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Macunaíma, a trajetória de um herói moderno

Valter Aparecido Barcala∗

Índice listano no Teatro Municipal.(Divalte; 2002,


p.327). Mário de Andrade procurou fazer
1 Introdução 1 uma ponte entre a expressão popular e a eru-
2 O filme 3 dita, alcançando as classes menos favoreci-
3 Conclusão 5 das através de sua própria produção cultural.
4 Bibliografia 5 Chegar as massas também era um preocu-
pação do Cinema Novo, principalmente após
Resumo 1964.
O movimento denominado Cinema Novo
O presente artigo tem por objetivo demos- inicia-se no final dos anos 50, tendo como
trar o caráter modernista de Macunaíma, meta a produção independente e de baixo
pautando-se mais no filme do cineasta custo. O cineasta Nelson Pereira dos Santos
Joaquim Pedro de Andrade, realizado em afirmou:
1969, do que no livro de Mário de Andrade
escrito em 1928. o Cinema Novo representou a descoloniza-
ção do cinema, como a que tinha acontecido
Palavras-chave: cinema; folclore; socie- antes com a literatura. Por isso, há influência
dade. da literatura nordestina, dos anos 30, de Jorge
Amado, Graciliano. E não podemos esquecer
os nossos paulistas, como Oswald e Mário de
1 Introdução Andrade. A música(...) , a pintura brasileira
Mário de Andrade foi um dos expoentes da foi a vanguarda da descolonização, que deu
Semana de Arte Moderna de 1922, onde mais essa coisa de reconhecer a verdadeira
face do povo brasileiro. Por exemplo, Di Ca-
obras inovadoras e vanguardistas que rom-
valcante, Pancetti, (...) Portinari.” (Ridenti,
piam com os padrões estéticos até então vi-
2000, p. 90).
gentes foram apresentadas ao público pau-

Valter Aparecido Barcala, licenciado em História A década de 60 é marcada por profundas
e Pedagogia, Especialista em Metodologias do Ensino transformações, crescente urbanização, de-
Aprendizagem da História, pelo Instituto de Educa- senvolvimento dos meios de comunicação,
ção São Luís , Mestre em Educação, Arte e História
transportes, industria. No plano político, um
da Cultura pela Universidade Presbiteriana Macken-
zie. Professor Titular de Cargo da Rede Estadual de modelo ufanista e cerceador dos direitos po-
Ensino do Estado de São Paulo. líticos e constitucionais, principalmente após
2 Valter Aparecido Barcala

a decretação do Ato Institucional n.5, o ar- e integração ao que significou politicamente


tigo 5 e 6, do mesmo Ato, decretava: a instauração da ditadura militar, também ela
articuladora do moderno e do arcaico.”
ART.5 A suspensão dos direitos políticos, (Ridente, 2000, p. 280)
com base neste Ato, importa, simultanea-
mente, em: Dentro deste panorama, o Movimento
I - cessação de privilégio de foro por prerro- Modernista de 1922, e os modernistas são re-
gativa de função; visitados. Randal Johnson afirma, “há mui-
II- suspensão do direito de votar e de ser vo- tos paralelos entre o modernismo e o cinema
tado nas eleições sindicais; novo. Ambos os movimentos foram reações
III- proibição de atividades ou manifestação
contra o código dominante nas suas respec-
sobre assunto de natureza política;
tivas áreas de significação: o modernismo,
IV- aplicação, quando necessária, das se-
guintes medidas de segurança: contra o parnasianismo e sua linguagem ba-
a)liberdade vigiada; charelesca, artificial e idealizante que espe-
b) proibição de freqüentar determinados lu- lhava a ideologia da estrutura de classe ar-
gares; caica da sociedade brasileira; o cinema novo,
c) domicílio determinado. contra a chanchada e os filmes sérios pro-
§1o duzidos em São Paulo, especialmente os da
O ato que decretar a suspensão dos direitos Vera Cruz, os quais refletiam, ambos, uma
políticos poderá fixar restrições ou proibições visão colonizada, idealizada e inconseqüente
relativamente ao exercício de quaisquer ou- da realidade brasileira.”(Ridenti, op.cit., pgs.
tros direitos públicos ou privados. 23-25)
§2o O filme Macunaíma de Joaquim Pedro é
As medidas de segurança de que trata o item uma alegoria do Brasil moderno, um Brasil
IV deste artigo serão aplicadas pelo Ministro cheio de crises.
de Estado da Justiça, defesa a apreciação de
Os filmes do Cinema Novo, em sua pri-
seu ato pelo Poder Judiciário.
meira fase (final dos anos 50 início dos anos
ART. 6 “Ficam suspensas as garantias consti-
tucionais ou legais de: vitaliciedade, inamo-
60), foram feitos para um público intelectua-
bilidade e estabilidade, bem como a de exer- lizado, falhando no ponto de vista comercial.
cício em funções por prazo certo. Segundo Glauber Rocha:

No plano cultural, o tropicalismo buscava “O Cinema Novo descreveu, poetizou, dis-


uma linguagem brasileira para expressar os cursou, exercitou os temas da fome: perso-
problemas brasileiros. nagens comendo terra, personagens comendo
raízes, personagens roubando para comer,
“Alguns autores ousaram sugerir traduções personagens matando para comer, persona-
políticas para o tropicalismo: segundo Ro- gens feios, sujos, descarnados, morando em
berto Schwarz, em texto produzido no calor casas sujas, feias, escuras.”
da agitação política e cultural dos anos 60, o
tropicalismo seria, em sua proposição de en- O cinema enquanto instrumento de cons-
trelaçamento estético entre o moderno e o ar- cientização política e social foi levado com
caico, uma expressão ambígua entre crítica rigor pelo Cinema Novo.

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Em sua primeira fase, o Cinema Novo que na simbologia familiar é a representa-


concentrou-se na temática rural, abordando ção de autoridade. Em sua trajetória Macu-
principalmente a miséria dos camponeses naíma destituído de limites e das noções de
nordestinos. Filmes como Vidas Secas direito e dever para com seus semelhantes,
(1964), de Nelson Pereira dos Santos, Deus cria uma noção particular e egocêntrica da
e o Diabo Na Terra do Sol (1964), de Glau- própria vida.
ber Rocha, são expoentes desta fase, assim Como todo herói Macunaíma tinha seus
como o filme de Eduardo Coutinho, Cabra poderes.
Marcado para Morrer de 1964, mas só foi
concluído em 1984. “A moça carregou o piá nas costas e foi até o
Em sua Segunda Fase, pós Golpe de 64, pé de aninga na beira do rio. A água parara
o Cinema Novo toma como foco principal a pra inventar um ponteio de gozo nas folhas
classe média urbana e as incertezas políticas do javari. O longe estava bonito com mui-
tos biguás e biguatingas avoando na entrada
e sociais.
do furo. A moça botou Macunaíma na praia
Desta Fase, entre muitos exemplos cita-
porém ele principiou choramingando, que ti-
mos os filmes; O desafio (1965), de Paulo nha muita formiga!... e pediu pra Sofará que
César Saraceni, O Bravo Guerreiro (1969), o levasse até o derrame do morro lá dentro
de Gustavo Dahl, Macunaíma (1969), de Jo- do mato, a moça fez. Mas assim que deitou
aquim Pedro de Andrade, Terra em Transe o curumim nas tiriricas, tajás e trapoerabas
(1967) de Glauber Rocha, este apontado da serrapilheira, ele botou corpo num átimo
como o mais significativo do período. e ficou um príncipe lindo. Andaram por lá
O filme de Joaquim Pedro de Andrade, muito.2 ”
Macunaíma, é uma alegoria1 do Brasil que
despontava. O poder de Macunaíma é o da adaptabili-
dade, ele se adapta ao meio para sobreviver e
sanar suas vontades, sejam elas quais forem.
2 O filme
Diferente dos heróis da mitologia clássica, “... a fome bateu no mucambo. Caça, nin-
onde o nascimento é difícil ou cheio de pres- guém não pegava caça mais, nem algum tatu-
ságios, Macunaíma nasce fácil, já homem galinha aparecia!... Macunaíma estava muito
contrariado por causa da fome. No outro dia
formado.
falou pra velha:
Os heróis provinham do relacionamento
_ Mãe, quem leva nossa casa pra outra banda
de deuses com as mulheres comuns, tinham do rio lá no teso, quem leva? Fecha os olhos
determinados poderes, como Hércules, de- um bocadinho, velha, e pergunta assim.
tentor de grande força, ou Aquiles com sua A velha fez. Macunaíma pediu pra ela ficar
invulnerabilidade. Não se conhece a paterni- mais tempo com os olhos fechados e carre-
dade de Macunaíma, talvez a própria terra. gou tejupar marombas flechas piguás sapiqás
Macunaíma é a representação do brasi- corotes uruoelá no teso do outro lado do rio.
leiro que já nasce sem infância, abandonado Quando a velha abriu os olhos estava lá e ti-
a própria sorte, aprendendo no dia-a-dia a nha caça peixes, bananeiras dando, tinha co-
heróica tarefa de sobreviver, órfão de pai, mida por demais...”

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4 Valter Aparecido Barcala

O folclore é uma constante, tanto no livro partir deste ponto no filme de Joaquim Pedro
de Mário de Andrade, quanto no filme homô- um distanciamento da obra literária, de Má-
nimo de Joaquim Pedro de Andrade. O nas- rio de Andrade, sem perder o ‘fantástico’, o
cimento, o encontro com o currupira, a luta folclórico original do livro.
com o gigante pela posse do muiraquitã, e a Ele vê sua chance quando da perseguição
morte quando de seu encontro com a Uiara. da guerrilheira conhecida por “Ci”. Ela per-
No filme, a morte da mãe é uma ruptura, seguida por policiais consegue eliminar al-
pois Macunaíma junto com seus irmãos par- guns, e se esconde em uma grande garagem,
tem para a cidade grande, em um determi- Macunaíma presencia a “cena” e quando in-
nado momento Macunaíma se depara com dagado por um policial sobre o rumo que a
uma fonte, e molhando-se em suas águas se guerrilheira tomou, ele informa um caminho
transforma em homem branco, temos aqui contrario e entra atrás dela, após uma luta,
uma crítica ao preconceito racial, a socie- Ci fica inconsciente e ele “brinca” com ela
dade é preconceituosa, o Brasil serve-se do e se apaixona. O que temos neste momento
trabalho escravo a mais de 500 anos. A ti- do filme é a inserção do momento histórico
vemos no Brasil Colônia (1500-1822), es- pelo qual passava o Brasil, representado pela
cravidão primeira dos nativos da terra e de- guerrilheira urbana.
pois do negro africano, a tivemos no Império A passagem da guerrilheira pela “história”
(1822-1889), onde a mão-de-obra e a econo- e rápida e humaniza a luta armada no Brasil,
mia girava exclusivamente sobre a escravi- demostrando o lado familiar desses que pe-
dão, e a temos na República. A promulgação garam em armas para lutar pela democracia.
de Leis emancipacionistas e principalmente Ci, a guerrilheira, morre a caminho de uma
da Lei Áurea, assinada pela Princesa Isabel, ação juntamente com o filho que teve em seu
então regente do Brasil em 1888, não aboliu relacionamento com Macunaíma. Foi uma
a escravidão, apenas a escondeu, não houve inserção ousada pois levou ao grande público
integração do negro na sociedade, ele foi co- a certeza de que algo não estava bem no re-
locado a sua margem, ele, o negro, o imi- gime imposto pelo golpe de 64.
grante, o analfabeto, são escravizados pela Após a morte de Ci, Macunaíma, se empe-
sociedade, vivem a margem dela, vivem nos nha para conseguir o muiraquitã, que esta em
morros, nos cortiços, nas malocas, nas fave- poder do ‘gigante’ Venceslau Pietro Pietra,
las. conhecido como Piaimã, o gigante comedor
Este “racismo velado” fica evidente na de gente. Em uma primeira tentativa se veste
obra cinematográfica, a exclusão social fica de mulher e tenta seduzi-lo. Não consegue e
evidente na cena do “pau de arara” trazendo foge, uma cena caricata e carnavalesca.
os migrantes para a cidade, e o motorista do Em uma segunda tentativa procura ajuda
caminhão manda todos descerem e avisa que em um terreiro de candomblé, e através de
a partir daquele ponto é cada um por si. um Exu que incorpora no “gigante”, lhe dá
A sobrevivência depende da adaptabili- uma surra. Mas não consegue seu intento.
dade, o poder de Macunaíma, e ele se adapta. Venceslau, o “gigante”, com o intento de
Na cidade, Macunaíma continua sua traje- derrotar e comer Macunaíma, o convida para
tória pela vida e pela sobrevivência. Temos a banquete onde será servida feijoada, feita na

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própria piscina da residência e onde os con- 4 Bibliografia


vidados servem como ‘ingredientes’. Macu-
ANDRADE, Mário. Macunaíma, o herói
naíma consegue jogar o ‘gigante’ na piscina
sem nenhum caráter. São Paulo: Cir-
e recupera o amuleto.
culo do Livro, 1992. 203 p.
Em sua última jornada Macunaíma e seus
irmãos voltam ao sertão onde moravam, le- CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do
vando da cidade apenas aquilo que tinha Folclore Brasileiro. 10.ed. São Paulo:
agradado a eles, vários eletrodomésticos, Global Editora, 2001.
que representam o consumimos da sociedade
capitalista. RIDENTI, Marcelo. Em Busca do Povo Bra-
Após desavenças, Macunaíma fica sozi- sileiro, artistas da revolução, do CPC à
nho e passa contar suas aventuras a um pa- era da tv. Rio de Janeiro: Editora Re-
pagaio. cord, 2000.
A morte de nosso herói é trágica. Devo-
rado por Uiara, entidade das águas, come- DIVALTE, Garcia Figueira. História: Série
dora de gente. Novo Ensino Médio. São Paulo: Edi-
A cena final do filme de Joaquim Pedro tora Àtica, 2002.
é acima de tudo uma provocação à Ditadura YAKHNI, Saray. Macunaíma, um herói sem
Militar. Após ser levado para o fundo da causa.. in www.mnemocine.com.br.
lagoa, a “jaqueta” modelo militar que Ma- Acesso em 10/05/2005
cunaíma usava emerge junto a uma grande
mancha de sangue, simbolizando não ape- MARTINS, Ana Lúcia Lucas. Joa-
nas, as mortes provocadas pelo Regime, tam- quim Pedro de Andrade, Macu-
bém sua morte, no futuro, consumido por naíma e a Industria Cultural. in
suas ações. MELHORAR ESTE PARA- www.achegas.net/numero/quinze/ana_
GRAFO. martins. Acesso em 12/05/2005.

3 Conclusão Filmografia
Representação de uma nação em busca de MACUNAIMA; (1969). dir. Joaquim Pedro
seu próprio caminho, Macunaíma é uma sín- de Andrade.
tese do Brasil, de seus costumes, de seu fol-
clore, de sua natureza, de suas contradições.
Mostra o homem simples, que migra para as
metrópoles em busca de sua própria sobre-
vivência, mas que não esquece suas raízes.
Mostra as mazelas de um sistema político-
econômico que devora o próprio homem,
que o transforma em máquina, que o desu-
maniza.
Macunaíma é o Brasil.

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