aos
hispânicos? Pessoas com deficiências? Que profissões essas
pessoas poderiam ter? Qual seria o gênero dessas pessoas?
E quanto a idade? E a religião?
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COMO VOCÊ DIMENSIONALIZA ESSES PAPÉIS?


Criar um personagem de uma cultura diferente daquele
que escreve inclui:
1. Criar o personagem como um ser humano completo,
com toda a gama de sentimentos, posturas e ações
como qualquer pessoa teria.
2. Entender a influência que aquela cultura específica na
composição do personagem.
Assim como qualquer personagem, um personagem de
outra cultura terá coisas parecidas e diferentes de você.
Ir além do estereótipo exige uma certa quantidade
de pesquisa específica da parte do escritor. Às vezes a
informação que um escritor traz de um passado recente, já
não é mais relevante para o presente. Mulheres, homens,
pessoas com deficiências, minorias étnicas têm definido
a si mesmos nos últimos anos à medida que lutam pelos
seus direitos dentro da sociedade. É importante ter alguma
vivência com os grupos que você está escrevendo a respeito
(e/ou pedir conselhos). Várias organizações, incluindo o
NAACP, Nosotros (um grupo hispânico), a Aliança dos
Artistas Gays e Lésbicas, Asian-Pacific Americans, e o
California Governor’s Committee for the Emplyoment of
Disbled Persons, podem ser fontes se você tem perguntas
ou precisa de um conselho. Muitos contam com pessoas
que podem te aconselhar sobre os personagens retratados
na sua história.
Você também pode pedir a alguém da minoria que
você está retratando para ler o roteiro ou romance. Para
uma escritora mulher, pode ser útil ter um homem para
olhar seu roteiro. Escritores homens podem pedir para que
mulheres leiam as histórias que escreveram.
Os detalhes do personagem devem ser bem sutis, e
normalmente é necessário alguém que entenda muito do
personagem para delineá-lo, criar uma realidade que soe
verossímil.
Alguns anos atrás, William Kelley (roteirista do filme
“A Testemunha”) me chamou para ajudá-lo com um
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personagem religioso que ele estava criando. Sabendo que


eu sou uma Quaker, ele queria checar alguns detalhes sobre
uma personagem feminina Quaker. Os detalhes que ele me
mostrou pareceram bem embasados e genuínos. Então ele
me mostrou a oração que escreveu para sua personagem.
Eu disse “Bill, você criou uma oração metodista, não uma
oração quaker”. Nossa conversa confirmou a direção da sua
personagem e também esclareceu um importante detalhe.
EXERCÍCIO: Imagine-se escrevendo uma cena de
funeral. Como seria se fosse um funeral da sua cultura?
Pense sobre os funerais que você já participou de outras
culturas. Como eles diferem? Como você faria pra descobrir
a diferença entre um funeral judeu, um funeral sul-africano
e um funeral quaker?
Pense sobre os casamentos que você participou. Qual a
diferença entre eles? Como os vários casamentos expressam
o contexto cultural da noiva e do noivo?

ESTUDO DE CASO: THE WOMEN IN FILM LUMINAS


AWARDS
Muitos grupos, cientes do estrago que estereótipos
podem fazer, começaram a falar cada vez mais da
necessidade de retratar as mulheres e as minorias de
maneira mais realista.
Em 1983, num esforço para mudar a maneira que
as mulheres são retratadas na mídia, uma organização
internacional chamada “Women in Film” criou um prêmio,
o Luminas Award, para prestigiar retratos positivos,
não estereotipados de mulheres. Eu fui a presidenta do
comitê, designada para criar o critério que nos ajudaria a
identificar estereótipos, bem como personagens femininas
construtivas.
Escritores, produtores e diretores podem se beneficiar
do critério para superar qualquer estereótipo que esteja
emanando dos seus personagens.
Originalmente, existiam oito critérios. Nesse estudo de
caso focarei nos cinco mais aplicáveis tanto para mulheres
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quanto para minorias. (A lista com todos os oito aparecerá


logo à frente).
1. Personagens não-estereotipadas são
multidimensionais.
Personagens estereotipadas geralmente só possuem
uma dimensão. São sexys, ou violentas, ou gananciosas, ou
manipuladoras. Personagens dimensionais contém valores,
emoções, posturas e contradições. Superar um estereótipo
significa humanizar a pessoa para mostrar a profundidade e
extensão do personagem.
2. Personagens não-estereotipadas são vistas em vários
papéis sociais diferentes e em variados contextos.
Frequentemente personagens estereotipadas são
definidas em papeis e contextos limitados. Uma mulher
pode ser vista simplesmente como a esposa do patrão,
ou como mãe, secretária, ou ela pode ser vista como uma
vice presidente. Personagens dimensionais atuam em
diferentes papéis e podem estar em diferentes contextos.
Não são limitados, são pessoas com individualidade e
também com relações interpessoais. São produtos de suas
culturas e profissões; da sua localidade e de sua história de
vida. Acrescentar outros papéis e contextos expandirá a
personagem e quebrará o estereótipo.
3. Personagens não-estereotipadas refletem a
abrangência de idade, raça, classe, aparência física e
profissões presentes na sociedade.
Para superar estereótipos, as histórias precisam retratar
mais verdadeiramente a configuração de nossa sociedade.
Na televisão, a maior parte das mulheres são jovens, belas
e ricas, o que desqualifica as importantes contribuições
das mulheres acima dos quarenta, assim como mascara
a realidade social de que mulheres ganham menos que
homens. Em muitas histórias as minorias são colocadas
em poucas funções e em classes socioeconômicas baixas,
o que deturpa suas influências e contribuições. Entender
a representação estatística da sociedade em sua história e
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representa-la de forma realista, expandirá a paleta de sua


história.
4. Personagens não estereotipados ajudam a mover a
história (afetarão o que irá acontecer) com atitudes,
comportamentos e propósitos pessoais.
Personagens estereotipados normalmente são reativos
ao invés de ativos. Eles são controlados pela história e
são vítimas de personagens mais fortes. Já personagens
dimensionais são direcionados pela vontade interior e
não exterior. Eles influenciam a história, movem a ação e
afetam o desenlace. Dar aos personagens vontade própria
os fortalece, os retira do lugar de vítimas e os coloca como
influências poderosas na história.
5. Personagens não-estereotipados refletem suas
culturas e fornecem novas percepções e novos
modelos de papel por causa da influência de suas
histórias de vida.
Muitos personagens estereotipados são personagens
genéricos. Eles atuam igual ao homem branco, mesmo que
o passado de cada um insinue outras perspectivas. Muitas
vezes uma mulher ou um membro de uma minoria terá
uma postura diferente diante de um problema, ou uma
ideia diferente ou sugestão de como resolver esse problema.
Essas novas perspectivas de uma situação podem
acrescentar detalhes criativos e reviravoltas incomuns
para sua história. Reviravoltas que você não atingiria
usando apenas personagens de uma única cultura.
Quebrar estereótipos significa reconhecer as contribuições
que pessoas de outros cenários culturais podem dar.
Valorizando o que eles têm a oferecer, esses personagens de
fora da sua própria cultura podem acrescentar cor, textura e
tornar suas histórias únicas.
O Luminas Award foi feito pela primeira vez em 1986.
No momento em que este artigo foi escrito, essa premiação
foi interrompida com algumas ideias de reinstituí-lo em
uma data posterior. Mas os critérios continuam sendo
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usados por alguns membros da indústria na criação de


personagens.

APLICAÇÃO
Pense por um momento sobre as pessoas que você
conhece que são negras, hispânicas, índias, asiáticas, etc.
Pense em como a mídia costuma retratá-las e como difere
da sua própria experiência. Existe alguma pessoa desses
grupos que você nunca conheceu? O que você pensa sobre
elas é realmente verdade? Tente encontrar a verdade,
principalmente se você decidiu usar um desses grupos
étnicos na sua história.
Aplique o critério do estudo de caso em alguns filmes
que você assistiu ano passado. Onde cada filme errou?
Onde cada filme acertou? Como poderia melhorar sem
comprometer a história?
Pense na sua cidade natal. Quais diversidades existiam
entre as pessoas de onde você cresceu? Existiam pessoas
de certas culturas que você não tinha contato? Você tinha
ideias estereotipadas dessas pessoas? Como você começou a
desconstruir esses estereótipos?
Pense no contexto dos personagens do seu roteiro. Você
explorou a diversidade dentro da localidade de cada um?
Você precisa fazer pesquisas mais a fundo sobre algumas
dessas pessoas para retratá-las com precisão? Quem você
conhece de grupos minoritários que poderia ler seu roteiro
e dar sugestões para dimensionar melhor o personagem?
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RESUMO
Desconstruir estereótipos não é um processo que
o escritor precisa fazer sozinho. Todos os grupos
mencionados possuem materiais publicados que podem
ajudar a entender mais profundamente algum personagem
de alguma minoria específica. Muitos deles também
possuem outras fontes disponíveis para o escritor, tais
como pessoas para serem consultadas sobre personagens no
roteiro.
Adicionar representações positivas de mulheres e
minorias no seu roteiro pode expandir a paleta da sua
história, criar personagens mais fortes, definidos e
dimensionais.
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10
Resolvendo Problemas
no Personagem
Escritores ficam travados e personagens também.
Às vezes as ideias simplesmente não vêm. Às vezes o
personagem parece que não vai chegar a lugar nenhum, e
todas as perguntas básicas (O que o personagem quer?
Quem é o personagem? O que ele/ela está fazendo na
história) parecem não entregar nenhuma resposta. Para
alguns escritores, esses momentos os enchem de pavor.
Outros simplesmente veem como parte do processo.
Às vezes isso acontece por cansaço. Os escritores estão
tão exaustos que suas mentes não estão funcionando bem.
Às vezes é por falta de pesquisa. Se você não entende o
contexto do personagem, o personagem não vai funcionar.
Outro problema ocorre porque escritores passam tanto
tempo escrevendo, que não param pra viver. Carl Sautter
alerta, “Você precisa tentar ter uma vida, perceber que
é mais que um escritor e que existe um mundo lá fora. Se
você não estiver no mundo, não escreverá tão bem pois
você estará perdendo o que está acontecendo.”
Não existe nada de estranho em enfrentar problemas
com o personagem. Todo escritor passa por isso.
Normalmente os problemas estão nos seguintes tópicos:
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PROBLEMAS COM PERSONAGENS DESAGRADÁVEIS


Quando Judith Guest estava escrevendo “Gente Como a
Gente”, ela teve dificuldades para entender Beth. Ela relata
“Beth funcionava bem para definir melhor o roteiro e
mover a história adiante. Mas para meus propósitos como
autora, ela me parecia um fracasso. Muitas pessoas me
diziam que a odiavam. Isso me parecia ser minha culpa. Eu
não queria que as pessoas a odiassem, mas acho que eu a
odiava no começo do livro. Quando comecei a escrever esse
livro, eu a culpava pelo que aconteceu com Conrad. Quanto
mais eu escrevia, mais complexa a situação ia se revelando
e menos eu a culpava. Decidi não entrar na cabeça de Beth
porque tinha medo de mostrar o quão pouco eu sabia
sobre seu interior. Naquela época falei pra minha amiga e
colega Rebecca Hill, que eu não conseguia entrar naquela
personagem e ela disse ‘Vou te dizer o porquê: você odeia
ela e ela não irá se revelar pra você’.
“Às vezes escritores não entendem um personagem
porque a parte que eles odeiam é, de alguma forma, uma
parte que eles odeiam em si mesmos. Penso que se você
puder abraçar essa parte de si mesmo, isso te ajudará a
encontrar uma forma de lidar com o personagem. Acredito
sinceramente que existe crueldade em todos nós, estupidez,
obstinação. Todos os traços de personalidade que você não
gosta em si, que tenta corrigir e reprimir, que tenta negar
pra si mesmo que existem; quando você os vê nas outras
pessoas isso te deixa furioso. Então talvez uma forma de
acessar o interior do personagem seja aceitar essas partes
que você odeia em si mesmo e até amá-las pois são parte de
você.”
Robert Benton concorda. “Já aconteceram situações que
eu precisava escrever um personagem mas não conseguia
por não gostar dele, então tinha que procurar por outro
personagem. Aconteceu também de eu escrever um
personagem que não deveria ter escrito. Nunca funciona.”
Se um personagem é o reflexo do seu próprio lado
sombrio, ele ou ela serão difíceis de gostar. Através do
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entendimento e aceitação do seu próprio psicológico, você


conseguira ser mais capaz de escrever personagens que você
possa considerar negativos.

PROBLEMAS NA COMPREENSÃO DO PERSONAGEM


Existem vezes que os escritores não conseguem entender
seus personagens. Não importa quanto trabalho tenha sido
feito, o personagem continua os iludindo. Frank Pierson
recomenda aprender mais sobre o personagem criando
cenas que nunca aparecerão no roteiro. “Talvez você não
saiba o suficiente sobre ele/ela, sobre como se relaciona
com outros personagens... uma forma de lidar com isso é
colocando essas pessoas numa situação que não tenha nada
a ver com o roteiro, exemplo: um deles pede um lanche e
depois recusa o pedido, o que seria bem constrangedor
pro outro personagem. O que aconteceria nessa situação?
Como eles conversariam sobre isso? Como discutiriam?
Eles brigariam? Como esses personagens trocariam um
pneu na rodovia de Santa Monica na chuva? Como eles
conseguiriam troco pra $ 100 em Detroit depois da meia-
noite? Escreva essas cenas e você aprenderá mais sobre esses
personagens do que de qualquer outra maneira. “

PROBLEMAS COM PERSONAGENS VAGOS


Personagens, assim como pessoas, são únicos, detalhados
e específicos. Às vezes os personagens não funcionam
porque estão muito generalizados ou vagos.
Robert Benton relata “Se eu não tomar cuidado acabo
escrevendo personagens que são muito vagos. Não vão além
das necessidades da trama. Se os personagens são bons,
eles irão se impor à trama e forçar que ela os acomode.
Eles não são ferramentas da trama ou de um conceito
moral que você quer transmitir. Algumas vezes já criei
personagens consistentes demais ou que comentam muito
sobre si mesmos. Já fiz personagens que pareciam ideias
abstratas também. Quando isso acontece, dou um passo
pra trás, jogo eles fora e repenso do início. Tento encontrar
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alguém que conheço ou que já conheci como modelo pro


meu personagem. Se você pegar alguém que você conhece
bem, terá mais chances de ter alguns vislumbres a partir
dessa pessoa. Fica difícil pra mim quando escrevo um
personagem que é baseado num personagem de algum
outro filme. Nunca funciona quando tento escrever um
personagem tipo John Wayne, como em Rio Bravo. Tentei
várias vezes. Só funciona quando pego um personagem
da minha vida e uso como modelo pra um personagem
que estou criando. Uso certas pessoas várias e várias vezes
(focando em diferentes aspectos). Já usei minha esposa
nuns vinte enfoques diferentes em vários roteiros.
“Quando trabalhávamos no filme ‘Kramer vs. Kramer’,
Dustin Hoffman me ensinou muito sobre escrita. Cada
personagem, a todo instante, precisa ser específico. O
personagem não podia se dar ao luxo de ser genérico.”

PROBLEMAS COM A COMERCIALIDADE


Muitos produtores americanos e atores querem
personagens positivos, que gerem empatia. Isso pode
criar problemas de personagem, principalmente quando
o escritor desenhou um personagem bem redondo,
fascinante, mas de ênfase negativa que não é compatível
com o mercado nacional.
Kurt Luedtke relata: “Estou enfrentando um problema
com um personagem. Não é por estar travado. Conheço
ele bem, talvez bem até demais. Mas ele foge do padrão
do herói de filme comercial. Se eu não tivesse que me
preocupar com isso, poderia fazer coisas interessantes
com ele. Mas parte do trabalho é tentar encontrar um
personagem que 50 milhões de pessoas vão querer ver”.
Num caso como esse, o escritor talvez precise repensar
o personagem, ou começar a adicionar atributos positivos
para balancear suas falhas.
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PROBLEMAS COM PERSONAGENS SECUNDÁRIOS


Às vezes um personagem secundário rouba a cena.
Escritores têm dois pontos de vista sobre o que fazer
quando isso acontece. Dale Wasserman diz, “Isso é
problemático. Se um personagem secundário começa a
tomar o controle, considero que existe algum problema com
a ideia principal, com a estrutura, ou que eu não pensei
direito antes de começar. Isso acontece com frequência.
Normalmente indica que você foi improvisando ao invés
de planejar sua história. No processo de improvisação os
personagens ficam desbalanceados na história”.
Porém, isso pode ter suas vantagens algumas vezes.
Robert Benton relata “no filme Um Lugar no Coração,
Edna Spalding dominou a história. Originalmente a história
era sobre contrabandistas no Texas. Edna veio como um
personagem menor e ela simplesmente empurrou todos
os outros personagens. A situação que mais amo escrever
é quando um personagem toma o controle. Não gosto de
escrever quando tenho que arrastar o personagem comigo.
Significa que estou fazendo algo errado. Um personagem
tomando o controle pode ser a melhor coisa pra história”.
Alguns personagens são obedientes demais. É como se
o escritor estivesse manipulando marionetes, ao invés de
entrar num relacionamento dinâmico com os personagens,
permitindo que eles também tenham voz na história.
Shelley Lowenkopf diz, “Algo que um escritor iniciante
pode fazer é afastar-se e dar espaço para que os personagens
cresçam na história. Às vezes é vital que os personagens
tomem vida por conta própria para gerar tensão e suspense”.

PROBLEMAS NA HISTÓRIA VS. PROBLEMAS NO


PERSONAGEM
Às vezes um personagem não vai ganhar vida por um
problema na história. Kurt Luedtke comenta: “Quando
existe de fato um problema com um personagem, o
primeiro pensamento que me passa não é consertá-lo, mas
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abrir mão dele. É possível fazer coisas pra deixa-lo mais


interessante, mas é algo bem artificial. Não é difícil pensar
num comportamento, ou num tic, num passado, numa
roupa, num estilo. Não estou falando que não funcione
como entretenimento, mas me incomoda. Acho que é meio
chinfrim tirar soluções baratas da cartola quando outro
personagem poderia começar a ganhar vida e ser bem mais
interessante. Prefiro perder um personagem que se recusa a
ganhar vida e tentar encontrar outro que queira.
“Pode acontecer algum motivo bem específico na
história pra que você não possa perder o personagem
(apesar de que a história pode ser bastante maleável). Se o
personagem sem vida parece necessário pra um certo ponto
de vista da história, você provavelmente descobriu uma
falha na história. Não é um problema de personagem, é um
problema na história pois, se o seu personagem é vital e sua
história funciona, porque não ganham vida? Minha suspeita
é que você está forçando a trama. Pode ser necessário
que alguém apareça na trama, provoque uma mudança e
desapareça. Você pode achar que fez um bom movimento,
mas se não funcionar, eu tentaria olhar a história primeiro.
“Se eu não conseguir me livrar de um personagem
por precisar dele pra algo na história, eu pensaria que é
uma história frágil que depende de um personagem que
não vai servir pra mais nada; então é melhor olhar com
mais cuidado. Existem problemas que parecem ser do
personagem, mas na verdade é um problema na história”.

TÉCNICAS PARA SUPERAR PROBLEMAS


Problemas com personagens podem ser resolvidos.
Escritores experientes têm muitas técnicas que podem
ajudar a trabalhar personagens que estão travados.
Gayle Stone: “Às vezes pode ser útil uma técnica
chamada ‘escrita livre’. Basicamente, você escreve qualquer
coisa possível sobre pessoas que você conhece, pessoas que
você consegue imaginar, cenas que você vê, talvez apenas
olhar pela janela e descrever a vista. Isso normalmente
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ajuda a começar a fazer conexões entre o que está saindo


da sua cabeça e a solução pro seu problema na trama, na
história ou no personagem.”
Shenlley Lowenkopf: “Quando fico travado, eu consulto
as pretensões secretas dos personagens principais, o que
eles realmente querem. Descobrir as pretensões secretas
ajuda a entender o personagem novamente”.
Kurt Luedtke: “Se você ficar travado com um
personagem, chame alguém pra ler as páginas do seu
roteiro. A pessoa dirá ‘não entendo porque ele/ela fez isso e
aquilo’, isso pode clarear sua visão. Pode te tirar da linha de
raciocínio que você estava.
“E, se você continuar a ter problemas, faça as perguntas
‘E se tal coisa acontecesse’. ‘E se esse cara não tiver o
pé esquerdo?’, ‘e se algo tivesse acontecido com esse
personagem quando ele/ela tivesse quinze anos? ‘
“Se um personagem principal não estiver funcionando,
você tem um problema sério. Um personagem secundário
com problemas, é mais fácil de ser consertado. Você pode
pesquisar, procurar outro personagem que faça as mesmas
coisas importantes na história.
“Se eu tivesse que escolher apenas uma coisa pra fazer,
seja com personagens principais ou secundários, faria uma
troca de sexo. É incrível as possibilidades que se abrem
quando você diz, “Bem, e se José agora fosse Maria...”. Existe
um conjunto diferente de atitudes e uma nova empolgação
em relação aos personagens pois pode nos libertar o
estereótipo que inevitavelmente temos do homem e da
mulher.”
Karin Howard: “Às vezes você tem um nome e nada
acontece. Acho que nomes são bem importantes. Muitos
nomes geram associações psicológicas em nós. Conseguir o
nome certo que gere a associação certa pode dar vida ao seu
personagem.”
James Dearden: “Se eu fico travado, eu simplesmente falo
com minha esposa. É uma questão de arejar o problema,
tocar a bola e recebe-la de volta, tentar conversar a respeito.
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É por isso que existem editores incríveis na vida de grandes


escritores. Os escritores mandam seus manuscritos pra seus
editores e eles retornam com anotações, dicas e sugestões.
Isso não significa que o escritor não sabe trabalhar. Apenas
que às vezes não conseguimos ver o óbvio por estarmos
muito envolvidos”.
Conseguir uma visão mais ampla num problema com
o personagem ajuda o escritor a ver o que não deve ser
sobrecarregado. Problemas com personagens é parte
natural do processo de encontrar um caminho (tanto para o
personagem quanto para o escritor).

ESTUDO DE CASO: DENYS FINCH-HATTON EM ENTRE


DOIS AMORES
Ocasionalmente, existem problemas de personagem que
nunca serão resolvidos pelo escritor (pode acontecer com
os melhores). Pode ser mais difícil quando se trata de um
personagem baseado numa pessoa real. Às vezes é uma
pesquisa insuficiente sobre a pessoa, ou talvez não exista
conflito suficiente, desejos claros o suficiente, objetivos
que façam dele um personagem dramático funcional. As
soluções para certos problemas de personagem continuarão
a falhar não importa quão habilidoso esse escritor/escritora
seja.
Em 1985, Entre Dois Amores ganhou o prêmio de
melhor adaptação, melhor diretor e melhor fotografia.
Ainda assim a crítica sentiu que havia uma falha na
construção do personagem Denys Finch-Hatton. Kurt
Luedtke, o roteirista, concordaria.
Decidi usar Finch-Hatton como um estudo de caso pois
o processo que Kurt passou diz muito sobre o processo de ir
trabalhando um personagem.
Kurt Luedtke: “Denys nunca foi resolvido. A pesquisa
não ajudou. Ele foi de fato alguém que não queria ser
conhecido e realmente tomou as providências pra isso
acontecer. Tentou cobrir seus rastros pedindo para os
amigos queimassem as cartas que enviava. As pessoas
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o descrevem como um dos gatos da Líbia (feito um


leopardo que se move apenas quando há um motivo muito
específico). Até mesmo os nativos não o compreendiam.
Então nunca consegui tirar nada muito dramático desse
personagem. Todos os pontos que eu descobria sobre
ele tendiam a ser negações e eu nunca encontrava um
bom jeito de transformá-las em afirmações. É um tipo de
problema estranho na escrita. Acho que a verdade é que
ele não queria ser controlado, desejava poucas coisas. Era
muito rigoroso quanto a não desejar coisas. Nunca consegui
encontrar um jeito realmente interessante de dramatizar
esse “não querer”.
“Acho que se eu tivesse ficado um pouco mais tranquilo
com isso, descartado o que eu sabia sobre o real Denys,
eu poderia ter escrito um personagem que diria ‘não ligo
pro quão inteligente você é, pra qualquer coisa dessas, nós
temos escassez de mulher nesse país e o que amo em você
é sua pele suave e isso é tudo que quero.” Eu poderia ter
escrito um personagem com um conjunto bem específico
de atitudes que pelo menos daria ao ator possibilidades
mais ativas pra fazer.
“Mas, como escritor, pensei que seria bem difícil lidar
com um personagem real falando coisas que eu sabia que
não eram verdadeiras. Eu teria uns dilemas éticos. Me
sentiria bem constrangido pois eu estava trabalhando com
material verdadeiro e uma figura real que eu me importava.
Se eu tivesse que trapacear dessa forma, eu simplesmente
não faria o filme. Se fôssemos fazer mesmo essas coisas,
poderíamos mudar o nome do filme, chamar a personagem
de Shirley e ele de Bill. Eu só acho que não faria sentido
fazer o filme “Entre Dois Amores” se não seguíssemos até
onde a realidade permitisse. Se for pra inventar, então que
seja com tudo.”
Existe uma série de qualidades que um personagem
precisa ter pra ser essencialmente dramático. Uma delas
é intencionalidade. “O que o personagem quer?”, é uma
pergunta feita por muitos produtores e executivos. Para
Denys, a resposta parecia ser “Nada”.
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Kurt continua, “Eu nunca sabia quem era o real Finch-


Hatton, mas pelo pouco que sabia sobre ele, suspeitava e
acreditava que ele foi um cara bem contido que realmente
não queria muita coisa, que já tinha o que queria. Ele é
um personagem essencialmente não dramático. Você pode
fazer um filme sobre seus atos externos, já que ele viveu
aventuras dignas de cinema, mas as qualidades internas são
desconhecidas. Por isso usei a Karen. São suas vontades,
necessidades, motivações e sua situação que tornam Finch-
Hatton interessante. O ponto é: se realmente quiséssemos
tornar Finch-Hatton algo fictício, esse personagem não
seria o personagem ideal pra Karen Blixen. E, por outro
lado, se seguíssemos algo mais baseado na verdade, Bror
seria bem mais interessante para ela. Eu poderia escrever
um filme inteiro sobre o casamento deles”.
Mas o filme focou na história de amor. Então Kurt tentou
definir Denys de outras formas.
“Tentamos insinuar ligeiramente que ele tinha algum
problema por ser tão contido. Há uma cena inventada
(mas não inconsistente), quando seu amigo Berkley Cole
está morrendo. Descobriram que Berkeley manteve um
relacionamento com uma mulher somaliana por muitos
anos. Denys fica surpreso ao descobrir e diz: ‘Por que você
não me contou?’ e Berkeley responde: ‘Achei que você não
fosse tão próximo’. Estávamos tentando transformar nosso
problema num personagem. Talvez nós e o personagem
Berkley compartilhássemos dessa sensação de não conhece-
lo.”
Em retrospecto, Kurt considerou mudar alguns
diálogos. Originalmente, foram escritos pra terem um
jeito britânico. “Acho realmente que algumas dessas cenas
funcionam melhor com um sotaque. Se eu soubesse que
não colocaríamos o sotaque, eu teria aceito a chance de
escrever alguns diálogos, mas ainda assim não resolveria
o problema. Continuaríamos tendo um personagem que
ninguém conhece muito bem.”
Perguntei pra Kurt o que ele faria de diferente. O
que poderia ser aprendido dessa situação e o que ele
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aconselharia para um escritor que estivesse passando por


algum problema.
“Acho que eu diria, num nível bem prático, para ser
cuidadoso com a não-ficção, e ter consciência do quanto
você está disposto a transformar alguém em ficção. Não
acho que deva haver regras pra isso. Tenho grande respeito
pela pessoa que diz ‘meu trabalho não é narrar fatos
históricos, mas entregar o melhor filme dramático e é isso
que vou fazer’. Se alguém me pergunta o que acho sobre
o filme Patton, eu diria ‘Acho um bom filme, mas não é
compatível com minha visão histórica de quem foi Patton.
Mas é um bom filme e eu não tenho nenhuma ressalva
quanto a isso’, mas sinceramente, da próxima vez (se eu
acabar me envolvendo com material biográfico de novo)
eu analisarei com cuidado para ver se os fatos estão lá e se
são bons o suficiente do jeito que são. Se vou ou não ficar
desapontado com a verdade.
“E, ao lembrar dessa situação, eu diria que existem
problemas que a gente resolve e outros não”.

APLICAÇÃO
Quando você encontra um problema de personagem,
primeiro pense nos conceitos centrais abordados nos
capítulos anteriores. Se você conseguir apontar exatamente
onde está o problema (o personagem não ser consistente,
falta de dimensionalidade, sem vivacidade emocional,
valores pouco claros, etc), muitos dos exercícios que foram
passados até aqui podem ajudar a resolver o problema.
Se não funcionar, pergunte o seguinte:
■■ Meu personagem soa como uma pessoa específica, ou
ficou muito generalizado?
■■ Eu gosto dele, eu o compreendo?
■■ Meu personagem secundário está dominando a
história? Essa dominação prejudica ou existe algo
interessante se desenvolvendo? Estou com vontade de
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seguir esse personagem por um tempo, só pra ver o


que vai acontecer?
■■ Já fiz as perguntas “e se...” para meu personagem?
Tentei mudar o sexo, o passado, a aparência física?
■■ Será que estou tão sobrecarregado que minha
mente parou de funcionar? Minha vida tem sido
apenas trabalho? Estou reservando um tempo para
experimentar a vida, para que consiga ter mais para
ser escrito?

RESUMO
Escrever bons personagens é um processo complicado.
É natural encontrar alguns problemas pelo caminho.
Ficar travado é parte natural do processo. Acontece até
com os melhores escritores. Usar algumas dessas técnicas
de solução de problemas pode ajudar na sua frustração,
direcionando você para soluções que podem fazer seu
personagem funcionar.
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Epílogo
Escrever esse livro foi uma aventura. Falar com esses
escritores talentosos expandiu minha consciência sobre
as habilidades sutis necessárias para criar personagens
incríveis. Iniciei cada entrevista com respeito pelo trabalho
do escritor e terminei com um igual respeito pela pessoa
por detrás da obra. Ficou evidente pelas percepções,
apontamentos e eloquência que essas pessoas eram
especiais.
Muitos dos escritores enfatizaram os mesmos pontos:
■■ A importância de observar a vida
■■ Refletir a partir das próprias experiências para
melhor compreender seus personagens
Contudo, o que mais me impressionou é que cada um
deles pareceu ter encontrado sua própria voz interior. Cada
um possui algo valioso para dizer, uma certa perspectiva
sobre a vida que comunicam em seus trabalhos. Seja
falando do que é necessário para superar barreiras que
separam as pessoas, seja sobre redenção, ou pessoas
confrontando escolhas morais. Em todas existe certo ponto
de vista único que se enreda no meio de suas escritas.
Por meio do meu trabalho como consultora de roteiros,
vi que os escritores podem aprender a acreditar e a nutrir
essa voz interior. Apesar do talento ser parte importante
da escrita, raramente aparece de uma só vez na vida de
alguém. Talento normalmente inclui trabalho duro, algum
treinamento técnico, muita prática e aprender a acreditar e
articular um ponto de vista único.
Espero que esse livro te ajude a encontrar sua voz
interior e reconhecer que seu autoconhecimento é um bom
ponto de partida para qualquer criação de personagem.
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Também espero que ele encoraje seu processo criativo e


que, através disso, te ajude a dar vida a personagens e torna-
los inesquecíveis.
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OS CRITÉRIOS DO ‘WOMEN IN FILM LUMINAS AWARD

As personagens femininas
A. São multidimensionais e podem estabelecer uma
grande variedade de relações sociais e pessoais.
B. Refletem uma extensão de idades, raças, classes,
aparências físicas e profissões presentes na sociedade.
C. Ajudam a mover a história com posturas,
comportamentos e propósitos pessoais, afetando o
que irá acontecer.
D. Superam situações difíceis através da própria ação e
vontade.
A obra como um todo
E. Fornece ideias, modelos e novas formas de entender
aquelas mulheres (seja do passado ou do presente)
que contribuíram de forma exemplar para a
sociedade.
F. Reconhece a importância que certas questões (poder,
classe social, política e guerra) têm para as mulheres,
bem como as contribuições que elas tem dado a essas
questões com seus pontos de vista singulares.
G. Admite a importância universal de temas como
o planejamento familiar, o cuidado dos filhos e a
igualdade de oportunidades profissionais; como
também problemas sociais como o abuso sexual e
psicológico.
H. Demonstra que sexualidade e carinhos implicam
intimidade, afeto, preocupação. Que todas as
mulheres podem desfrutar disso.

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