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audiovisual

revolucionário

organização
Adriano Medeiros da Rocha e Evandro José Medeiros Laia
Copyright © 2021 Adriano Medeiros da Rocha e Evandro José Medei-
ros Laia Apresentação
Todos os direitos reservados.
Título original: audiovisual revolucionário

Presidente do conselho editorial: Luiz R. D. Poggetto/Renata G. D. Pog­


getto “O cinema não tem fronteiras nem limites. É
Conselho editorial: Cristian Gomes Lima, Emmanuelle Dias Vaccarini, um fluxo constante de sonho”.
Fernanda Luíza Teixeira Lima, Monique Ferreira Campos e Ricardo Ale-
xandre de Freitas Lima (Orson Welles)
Coordenadora editorial: Bianca Gracioso Moreira
Revisão de textos em português: Luciana Moreira
Revisão de textos em espanhol: José María Calderita Gazapo
Projeto gráfico e diagramação: Bianca Gracioso Moreira audiovisual revolucionário é um livro permeado por textos
Capa: Bruno Aziz
que refletem de maneira urgente sobre o audiovisual, no Brasil e na
América Latina, neste momento nebuloso em que vivemos em meio
à pandemia de covid-19, que já há dois anos assola a humanidade;
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE com ideais e governos fascistas e fundamentalistas inacreditavelmen-
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ te ganhando força; o nefasto neoliberalismo galopante em ampliar
Rocha, Adriano Medeiros da, 1977. Laia, Evandro José Me- a desigualdade e o abismo sociais; direitos humanos e conquistas
deiros, 1980 sendo desrespeitados; o planeta sendo cada vez mais negligenciado
audiovisual revolucionário / Adriano Medeiros da Rocha e destruído... No caso de nosso país continental, além e a partir de
e Evandro José Medeiros Laia. - São Paulo: Editora dos Frades,
2021. tudo isso, assistimos ao audiovisual, à cultura e à educação sendo
400 p. : 14 X 21 cm. minados e vilipendiados por interesses escusos e perniciosos, com
ISBN 978-65-995173-1-0 políticas públicas sendo extintas e perigosamente demonizadas...
Título original: audiovisual revolucionário
São tempos distópicos que nutrem ainda mais essas e inú-
1. História do cinema I. Título
meras mazelas, abalando nossa frágil esperança. Entretanto, como
CDD-791409
evidencia o professor Maurício Abdalla (2020), citado no texto aqui
presente de Adriano Medeiros da Rocha, “Representações de um re-
2021
Todos os direitos desta edição reservados à volucionário uruguaio: trajetória e reflexos cinematográficos de José
EDITORA DOS FRADES.
Av. Prof. Alfonso Bovero, 605 Alberto Mujica”, que propõe um olhar analítico e empático sobre a
05019-011 - Perdizes representação cinematográfica do revolucionário uruguaio: “Manter
São Paulo/SP - Brasil
www.editoradosfrades.com a esperança é a mais sublime atitude revolucionária. É o último bas-
tião de luta que impede que a guerra seja vencida por completo. [...] momento político/econômico atual) –, cabe evidenciar, como apon-
A esperança cria a utopia e nenhum projeto humano que transfor- tam Evandro Medeiros & Lara Linhalis, em “O intempestivo na televi-
mou o mundo foi possível sem utopia.” são: miudezas e torções na cobertura de protestos entre junhos”, que
foi uma câmera de telefone celular que registrou, em Minneapolis
Utopia que é essencial para seguirmos resistindo em meio a
(EUA), “o momento em que um policial branco asfixiou um homem
um caos aparentemente tão irreversível e que poderia se concreti-
negro, George Floyd, detido e sem chances de defesa, por mais de
zar apenas no universo das imagens e sons em movimento, como
oito minutos, esmagando o pescoço dele com o joelho, até a morte,
aponta Érika Savernini em seu texto “Uma u-topia u-crônica: o funda-
enquanto ele gritava: ‘Eu não consigo respirar!’”, divulgado para todo
mento revolucionário do Cinema”: “[...] Por poder escrever o mundo
o mundo através desta mesma mídia.
com sua materialidade, mas em novas relações espácio-temporais,
o cinema (no sentido lato de Michaud) continua fundamentalmente Torna-se premente a indagação de Yamid Galindo Cardona,
revolucionário, capaz de participar ativamente da reconfiguração do em seu texto “Documental y ficción: entre co fábula creativa y la
mundo.” contemporân co cine colombiano contemporâneo”: “¿Cómo conse-
guimos avanzar mientras nuestro mundo cambia constantemente
A arte, de forma geral, mas particularmente o cinema e o au-
frente a las revoluciones que eventualmente trae la modernidad y
diovisual como um todo, tornaram-se mais do que nunca um alento
e um artifício subjetivo possível em meio à imobilização em que nos sentimos que nos estancamos?”.
vimos forçados – até mesmo as lives, analisadas como textos audio- Segue imprescindível considerar como o audiovisual possui
visuais por Jhonatan Mata, em seu texto “A vida virou uma live: refle- um papel desafiador e instigante para a reconfiguração de nosso
xões sobre o conceito de amadorismo e transmissão ao vivo a partir
mundo obscuro. Nesse sentido, os textos aqui contidos, a partir de
das lives musicais num contexto de pandemia”, afirmando que “atua-
apontamentos diversos e análises pertinentes, lançam questiona-
ram como bálsamo discursivo para confortar (e mesmo confrontar) a
mentos que exploram as potencialidades do audiovisual contempo-
própria noção de morte”.
râneo como preponderante catalisador do caos que se configura.
No entanto, ainda que a mídia opere venais direcionamentos
De forma elementar, Cláudio Coração inicia seu texto “Os tem-
narrativos sobre a realidade dos fatos – como sempre ocorreu com
pos da revolta no audiovisual: Uma abordagem dos diálogos possí-
certa imprensa hegemônica no Brasil (principalmente contribuindo
veis entre o Cinema de Contagem e o rap dos Racionais MC’s” in-
para a deflagração do golpe de 20161 e culminando em nosso sinistro
dagando: “Qual seria o gesto preciso para se apreender um tempo
1 Quando a democracia brasileira foi novamente abalada com o discutí- da revolta? Ou, ainda, como o audiovisual se firmou, e firma-se, na
vel impeachment (em 31 de agosto de 2016) da Presidenta Dilma Rousseff, reeleita
em 2014.
evidência de tal gesto?”.
No texto que analisa o primeiro longa-metragem de ficção ventan en la época contemporánea imaginando permanentemente
do pernambucano Cláudio Assis, “Cidades escritas, cidades imagi- nuevas formas de cine y desbordaje de lo real.”
nadas: narrativas do cotidiano em Amarelo Manga”, Flávio Barbara
Procurando compreender as contribuições que o estudo de ci-
Reis pondera: “[...] em um mundo no qual a informação é atualizada
nematografias pode fornecer para a compreensão da história, em seu
constantemente, a antena parabólica de Assis aponta para questões
texto “El cine nacional de tres directores mexicanos de Hollywood”,
globais urgentes, superando a ideia de uma narrativa unificada e ho-
Fernando Cruz Quintana afirma que: “Muchos son los sentidos que
mogênea.”
puede tener el adjetivo ‘revolucionario’. No siempre se trata de la
Estevão de Pinho Garcia, em “Barão Olavo, o horrível e La fa- radicalidad o la ruptura. Lo revolucionario puede ser tal por no ade-
milia unida esperando la llegada de Hallewyn: leituras do horror em cuarse a lo esperado, por romper paradigmas o por ser innovador.”
tempos de horror”, argumenta que: “O cinema não deveria se subor-
Com a intenção de abordar o cinema documental como uma
dinar à política e sim a política e tudo o que existe no mundo deveria
das expressões mais pungentes da atualidade, podendo levar à re-
ser absorvido, deglutido e transformado pelo cinema que, através de
sua singular linguagem, daria a sua resposta à sociedade.” flexão e ao mesmo tempo ao desenvolvimento de uma consciência
acerca da realidade social, Aline Cristina Laier e Fernando Gaudereto
Ainda, no texto “Perspectivas estéticas e políticas do Cinema Lamas, em “A cultura visual sob o enfoque histórico-antropológico”,
da América Latina”, Ana Daniela de Souza Gillone analisa as cinema- defendem a capacidade de o audiovisual libertar e revolucionar a
tografias latino-americanas como autorrepresentações simbólicas consciência social ao tratar temas contundentes, como o racismo,
das questões políticas e sociais desses países, propondo abarcar a descortinando “[...] novas janelas de oportunidades para chegar a
retórica de militância política em filmes produzidos em diferentes
um público mais amplo e, desta maneira, realizar seu fim último, a
períodos, instigando um diálogo entre o passado e o presente. Se-
saber: levar a discussão para amplas camadas sociais.”
gundo a autora, o espectador sairia de sua “condição passiva de en-
cantamento para atuar na realidade a partir do conhecimento crítico No sentido de mostrar como a dramaturgia do telejornalismo
que obteve da obra”, como uma forma de mediação dialética entre o pode ser subvertida, “de modo que os elementos tradicionais do jor-
mundo simbólico e a realidade concreta. nalismo de TV – e facilmente reconhecidos pelo público em geral –
possam ser utilizados para combater a violência contra a mulher”,
Em “Revuelta e imagen en el audiovisual chileno Itinerarios
Ariane Pereira e Iluska Coutinho, em “Pelo fim da violência contra a
de un estallido (anunciado)”, Carolina Urrutia Neno demonstra que
mulher, dramaturgia do telejornalismo”, consideram que no Brasil,
no Novo Cinema Latino-americano emergiu o ideário de um cinema
“país em que o audiovisual ocupa um lugar central como instância
revolucionário, e que “[...] parte de la revuelta se relaciona con un
activismo audiovisual compuesto por nuevas prácticas que se rein- mediadora, a dramaturgia do telejornalismo se apresentaria como
potência para a emergência de novas histórias, e para a atuação de Conceito embrionário
sujeitos, também audiovisuais.”

A partir do que suscita a leitura dos textos fundamentais aqui


reunidos, cabe, enfim, remeter à concepção do teórico australiano audiovisual revolucionário é uma obra científica que proble-
Graeme Turner, em seu livro Cinema como prática social (1997, p. matiza o ideário revolucionário a partir da linguagem audiovisual em
13), de que o cinema (e o audiovisual por extensão) “é uma prática suas mais diversas formas, gêneros e nuances. Imaginamos que, no
social para aqueles que o fazem e para o público. Em suas narrativas momento atual, há uma demanda reprimida por uma comunicação
e significados podemos identificar evidências do modo como nossa embrionariamente revolucionária. Aqui é preciso contextualizar que
cultura dá sentido a si própria.” a palavra revolução deriva do latim revolutio ou revolvere, que pode
significar a ação de dar voltas, completar voltas ou círculos. Neste
Procurar elucidar o pensamento crítico sobre as imagens e
sentido, poderíamos, inicialmente, pensar circularidades entre de-
os sons em movimento em tempos tão sombrios e distópicos é um
mocracia, poder e mídia ou entre paisagens imaginárias e cristaliza-
convite oportuno oferecido por esses textos, no sentido de insinuar
ções do mundo real. Hoje, essas voltas revolucionárias são cada vez
caminhos possíveis para se refletir sobre o mundo. Numa perspecti-
mais rápidas, mais fortes, mais instáveis, mais fluídas...
va aparentemente oposta, melhor dizendo, irônica, Jean Epstein, em
A inteligência de uma máquina (1960) afirmava que “[...] conhecer A partir da herança do século das Luzes, a Revolução France-
mais é, antes de tudo, abandonar o lado mais claro e mais seguro do sa nos deixou o lema Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Tal invo-
conhecimento estabelecido.” Assim, ao que soava para o artista fran- cação repercutiu e repercute incessantemente em territórios muito
co-polonês como certa “desobediência”, talvez “possa servir para dar além da Europa, mesmo que de modo desigual no Sul Global, de-
mais um passo em direção ao ‘terrível oculto das coisas’.”2 flagrando definitivamente uma assimetria fundamental no humanis-
mo ocidental. Assim, em pleno suor da Latino América, precisamos
Ana Lúcia Andrade adentrar cada vez mais a mata fechada e as trilhas do pensamento
Professora Titular do Departamen- revolucionário, seja na arte, na comunicação, na construção cotidia-
to de Fotografia e Cinema da Esco- na das democracias possíveis. Neste caminho, audiovisual e revolu-
la de Belas Artes da Universidade ção se miram, se cheiram, se tocam, se misturam. Afinal, revolução é
Federal de Minas Gerais liberdade criativa. É inovação no conteúdo, no discurso, na narrativa,
na forma, na estética. É usar plenamente todos os meios que se dis-
põe na busca de uma noção de independência, de novos diálogos e
2 EPSTEIN, in XAVIER, Ismail (Org.). A experiência do cinema: antolo-
gia. Rio de Janeiro: Edições Graal/ Embrafilme, 1983. p. 287. espaços de fala e de vez. Aquele que ainda é denominado de outro
por muitos também pode, efetivamente, ser um de nós? De que ma- Sumário
neira o audiovisual contribui para diminuir a invisibilidade de outros
modos de existência e de fato traduzir a alteridade sem reduções?
Uma u-topia u-crônica: o fundamento revolucionário do Cine-
Este livro vem catalisar olhares sensíveis, cuidadosos e apro- ma, de Erika Savernini.............................................................13
fundados sobre o audiovisual que propõe contribuições para melho-
Documental y ficción: entre la fábula creativa y la realidad en
ria na vida humana, entendendo humanidade de um modo compar- el cine colombiano contemporâneo, de Yamid Galindo Cardo-
tilhado, para além da nossa espécie, lidas ainda como radicais por na............................................................................................41
uns tantos, apesar dos efeitos visíveis e sensíveis do colapso econô-
Barão Olavo, o horrível e La familia unida esperando la llegada
mico e humanitário do progresso. Afinal, aqui, audiovisual será visto de Hallewyn: leituras do horror em tempos de horror, de Es-
como sinônimo de ruptura ao consolidado e, ao mesmo tempo, con- tevão de Pinho Garcia.............................................................87
tinuidade de uma poesia profunda e transformadora. Partindo deste Representações de um revolucionário uruguaio: trajetória e
princípio, algumas indagações podem ser reveladoras: Quais são os reflexos cinematográficos de José Alberto Mujica, de Adriano
fundamentos e estratégias revolucionárias no audiovisual contem- Medeiros da Rocha...............................................................119
porâneo, especialmente aquele produzido no Brasil? Onde o audio- Os tempos da revolta no audiovisual: uma abordagem dos diá-
visual contemporâneo descortina tais facetas, tais fricções? Quando logos possíveis entre o Cinema de Contagem e o rap dos Racio-
subimos as montanhas e conseguimos mirar o horizonte ao pôr do nais MC’s, de Cláudio Coração..............................................159
sol e quando saltamos de ponta cabeça em direção ao mar? Como Cidades escritas, cidades imaginadas: narrativas do cotidiano
nossas diversas e multifacetadas produções audiovisuais (cinema, em Amarelo Manga, de Flávio Barbara Reis.........................187
TV, vídeo...) podem nos impulsionar para este salto? De que maneira El cine nacional de tres directores mexicanos de Hollywood,
essa produção plural e autêntica sensibiliza o espectador-produtor de Fernando Cruz Quintana..................................................209
na busca e defesa de novos espaços de expressão? Quais são os cria- Perspectivas estéticas e políticas do Cinema da América Latina,
dores/autores militantes que nos auxiliam a perceber essas formas de Ana Daniela de Souza Gillone...........................................243
expressivas diferenciadas da produção audiovisual? Revuelta e imagen en el audiovisual chileno: Itinerarios de un
estallido (anunciado), de Carolina Urrutia Neno...................273
Os organizadores
Pelo fim da violência contra a mulher, dramaturgia do telejor-
nalismo, de Ariane Pereira e Iluska Coutinho........................297
A cultura visual sob o enfoque histórico-antropológico, de Ali-
ne Cristina Laier e Fernando Gaudereto Lamas....................321
O intempestivo na televisão: miudezas e torções na cobertura
de protestos entre junhos, de Evandro Medeiros e Lara Linha-
lis..........................................................................................341
A vida virou uma live: reflexões sobre o conceito de amadoris-
mo e transmissão ao vivo a partir das lives musicais num con-
texto de pandemia, de Jhonatan Mata.................................267

Uma u-topia u-crônica:


o fundamento revolucionário
do Cinema1

Erika Savernini2

1 Para citar este texto como fonte de sua pesquisa, utilize o modelo abaixo:
SAVERNINI, Erika. Uma u-topia u-crônica: o fundamento revolucionário do Ci-
nema. In: ROCHA, Adriano Medeiros da; LAIA, Evandro José Medeiros. audiovi-
sual revolucionário. São Paulo: Editora dos Frades, 2021.
2 Docente Associada I, FACOM/UFJF. Doutora em Artes – Cinema
(EBA-UFMG).
audiovisual revolucionário 15

Introdução

O cinema, desde seus primórdios, prefigurou o espaço ciber-


nético como um novo espaço imaterial construído coletivamente. A
concepção desse outro lugar não físico para o qual o homem poderia
migrar estabelece para o cinema e para o ciberespaço uma relação
direta com as utopias. Na acepção do romance filosófico de Thomas
More (2000), a Utopia define-se como um outro espaço não existen-
te, irrealizável e ideal que diagnostica o atual. O cinema carregaria
caracteres fundamentais da Utopia tanto no que se refere à apresen-
tação de evidência realista de um espaço não existente quanto por se
projetar sobre a vivência do espectador. Embora sejam mais eviden-
tes nos momentos históricos revolucionários, como o cinema surgido
da revolução russa de 1917 e o cinema da revolução cubana de 1959,
as relações do cinema com a utopia não se realizam apenas política
e ideologicamente; a forma formante fílmica [1] e a teoria que pode
daí ser engendrada são igualmente revolucionárias. Sendo assim, a
construção espácio-temporal que fundamenta o cinema (na concep-
ção para além dos filmes) torna-o uma experiência revolucionária
(capaz de mudar a concepção e as próprias coisas; é ideia e ação).

A proposta de vivência emocional e psicológica num universo


imaterial já representaria o anseio de transcendência do corpo – a
mente ou a alma do espectador vive no cinema uma liberdade espá-
cio-temporal impossível a seu corpo físico. Este sonho de migração
chega a seu auge com a tecnologia digital, com as noções de cibe-
respaço, inteligência artificial e realidade virtual que, grandemente,
incorporam o audiovisual na constituição desse outro espaço – ideal-
mente modelável conforme os desejos do usuário e habitável por
16 Erika Savernini audiovisual revolucionário 17

avatares, projeções virtuais e, utopicamente, pela própria essência de imagens em movimento publicado por Dickson e sua irmã, em
do homem. Haveria então uma inversão quando o homem habitaria 1895 (antes mesmo da famosa sessão realizada pelos irmãos Lumiè-
um espaço concreto para sua mente, mas onde seu corpo seria uma re, em dezembro, em Paris) revela a consciência de Edison acerca de
projeção sensorial. sua invenção.

Neste ensaio, apresentamos uma síntese de pesquisas que de- Edison afirma que esses aparelhos eram apenas modelos que
senvolvemos nos últimos anos [2]. Adotamos um “cubismo teórico” apontavam para o que seria o extraordinário progresso dessa tec-
(STAM, 2003) pelo qual essa interpretação do cinema como um texto nologia de gravação e reprodução de imagens em movimento com
sobre as concepções de mundo e de ser humano presente e projeta- som. Porém, o inventor ressalta que esses aparelhos já realizavam
das (ou seja, cinema como utopia, e não representação) só é possível (no sentido de dar realidade, concretizar) a ideia inicial de captura
na adoção da Arqueologia da Mídia e da Mídia entendida como Eco- de algo do real pelo registro de nuances, como expressões faciais.
logia associadas à análise dos filmes como evidências de certa teoria Sua visão o leva a afirmar que o desenvolvimento da tecnologia “[...]
não apenas inscrita, mas construída no processo mesmo de criação sem dúvida levaria ao ponto em que uma ópera fosse apresentada
fílmica. Apenas nessa composição de abordagens encontramos fun- no Metropolitan de Nova York sem alterar o original, tendo artistas
damento para operar a dobra espácio-temporal de aproximação en- e músicos morrido há muito”. De certa forma, Edison prenuncia as
tre o momento do final do século XIX e início do século XX (momento promessas de imortalidade assumidas com o digital. Essa consciência
do nascimento do cinema) com as primeiras décadas do século XXI, do papel da imagem em movimento na preservação da anima das
que reconhecemos como momentos similarmente cruciais do cine- pessoas também é reforçada por Dickson e Dickson quando sugerem
ma, da experiência do ser humano no mundo e das próprias noções que o cineasta promoveu a imortalização dos performers por eles
de mundo. gravados.

Quando entramos na segunda década do século XXI, várias


Onde o cinema dos séculos XX e XXI se encontram inovações tecnológicas, como o 5G, prometem efeitos de interação
igualmente notáveis dentro dos parâmetros atuais do conceito de
Thomas Edison (2000) conta que foi em 1887, diante dos ex- espaço. Embora pareçam mundos diferentes, muito mais distantes
perimentos de Muybridge e Marey, que lhe ocorreu a ideia de um entre si do que os séculos anteriores (dizia-se que, pela velocidade
instrumento que “fizesse para os olhos o que o fonógrafo havia fei- das alterações culturais e tecnológicas, o século XX era o século mais
to para os ouvidos”, combinando imagem e som tanto na captação rápido da história da humanidade), o desafio que se coloca para o Ci-
quanto na reprodução. Este curto texto de prefácio do livro de histó- nema do século XXI é semelhante ao que experimentou no momento
ria dos inventos patenteados por Edison de captação e reprodução do seu nascimento e sua consolidação.
18 Erika Savernini audiovisual revolucionário 19

A modernidade, na passagem do século XIX para o século XX, da janela [4]. Pluralidade de visões e movimentos gerados por um
foi marcada pelas mudanças que as inovações tecnológicas das déca- aparato tecnológico; fragmentação e profusão de imagens, gerando
das anteriores trouxeram. Dentre essas inovações, algumas são no- incapacidade de apreensão do mundo na experiência direta; o des-
táveis por terem impactado o ser humano comum, se configuraram locamento temporal ocorrendo mais curto do que o espacial... a ex-
para além de um avanço científico-tecnológico, ganharam a socie- periência do trem prefigura a do Cinema. Talvez por isso a obsessão
dade, transformando-a, bem como os hábitos e psicologia da popu- do cinema pelo trem – alguns dos primeiros filmes mais importantes
lação. Como no momento atual do século XXI, foram tecnologias de retratam trens que, por sua vez, representam o momento em que o
circulação (de pessoas ou de informação), dentre as quais destaca- deslocamento e as tecnologias de comunicação transformam a vida
mos: telégrafo, telefone, ferrovia, automóvel, fotografia e cinema. do homem.

Em seu nascimento, o cinema projetou-se como uma personi- A partir desse momento, a percepção do ser humano em rela-
ficação do século que começava por sintetizar essas inovações e suas ção ao mundo e a si mesmo passa pela tecnologia, que se envolve no
implicações. A experiência do homem no final do século XIX, diante cotidiano e o configura. Por isso, Brüseke (2002) propõe que tal mo-
da aceleração do ritmo de vida, da dispersão das atenções, da des- dernidade seja chamada de técnica – o que indica todo um projeto
conexão da velha relação entre espaço e tempo, da fragmentação da europeu a partir da Revolução Industrial, em meados do século XVIII,
experiência e de uma inédita expansão do lugar da imagem, diante de associar o desenvolvimento a valores positivos e estabelecer sua
desses aspectos marcantes dessa vida moderna, preparou-o para o dependência a um avanço tecnológico industrial, elétrico... enfim, de
Cinema. Porém, mais do que reproduzir esse mundo, por igualmente um modo de vida eurocêntrico.
ser feito de fragmentos de espaço e tempo, o Cinema organiza-os, Os contemporâneos da invenção do Cinema, diante do assom-
dando a esse homem mais sentido e estabilidade do que sua própria bro das imagens em movimento, podem ter acertado sobre o que é
existência [3]. Cinema: um reflexo projetado não do que está diante da tela, mas de
desejos, sonhos, medos, utopias e distopias da humanidade.
Leo Charney e Vanessa Schwartz (2001) defendem que não é
o Cinema que é moderno, mas a modernidade seria cinematográfica.
O Cinema surgiu como uma síntese das transformações impactantes De que Cinema estamos falando?
na vida do ser homem comum nos séculos XVIII e XIX, por ele absor-
vidas e transformadas. É central, naquele momento, o divórcio do Refletimos que, hoje em dia, embora esteja em todo o lado,
“casal fetichista ocidental” (expressão de PAQUOT, 1999): espaço e relacionando-se com vários momentos da vida das pessoas, a lingua-
tempo. A experiência do trem é exemplar: diante da pessoa imóvel gem audiovisual tradicional já não responde à experiência de mundo
e sentada no vagão, as paisagens passam e são vistas pela moldura do homem. A ecologia do Cinema que expressa o século XXI apresen-
20 Erika Savernini audiovisual revolucionário 21

ta uma mudança no dispositivo em vários dos seus aspectos defini- avança no tempo (que organizaria as fases desde as mais primitivas,
dores. De acordo com Neil Postman, a Ecologia da Mídia é um estudo o nascimento dessas mídias, até as mais avançadas, que seriam as
da mídia como um ambiente. momento atual). No caso do cinema, a historiografia tradicional es-
tabelece cada nova tecnologia e/ou técnica como uma etapa passada
A ecologia da mídia examina a questão de
como os meios de comunicação afetam a per- que levaria inevitavelmente o cinema ao digital. Para a arqueologia
cepção, compreensão, sentimento e valor hu- do cinema, filmes, cineastas, movimentos e até inovações tecnoló-
manos, e como nossa interação com a mídia
facilita ou impede nossas chances de sobrevi- gicas organizam-se como uma árvore familiar, que se abre em várias
vência. [...] Um ambiente é, afinal, um com- direções, que percorre o tempo, mas estabelecendo relações entre
plexo sistema de mensagens que impõe ao ser
humano certas formas de pensar, sentir e se diferentes momentos. Na historiografia cinematográfica tradicional,
comportar. (POSTMAN, 1980) formas fílmicas que não se consolidam na produção hegemônica são
vistas como experiências superadas por formas narrativas mais bem-
Postman afirma que em ambientes midiáticos, como rádio, te- -sucedidas – ou seja, aquelas adotadas pela indústria e pelo público
levisão, cinema etc., as especificações (imposições humanas) tendem em geral. Para a arqueologia midiática, experiências passadas podem
a ser transparentes, e a ecologia da mídia deve explicitar isso. Em reverberar em vários outros momentos, inclusive no atual. Vemos,
relação especificamente ao cinema, ressaltamos que a transparência por exemplo, em certas experiências audiovisuais contemporâneas
é uma característica fundamental do cinema hegemônico, pelo qual expandidas, uma retomada de propostas e/ou formas de trabalhar a
o sistema formal do filme se organiza segundo princípios canônicos imagem em movimento ou sua forma de exibição que se aproximam
– convenções de dispositivos (aspectos técnicos, arquitetônicos, de do início do cinema.
linguagem) que vêm sendo construídas desde o final do século XIX (o
nascimento do cinema), mas cujas marcas como algo convencional Como mais uma ponta do nosso cubismo teórico, propomos
e não natural vêm sendo apagadas. Assim, nos primeiros anos, a lin- o conceito de Cinema como um lugar com evidências de sua própria
existência, mas sem uma existência “concreta” – concreta dentro
guagem testada e incorporada de acordo com a resposta do público
de uma concepção fisicalista de espaço amplamente aceita durante
foi naturalizada, bem como o espaço de exibição adequado (a sala
grande parte do século XX. Este conceito está incorporado na repre-
escura, a projeção sobre uma tela plana, poltronas, escurecimento
sentação do espaço em perspectiva nas Artes, incluindo a Fotografia
etc.) e também as formas de produção, tornando-se sinônimos de
e o Cinema. A imagem em perspectiva é tida como a representação
cinema, quando seria apenas uma de suas possibilidades (MICHAUD,
realista do espaço, pois seria a mais próxima de nossa experiência
2014) .
sensível no mundo. Como afirma Margaret Wertheim (2001), o Re-
Por outro lado, a arqueologia midiática é uma metodologia de nascimento italiano consolidou a representação do espaço em pers-
historiografia que estuda a mídia não como uma linha evolutiva que pectiva como a forma realista no Ocidente. No entanto, essa técnica
22 Erika Savernini audiovisual revolucionário 23

deve ser vista como a personificação de um conceito de espaço que pria percepção de estar no mundo e de nossa existência; relacionado
é amplamente aceito e se torna a base da percepção ocidental do com isso, o Cinema é a imagem fotográfica em movimento com som
mundo. Em suma, a perspectiva (assim como outras formas de re- (outro sentido fundamental em nossa percepção espacial cotidiana).
presentação do espaço) é um modelo de conhecimento do mundo, Podemos apontar que o Cinema dominante, refinando suas técnicas
eurocêntrico, dominante, mas não único possível [5]. Portanto, dize- de captação de som e imagem com altas qualidades transparentes e
mos que, ao sintetizar espaço e tempo, o Cinema propõe um novo narrativas envolventes, produziu (e ainda produz) o envolvimento do
conceito de homem e mundo – não apenas por meio da narrativa espectador neste outro mundo que possui evidências discursivas de
ou representação do mundo, mas é também uma experiência criada existência, mas não são palpáveis.
pela forma fílmica do espácio-tempo.
Este é conceito central da Utopia de Thomas More – um lugar
O que nos remete à noção de Julio Cabrera (2015) de que o Ci- inexistente. Em seus primeiros anos (desde o marco de sua invenção,
nema opera uma razão logopática (do grego logos – razão, e pathos – em 1895, até o início da segunda década do século XX), o Cinema já
sentimentos), por “conceitos cognitivo-afetivos”. Em outras palavras, prefigura o ciberespaço. Porque, como argumentamos, o Cinema le-
o sistema formal fílmico não apenas representa as ideias e o mundo, vou o homem a se projetar em outro mundo, ao qual seu corpo físico
não apenas ilustra questões filosóficas, o Cinema propõe e expõe não acede diretamente, mas onde seus sentidos, mente e pathos se
conceitos com essa natureza dual, que apela não só às emoções, projetam ativamente. Nesse sentido, o conceito de Cinema utópico
mas também à razão; é uma experiência filosófica. Por isso, Cabre- que propomos (Savernini, 2011).
ra afirma (e com isso dá nome ao seu principal livro sobre o assun-
to): o Cinema pensa. Ao apresentar sua proposta, Cabrera destaca No entanto, muito da mística do realismo inerente ao Cinema
que embora aborde o Cinema explicitamente, essa razão logopática dependeu da construção gradual de um cânone: o que costumamos
também opera na literatura, bem como em uma filosofia “dos rebel- pensar e chamar de cinema seria apenas uma de suas formas de
des” (os raros filósofos ocidentais que Cabrera diz que poderiam ser maior sucesso ao longo do tempo. Em seus primórdios, o Cinema era
uma construção coletiva baseada na recepção do público a cada ex-
chamados de cinematográficos, que “fogem” da tradição da filosofia
periência dos diretores. Por um lado, é fundamental perceber que o
“profissionalizada” e apática). E essa forma de pensamento que é o
Cinema sintetiza o espírito de seu tempo – é um texto “vivo” sobre as
Cinema foi particularmente impactante porque “pensa com o real”
concepções do “homem” ocidental sobre o mundo e o ser. Por outro
(ou, como diria Pasolini, o Cinema é a “língua escrita da realidade”).
lado, a construção da “linguagem e forma narrativa do cinema” pode
Algumas condições permitem-nos dizer que o Cinema é consi- ser vista como um processo de acomodação. Segundo Jean Epstein
derado fundamentalmente realista, desde o seu início. Em primeiro (2015), o cinema “se perdeu” quando foi atirado pó de ouro em seus
lugar, a visão é um dos sentidos mais importantes para nossa pró- olhos. O diretor francês referia-se, então, à constituição do mode-
24 Erika Savernini audiovisual revolucionário 25

lo canônico da narrativa e, consequentemente, dos modos de pro- Cinema no início dos anos 1970 que, até então, todas as teorias do
dução, exibição e distribuição, que fizeram do Cinema um potente Cinema seriam teorias aplicadas, já que seriam poéticas atuais dos
meio de comunicação. No entanto, ao mesmo tempo, o Cinema foi filmes realizados. Ele se propunha a desenhar uma teoria do Cine-
disciplinado, relegando-se a um segundo plano a experimentação e ma, tendo como fundamento uma diferenciação entre Cinema (um
a possibilidade de explorar o seu potencial para além da forma foto- conceito abstrato e inatingível) do filme (que é concreto e apreensí-
gráfica espetacular. vel, a forma concreta do Cinema; como Poema em relação à Poesia).
Michaud, de certa forma, também faz um exercício de teoria pura do
O Cinema foi insistentemente chamado de a grande arte do
Cinema – o que Cinema é para além dos filmes existentes.
século XX, porém, o que se festejava fica quase inteiramente restrito
à forma fotográfica espetacular – a canônica. Segundo Philippe-Alain A ecologia do Cinema que expressa o século XXI apresenta
Michaud (2014, p.63): “O filme não se confunde com o espetáculo uma mudança no dispositivo em vários dos seus aspectos definido-
permitido pela projeção de imagens em movimento: ele é, em pri- res. Hoje, observamos que, embora sob forte suspeita quanto à sua
meiro lugar, uma conversão na maneira de pensar e produzir ima- veracidade, potencial e experimentalmente, as imagens em movi-
gens, não mais efetuada a partir da fixidez e da imobilidade, mas a mento continuam a fornecer uma experiência de espaço e tempo re-
partir do movimento e da pluralidade.” Os movimentos de vanguar- conhecível e “experienciável” pelo espectador. Esse ensaio refere-se
da do Cinema em vários momentos da história, as chamadas ondas àquele tipo de Cinema (na concepção de que seria a forma artística
novas (a mais famosa, mas não única, é a francesa), o Cinema ex- do movimento e da pluralidade – não apenas na sua forma fotográfi-
pandido (proposto por Gene Youngblood nos anos 1960) são mani- ca, canônica) que rompe os aspectos arquitetônicos, técnicos, narra-
festações notórias de um cinema não canônico. “O chamado cine- tivos e espetaculares canônicos.
ma ‘experimental’ guardou o vestígio dessa concepção não reflexiva
Esse Cinema que responde ao espaço-tempo do século XXI
da imagem fílmica.” (MICHAUD, 2014, p.12) O cinema de animação
foge da tela 2D, tem uma imagem compósita (Denis, 2010), não
e um cinema experimental mais radical, além de tornar explícito
mais configurada dentro dos parâmetros do espetáculo (aspectos
(opaco) o que o Cinema tradicional torna transparente, questiona a
arquitetônicos, narrativos). Pode até não se chamar mais Cinema,
teoria do Cinema como um todo. Essa teoria se basearia no Cinema
como argumentam alguns autores, mas adotamos a proposição de
como espetáculo, tanto narrativamente e pelo ritual de ir ao cinema
Michaud de que, de fato, a concepção dominante de Cinema até
quanto sob os aspetos arquitetônicas da sala de projeção e da tela
agora tem sido limitada; Cinema seria o que carrega as característi-
bidimensional sobre a qual se projetam imagens construídas tecni-
cas da pluralidade e do movimento. Mesmo que não seja chamado,
camente por câmeras que “entendem” a perspectiva como técnica
ou mesmo não seja considerado Cinema, algumas das experiências
de registro realista do espaço. Pasolini diria em seus escritos sobre
com imagens em movimento contemporâneas, incluindo instalações
26 Erika Savernini audiovisual revolucionário 27

multimídia que observamos hoje em dia carregam consigo algumas mágicos e mitológicos, que marcaram outro mundo no que diz res-
características cinemáticas. Algumas obras, inclusive, promovem peito à “realidade” do espectador. Entre uma possibilidade e outra,
experiências narrativas não tradicionais de conexão com o mundo, às vezes, a realidade imaterial dos sonhos e devaneios se mesclava
integrando o humano e não humano – realizando-se, assim, como na representação fotorrealística em sequências que representavam a
a forma formante de uma “nova” concepção de mundo que vai, aos subjetividade de algum personagem – porém, a fronteira entre “fan-
poucos, reconfigurando a visão predominante no “ocidente” (na ver- tasia” e “real” era mantida.
dade, nas sociedades constituídas sob o modelo eurocêntrico).
Se os experimentos com brinquedos ópticos parecem ter uma
conexão mais direta com a animação (afinal, usaram o princípio de
Ecologia do Cinema no (do) Século XXI criar desenhos em poses-chave para a síntese do movimento quando
expostos em sequência a uma dada velocidade), por motivos prin-
A tecnologia digital propôs novas questões ao cinema desde cipalmente de produção (o longo tempo de produção da animação
o início, além de retomar experimentos e propostas que foram “su- afetava o custo de produção e, consequentemente, o retorno finan-
peradas” em favor de um modelo narrativo predominante. Foi assim ceiro), o cinema em live-action acabou predominando no mercado
que os truques e o cinema de efeitos especiais de Georges Méliès, e, portanto, no imaginário do espectador como forma legítima de
ainda na década de 1910, deixaram de ser apreciados pelo público, cinema. As teorias do cinema explicam-no, em grande medida, pela
uma vez que a impressão de realidade era sistematicamente que- relação referencial da imagem cinematográfica com o mundo cap-
brada e o realismo da linguagem clássica começava a se impor. No tado pela câmera – o que excluiria a animação, cabendo no máximo
entanto, com o auge dos efeitos visuais digitais, a composição entre aquilo que reproduz a aparência do mundo e o que está invisivel-
live-action e técnicas de animação é um dos pilares de sustentação mente integrado com a imagem “real”. Desta forma, o foco é deslo-
do cinema digital. cado do conceito de mundo por trás da tecnologia – que queria ser
percebido como o resultado de uma cultura universal superior. Denis
Como na filmografia de Méliès, dos estúdios Pathé e outros,
(2010) afirma que Jean Baudrillard já alertava para o perigo da crença
ao longo da história do cinema, pode-se perceber o uso de técnicas
na “hiperrealidade” (imagem efetuada por efeitos visuais “transpa-
de animação no cinema live-action, produzindo uma imagem com-
rentes”), em que o homem passou a acreditar menos na realidade do
pósita. Predominantemente, eram filmes em que o efeito especial
que em sua “imagem alterada”.
procurava passar despercebido pelo espectador; seu uso era prag-
mático, servia para contornar as dificuldades de produção e não pro- Essa tendência de enfatizar os processos de produção de ima-
punha um mundo novo, mas o da experiência do espectador. Por ou- gens atende a uma lógica de mercado que remonta ao início do cine-
tro lado, alguns filmes buscaram a realização de fantasias, universos ma; lógica que, por sua vez, respondia ao anseio moderno pelo novo,
28 Erika Savernini audiovisual revolucionário 29

pela novidade, sendo um novo que envelhece rapidamente. Também circula nos espaços físicos e imateriais com uma percepção quase
neste aspecto o Cinema é um reflexo do espírito do seu tempo; as igual. Wertheim (2001) analisa que, para a maioria dos usuários, sua
propostas estilísticas (plásticas ou narrativas) são assimiladas em vida na rede, que reivindica o status de sociedade, é tão real quan-
parte pelo cinema industrial de entretenimento, que muitas vezes to sua existência física. Tanto a experiência do espectador ganhou
as repete até a exaustão, até o seu vazio. A junção entre animação e novas dimensões quanto o cinema (live-action e animação), em sua
live-action, promovida pela tecnologia digital, agora é explicitada ao forma tradicional de produção, exibição e distribuição, não detém
espectador. Porém, mesmo em grande medida estando a serviço do mais o monopólio do discurso audiovisual.
realismo, traz o imaterial à superfície, reflete a junção que o obser-
Assim, evocando o “poder de fabricação de mundos” que as
vador já fez em sua experiência do mundo material e imaterial por
linguagens possuem segundo Wertheim (2001), propomos que o ci-
onde circulam as diversas facetas de sua identidade.
nema contemporâneo constrói um espaço compósito. Dada a pro-
Neste momento, quando a percepção do mundo está mudan- posição de Paquot, esse espaço compósito potencializaria a u-topia
do, quando a explicação fisicalista não é mais suficiente para refletir u-crônica que o cinema prefigura desde seu surgimento.
a experiência do homem, a produção cinematográfica também se
O computador, uma técnica contingente, como ferramenta de
volta para a imagem compósita resultante da imagem do real e da
expressão artística, vai ao encontro tanto da busca do hiperrealismo
imagem sintética. O texto cinematográfico registraria, assim, o atual
dos efeitos visuais e do formalismo quanto da consequente explica-
momento de reconfiguração da concepção de realidade do homem
ção da técnica na animação tridimensional. Porém, como o instru-
ocidental, que traz de volta ao primeiro plano o caráter dual pelo
mento precede a necessidade, sua utilização por dirigentes “menos
qual o material e o imaterial compõem dimensões da existência que
habilidosos” denuncia uma padronização motivada pelo vazio do dis-
não são mutuamente excludentes. Como o modelo fisicalista de ex-
curso. Há um grande contraste com a vanguarda que buscava desco-
plicação do mundo é questionado, um espaço que não está localiza-
brir como superar os limites conhecidos dos equipamentos e, sobre-
do na realidade física, mas existe na dimensão imaterial é possível.
tudo, o padrão do discurso cinematográfico estabelecido; com isso,
Um espaço construído discursivamente como um existente não físico
os diretores de vanguarda repensaram o próprio cinema e sua forma
por meio do qual o homem pode se mover e alcançar o ideal de feli-
manifestada no filme em termos do que eles tinham a dizer de forma
cidade. Desta forma, o próprio ser do homem é revisto. É necessário
essencialmente audiovisual.
que pelo menos uma das facetas de sua identidade fragmentada (ca-
racterística do homem pós-moderno) seja da mesma natureza desse Segundo Denis (2010), “verdadeiros cineastas” têm assim
espaço inexistente para permitir sua circulação. A existência do ho- utilizado o digital, explorando-o no que valoriza a imagem, mas em
mem torna-se multidimensional, a sua identidade (não mais unitária) função do seu próprio universo de pensamento e referências estéti-
30 Erika Savernini audiovisual revolucionário 31

cas, obrigando o desenvolvimento tecnológico a criar instrumentos que esse conceito (o do dispositivo), que tem estado em voga ul-
que concretizem a sua “visão” artística. Por outro lado, diretores que timamente por causa do impacto ainda não bem dimensionado da
estão a serviço da exploração comercial ou que não têm domínio tecnologia digital na “forma cinema” ou “cinema canônico”, põe em
da expressão criativa (apenas o funcionamento de equipamentos e questão a teoria do cinema e a própria definição do que é cinema,
controles de software) curvam-se à imagem hiperrealista, resultante uma discussão que se estabeleceu desde finais do século XIX até aos
do cálculo matemático que a gera e do gráfico de representação do nossos dias, passando por momentos icônicos da vanguarda do início
espaço em perspectiva; ou seja, a tecnologia, em vez de um instru- do século XX, o cinema expandido (nos anos 1960), a videoarte, o
mento, sobredetermina a expressão. cinema experimental de vários momentos. O dispositivo do cinema
canônico baseia-se na projeção de imagens objetivamente construí-
A imagem compósita digital, que muitas vezes reconfigura
das em uma tela, em um espaço arquitetônico construído especifi-
experiências dos primórdios ou mesmo do pré-cinema, propõe uma
camente para esse fim, onde um público vem assistir a um filme,
reconciliação, não fácil, mas possível, entre o material e o imaterial
com duração entre 1h40 e 2 horas, uma estrutura narrativa com um
do ser humano, a recuperação de alguma integridade heterogênea, e
começo, meio e fim em que predomina a inteligibilidade da história
não mais a cisão. Gradualmente, na concepção do homem ocidental,
e a “transparência do discurso”. Perguntamos então: permanece ci-
o espaço físico deixa de ocupar todo espaço concebível; ao mesmo
nema, quando não há mais projeção ou a projeção acontece fora da
tempo, o espaço imaterial criado narrativamente vai saindo da tela e
sala, ou a passagem ininterrupta do filme é interrompida, ou quando
se intrometendo no cotidiano – com isso, concretiza-se a ambição do
“nada” é narrado? Para Michaud (2014), o cinema fotográfico (que
construtivismo russo de uma arte que compõe a própria realidade.
podemos tomar como sinônimo de forma cinema e cinema canôni-
Nesse sentido, o cinema expandido desempenha um papel essencial
co) se confundiu tanto com a definição do que seria o cinema que
não apenas no registro, mas também na participação na reconfigu-
as teorias do cinema não dão conta de formas que escapam a esse
ração do mundo.
modelo, como os momentos da vanguarda, do cinema expandido e
Segundo Parente (2007), a “forma cinema” ou “cinema con- do cinema experimental contemporâneo.
vencional” é entendido como “[...] um dispositivo complexo que
Para Michaud, esses momentos de cinema experimental for-
envolve aspectos arquitetônicos, técnicos e discursivos”. Em outras
çam a redefinição do cinema, não mais pensado apenas em sua for-
palavras, o dispositivo deve ser pensado não apenas em relação aos
ma canônica. Nos últimos anos, temos observado a imagem digital
aspectos técnicos do cinema, mas também neste conjunto de fatores
em movimento ultrapassando as telas de cinema ou até mesmo a
que envolvem tanto a linguagem quanto a narrativa, bem como os
transformação da tela. Talvez porque o digital tenha trazido o audio-
modos de produção, exibição e distribuição. Ramos (2016) propõe
visual de forma mais intensa à experiência do espectador em seus
32 Erika Savernini audiovisual revolucionário 33

múltiplos universos (espaços de realidade sensível, assim como o ci- – empresa ferroviária francesa –, que distribuía portas em espaços
berespaço), a simulação do tridimensional na tela da sala de cinema públicos nas cidades europeias entre as quais possui linhas regula-
já se esgotou (ainda são filmes produzidos em 3-D, mas não com a res. As portas, de cores diferentes, tinham apenas o nome de outra
mesma frequência ou projeção comercial). capital – sem qualquer instrução ou indicação do que se tratava. Po-
rém, ao abrir a porta, as pessoas se deparavam com uma tela (no
Em 2017, o premiado diretor mexicano Alejandro González
formato e tamanho da porta), tornada transparente como aparato,
Iñarritu lançou o projeto Carne e areia, “uma instalação que ocupa
através da qual viam, ao vivo, imagens de outra capital, e através da
três salas em um híbrido de exposição de arte interativa e simulação
qual pessoas de cada lado interagiam. Desta forma, o audiovisual ao
de realidade virtual”, que cria para seu público a experiência de imi-
vivo (antes característico da televisão e atualmente familiarizado por
grantes ilegais na fronteira dos Estados Unidos nos chamados free-
conexões ao vivo via aplicativos) foi deslocado para o espaço público,
zers (locais onde muitas vezes são confinados a baixas temperaturas,
em um formato e tamanho que buscam tornar a tela “invisível” – as
sem colchão, sem condições mínimas de conforto). Munido de ócu-
portas são portais espaço-tempo surpresa.
los de realidade virtual e fones de ouvido e uma mochila, o públi-
co entra, um a um, para percorrer as três salas, em cada uma delas O mapping, por sua vez, tem permitido que toda a superfície
passando por uma experiência sensorial (a sensação da areia, por suporte a imagem (em movimento normalmente, mas não necessa-
exemplo) associada ao audiovisual (“Neste cenário, a simulação 360° riamente), rompendo a bidimensionalidade e a convencionalidade
ganha vida em visores de RV com o curta-metragem de sete minutos da tela de projeção (uma das características que persistem desde o
dirigido por Iñarritu e dirigido por Emmanuel Lubezki") – o usuário início do cinema convencional). Em dezembro de 2014, por exem-
passa então pelo cotidiano de imigrantes sendo surpreendidos e pre- plo, em Sevilha, foi apresentado o espetáculo multimídia Sueños de
sos na fronteira. Seja entendido como cinema expandido (nos ter- agua, durante o qual uma face de arame (projetada encaixando nas
mos de Youngblood e Michaud, é um cinema que ultrapassa os limi- saliências da superfície; mapping) emerge da fachada do prédio e
tes do cinema convencional, não apenas a expansão das telas), seja fala ao público. São projeções de cenas lúdicas com a personagem de
outra experiência, o audiovisual é parte essencial do experimento de uma menina (em animação); por vezes, a fachada se combina como
Iñarritu. Através dos “dispositivos” de entrada na realidade virtual, se fossem peças de um brinquedo para montar e nas quais um dra-
do audiovisual subjetivo, associados a objetos cenográficos (como a gão se move pela fachada do prédio e cospe fogo “de verdade” (sin-
areia), o projeto propõe uma experiência do corpo físico numa reali- cronizando a imagem em movimento com o lança-chamas). O show
dade resultante da junção de materialidade e imaterialidades. continua com outras cenas no mesmo estilo e termina com a face de
arame se despedindo do público.
Outra forma de transformar a tela e a experiência de ser e
estar no mundo foi a campanha Europe. It’s just next door da SNCF
34 Erika Savernini audiovisual revolucionário 35

O trabalho da dinamarquesa Vibeke Sorensen estende-se ao ra), e em In Other Wor (l) ds (In Other Worlds/Words), de 2018, as
longo de mais de quatro décadas de experimentação e desenvol- instalações contam com a presença humana para acionar imagens e
vimento de projetos e atua de forma interdisciplinar, no âmbito da sons, mas também são gerados pelo software Pure Data, que trans-
arte-tecnologia e da preocupação ecológica. É um exemplo de uma forma informações da web em formas plásticas.
produção valorizada pela tecnologia digital que questiona a própria
Usando Pure Data, o Mood of the Planet transforma informa-
definição e delimitação do que é o cinema (canônico), ao realizar a
ções sobre o humor predominante no planeta, constantemente me-
ambição criativa, sem limites entre as mídias, de diretores experi-
dido, em cores, de acordo com o seguinte código:
mentais ao longo da história do cinema e da mídia audiovisual (des-
de os seus primórdios, passando pela vanguarda histórica dos anos 1. Medo: branco/preto
1920 e pelo cinema expandido proposto nos anos 1960, da videoarte
2. Nojo: marrom/amarelo
ao digital).
3. Felicidade e prazer: verde/dourado
Em grande medida, influenciada pela noção de cinema expan-
dido de Youngblood, Vibeke Sorensen expressa uma visão de mundo 4. Tristeza: azul/cinza
comprometida com a ideia do planeta como um organismo vivo, da
5. Raiva: vermelho/preto
interconexão dos seres humanos e de que todas as nossas tecnolo-
gias são também natureza – alinhando-se com a Teoria de Gaia e di- 6. Surpresa: padrões e várias combinações de cores
vergindo da tradição ocidental, que coloca o homem, principalmente
Assim, há uma programação, a construção de um espaço e
graças à tecnologia, fora da natureza e em oposição. Assim, em seus
seus mecanismos, um dispositivo. Porém, a experiência depende da
trabalhos, veremos um caráter multimídia robusto de criação de ima-
presença de quem visita a instalação, mas também dos dados cole-
gens sintéticas e compósitas, muitas vezes em instalações interativas,
tados na web, conectando as pessoas e seus estados de ânimo. Não
alguns deles realizados em tempo real. As instalações mais recentes,
da década de 2010, incorporam dados da web. Essas formas de expe- há narrativa programada, mesmo que aberta. Como as portas, de Eu-
rimentação expressam as preocupações do artista. Voltando à razão rope. It’s just next door da SNCF, um portal conecta pessoas, mas no
logopática, para Cabrera, as obras não são representações das ideias caso do Mood of the Planet, as pessoas têm uma experiência com
do artista, as formas de arte são o pensamento do artista mobilizan- dados na forma mais amigável de cor – ou seja, uma conexão entre
do nossos sentidos e racionalidade concomitantemente. os humanos entre si e com não humanos.

Na instalação de 2015, Mood of the Planet (que tem versões


de instalações mais móveis – Mood of New York e Mood of Singapu-
36 Erika Savernini audiovisual revolucionário 37

Nota final do cinema digital já concilia o material e o imaterial em uma uni-


dade, prefigurando esse novo conceito espacial que, cremos, ainda
não predomina. A persistência das narrativas utópicas da migração,
Acreditamos, assim, que, como nos primórdios do cinema na
da superação do corpo, revela ainda um pensamento do habitar em
passagem do século XIX para o XX, vivemos um momento de redefini-
sua forma exotópica, da vivência mediada (típica da eletricidade e do
ção da imagem em movimento que reflete e prefigura um novo con-
cinema canônico). As frustrações da rede como espelho do mundo
ceito de espaço e, consequentemente, um novo modo de estar e de
físico seriam os sintomas da persistência de se pensar o digital como
ser no mundo contemporaneamente – que o sociólogo Massimo Di
um mundo à parte, ideal, para onde poderíamos migrar e sermos
Felice define como o habitar atópico, no livro Paisagens pós-urbanas:
melhores. Por poder reescrever o mundo com sua materialidade,
O habitar atópico se configura, assim, como a mas em novas relações espácio-temporais, o Cinema (no sentido lato
hibridação, transitória e fluida, de corpos, tec- de Michaud) continua fundamentalmente revolucionário, capaz de
nologia e paisagem, e como o advento de uma
nova tipologia de ecossistema, nem orgânica, participar ativamente da reconfiguração do mundo.
nem inorgânica, nem estática, nem delimitá-
vel, mas informativa e imaterial” (DI FELICE,
2009, p. 291).
Notas
O habitar atópico só pode ser pensado sob uma perspectiva [1] A forma formante é uma tradução de conceito que fundamenta a
Teoria da Formatividade do filósofo italiano Luigi Pareyson, pela qual a
ecológica interativa, que descreve uma relação complexa entre seus forma artística engendra conceitos e ideias e não apenas as conforma
membros (orgânicos e inorgânicos) e de indistinção entre si (em opo- ou representa. Acreditamos que, de forma similar, Michaud (2014, p.12)
afirma que o filme é um “[...] sistema de representação autônomo e opa-
sição à tradição ocidental de origem europeia “de separação entre co, que existe independentemente de seu objeto e não desaparece na
homem-ambiente, homem-técnica, homem-natureza”). Nos termos experiência da projeção.” O real, para Michaud, é material, mas não é
de Wertheim, a utopia digital é realmente um outro mundo – as nar- objeto dos filmes; a função reflexiva (sobre o mundo) só foi associada
como fundamento do cinema a partir da consolidação do cinema foto-
rativas fundadoras do imaginário do digital são utopias de migração, gráfico como o próprio cinema. Essa concepção do cinema como forma
de superação de supostos limites do corpo físico para imersão em de pensamento certamente está também em Cabrera (2015).
um outro mundo ideal (onde tempo e espaço são controláveis). As- [2] As reflexões aqui apresentadas têm início na nossa tese de doutora-
sumindo, como cremos, a proposta de Di Felice de que as redes co- do (cf. Savernini, 2011); texto ainda inédito, com previsão de publicação
como livro em 2022. Com alguma edição, esse texto é uma tradução de
nectivas, formas do digital para o Ocidente (embora esse ecossiste- ensaio que será publicado em livro relativo às apresentações orais no
ma conectivo, sem internalidade ou exterioridade, já esteja presente Seminário Internacional da Rede Sostenibilia de Roma, sobre “Conexões
totais. Como as morfológicas sociais mudam na idade do 5G”, realizado
em algumas culturas originárias), seriam a forma formante de um na Universidade Sapienza de Roma, em Roma (Itália), nos dias 25 e 26
habitar atópico. Acreditamos, no entanto, que a imagem compósita de novembro de 2019.
38 Erika Savernini audiovisual revolucionário 39

[3] Pasolini propõe que o Cinema é a “língua escrita da realidade”, ou MICHAUD, Philippe-Alain. Filme: por uma teoria expandida do cinema.
seja, um certo real é o material de que se alimenta o cinema, com que se Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2014. 240 p. (Coleção
faz os filmes, mas não visando à sua reprodução. ArteFíssil, 12)

[4] A moldura da janela, similar delimitação da tela, associada recor- MORE, Thomas. A Utopia. Trad. da equipe da editora. São Paulo: Martin
rentemente à ideia de uma janela, concretiza o recorte da visão como Claret, 2000. 127 p. (Coleção A obra-prima de cada autor, v. 40)
metáfora do conhecimento, como condição do olhar. Uma interessante PAQUOT, Thierry. A Utopia: ensaio acerca do ideal. Trad. Maria Helena
reflexão sobre ver, olhar, enquadre da visão é oferecida pelo documen- Kühner. Rio de Janeiro: DIFEL, 1999.
tário Janela da Alma (Brasil, 2001), dirigido por João Jardim e Walter
Carvalho, com depoimentos de Hermeto Paschoal, Evgen Bavcar, José PARENTE, A. Cinema em trânsito: do dispositivo do cinema ao cinema
Saramago, Wim Wenders, Arnaldo Godoy e outros. do dispositivo. In: PENAFRIA, Manuela; MARTINS, Índia Mara (Orgs.).
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[5] No momento da edição do texto desse capítulo, vivemos a pandemia Disponível em: https://pesquisacinemaexpandido.files.wordpress.
de Covid-19, que tornou inevitável e trouxe à tona para um público mais com/2011/05/cinema-em-trc3a2nsito-do-dispositivo-do-cinema-ao-ci-
amplo as cosmogonias dos povos originários americanos, que evidencia nema-do-dispositivo.pdf.
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EPSTEIN, Jean. La inteligencia de una máquina: una filosofía del cine.
Trad. Pablo Ires. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Cactus, 2015. 128 p.
Documental y ficción:
entre la fábula creativa
y la realidad en el cine
colombiano contemporáneo3
Yamid Galindo Cardona4

3 Para citar este texto como fuen-


te de su investigación, utilice la plantilla a continuación:
CARDONA, Yamid Galindo. Documental y ficción: entre la fábula creativa y la
realidad en el cine colombiano contemporáneo. In: ROCHA, Adriano Medeiros
da; LAIA, Evandro José Medeiros. audiovisual revolucionário. São Paulo: Editora
dos Frades, 2021.
4 Licenciado en Historia de la Universidad del Valle, y Magister en His-
toria de la Universidad Nacional de Colombia, con un Diplomado en Gestión del
Patrimonio Audiovisual de la Universidad de Bogotá Jorge Tadeo Lozano. Ac-
tualmente es reconocido como Investigador Junior en Minciencias -Ministerio de
Ciencia, Tecnología e Innovación-. http://scienti.colciencias.gov.co:8081/cvlac/
visualizador/generarCurriculoCv.do?cod_rh=0001154176
Es profesor del programa de Cine y Televisión de la Universitaria Agustiniana en
diversas cátedras. Autor del blog Historias en Cine-y-Filo: http://yamidencine-y-
-filo.blogspot.com/
audiovisual revolucionário 43

Introducción: el cine que escogemos y el ensayo


que pensamos

El contexto es un país llamado Colombia y su cine contem-


poráneo. La denominación es amplia e imposible de abarcar en un
ensayo académico, siendo necesario la escogencia subjetiva de seis
obras vinculantes a la ficción, el documental y, sus fronteras narrati-
vas. Suma a estos tiempos de pandemia terrenal el encierro necesa-
rio de autocuidado, y los bloqueos mentales derivados de un estado
de ánimo individual y colectivo. En ese panorama ha sido pensado
este texto, dificultoso, interesante, y ante todo esclarecedor - para
quien lo escribe - en momentos donde el país retoma los vientos os-
curos de las aves de rapiña de una violencia que no cesa.

El eje transversal de este documento son las narraciones cine-


matográficas que posicionan directa o secundariamente, elementos
de nuestro conflicto social representados en la violencia sistemáti-
ca que involucra actores armados de diversa índole. Quedando la-
tente el espacio geográfico de nuestras regiones, los actores que la
representan, y las preocupaciones que van surgiendo ante el “des-
cubrimiento” que hacemos de nuestras cotidianidades recientes en-
vueltas en nudos dramáticos insospechados, no vividos, pero a la vez
cercanos.

Uno de los postulados temáticos con respecto a esa revolu-


ción constante del audiovisual que funciona como “sinónimo de una
ruptura con lo consolidado y, al mismo tiempo, la continuidad de
una poesía profunda y transformadora”5, entraña en parte las rami-

5 Me refiero al documento guía de la convocatoria enviado por el profesor


Adriano Medeiros da Rocha.
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ficaciones de nuestra cinematografía, debido a que la regularización Así pues, entramos en el panorama de los encuentros entre
temática es un factor que identifica en el imaginario nacional que el documental y la ficción, en esos límites creativos que funcionan
nuestras imágenes en movimiento son una constante puesta en es- en las obras desde la contemplación de los espacios, y la entrada en
cena de realidades que no escapan del acontecer y, que reveladas de foco de personajes que amplían el tiempo de exposición con el telón
forma artística, suman a una estética ya reconocida. de fondo de elementos como el archivo fílmico, fotográfico o sonoro.
Expuestos en los límites del raciocinio ante la pantalla, debemos ser
La ficción entendida como “una forma de discurso que hace
espectadores de las posibles funciones que tienen las imágenes que
referencia a personajes o acciones que sólo existen en la imagina-
nos proyectan en sus discursividades, engaños, y montajes, porque
ción de su autor, y luego en la del lector/espectador”, además como
tal vez, sin asentirlo, la historia se está contando nuevamente con las
“modo de comunicación dominante en las sociedades contemporá-
diversas claves que buscan activar nuestro dispositivo de memoria.
neas, casi hegemónico en las artes del espectáculo” (Aumont, Marie,
2006, 96), funciona en nuestra sociedad como puente de conoci- Acá organizamos una serie de ideas enfocadas al cine desde
miento desde expresiones que ya nos son comunes como la literatu- la mirada histórica, pensamos las referencias audiovisuales como un
ra, el teatro, las artes plásticas, y el cine. Sin embargo, el porcentaje documento histórico que se intervienen en disposición de un acto
poblacional que se ve “intervenido” a través de estos mensajes es privado que irá hacia lo colectivo en esas visiones de la sociedad de
minoritario, un desestimulante panorama que ya ha sido valorado lo real y lo ideal que expone Peter Burke, y del cine como interpre-
desde la cultura popular y su consumo interno. tación, al decirnos que “el poder de una película consiste en que da
al espectador la sensación de que está siendo testigo ocular de los
En el caso del documental, leemos y asumimos la siguiente
acontecimientos. Pero ése es también el peligro que conlleva este
posición: “Llamamos entonces documental a un montaje cinema-
medio, pues dicha sensación es ilusoria. El director manipula la expe-
tográfico de imágenes visuales y sonoras propuestas como reales y
no ficcionales. El film documental presenta casi siempre un carácter riencia permaneciendo invisible” (2005, 202).
didáctico o informativo que intenta principalmente restituir las apa- El presente artículo une diversas formas de narrarnos desde el
riencias de la realidad, mostrar las cosas y el mundo tal y como son” cine. Es la escritura y posicionamiento de una serie de fuentes según
(Aumont, Marie, 2006, 67). Las mediaciones, el “ojo que subyace” un hilo temático que busca como objetivo la mirada que resignifica
tras el interés de una historia, y la capacidad que puede tener como parte de nuestro cine, buscando conexiones sensoriales y afectivas,
mecanismo didáctico, hace de este género un vínculo universal que vínculos emocionales que son necesarios a la hora de ver y conectar
podemos identificar sin escatimar abordajes temáticos, y poniendo estos entornos y rostros de un país que parece imaginado, pero que
en duda, eso sí, la exposición de imágenes del “mudo como es”, ya representa realidades sustanciales de un drama social que parece no
que las posibilidades de ser falseado son posibles.
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tiene fin, y desemboca en esa memoria como narración y recons- mento no identificado” que requería de un diálogo con el cine que
trucción. lo antecedió6.

Pensamos este documento como un hecho metodológico de Inicialmente el autor revisa nuestro pasado cinematográfico,
análisis para procesos de enseñanza de la historia reciente del país, una mirada panorámica que posibilita entender los intríngulis de
de guía para conocer algunas obras audiovisuales que pueden servir nuestras producciones en función de cinco momentos expresados
de complemento explicativo para entender el conflicto interno co- en: el periodo silente; los años cuarenta y el denominado cine de ex-
lombiano y sus diversas características de barbarie y reconciliación. presión folclorista; los años sesenta con sus coproducciones interna-
Lo hacemos desde la disciplina histórica, la posicionamos como parte cionales y un marcado cine institucional; el periodo del sobreprecio
de las necesidades pedagógicas de un territorio que parece distan- y la significativa producción de cortometrajes; finalmente, la etapa
ciarse de su pasado, de no reconocerlo y analizarlo en función de los de la Compañía de Fomento Cinematográfico -Focine-. Para ese mo-
“campos de batalla” del presente. mento y, me atrevo a decir que pudo haber cambiado su diagnóstico
por las diversas posibilidades estéticas y de contenido que ha tenido
Por último, siguiendo a Alain Bergala con respecto a lo que
nuestra cinematografía desde ese año, Zuluaga afirmaba que “no hay
pueda hacer la escuela hoy, y variando un poco su idea, nos sumamos
diálogo crítico y fecundo con el cine del pasado”, por diversas cues-
a que debemos “hablar ante todo de las películas como obras de arte
tiones del orden estructural de la forma de acercarse a esos antece-
y de cultura” (2007, 49), a leerlas como resultado de nuestro tiempo,
dentes fílmicos desde la materialidad de su estudio.
de eso se trata, ir a ellas como fragmento de un mecanismo discursi-
vo mediado por un contexto determinado de acontecimientos. Ante la pregunta ¿Cómo inventar un público casi desde la
nada? El crítico pone su acento en algunas películas estrenadas des-
pués de la aplicación de la Ley de Cine del año 20037, acción institu-
La poética del conflicto colombiano en clave au-
diovisual cional del Estado colombiano que parece ser el punto de inflexión
para el reposicionamiento de nuestro cine en otros ámbitos, y la
búsqueda, tal vez sin estimarlo, de un público vigente y con cierto
Una categoría de análisis para tener en cuenta en el contexto reconocimiento de ese cine ya codificado y estereotipado, más esos
de las obras referenciadas es la de Nuevo cine colombiano, expresión
que tiene un antecedente escrito y de disertación en el año 2008 6 http://pajareradelmedio.blogspot.com/2008/05/nuevo-cine-colombia-
no-ficcin-o-realidad.html
cuando el crítico de cine Pedro Adrián Zuluaga en su blog “Pajarera 7 https://www.mincultura.gov.co/areas/cinematografia/publicaciones/
del Medio”, ponía de manifiesto la aparición de esta expresión en un Documents/La%20Ley%20de%20Cine%20Para%20Todos.pdf Igualmente ver la
página de Proimagenes Colombia: https://www.proimagenescolombia.com/sec-
foro del año 2007 relacionada como “objeto sonoro hasta ese mo- ciones/proimagenes/interna.php?nt=8
48 Yamid Galindo Cardona audiovisual revolucionário 49

nuevos públicos que se asomaban ante otros registros de la forma de nematografía dentro de ese esquema de conceptualización teórica
contar el país, como fueron ciertos elementos de representación que que viene después de la Segunda Guerra Mundial al denominar los
desde el cine se pusieron en foco, en este caso la violencia. cines de algunas geografías como “nuevos”, y allí parte de nuestras
obras en el contexto del Nuevo Cine Latinoamericano; sin embargo,
Partiendo del cineasta Andréi Tarkovski, propone Zuluaga la
estamos en otro instante, en una definición mediada por el siglo que
construcción de una “estética de la debilidad”, retomando crítica-
vivimos, enfatizando desde lo local sobre una serie de obras, nuevos
mente la posición de algunas obras en sus contenidos dirigidos a un
realizadores y formas de afrontar nuestro contexto, en parte con esa
público pasivo que pareciere recibe sin contemplaciones un tipo de
connotación que se cohesiona en acciones directas como la exhibi-
narrativa vinculantes a características ya manidas: “Si el Nuevo Cine
ción, las coproducciones, los festivales, los programas de estudio, etc.
colombiano reafirma clisés y copia fórmulas, como estoy seguro que
lo hace, con la manida disculpa de crear un público, ya es hora de Contemos 17 años, más de tres lustros donde Colombia ha
que un nuevo campo de fuerzas lo arrincone y lo vuelva viejo. Pues, sido visionada o interpretada, acción que deviene de intervenir con
finalmente, suponer demasiado del público es lo que ha ocasionado, el acto creativo y mediador de quien propone una forma de enten-
una y otra vez, el fracaso del cine nacional, como está históricamente der y tal vez explicar el país a través de las imágenes en movimiento.
demostrado, y lo que ha impedido su continuidad” (Zuluaga, 2008). En su acontecer, nos atraviesan tres administraciones presidenciales,
discursos de guerra y paz, procesos exitosos, polarizaciones políticas,
Este momento en la historia del cine colombiano que pone
violencias sistemáticas, avances de sectores sociales, pero sobresale,
de manifiesto las incertidumbres de lo que es en su relación con el
ante todo, inconformidad ante las instituciones y las tres ramas del
público al amparo de una Ley, y su diálogo con el pasado, aúna un es-
poder público: vivimos “entre la violencia y la paz” como remarca
fuerzo especial de desentrañar una calificación tal vez de resonancia
Jorge Orlando Melo con la denominada reacción Uribista en sus ocho
tenue que bien aplica el crítico como interlocutor de un escenario
años de poder y el “bálsamo” de Santos con la negociación de paz
propuesto y, poco alentador en su ejercicio teórico ante las compleji-
(Melo, 2017, 265-278).
dades resultantes del panorama que se tiene en ese “testimonio” en-
tregado en las narraciones desiguales del país filmado en los ámbitos En ese panorama de “idas y venidas, vueltas y revueltas”8 en
públicos y privados de nuestro contexto sociocultural. que nuestro país ha estado desbocado desde el siglo XIX con sus guer-
ras civiles, y en el pasado siglo con la Violencia política, y el nuevo mi-
¿Podríamos decir que existe un Nuevo cine colombiano? Des-
lenio con sus incertidumbres ante los rezagos de su institucionalidad
de la premisa que para distinguir algo como nuevo debe existir unas
señales establecidas con su pasado y, en sus diversos entornos de 8 A propósito del título de un libro del profesor Mauricio Archila sobre
las protestas sociales en Colombia durante el periodo 1958-1990, publicado en el
desarrollo, podemos “jugarnos” esa carta de posicionar nuestra ci-
año 2003.
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con relación a los derechos sociales y el bienestar de sus connacio- Memorias de Guerra y Dignidad (2013)9 del cual se deriva uno de los
nales; tenemos en nuestro periodo estudiando la siguiente reflexión documentales analizados que suman a una estrategia de buscar los
que podría resumirnos el entorno sociopolítico sobre dos temas tan relatos de las víctimas, no solo desde los informes, sino desde el au-
disímiles y comunes en nuestro vocablo, y tan inentendibles para diovisual, complemento a una extensa literatura que hace parte de
muchos sectores ante las diversas estrategias de trastocar o poner a nuestras dinámicas de investigación asociadas a las Ciencias Sociales
“a su acomodo” las realidades y versiones de nuestra historia: y Humanas, las cuales enriquecen el estado de arte bibliográfico para
entender a profundidad nuestras causas históricas y sociológicas en
Así se explica el enfrentamiento de los últimos el conflicto colombiano.
dieciséis años entre los gobiernos opuestos de
Ávaro Uribe y Juan Manuel Santos: opuestos
en el tratamiento que se le debe dar al más Paul Ricoeur afirma que “la historia es de principio a fin, escri-
álgido punto de nuestra tragedia, que es el tura”, afirmación venida de lo que llama la triple aventura que conl-
interminable conflicto armado. Uribe negaba
que existiera, y se esforzó durante ocho años leva el archivo, la explicación y la representación (2010, 179). Acción
por machacar militarmente sus manifesta- manifiesta en un proceso de elaboración temática y organizativa de
ciones, que él llamaba y sigue llamando nar-
fuentes que se posicionan según los intereses, operando lo que lla-
coterrorismo. Santos, después de haber sido
ministro de Defensa de Uribe y asestado algu- mamos montaje escrito, acción que pone sobre el entramado de la
nos de los más contundentes golpes militares propuesta las diversas posibilidades de afrontar el tema central de
a las guerrillas, y por otro parte destapado la
más grande vergüenza criminal de las Fuerzas estudio con los autores de referencia, las obras audiovisuales inter-
Armadas colombianas, los “falsos positivos”, venidas en el sentido práctico de su observación, y su cohesión para
quiso darle una solución política a través de
conversaciones de paz, cuyos resultados aún una lectura posible de los interesados en el tema.
están en veremos cuando esto se escribe. Y
esas dos propuestas, guerra y paz, han dividi- 9 Este Informe general del Grupo de memoria Histórica, fue dividido así:
do agriamente al país en dos mitades prácti- Capítulo I: Una guerra prolongada y degradada. Dimensiones y modalidades de
camente iguales y fomentado el odio entre los violencia. Capítulo II: Los orígenes, las dinámicas y el crecimiento del conflicto
ciudadanos” (Caballero, 2018, 421). armado. Capítulo III: Guerra y justicia en la sociedad colombiana. Capítulo IV:
Los impactos y los daños causados por el conflicto armado en Colombia. Capítulo
V: Memorias: la voz de los sobrevivientes. Igualmente han salido investigaciones
Para una lectura de esta coyuntura con las consabidas heren- sobre acciones perpetradas en el territorio nacional, o propuestas e iniciativas
cias y desaciertos de gobiernos anteriores, el Centro Nacional de para nuestra situación de guerra. También es necesario comentar que ante el cam-
bio de gobierno en el año 2018, y la vuelta del discurso guerrerista desde el partido
Memoria Histórica, fundado en el año 2011, emprendió acciones
del gobierno adscrito al Centro Democrático, el Centro de Nacional de Memoria
encaminadas a analizar e investigar nuestro conflicto armado con in- Histórica hizo un viraje hacia las dinámicas enfocadas al conflicto armado desde
formes y registros documentales de diversas características que fue- el negacionismo por parte de su director Darío Acevedo, lo que pone de mani-
fiesto cierto retroceso en función de las actividades u hoja de ruta que traía esta
ron puestos en un documento oficial titulado ¡Basta Ya! Colombia: institución, pero esa es otra temática que no será analizada en este texto, ni hace
parte de su convocatoria.
52 Yamid Galindo Cardona audiovisual revolucionário 53

Es así que destacar el cine nacional con el breve contexto re- El cine presenta entonces la ventaja de hacer
percibir simultáneamente el peso del pasado
lacionado, posibilita entender una acción de referencia directa me- y la tracción de lo nuevo en la historia: poco
diada por el acto creativo e interpretativo de nuestras coyunturas útil para percibir rupturas (salvo algún caso
excepcional), lo es totalmente cuando se tra-
sociales por medio de las metáforas, los sentimientos traspasados de ta de comprender cómo éstas se arraigan a la
la pantalla al espectador, las realidades puestas en foco bajo estilos vez en una tradición y en aspiraciones que la
ponen en entredicho. La idea dominante, por
independientes o institucionales y, en últimas, con las corresponsa- lo tanto, es que el cine da mucho para ver so-
bilidades asumidas como emisores de esos contenidos. Así, escoger bre el imaginario social y sobre las coherencias
socioculturales: en este sentido, es más eficaz
las películas inmersas en la ficción y, aquellas que definimos como como documento de historia antropológica
documentales, es un acto subjetivo mediado por títulos y gustos que que de historia propiamente social o política.
Los films son preciosos en particular para el
pasan del ámbito privado al público por medio de una escritura críti- análisis de una noción cada vez más utilizada,
ca y académica, un acto si se quiere funcional de posicionamiento de pese a su ambigüedad ideológica y la vague-
dad que abarca, la de ‘identidad cultural’ (Gar-
esas obras en un posible canon y modo de ver en sus representacio- dies, 2014, 141).
nes desde el tejido en que son inscritas.
Poner en sospecha la institucionalidad, ver más allá de lo que
Teniendo en cuenta a René Gardies desde el uso que le da-
podemos escuchar, leer o percibir en el maremágnum informativo
mos los historiadores a los filmes, asumimos la narrativa audiovisual
que nos agobia, posibilita situar las “alertas” para argumentar y re-
y su intervención como documento que indaga diversos elementos
crear otras posibles respuestas y argumentos que enruten nuestra
comunes a las diversas representaciones de la sociedad, formulando
propia forma de intervenir y manifestar un hecho histórico mediante
temas contemporáneos, y siendo una forma de leer el mundo -un
un acto creativo, sin importar su escala de tiempo y espacio de difu-
poco deformado- en el espacio en el cual se inscribe: “Tanto los films
sión, objetivo que buscamos al incentivar que se busquen las obras
como las fotos, las ficciones rodadas en exteriores como los docu-
para en perspectiva intervenir el hecho audiovisual como parte de
mentales, nos dejan huellas concretas aunque fragmentarias del pa-
una condicionamiento intelectual de reconocimiento del pasado a
sado”(2014, 138). Roturas que son representativas ante las dificulta-
través de las imágenes con o sin mediaciones.
des que conlleva resignificar un acontecimiento sin los vacíos ceñidos
al panorama de la historia, refiriéndonos a los “vacíos” que conlleva La ideología revolucionaria del audiovisual ha posibilitado que
cualquier forma de exponer e impartir pedagógicamente una situa- tengamos diversos mecanismos de representación de espacios hasta
ción que marca la vida de nuestro país. antes insospechados en el mapa cinematográfico de nuestros países.
Entendiendo esa corriente en el ámbito de las formas de contar e
Otro punto de exégesis que se cohesiona nuestra reflexión
intervenir un “mundo”, por ejemplo, aquel cine que consideramos
apunta:
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comunitario y que reposiciona una localidad, barrio, grupo social, educar el gusto en lo que vemos, enfatizando sobre nuestras pro-
posibilitando el acercamiento a otras dinámicas que le son comunes: puestas cinematográficas y las posibles escalas narrativas que encon-
bajo presupuesto, grupos heterogéneos, espacios socialmente vul- tramos en las formas como nos relatan el país.
nerables y abandonados por el Estado en todas sus instancias, entre
¿Cómo definir obras, autores o colectivos que posibilitan ver
otros10. Otra estrategia, académica y venida de nuestras universida-
en sus obras audiovisuales actos que reposicionan nuestras imáge-
des y escuelas de cine, también definen otras narraciones, cúmulos
nes? La respuesta vendría en este caso por el tiempo histórico y su
de trabajos que expresan un conocimiento adquirido que a veces
desarrollo manifestado en la narrativa que posibilita entender rela-
definen temas con respecto al contexto sociocultural en el que convi-
ciones con nuestro país y sus regiones con sus cotidianidades y vio-
ven, que sin quererlo o pensarlo sobre el terreno del mensaje trans-
lencias desde diversos puntos de vista. Sin olvidar, y reafirmando,
mitido, revolucionan -inicialmente su vida personal- audiovisualmen-
te un espacio por medio del ensayo que narran en los encuentros que se trata de una escogencia determinada por el gusto en sus co-
con otras colectividades auspiciando nuevos espacios de expresión nexiones con la realidad y la ficción.
que no tenían voz u ocultados resaltaban otra dimensión de análisis. La poética del conflicto colombiano, en clave audiovisual, hace
parte de nuestras formas de narrar el país de una forma regular. Está
También nos debemos una “revolución del espectador” diri-
reconfigurada y puesta en nuevos escenarios de intervención, signifi-
gida por los contenidos, una perspectiva problemática que influye y
cando -en la mayoría de las casos- un paso obligado en el desarrollo
descarga las experiencias en muchos factores ligados a la legislación,
creativo de nuestros realizadores, incluyendo su impulso desde los
escenarios y canales de exhibición y distribución, instituciones priva-
campos de las ciencias sociales y humanas de las cuales “bebe” para
das y públicas que median en lo educativo, etc. Rodeando la esfera
sus desarrollos investigativos de preproducción.
privada, donde posiblemente podemos enfocar nuestras acciones a

10 Reconozco por sus resultados dos en particular con nombre propio en


Colombia: uno en la ciudad de Bogotá en la Localidad de Ciudad Bolívar con
La ficción y el documental: miradas cercanas, en-
colectivos como Ojo al Sancocho y Los Montaña con Vereda Films, este último
coordinado por Luz Marina Ramírez, quien realizó un corto titulado La escuela
cuentros opuestos
resiste producido con la Cinemateca Rodante en el año 2017, y que ha desarrol-
lado una serie de ejercicios curatoriales con su archivo personal: https://www.
youtube.com/watch?v=3DWG1VSoDfw&feature=youtu.be En su libro El documental, Eric Barnouw (2005) realiza una se-
El otro caso corresponde a Eduardo Montenegro y Tikal Producciones, en Cali, rie de categorizaciones con respecto a la conceptualización de este
quien ha tenido un ejercicio importante en representar, enseñar y poner con el
dispositivo audiovisual, diversas historias de sectores que normalmente no son ejercicio creativo con más de diez categorías: explorador, reportero,
representados o “contados” bajo el lente representativo de las imágenes: https:// poeta, cronista, observador, guerrillero, etc. Puestas en discusión,
www.youtube.com/user/tikalproducciones
56 Yamid Galindo Cardona audiovisual revolucionário 57

podríamos estar o no de acuerdo con las formas de análisis y sus en conexión con las interpretaciones derivadas de un acto académi-
desarrollos con el documental contemporáneo y sus mutaciones diri- co son “un entrecruce de realidades e interpretaciones de la identi-
gidas al encuentro con la ficción en su historia y estilo, como recalca dad nacional” (Puerta, 2018, 225). Ambientes cercanos al intrinca-
el autor, viéndonos abocados a los contenidos que desde el presente do escenario de nuestras regiones con sus poblaciones, habitantes,
podemos encontrar en las diferentes posibilidades de visualización o historias, luchas y dramas que, expuestas con los parámetros de la
en sus contradicciones narrativas que son necesarias posicionar en creatividad del género documental, entregan ciertos mecanismos de
las formas y medios en que son realizadas: las institucionales, las aca- acción y realidad de nuestra situación social en el marco del conflicto
démicas, las independientes, si es que existe un cine independiente armado.
en la acepción total de la palabra.
¿Reflejan la identidad nacional? He ahí un punto de discusión
La guía de estudio sobre el documental colombiano publicado particular: ¿Cómo nos vemos representados ante la fatalidad y el de-
por el Banco de la República de Colombia en el año 2006 y, que sir- sarraigo de los connacionales que expresan ante la cámara sus silen-
vió de contraportada para un cuaderno de hojas blancas usado para cios y miserias, y hasta qué punto somos partícipes de ese encuentro
notas de investigación y de clase, marca con el tiempo una mancha tan distante?
que, sin pensarlo, reposiciona la imagen de un grupo de campesi-
nos ataviados con ruanas y sombreros que alzan sus azadones en Ficciones de la contemporaneidad en tres pelícu-
pie de lucha por su recuperación cultural, histórica, y ancestral que las colombianas
se determina por el territorio; fragilidad de una sombra que la tinta
deja en sentido a su significado dirigido a la milenaria revolución en
Para indagar en las propuestas colombianas que quieren des-
contra del establecimiento venida de la Comunidad Indígena de Co-
centralizar sus historias, y de paso, llamar al espectador a la reflexión
conuco que habita el municipio de Puracé en el sur de nuestro país
considerando que sucede en nuestro país tanto en el ámbito político,
- Departamento del Cauca-, fotograma del documental Nuestra voz
como en el cultural y social, debemos hacerlo a partir de personajes
de tierra memoria y futuro (1974-1981) realizado por Marta Rodrí-
que nos evoquen las siguientes preguntas: ¿Qué es sentirse “reali-
guez y Jorge Silva, quienes hicieron otra revolución, la audiovisual,
zado” en un entorno que nos empuja contra nuestras expectativas?
la vinculante a una forma de pensarse el país y representarlo en su
¿Qué es el hogar cuando no hay una sensación de estabilidad y ar-
amplia trayectoria.
monía? ¿Qué hacemos con nuestra vida cuando estamos rotos por
Siguiendo la estela de los documentalistas citados, y en otro dentro y no sabemos responder apropiadamente a lo que nos exige
momento de la contemporaneidad, las películas que acá exponemos el mundo? ¿Cómo conseguimos avanzar mientras nuestro mundo
58 Yamid Galindo Cardona audiovisual revolucionário 59

cambia constantemente frente a las revoluciones que eventualmen- ubicando su acción en la comunidad de La Barra, uno de los pueblos
te trae la modernidad y sentimos que nos estancamos? de la costa pacífica que se ve amenazada por el imparable progreso
de una economía basada en el turismo y en el consumo masivo. Su
Preguntas constantes en las tres películas reseñadas soporta-
protagonista es Daniel, un actor de teatro que busca un escape del
das por la técnica desarrollada a su alrededor para crear un entorno
país, mientras entabla una relación con “Cerebro”, uno de los líderes
que sirve como reflejo de un ambiente acorde a los personaje y sus
de la comunidad quien será el rostro y voz de las costumbres del pue-
pensamientos, así como la estética propuesta desde la dirección para
blo y el vínculo con lo real de la situación del territorio. Acá su pro-
proponer no solo un estilo, sino un retrato y documento audiovisual
tagonista realiza un viaje para escapar de un pasado que lo agobia,
de historias y entornos realizadas particularmente en la zona surocci-
tratando de despegarse de una situación que lo acosa, lo hiere y del
dental del país: El Vuelco del Cangrejo -2009- de Oscar Ruiz Navia, La
cual se quiere desprender del todo, por lo que quiere un bote para
Sirga -2012- de William Vega, y La Tierra y la Sombra -2015- de Ce-
irse del país, cruzándose con “Cerebro”, quedándose momentánea-
sar Augusto Acevedo. Tres nuevos realizadores -en ese momento- en
mente en su posada mientras consigue la respuesta a su escape, algo
el panorama cinematográfico que conlleva a encontrar una mirada
que va en contra del arquetipo de personaje en busca de realizarse
que contextualiza las dificultades y dramas cotidianos acontecidos en
como persona y lograr objetivos.
una época no tan lejana en diferentes comunidades que viven de un
sector afectado por el progreso inevitable de la industrialización y el La relación entre Daniel y “Cerebro” puede llegar a ser de ca-
progreso económico, casi de forma amenazante e inevitable, ante las maradería o de repulsión si no se juega acorde a las normas del pue-
costumbres preestablecidas. blo, Daniel ve una figura de mentor mientras llega su escape, pero
“Cerebro” lo nota agotado, desorientado y desesperado, queriendo
A fin de cuentas, una mirada no solo necesaria en la forma de
guiarlo, integrándolo en actividades cotidianas en su comunidad me-
contar historias desde lo narrativo y lo visual, sino de la amplitud de
diante el trabajo de limpiar la basura de la playa; Daniel no quiere un
temas y la conectividad que provoca con quien visualice estas pe-
guía, pero logra sentirse reconfortado con la compañía de “Cerebro”
lículas, teniendo un equilibrio entre lo social y lo cinematográfico,
y de Lucía, una pequeña niña que le ofrece almuerzos desde su llega-
lo documental y lo ficcional, lo realista y lo manipulable; un golpe
da, para convertirse en su amiga y aliada más confiable en esta zona
contundente frente a la manera de aproximar con tacto aquellas his- inexplorada para él.
torias que no queremos oír y ver.
Cabe resaltar en este momento que el ambiente no es el tí-
El primero de estos acercamientos a este tipo de cine que se pico imaginario de un pueblo cálido y brillante, donde prevalece lo
aleja de la centralización, y se aventura a buscar historias en los rin- cultural y lo autóctono, como si de un paisaje turístico se tratase; en
cones del país, rozando en la docuficción es El vuelco del cangrejo, cambio, resulta ser un ambiente húmedo y lúgubre entre el día a día
60 Yamid Galindo Cardona audiovisual revolucionário 61

de sus habitantes que tratan de sobrevivir y estar bien con lo que tie- le plazca a su favor, queriendo pasar por “inocente” ante los ojos de
nen, un tema que se ve representado no solo en la comercialización los demás; estas características las vemos desarrollarse lentamente
de servicios, sino también en la escasez de comida y la dependencia tanto en sus incursiones nocturnas en el mar hacia una bodega que
de los pescadores. Daniel se empieza a mezclar con el ambiente de almacena todo el pescado, como en el constante acoso a Daniel, los
un pueblo que espera salir adelante, pero muestra miedo frente al jóvenes, la hija de “Cerebro”, e incluso Lucia, reflejando su ansia de
progreso y la escasez de turistas, un pueblo que empieza a ser olvi- control sobre quien se adentre en la comunidad. En resumen, una
dado por sus costumbres y rituales en un mundo donde prevalece el violencia superpuesta en menor escala de la generalizada en otras
dinero -o país en este caso puntual- del cual Daniel quiere huir, don- regiones de Colombia.
de sus preocupaciones y tristeza lo atormentan como las constantes
Un elemento importante que se debe resaltar es que durante
lluvias en La Barra.
toda la película se hace un acercamiento en segundo plano a esta cla-
Dicho ambiente se quebranta de vez en cuando, cuando pre- se de conflictos que prevalecían -o predominan- en el país, los cuales
valecen los momentos de felicidad, efímeros como los amaneceres siempre permanecen de fondo; su objetivo es el de plantear cómo
que se logran contemplar, en medio de los problemas y angustias los problemas que se gestaban lentamente alrededor del territorio
diarias que se olvidan gracias a “tareas” cotidianas, los partidos de nacional, se iban saliendo de control, eventualmente podrían llegar
fútbol en la playa con los jóvenes, las charlas sobre chicas, el futuro y a la región, lo que dejaba cierta incertidumbre ante el panorama so-
la situación del pueblo en medio de cigarrillos, alcohol y risas. cial provocado por la ineficacia del sector político y militar a favor de
estas zonas. El constante uso de los medios como ventana al resto
Pero no todo puede ser tranquilidad, ya que “El Paisa”, quien
del mundo queda plasmado en lo que piensa y cómo actúa la comu-
es nuestro antagonista, refleja en sus actividades y acciones a lo largo
nidad, tanto política, como social y económicamente, convirtiendo
de la historia, el sentido capitalista desmedido del turismo, donde se
su conflicto externo en uno de materia interna, teniendo que lidiar
guía por sus placeres y su avaricia, incomodando cada vez más a sus
la comunidad con sus propias manos las violentas consecuencias con
líderes y teniendo un poder casi adquisitivo sobre sus jóvenes, con
tal de preservar una pizca de dignidad.
la promesa de un buen pago, además de controlar por medio del
tráfico marítimo la producción y pesca de la zona con el fin de ganar Tenemos un acercamiento estético y narrativo en donde el
un control sobre el futuro y las decisiones de la comunidad, repre- cine colombiano logra escapar de la generalización de temas, lugares
sentando la versión más cruel de aquellos que vienen aprovechán- comunes y la centralización del sector, para profundizar y exponer
dose de otras personas con menos suerte que él, queriendo ganar una realidad palpable que es convertida por medio de la ficción con
no solo terreno -una extensión del desplazamiento interno-, sino la el fin de suscitar una conexión emocional con quien lo visualice en
confianza de aquellos que tienen necesidades para fomentar lo que “el rompecabezas de la memoria” que cita María Ospina Pizano al
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analizar esta obra desde lo que ella denomina “testigos menores”, tanto las partes artísticas y las técnicas logran converger y resaltar
enfocados a la juventud y la ciudadanía en el cine colombiano con- constantemente sin ser distractoras del relato y sus personajes-, se
temporáneo al explicarnos que esta obra “desarma el punto de vista nos muestra frío, ruin, misterioso y caótico, un personaje más que
del sujeto urbano que se adentra en la selva misteriosa y es respon- permite a Alicia y los demás, reflejar sus heridas, traumas y miedos
sable de su catalogación, ya que la película rehúsa convertir su mi- en la inmensidad y profundidad del paisaje.
rada viajera en el motor de la codificación del espacio” (2019, 170).
Lentamente la casa va tomando esa vida que necesitaba, no-
Esta exploración de la docuficción termina madurando y reci- tándose también un avance sobre el entorno, especialmente desde
biendo un planteamiento propicio para explorar de manera precisa y la fotografía que encapsula a los personajes desde sus momentos
sutil las problemáticas que abarcan en El Vuelco del Cangrejo, vién- íntimos en su cuarto a la luz de las velas, como en la vasta neblina
dose de una forma más cruenta cada vez que nos internamos en los que llega al lugar. El acoso se hace aún más latente cuando Óscar
rincones del país, teniendo cierta “objetividad” sobre los autores de recibe visitas y todos quieren quedarse a apreciar a Alicia, lo cual
estos hechos, y reflejados en La Sirga, donde vemos otro proceso es- la hace recluirse del mundo y buscar protección en su tío, quien la
tético, creativo y técnico para reflejar una visión sobre los fantasmas hace entrar en razón de que no tiene nada que temer frente a ellos,
de la violencia y el trauma que genera en quien la vea a los ojos, idea incluso cuando él mismo ha incurrido en el mismo deseo -que nunca
inicial que se plantea desde el primer plano, el cual revela lo desgar- se concreta-, pero deja clara la perspectiva machista que contiene el
rador y cruento que pueden ser las consecuencias, representado en espacio y cómo eso permea los deseos de tranquilidad de Alicia junto
un cadáver en medio de cultivos, para luego conocer por primera vez a los problemas que van resultando en la historia.
a nuestra protagonista: Alicia, quien luce ida, cansada, demacrada
A diferencia de otras obras, quizás la docuficción y el plan-
mientras camina sin rumbo al borde de un profundo lago hasta caer
teamiento político son elementos que pasan más desapercibidos
inconsciente.
debido a la mirada específica a los elementos que componen la pe-
Desde esta intrigante y aterradora secuencia, vamos enten- lícula, latentes en cómo los personajes tienen costumbres, rituales,
diendo la dinámica de qué horrores oculta la niebla y el mundo exte- y medios para mercantilizar en la “zozobra de la niebla” junto a esos
rior que amenaza con destruir una vida sencilla y tranquila como la momentos de calma y belleza entre un conflicto fantasma que no se
de aquellos que viven cerca a la protagonista, quien empieza a crear sabe cuándo acabará junto al detonante del abandono estatal en las
nuevos vínculos con quienes pasan por su espacio, entendiendo que garantías básicas de subsistencia, junto a esa “experiencia migratoria
lo mejor es integrarse y esperar lo mejor de la situación, dedicándose de adolescentes que son testigos y víctimas de la guerra en medio de
y creyendo que lo que realmente quiere es crear un hogar; pero el su tránsito a las incertidumbres de la adultez” (Ospina, 2019, 177).
ambiente, el cual está organizado de una manera específica - que
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La Tierra y la Sombra encierra y complejiza de manera madura Desde su llegada a la casa, Alonso tiene que emprender dos
y sutil los temas que se han tratado en las dos películas anteriores, tareas fundamentales para redimirse por sus decisiones pasadas, las
haciendo que en esta sean los personajes los que exploren desde sus cuales se basan en la reconciliación y en proyectar la imagen correc-
vivencias, además de manejar los temas desde las problemáticas de ta y sincera de él, teniendo que formar una relación con Manuel, su
Colombia como sociedad y su crecimiento desde el punto de vista de tierno, sincero e inteligente nieto, así como con Esperanza, la bella,
los campesinos, quienes nuevamente sufren de un progreso amena- atenta y entregada esposa de su hijo, mientras recupera la confianza
zante a su estilo de vida. perdida en su hijo, así como encontrar el perdón y la aceptación de
Alicia, su ya cansada y vieja exmujer, quien le guarda rencor y deja
La película deja claro desde sus primeras escenas, que su es-
claro su carácter y orgullo desde el primer momento en que la cono-
tética se inspira particularmente en la cinematografía de Andréi Tar-
cemos. La casa y los cultivos de caña, así como la entrada de su hogar
kovski, al mantener sus planos lo más abiertos y prolongados posibles
con su banco y el gran árbol, comienzan a tomar vida propia a lo
entre toma y toma, para generar un ritmo donde establezcamos una
largo de la película, indicándonos tanto técnica como narrativa y ar-
ubicación y apreciación por el entorno y el comportamiento de los
tísticamente, los diferentes ambientes que van a conformar el reflejo
personajes; lo más fascinante de esta historia es que desde su nar-
de la situación y el propio drama de nuestra familia protagonista, un
rativa se plantea la otra mirada de estas historias que se desarrollan
drama donde el tacto y la visión funcionan a la perfección para plan-
en el campo, donde nuestro personaje principal, que es Alonso, un
tear una historia que genera memoria, añoranza y cuestionamientos
anciano formal, típico y con carácter, regresa a su tierra natal no solo
sobre la vida de aquellos campesinos que buscan mantener su vida
por el deteriorado estado de salud de su hijo Gerardo, quien sufre en el campo y no dejar sus tierras.
de un daño en los pulmones que lo mantiene postrado en la cama la
mayor parte del tiempo y lo hace necesitar un espacio libre de polvo Pero este arco no solo logra mantenerse solo por sí mismo,
y ceniza, sino también por encontrar una conexión que cree perdida. sino que es sustentado de forma dramática por la problemática de
Este vínculo tan crucial en la historia nos permite reflexionar sobre salud y económica que está azotando a su familia, llevando a que
La Sirga donde aunque sus planos también tienen una similitud en Alicia y Esperanza tengan que tomar el trabajo de Gerardo en los
permitir al espectador analizar lo que vemos con calma pero con un cultivos de caña, esperando mejorar la situación en un sistema que
ritmo más contundente mientras deja los temas desarrollarse, en La como ellas empiezan a notarlo, es injusto con sus empleados, prefi-
Tierra y La Sombra se enfoca a los personajes y su vida para que riendo anteponer el progreso y la productividad de la materia prima
mediante estos espacios vayan ganando la intensidad de los temas sobre el bienestar y la solvencia económica de quien realiza la labor.
a tratar, donde el sentido de pertenencia y la búsqueda de hogar se El progreso cada vez que avanza la película se muestra no solo
vuelve más personal y complicada. caótico y desesperanzador, sino también insostenible para la situa-
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ción en la que está la familia entera ante los conflictos devenidos en visión estética y técnica, convirtiéndose en ejemplo máximo de de-
la privacidad familiar y el entorno laboral que se cohesionan. No hay sarrollo dentro de la docuficción, y vinculante a lo que llama Oswaldo
un trato justo con el campesino y mucho menos con la tierra, provo- Osorio como “una variante del realismo” que lo conecta con las parti-
cando que solo la unión y la sororidad entre aquellos que trabajan cularidades del cine internacional que “apela a estructuras narrativas
muevan temporalmente un poco la balanza a su favor, además de difusas, puntos de giro desvanecidos por un manejo del tiempo que
replantear nuevamente el abandono en el que el Estado deja al cam- es más como el de la vida que como el del cine, personajes comunes
pesino, siendo una crítica directa y concisa, pero a la vez sutil y bien que no representan ninguna colectividad, y con conflictos aparente-
realizada al integrar a su trama de forma concreta como eje central mente ordinarios o minúsculos que se olvidan del contexto y estimu-
de la historia. lan poco la acción del relato” (2018, 147).

Casi de manera trágica, al final llega la reconciliación familiar Las tres películas nos muestran no solo unas costumbres y
en una última secuencia que no solo muestra el espacio, sino que lo prácticas que se realizan a lo largo de un país tan maltratado como
resignifica frente a los temas tratados y a las acciones acontecidas Colombia desde lo naturalista y lo narrativo de cada historia, sino
durante toda la película, solo para dar paso al espectro de la soledad también desde la crítica a un Estado que no es incluyente con quie-
y la nostalgia que ahora recae en la casa y en Alicia, quien descansa nes son vulnerados, que no es congruente con las personas afectadas
bajo el gran árbol como testigo de un evento que los marca y los en un conflicto eterno donde se prioriza otras cuestiones y se deja en
deja ante lo desconocido. El campo ha cambiado, y con él, la familia el olvido las consecuencias y heridas que marcan de una forma u otra
entera, forzándolos a aventurarse a lo desconocido mientras dejan el a quienes viven estas experiencias. Transmitiendo, casi de forma cre-
dolor atrás y asumen la idea lentamente de que ya no pueden hacer ciente, la empatía y la naturalidad de sus protagonistas, los cuales, al
nada más, simplemente vivir con las consecuencias de sus actos y igual que quien está tanto delante como detrás de la cámara, revo-
esperar lo mejor. lucionan desde estas fábulas esquemáticas que se entremezclan con
una realidad tangible en algún momento, nuestras percepciones de
La Tierra y La Sombra logra posicionarse como un hito en la
aquellas historias de las cuales nos sensibilizamos en algún momento,
historia del cine colombiano, no por sus premios o recorrido artístico
pero que trascienden para hacernos cómplices y protagonistas de un
en festivales, sino en la posición y reto que propone frente a la reali-
sistema que fue injusto con aquellos que los necesitaban, pero que
zación en el panorama nacional, así como lo que puede significar lle-
gracias al cine, logran prevalecer como memoria dentro del colectivo
gar a ser una ópera prima donde las referencias, temas, personajes y
y se mantienen gracias a su madurez cinematográfica y teórica.
problemáticas quedan claras y concisas, permitiendo tener un desar-
rollo preciso que lleva al espectador a recibir una dosis de emociones Es aquí donde podemos decir que se conforma un punto de
hasta un final inevitable que deja marca en el espectador, gracias a su unión entre lo que pensamos y experimentamos como espectado-
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res frente a lo que vemos en pantalla, pues la realidad presentada de este milenio. Obras como El río de las tumbas -1924- de Julio Lu-
predomina y queda resonando gracias a sus espacios marcados, que zardo, Canaguaro -1981- de Dunav Kuzmanich, Cóndores no entier-
habitan como un ente simbiótico con los personajes que acontece, ran todos los días -1984- de Francisco Norden, y La cerca -2004- de
un testamento audiovisual que refleja una época turbulenta en luga- Rubén Mendoza, representan “sonoridades” regulares del cine que
res que quizás ya no existan, pero que prevalecen en la memoria de pensamos para explicar representaciones sociales que involucran ac-
quienes los habitaron. ciones directas del Estado, y sus complejas relaciones con la pobla-
ción12.
Por último, el realismo presentado en cada película, dotado
de un formato y estilo cinematográfico práctico y detallado, permite Otras interpretaciones contemporáneas, permeadas por el
apropiarse de temáticas, culturas, ritos y escenarios para mantener amplio abanico de posibilidades de aprendizaje cinematográfico des-
una docuficción coherente y respetuosa, permitiendo el diálogo y el de nuestros centros de enseñanza nacionales o internacionales, ha
análisis posterior sobre nuestra empatía frente a estas comunidades posicionado cineastas y grupos de trabajo representativos que han
y espacios, lineamientos que fácilmente pudieron haber quedado en entrado en el panorama de festivales y muestras de exhibición, así
el momento de lanzamiento de cada película, y posteriormente, caer como de otros que definen diversas temáticas que son plataforma
en el olvido, pero que gracias a la perspicaz narrativa y estética de artística, académica y mediática, encontrando de nuevo las necesi-
cada uno de los tres realizadores, logran generar la empatía y cone- dades de indagación por el pasado y el contexto del presente, lo que
xión necesaria para entender que aunque somos un visitante en cada posiciona de nuevo temas ya representados, culturalmente “acepta-
uno de estos mundos, podemos ser cercanos gracias a lo “real” de dos” y, poco entendidos: el desplazamiento, la guerra con los parami-
sus acciones, emociones, deseos y sueños, donde lo crucial es saber litares y la guerrilla, el secuestro, los falsos positivos, el narcotráfico,
si serán capaces de sobrepasar sus pruebas y aventurarse a lo desco- los conflictos urbanos, etc., son muestra de un posicionamiento de
nocido o simplemente caerán en desgracia.
liberal en diversas zonas del país. El contexto iría hasta la década de los sesentas,
Con los ecos del pasado y el presente, entran diálogos nece- considerado el enfrentamiento más intenso de Latinoamérica en el pasado siglo
después de la guerra civil mexicana y de corte rural. Dos referencias para profun-
sarios con otras historias cinematográficas que asumen el conflicto
dizar sobre el tema: Bandoleros, gamonales y campesinos, el caso de la Violencia en
que reconocemos desde las vertientes partidistas de mitad de siglo Colombia de Gonzalo Sánchez y Donny Meertens; y el artículo de Eric J. Hobsba-
XX con la Violencia11, y las resultantes de largo aliento hasta inicios wm publicado en el libro Rebeldes Primitivos titulado “la anatomía de la violencia
en Colombia”.
12 Sin incluir algunas obras de Víctor Gaviria que rememora en sus histo-
11 Han periodizado esta etapa desde el momento en que cae asesinado el rias las situaciones derivadas de nuestro conflicto, es el caso de Rodrigo D -1990-,
líder político liberal Jorge Eliecer Gaitán el 9 de abril de 1948, aunque ya en esos la Vendedora de Rosas -1998- y Sumas y Restas -2005. Com Óscar Campo y
años del gobierno conservador de Mariano Ospina Pérez 1946-1950, se venía de- algunas de sus obras: Recuerdos de Sangre -1990, Cali 1996: La modernización
nunciando el incremento de los actos de violencia contra miembros del partido del narcotráfico -1996-, y Noticias de guerra en Colombia -2002-.
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temas que parece se reinventan en las formas narrativas de encuen- forma de retomar situaciones de nuestro pasado reciente; a la par y,
tro con el espectador. con la estela de la pasada administración, tímidamente hemos teni-
do la instauración de medidas que han permitido visualizar y buscar
Por citar, tenemos referentes como La primera noche -2003-
una forma de reivindicar a las víctimas del conflicto armado.
de Luis Alberto Restrepo, La sombra del caminante -2004- de Ciro
Guerra, Soñar no cuesta nada -2006- de Rodrigo Triana, Silencio en El cine se ha encargado de generar diálogos con quienes de
el paraíso -2011- de Colbert García, La estrella del sur -2013- de Ga- una u otra forma estuvieron involucrados en la guerra, permitiendo
briel González, Violencia -2015- de Jorge Forero, Parábola del retor- así la construcción de la memoria de todo un país a través del docu-
no -2016- de Juan Soto, Oscuro animal -2016- de Felipe Guerrero, mental, proyectando distintas miradas y dándole voz a aquellos que
Ella -2014- de Libia Stella Gómez, Carta a una Sombra -2015- de Da- no tenían forma de exponer sus vivencias y dramas personales, como
niela Abad, Matar a Jesús -2018- de Laura Mora, Monos -2019- de ejemplo No hubo tiempo para la tristeza -2013- producido por el
Alejandro Landes, Los días de la Ballena -2019- de Catalina Arroya- Centro Nacional de Memoria que recorre parte de la historia de algu-
be, Pirotecnia -2019 de Federico Atehortúa, entre una larga lista de nas zonas del conflicto; El testigo -2018- de Katie Horne a partir del
ejercicios y contenidos audiovisuales que nos llevan a pensar el país testimonio del fotoperiodista colombiano Jesús Abad Colorado; y Un
de forma desigual en sus temas y dinámicas de narrar un espacio asunto de tierras -2015- de Patricia Ayala, quien expone de manera
geográfico donde la ficción en el caso de la gran mayoría de obras contemplativa desde la mirada documental, como las víctimas se en-
anotadas, nos llevan indirectamente a la realidad, en resumen, son el frentan al proceso de restitución de tierras que planteó el gobierno
registro de un tiempo que se convierte en objeto de estudio. como parte de la dignificación de las mismas.

No hubo tiempo para la tristeza tiene como objetivo propor-


El documental del conflicto que nos permea cionar el debido reconocimiento de las víctimas de la de violencia en
Colombia, el archivo audiovisual se encuentra basado en el informe
Colombia ha sido azotado por la violencia debido a diferentes que el Centro Nacional de Memoria presentó al país titulado ¡Basta
causas que son vigentes en el tiempo, una muestra es el presente Ya! Colombia: memorias de guerra y dignidad, realizando un recor-
mientras se escriben estas reflexiones vinculadas a nuestro cine y las rido por diferentes acontecimientos que constituyen uno de los pe-
directrices de un gobierno que parece se enfoca al vaivén de las bo- riodos más trágicos y oscuros del país. El actor Nicolás Montero es el
canadas del conflicto interno: ambiciones políticas, un proceso de encargado de trazar una ruta que permite la revisión territorial de las
paz que desean hacer trizas, recrudecimiento de la violencia trans- poblaciones más afectadas por estos hechos, labor apoyada por un
grediendo toda clase de derechos fundamentales, y una sistemática grupo de investigadores quienes se encargan de esclarecer y apoyar
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datos cronológicos y específicos, con entrevistas de líderes sociales, los testimonios de quienes vivieron las peores consecuencias de la
y diferentes víctimas del conflicto, algunas de ellas pertenecientes a guerra.
comunidades étnicas del país, las cuales construyen un relato que
Geográficamente nos ubicamos en las zonas de mayor con-
involucra argumentos sobre cómo se vivió este periodo, quienes cau-
flicto en el país, los testimonios permiten al espectador construir
saron estos enfrentamientos y cómo afrontan hoy en día las secuelas
una visión de los hechos y lo conecta con las víctimas, con una serie
de la guerra.
de preguntas que atraviesa nuestro sentir: ¿Por qué en las grandes
En su introducción el documental presenta víctimas del con- ciudades no se visualizaron y atendieron oportunamente estas si-
flicto de distintas zonas del país, las narraciones corresponden a tuaciones? Haciendo énfasis en que estos hechos fueron invisibles
hechos ocurridos aproximadamente entre 1987 y 2008, todos ellos para los ojos de muchos durante años, planteando, así como objetivo
manifiestan que la guerra los marcó de manera permanente, pues les la importancia del reconocimiento de las víctimas. ¿Qué ocurrió en
arrebató la tranquilidad y algunos familiares. Dentro de los testimo- Colombia durante la guerra? ¿Quiénes ejercieron sin límite el poder
nios de expertos y víctimas, se trata de esclarecer porque el país des- de las armas? ¿De qué manera transformó la violencia los campos y
conoció durante tantas décadas los acontecimientos que afectaron a paraísos en escenarios de terror? Interrogaciones que prácticamente
las poblaciones más desprotegidas por el gobierno, además recalcan estructuraran la forma en que será narrado el documental.
la importancia de que estos sean conocidos para no ser repetidos.
Tras 6 años de recuperación de documentación y testimonios,
El documental evoca la memoria como recurso para cambiar los investigadores realizan una breve pero concisa explicación so-
la impunidad por una verdadera dignificación de las víctimas, es por bre quiénes y cómo actuaban los distintos victimarios enrutados a
eso que el uso de imágenes de archivo audiovisual es constante du- grupos paramilitares, guerrillas y miembros de la fuerza pública que
rante todo su montaje, las imágenes de todas las masacres provocan hicieron parte de diversas masacres que trajeron consigo diversas
una sensación de desasosiego, impotencia y dolor en lo ocurrido en modalidades de violencia; mientras las víctimas expresan como los
todo el territorio nacional, dejando al descubierto el rostro de un grupos armados los amenazaron para que abandonaran sus tierras,
país que se desangra día a día con la guerra, permitiendo romper el los torturaron, desaparecieron o llevaron a la fuerza a sus familiares
silencio que guardaron por años todas las víctimas y así crear una o conocidos. Los análisis también van dirigidos a los principales de-
memoria colectiva que permita reflexionar y cambiar los hechos. El bates políticos del país, los periodos de mayor auge de la guerra, y las
documental se encuentra acompañado a su vez por una tonada que disputas por tierras convertidas en cultivos ilícitos y sus consecuen-
representa el dolor y la esperanza al mismo tiempo: “déjame llorar, cias derivadas del narcotráfico. En esta segunda etapa, el documental
préstame tus alas, regálame unas horas, acompáñame a soñar que nos invita a reflexionar cómo la avaricia, el poder, la corrupción y la
cuidamos rosas del mismo jardín…”, empatizando al espectador con ambición, generaron un impacto importante en las poblaciones mar-
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ginadas del país, los testimonios de las víctimas permiten al especta- los cantos autóctonos regionales, estos a parte del tono nostálgico,
dor comprender quiénes, y el porqué se generaron enfrentamientos poseen bases rítmicas características que permiten su fácil identifica-
en el país, la narración periodística del documental permite formu- ción y su acercamiento cultural; el siguiente recurso son las imágenes
lar preguntas y generar respuestas casi que inmediatas, generando de los lugares afectados por el conflicto: muros destruidos, figuras
contextos y permitiendo avanzar en la historia de manera eficaz y religiosas rotas, edificios abandonados, crean un ambiente de de-
clara para cualquier persona que no conozca la historia del conflicto solación, dolor y melancolía propia de la guerra, las cuales, unidas
armado de Colombia. con el uso de material de archivo, muestran cómo quedaron estos
territorios tras sufrir los vejámenes del conflicto a través del montaje
La obra concluye con un acto sobre la importancia de la me-
no lineal que interviene en momentos precisos donde es necesario
moria en estos acontecimientos, pues entender este fenómeno es
reforzar el ejercicio de la memoria en el espectador.
crear oportunidades de crear un nuevo futuro, saber porque se die-
ron esos hechos, permitirá entender por qué no se debe permitir que Algunas de las fotografías que hicieron parte del material de
vuelva a suceder; además el debido reconocimiento de estos eventos archivo de No hubo tiempo para la tristeza fueron tomadas por Jesús
y el esclarecimiento de los hechos, nos dan una guía análisis parte Abab Colorado, el protagonista El testigo, documental producido por
entender cómo se debe dignificar a las víctimas del conflicto para no un canal privado de televisión, el cual, a diferencia del primero que
revictimizarlas. contaba con un tono informativo, institucional y educativo, se dirige
a narrar las historias del conflicto en primera persona desde uno de
Dentro de esta pieza audiovisual se pueden enumerar diferen-
sus testigos, “Chucho” como prefiere ser llamado, quien ha retratado
tes elementos que permiten que el mensaje sea llevado al espec-
el horror de la guerra en el país con su cámara durante años.
tador de manera precisa e informativa, pues en primera estancia
cuenta con un tono amable y sencillo en su lenguaje con la acer- La historia comienza con en una reflexión del protagonista
tada orientación del presentador, y los testimonios que vamos des- sobre la relación de los vestigios de la guerra en los lugares que la
cubriendo. Por otra parte, el montaje complementa los relatos con presenciaron, como luego, al pasar de los años, son invadidos por
la orientación cronológica y de estudio social de los investigadores, la naturaleza en una señal de resurgimiento y esperanza, la misma
permitiendo que el discurso esté fundamentado y respaldado por di- característica que adoptaron las víctimas del país, al terminar dicha
ferentes puntos de vista. reflexión y dar a conocer las emociones que provoca recordar los do-
lorosos sucesos que retrató, decide regresar a los lugares afectados
Por otra parte, la atmósfera en torno a la violencia es creada
por la barbarie y buscar a algunos de los protagonistas de las fotos
a partir de varios recursos que evocan a la construcción de la memo-
más icónicas de sus carrera.
ria, que finalmente es el objetivo del documental, por ejemplo en
76 Yamid Galindo Cardona audiovisual revolucionário 77

Una de sus primeras remembranzas es sobre la fotografía aprobación de la Ley que busca la de restitución de tierras en 201113.
que tomó a un tablero donde se había enseñado la historia de “Caín En su introducción, la documentalista interviene por medio de una
y Abel” y parte de la reflexión de cómo en Colombia un hermano voz en off acompañada de imágenes de un pueblo en ruinas, para
asesinó a otro. Esta primera parte se encuentra acompañada por el hacer una breve apreciación sobre los hechos ocurridos durante más
montaje de secuencias fotográficas que hacen parte de su trabajo de 50 años en el país relacionados con la violencia, la injusticia y la
como periodista y de su voz relatando hechos, en algunas ocasio- impunidad que despojaron a miles de colombianos de sus tierras, esa
nes acompañado por música, el cual es implementado en diferentes misma voz deja instalado al espectador en el edificio del Congreso de
momentos de la película para hacer transiciones o para pasar de un la República donde 18 de Mayo de 2011 se encuentran reunidos sus
suceso histórico a otro, el cual está correctamente empleado pues el funcionarios para decidir el futuro de la Ley, sin embargo, la cámara
discurso del documental se desarrolla en dos perspectivas: la rela- actúa como un observador lejano y contemplativo, que no busca ge-
ción personal o familiar de “Chucho” con la guerra, y la relación con nerar una única opinión, sino lograr la reflexión del espectador sobre
su trabajo como periodista, lo que nos ubica como espectadores con las imágenes que escoge para el desarrollo del discurso narrativo,
el hecho, su tiempo, y espacio. mostrando que los congresistas tienen otros intereses.

Esta obra utiliza diversos recursos similares a los de No hubo Tras observar la reacción en el Congreso por la firma de la Ley,
tiempo para la tristeza, siendo el material de archivo un dispositi- la obra instala al espectador con las víctimas que tratan de ubicar en
vo directo para generar un ejercicio de memoria que se conecta con el mapa los lugares donde había residido y que les habían arrebatado
canciones que dirigen su mensaje hacia el cansancio de la guerra pa- por medio del desplazamiento u otras situaciones, proyección que
decida; otro elemento significativo es la fotografía, oficio periodístico podemos interpretar como la búsqueda de una esperanza y sinóni-
de Jesús Abad Colorado que se reposiciona a partir del reconocimien- mo de un intento por encontrar la forma de ubicar y reivindicarlos
to de las mismas y el tejido que se arma con las diversas historia de por medio de un camino jurídico de regreso a sus hogares, pero el
nuestro conflicto; por último, el paisaje y los espacios como testigos cual se difumina con el paso del tiempo, el mismo que los entes gu-
de la violencia, pues los planos de apoyo muestran lugares abando- bernamentales no comprenden, ni interpretan.
nados usados como elementos semióticos interpretados por el es- Las celebraciones colectivas, las que involucran a la religiosi-
pectador como símbolos de memoria. dad hacia una fe católica, sus símbolos, y apegos, predominan como
Esta misma representación de lugares como símbolos de eje trasversal de las obras que analizamos, apego vigoroso que pare-
memoria, es utilizado por la documentalista Patricia Ayala Ruiz en ce solventar en parte el drama que conllevan. Viendo posteriormen-
la introducción de su documental Un asunto de tierras, el cual nos
13 http://wp.presidencia.gov.co/sitios/normativa/leyes/Documents/Juri-
muestra otra cara de los sucesos de las víctimas del conflicto tras la dica/LEY%201448%20DE%202011.pdf
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te los personajes que contribuirán al desarrollo de la historia en su producto de carácter institucional, cuyo propósito es enseñar y acla-
acción vigilante de cumplimiento de dicha Ley, poniendo como ejem- rar los hechos correspondientes al conflicto en el país, pensado, tal
plo el territorio de Las palmas, municipio de Córdoba, comunidad es- vez, para un público que no tiene ningún tipo de conocimientos so-
cogida para contar los hechos, donde algunos de sus líderes sociales bre lo ocurrido durante dicho periodo, ya que la diversidad de sus
y campesinos mostrarán las diferentes adversidades que presentan personajes, la variedad de conceptos y puntos de apreciación que se
en el proyecto de restitución de tierras, un ir y venir que expone las presentan, logran un discurso sólido y con gran riqueza de informa-
fragilidades de sustentar y poner en práctica una medida con los tes- ción. Por otra parte, El testigo es un discurso empático, narrado en
timonios como acción pedagógica de intervención y contemplación primera persona que permite no solo entender los hechos sino, re-
que se cohesiona a la radio, elemento recurrente que interviene a flexionarlo e interiorizarlos por el acercamiento que genera la figura
modo de informante de las situaciones que giran alrededor de este de su narrador, quien es el primero en simpatizar con los afectados,
proceso, como el anuncio de capturas de figuras públicas involucra- siendo una obra que permite, si se puede, de manera atractiva y rá-
das en los procesos de compra de territorios en distintas zonas del pida, entender nuestro drama social. Ahora, en Un asunto de tierras,
país, siendo de forma sutil, pero que genera un gran aporte en la nar- descubrimos un discurso contemplativo que produce una reflexión
rativa, pues permite que el espectador conecte diferentes asuntos introspectiva, su objetivo está fijado en entender cómo los procesos
que hacen parte del proceso. bajo la legislación colombiana no son efectivos y como los que han
esperado estas reparaciones aún siguen en la cuerda floja de sus ex-
Por desgracia el documental cierra con un final abierto donde
pectativas irresolubles.
ninguna de sus víctimas recibe una respuesta por parte de la Unidad
de Restitución de Tierras, algunos de sus personajes regresan a la
Una conclusión abierta e inconforme
tierra que reclaman para reconocer el lugar, aunque está irreconocib-
le, aseguran distinguir el lugar y las partes que lo componían, entran-
do un punto de nostalgia en correlación con el espacio en los cuadros Se puede concluir que el documental en Colombia ha permiti-
de composición del mismo, pues los personajes se ven pequeños, do el eco de las víctimas de la violencia, exhibiendo sus testimonios
haciendo referencia a la sensación de un futuro incierto. acompañados por imágenes de lugares que vieron pasar la guerra y,
con diferentes recursos para evocar que la memoria tiene sus usos y
A diferencia de los otros documentales, Un asunto de tierras abusos en tres causas vinculantes a su difícil relación con el tiempo,
no utiliza como recurso imágenes de archivo, lo que permite visuali- la confrontación con el otro, y la herencia de la violencia fundadora
zar la diversidad de formas que han encontrado los documentalistas como enfatiza Paul Rocoeur. Lo anterior, reconsiderado y puesto en
colombianos para entablar un discurso narrativo que permita hablar diálogo con la Historia y el Tiempo, y en estas dos, todo el significado
de un mismo tema. En No hubo tiempo para la tristeza vemos un de nuestros procesos históricos y su meditación sobre la muerte:
80 Yamid Galindo Cardona audiovisual revolucionário 81

En efecto, ¿cómo se podría ignorar el simple para distinguir desde su contenido las diversas posibilidades narrati-
hecho de que en historia casi sólo se trata de
los muertos de otro tiempo? La historia del vas de entender el país, seguramente desde una poética del conflic-
tiempo presente constituye una excepción to, entendida en las cuestiones que Aumont y Marie explican en su
a este hecho en la medida en que interpe-
la a los vivos. Pero es en calidad de testigos diccionario teórico y crítico del cine con respecto a tres preguntas:
supervivientes a acontecimientos que están ¿Quién crea? ¿Cómo crear? ¿Cuáles son las condiciones esenciales
cayendo en el olvido del pasado, y muy a me-
nudo en calidad de testigos inaudibles, pues del arte? Asumidas en la funcionalidad misma del cine en sus meta-
los acontecimientos extraordinarios sobre los morfosis históricas desde la creatividad de unos directores y, de una
que ellos testifican parecen inaceptables a la
capacidad de comprensión ordinaria de los historia hegemónica que ha invisibilizado otros cines, y otras formas
contemporáneos. Por eso, parecen más “pa- del pensamiento:
sados” que cualquier pasado abolido. A veces,
estos testigos mueren de incomprensión (Ri-
coeur, 2010, 471). Al fin y al cabo, son los cineastas los que die-
ron las vislumbres más importantes sobre la
creación cinematográfica: el cálculo del senti-
Los “testigos” o “sobrevivientes” que reconocemos en estos do (Eisenstein), el de la emoción (Eisenstein,
Hitchcock, Ray), la producción de la fotogenia
relatos documentales -en función dialogante con la anterior cita- (Epstein), el respeto por la realidad (Grierson,
, parecen actores de reparto importantes por la inmediatez de las Vertov), el desarrollo de las posibilidades poé-
ticas propias del cine (Brakhage, Pasolini), la
obras y sus contextos, pero igualmente desapercibidos y olvidados necesidad de inscribirse en una historia de las
en la colectividad de nuestros espacios cotidianos una vez pasan sus imágenes (Godard), etcétera. (2006, 172).

diversos circuitos de exhibición. Otro paso, el que se dispone como


objeto de análisis e interpretación, va desde las disertaciones que lle- Si esos directores, y esa historia, pasan funcionalmente los re-
vamos a cabo, el de convertirlos en fuente y objeto de estudio desde gistros de una constante y tonante reflexión canónica en nuestros
las subjetividades mediadas en ese “telar” que se va cosiendo con procesos académicos y creativos, significa que también es hora de
los estudios secundarios que ayudan a posicionar el discurso escrito revolucionar el conocimiento con las posibilidades estéticas que una
como manifestación revolucionaria de ideas en ver, escuchar, leer y cinematografía local puede solventar, una nueva mirada hacia las es-
sentir nuestras imágenes en movimiento como lugar de un “soplo” quinas y a profundidades de los registros que no logran ver la luz,
de nuestra historia reciente. sacando del anonimato relatos indistintos de territorios inexplorados
y comunidades sin voz, he ahí una función latente que debe cumplir
Documental y ficción, entre la fábula creativa y la realidad en el audiovisual contemporáneo.
el cine colombiano contemporáneo, dirige la mirada en función de
asimilar cómo el arte es un caleidoscopio por el cual ponemos el ojo Siguiendo a Pomian, con la diversidad de los semióforos -con-
siderados objetos visibles dotados de significado-, tenemos un signi-
82 Yamid Galindo Cardona audiovisual revolucionário 83

ficativo panorama de aquello que reconocemos en nuestros diversos archivo fílmico y fotográfico, las historias autorreferenciales, el cine
ámbitos de representación social, cultural política, económica, etc.; coral, las series web, entre otras posibilidades que explica Machado
dirigidas a su conexión como “imágenes que forman una clase al mis- como o es el “noticiero en tiempo de guerra”, del cual nutrimos mu-
mo tiempo funcional y morfológica” (2007, 136), y que en las obras cho nuestros sentidos en la cotidianidad, obviamente poniendo en
referenciadas son notables ante la capacidad creativa y la diégesis diálogo los referentes del autor, con los propios, ante la posibilidad
que promulgan, valor agregado que debemos siempre estimular y que se tiene y se usa de las noticias, como fuente de reconocimiento,
cohesionar con las posibilidades estéticas y narrativas que son com- y acción narrativa desde el montaje.
plementarias.
Estamos ante unas conclusiones abiertas e inconformes, su
Otro caso nos lleva a pensar en esas formas expresivas de la derrotero se ubica en una coyuntura universal ante la salubridad pú-
contemporaneidad, explicadas desde la multiplicidad: blica. De su desarrollo, alcance y salida, depende que se reactiven
muchos escenarios de trabajo, entre esos el del cine. Desde nues-
Calvino definía la multiplicad como un con-
junto de “redes de conexiones entre hechos, tras realidades sociales, vivimos una implosión de hechos violentos
entre las personas, entre las cosas del mun- en un estado de gobernabilidad trágico e inconsecuente que regresa
do” … Si es posible reducir a pocas palabras el
proyecto estético y semiótico que presupone al panorama violento de otros años ante la azuzada del fuego por
gran parte de la más reciente producción au- medio de las acciones políticas y el discurso institucional que desea
diovisual, nos atrevemos a decir que se trata
de una búsqueda sin teguas a través de esta cambiar postulados ya definidos y reconocidos en nuestro escenario
multiplicidad que exprime el modo de conoci- sociopolítico.
miento del hombre contemporáneo. El mundo
es visto y representado como una trama de re-
laciones de una complejidad inextricable, en El pasado vuelve y retoma nuevos y viejos escenarios de ac-
que cada instante se ve marcado por la pre- ción que los guerreristas llaman “teatro de operaciones”, los núme-
sencia simultánea de elementos muy hetero-
géneos y todo esto ocurre con un movimiento ros suben con los asesinatos de líderes sociales, y las masacres que
vertiginoso, que hace que todos los eventos, regresan, así el presidente de turno las grite “asesinatos colectivos”.
operaciones y contextos sean mutantes y des-
lizantes (Machado, 2015, 234). Tocará reactivar las dimensiones artísticas desde el presente en la
experticia de sus diversas manifestaciones. Si en varios momentos se
Posibilidades estéticas que marchan hacia las posibles nuevas ha escuchado que estamos sobrecargados de nuestro conflicto inter-
formas narrativas que deriven de esas historias no contadas, pero ac- no en el cine nacional, ahora más que nunca toca ir guardando estos
tivas en la tradición de la Historia del Cine Colombiano, mutaciones nuevos registros de la realidad nacional para retomarlos y ponerlos
que seguramente ya son constantes en usos de dispositivos como el en función de la memoria colectiva e individual, el futuro lo dirá, el
archivo lo mostrará, el arte nos aliviará.
84 Yamid Galindo Cardona audiovisual revolucionário 85

Colombia queda en la historia, la memoria, y el olvido de quie- Blog


nes la habitamos y sufrimos narrándola. Zuluaga, P. Pajarera del medio, (revisado el 30 de julio de 2020)
http://pajareradelmedio.blogspot.com/2008/05/nuevo-cine-colom-
biano-ficcin-o-realidad.html
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Barão Olavo, o horrível e La
familia unida esperando la
llegada de Hallewyn:
leituras do horror em tempos
de horror14
Estevão de Pinho Garcia15

14 Para citar este texto como fonte de sua pesquisa, utilize o modelo abaixo:
GARCIA, Estevão de Pinho. Barão Olavo, o horrível e La familia unida esperan-
do la llegada de Hallewyn: leituras do horror em tempos de horror. In: ROCHA,
Adriano Medeiros da; LAIA, Evandro José Medeiros. audiovisual revolucionário.
São Paulo: Editora dos Frades, 2021.
15 Coordenador e professor do Bacharelado em Cinema e Audiovisual do
Instituto Federal de Goiás – Campus Cidade Goiás. Doutor em Meios e Processos
Audiovisuais pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São
Paulo (USP).
audiovisual revolucionário 89

Introdução

Quando se fala em “cinema revolucionário” produzido na


América Latina, a atenção frequentemente ainda recai no denomina-
do Nuevo Cine Latinoamericano e na década de 1960. A historiogra-
fia clássica do cinema latino-americano geralmente associava cinema
revolucionário a cinema militante ou “político”. Outras tendências,
mais alinhadas a um cinema vanguardista ou experimental, eram so-
lenemente ignoradas de suas páginas ou parcamente mencionadas,
porque o critério valorativo de historiadores e críticos se concentra-
va, em linhas gerais, em filmes e realizadores dispostos em se alinhar
a um projeto de revolução política. O cinema seria um instrumento,
um meio e até mesmo uma arma para fomentar tal revolução. Em
linhas gerais, qualquer anseio de inovação no campo da linguagem
deveria servir e estar subordinado a esse objetivo de alcance maior e
notadamente extracinematográfico. Eis que, a partir de 1968, surgem
no seio do cinema latino-americano moderno vertentes que passam
a embaralhar os termos do binômio cinema/política e começam, de
fato, a concretizar uma nova forma de relacionar os dois tópicos em
questão. Na virada da década, a política não desaparece do jogo, e
sim assume novas configurações abarcando áreas que antes eram
consideradas fora de sua jurisdição, como a sexualidade, o incons-
ciente, os espaços privados e a linguagem. Não se trata, portanto, de
retirar a política do primeiro plano e enquadrar, em seu lugar, a expe-
rimentação formal. A premissa semeada nesse novo contexto é a do
“tudo é política”; desta forma, a estética não é mais percebida como
uma realidade secundária, e sim como algo que se amalgama com a
política a ponto de se converter em uma unidade. Ser revolucionário
90 Estevão de Pinho Garcia audiovisual revolucionário 91

em termos estéticos é ser revolucionário em termos políticos, não há em cineclubes, ambos não tiveram fortuna crítica e passaram des-
delimitação. percebidos pela grande imprensa e pela maior parte do público. Se
até há pouco tempo esses dois filmes permaneciam inacessíveis e
Deste modo, o cinema latino-americano revolucionário que
invisíveis, não é de se estranhar que são poucos os trabalhos que os
vamos analisar neste capítulo será, justamente, esse deflagrado no
incluíram como objeto de estudo (5) e mais raros ainda os textos que
final dos anos 1960 e que perpassou toda a década seguinte. Este
os analisaram individualmente.
cinema, o qual chamamos de cinema moderno-pós 1968 para dife-
renciá-lo dos cinemas novos dos anos 1960, abrigou alguns cineastas Mas, entre os filmes do Cinema Marginal e os do Cine Subter-
e vertentes que, apesar de serem contemporâneos, não se conhece- ráneo, por que comparar especificamente Barão Olavo, o horrível e
ram e não estabeleceram conexões entre si (1). Entre essas vertentes La familia unida esperando la llegada de Hallewyn? Ambos, assim
podemos citar o Cinema Marginal brasileiro e o Cine Subterráneo ar- como os demais filmes das vertentes das quais fazem parte, são ex-
gentino (2). Nosso estudo procura examinar esse outro cinema revo- traordinariamente atados ao momento presente de suas realizações,
lucionário por meio da análise comparativa entre um filme marginal porém, neles esse laço com o tempo presente é costurado de ma-
e um filme subterráneo. No quadro dos estudos sobre cinema latino- neira notadamente particular. Tal costura é realizada por meio do
-americano, trabalhos comparativos no âmbito do cinema moderno diálogo com o filme de horror. Tanto o filme de Bressane quanto o
pós-1968 são bastante recentes. O presente capítulo se alinha aos de Bejo se apropriam desse gênero cinematográfico e, nesse jogo
trabalhos de CAETANO (2012); WOLKOWIKS (2014, 2015); GARCIA intertextual, estabelecem interfaces com o horror do momento pre-
(2014, 2018, 2019a, 2019b) e FAVA (2017), em seu empenho de rela- sente, isto é, com o horror institucionalizado no cotidiano de seus
cionar vertentes e filmes em sua maior parte ainda incógnitos. respectivos países pelos regimes autoritários então em vigor (6).
Conforme observaremos, cada um fará a sua interação com o gênero
Aqui em nosso caso, os dois filmes escolhidos são, realmente,
e com o seu contexto político à sua maneira. Ambos, no entanto, es-
bastante desconhecidos. Trata-se de Barão Olavo, o horrível (Júlio
colhem como objeto privilegiado de suas críticas a família burguesa
Bressane, Brasil, 1970) e La familia unida esperando la llegada de
e se confinam no espaço da mansão. Em Barão Olavo, esta se situa
Hallewyn (Miguel Bejo, Argentina, 1971). O filme de Bressane, rea-
em Teresópolis (7), região serrana do Rio de Janeiro, e os seus es-
lizado no contexto da Belair (3), não chegou a ser totalmente con- paços internos e externos serão o palco para a construção de um
cluído e durante muito tempo foi considerado perdido, até ter sido mundo ficcional rigorosamente fechado e receptivo aos clichês do
restaurado recentemente (4). O filme de Bejo, assim como o de seu gênero. Em La familia... a mansão será enquadrada basicamente em
colega brasileiro, foi produzido de maneira clandestina, não foi en- seus interiores sombrios e assumirá uma função alegórica. Os dois
viado à censura e não circulou nas janelas de exibição convencionais. filmes disparam suas munições na direção do ambiente doméstico e
Assim, vistos na época somente em esporádicas sessões fechadas ou o percebem como espaço político.
92 Estevão de Pinho Garcia audiovisual revolucionário 93

Em La familia... a Argentina será vista a partir da família bur- fisiológico desconfortável e diametralmente oposto ao efeito de pra-
guesa. Se em Barão Olavo encontraremos analogias entre ambiente zer. A aversão se relaciona ao asco e surge quando nos deparamos
doméstico e Estado autoritário, no filme de Bejo veremos, através com qualquer sujeito ou objeto que percebemos como fétido, podre,
do espaço familiar, uma alegoria política mais explícita. Tal alegoria ignóbil ou sujo. O pavor nada mais é do que o medo em seu estágio
será configurada não só pelos integrantes do núcleo familiar e pelos mais elevado. O medo surge quando apresentamos consciência do
espaços da residência em que habitam, mas também por um grupo perigo ou da iminência de situações que poderão nos prejudicar ou
de personagens que não pertencem à família, tampouco têm livre nos aniquilar. Dentro deste quadro há também agonia e desespero.
acesso à mansão. Esta será utilizada como ponto de referência. A Este horror é chamado por Carrol (1999) de “horror natural” para
família, isto é, os que moram na mansão, são “os de dentro” e os fazer distinção entre a emoção que experimentamos em nossas vidas
empregados domésticos e os seres do “submundo” em geral são “os e o que ele denomina como horror artístico.
de fora”. Torna-se explícita uma diferença de classe: de um lado, a
É lícito, para os nossos propósitos, estabelecer a delimitação
burguesia, e do outro, o povo excluído. Mas há um outro elemento
entre essa sensação de horror e o horror artístico. A primeira, segun-
que demarca a distinção entre “os de dentro” e “os de fora”: a for-
do Ramos (1987), estaria presente em todos os filmes classificados
ma de se relacionar com o misterioso Hallewyn. Afinal, quem seria
como marginais e que nós consideramos ser um componente tam-
esse personagem que empresta o seu nome ao título do filme e cuja
bém encontrado no Cine Subterráneo. Por sua vez, o segundo é uma
chegada é esperada tanto pela família como pelos marginalizados? A
forma narrativa que pode ser articulada em distintos campos artísti-
primeira o espera com medo, e os segundos, com alegria. A alegoria
cos, como a literatura, o teatro, a ópera, a radionovela, as histórias
parece evidente: a mansão burguesa é a Argentina e Hallewyn é Juan
em quadrinhos e o cinema. Segundo Carrol (1999), uma manifesta-
Domingo Perón.
ção artística somente poderá ser enquadrada como pertencente a
este gênero se conseguir provocar em seu espectador a emoção que
O horror e o horror lhe deu o nome: horror. Esta emoção é a marca identitária do horror
artístico. Porém, no gênero, o que provoca essa emoção está sempre
Observamos que a família como analogia ou como alegoria vinculado a algo que transcende os limites de nossa percepção da
da nação é, nesses filmes, a face do horror. Mas o que é o horror? ordem natural: o monstro. Não obstante, não basta conter monstros
Em seu sentido básico é a sensação física de repugnância ou de es- para uma obra ser considerada de horror. O essencial é como esse
panto ocasionada por algo medonho. É um sentimento de antipatia, ser monstruoso se relaciona com os demais personagens que, neces-
aversão e ódio e também de medo e pavor. Em outras palavras: o sariamente, deverão nutrir por ele aversão e medo. Tais sensações
significado do termo nos remete a uma sensação ou a um estado sentidas pelos personagens ditos “normais” ao ser anômalo é que
94 Estevão de Pinho Garcia audiovisual revolucionário 95

apontará aos espectadores o aspecto horrorífico do discurso narrati- passa toda a sua obra, notadamente marcada pelo humor cáustico,
vo. Assim, em termos narrativos, o monstro em Barão Olavo seria o por uma feição cruel e pela representação do macabro e do grotesco.
próprio Barão e em La familia unida esperando la llegada de Halle- Bejo é nitidamente sensibilizado pelo universo insólito e pela mise-
wyn, o próprio Hallewyn. -en-scène ritualística e sacramental de Ghelderode, que também era
um estudioso do folclore europeu. Sua peça Hallewyn estaria inspi-
Ao falar do Cinema Marginal, Ramos diz que o horror que en-
rada no folclore nórdico em que Halewijn é a representação de um
contramos no mundo abjeto de seus filmes parece vir de algo maior
sombrio aristocrata obcecado por virgens.
e talvez seja “um horror mais profundo, advindo das profundezas
da alma humana – um horror de temores pré-históricos e incomen- O personagem-título da peça teatral possui a mesma origem
suráveis – e que aflora em toda sua potência original” (1987: 118). nobre e a mesma obsessão do mito nórdico. A atividade preferida
Compreender este horror como advindo da própria existência ou do do protagonista era a de sair sorrateiro na escuridão noturna para
simples fato de existir poderia talvez nos fornecer uma explicação seduzir e depois assassinar as jovens donzelas da nobreza local. Bejo
que preencha a lacuna existente por sua inserção aparentemente resgata do texto original a figura desse misterioso sedutor que causa
sem lógica e muitas vezes abrupta e aleatória. Reiteramos que o sen- pânico e temor. No filme, a chegada de Hallewyn é anunciada pela
timento de horror, provocado pelo medo e pela aversão, também repetição, ao longo da projeção, da imagem de um cavaleiro que ra-
pertence ao universo dos filmes subterráneos e que o tempo presen- pidamente galopa em uma praia. Essa imagem pertence a La frusta
te do qual fazem parte também é sentido como horrorífico através e il corpo/O chicote e o corpo (Mario Bava, Itália, 1963) e o cavaleiro
de suas imagens. Se a sensação de horror perpassa todos os filmes em questão é, no filme de Mario Bava, o temido Kurt Menliff (Chris-
marginais e subterráneos, os dois que analisaremos se destacam por topher Lee). Ambientado no século XIX, o filme do cineasta italiano
realizar uma conjugação entre o horror natural e o horror-gênero. nos narra o retorno do aristocrata Kurt ao castelo de sua família, que,
com todas as suas forças, o odeia. Kurt é autoritário, repressor, sádico
e ao mesmo tempo sedutor. Desperta simultaneamente sentimentos
Intertextos com o horror cinematográfico opostos: repulsão/atração e dor/prazer. O corpo de Nevenka, a noiva
de seu irmão, sente o estalar de seu chicote, e após ser açoitada se
Apesar de não constar nos créditos, o roteiro de La familia... entrega ao algoz. Torna-se lícito aqui ressaltar a mixagem que Bejo
é uma adaptação da peça Hallewyn (1934), do dramaturgo belga Mi- realiza entre o Hallewyn da peça de Ghelderode, o Kurt Menliff do
chel de Ghelderode (1898-1962). Trata-se de uma das mais de 60 filme de Bava e o então ex-presidente argentino exilado Juan Domin-
peças escritas pelo dramaturgo e que não está entre as suas mais co- go Perón.
nhecidas. De qualquer modo, há nela a atmosfera fantástica que per-
96 Estevão de Pinho Garcia audiovisual revolucionário 97

Bejo coloca os dois personagens ficcionais e o personagem corpo desaparecido de Evita, que, no momento das filmagens, havia
real em um liquidificador, e o resultado da mistura entre os três sido recentemente recuperado (9). A Mãe, convertida em santa por
parece ser o Hallewyn de seu filme. A narrativa é estruturada pela sua família, assim como Evita tinha sido, de certa forma, por grande
espera da chegada desse personagem, que, na quase totalidade do parte dos argentinos (10), é profanada pelo Filho rebelde.
longa-metragem, vemos através da imagem pouco nítida do cavalei-
O patriarca da família se relaciona melhor e enxerga um suces-
ro extraído de O chicote e o corpo. A revelação de seu rosto e de sua
sor não em seu filho, e sim no noivo de sua filha. A “cadeia evolutiva”
identidade será realizada apenas no final, quando a sua chegada, fi-
do conservadorismo e da opressão segue a ordem Avô, Pai e Noivo,
nalmente, acontece. Para o filme, a espera da família por Hallewyn é
já que o Filho foge do papel que para ele era reservado. Avô, Pai
mais importante que o próprio Hallewyn. Mas como essa família será
e Noivo compõem, portanto, a trinca reacionária do filme, ao pas-
mostrada? Em La familia... os seus integrantes não têm nome e são
so que Filho, Filha e Tia são a base da trinca subversiva. A primei-
designados pelo papel que ocupam dentro do núcleo familiar, desse
ra é formada por verdadeiros “machos” que representam o poder
modo a filha é a Filha, o avô é o Avô, e assim por diante. Esse pro-
patriarcal, e a segunda, não por casualidade, é composta por duas
cedimento posiciona a família como ponto de referência primordial
mulheres e um homem que não segue o modelo de masculinidade
no que concerne à própria alegoria encarnada pelos personagens. O
imposto. Seguindo essa divisão, a violência que veremos explícita no
que importa para Bejo são os arquétipos e os clichês que cada perso-
seio familiar será basicamente a efetuada pelos homens contra as
nagem representa e como eles os articulam entre os seus. mulheres. O Avô matará a Tia, sua filha. O Pai matará a Filha. Ambas
Logo no início descobrimos que o Filho é um travesti. Porém, a serão torturadas em uma mesa de sacrifício e depois terão seus cor-
sua “rebelião” não se refere somente à sua homossexualidade, mas pos traspassados por uma fálica lança.
também em como se posiciona frente a outras regras impostas por Como havíamos dito, Bejo utiliza a imagem do cavaleiro de
sua família. Ele tem acesso ao submundo dos “de fora” e não pare- O chicote e o corpo, de Mario Bava. A imagem é de fato extraída de
ce compartilhar o temor de seus parentes diante da possibilidade outro universo e apropriada por La familia... como se fosse sua. O
da volta de Hallewyn/Perón. Mas o seu maior gesto de oposição se filme de Bejo não “cita” a cena do filme de Bava, e sim a incorpora.
relacionará com a sua finada mãe. A Mãe morta foi embalsamada e Kurt Menliff não é mais Kurt Menliff, e sim Hallewyn. Quando ve-
seu corpo é guardado com extremo cuidado pelo Pai, que a enxerga mos a imagem, reconhecemos por suas características e texturas que
como santa, guia e protetora. O Filho então rapta o cadáver e com ela não pertence originalmente ao filme, mas a aceitamos como se
ele tem relações sexuais. Incesto e necrofilia se unem através de seu pertencesse. Embarcamos na sugestão de que aquele homem que
ato. Esse sequestro remete diretamente ao sequestro do corpo de galopa na praia deserta é o próprio ser misterioso que progressiva-
Eva Duarte Perón. Se Hallewyn é Perón, o corpo da Mãe simboliza o mente se aproxima da mansão. Além da imagem, a banda sonora
98 Estevão de Pinho Garcia audiovisual revolucionário 99

de O chicote e o corpo também será apropriada. Isso ocorre através instalada de Kurt provoca. Ele, concretamente, comete terríveis atro-
do uso de sua música, que aparecerá no filme de Bejo em distintas cidades contra os seus e as permanece cometendo mesmo após a
ocasiões, e também através do “empréstimo” de seus diálogos. As morte. O seu espírito assombra e atormenta os seus parentes. Ao
falas que ocorrem na sequência em que Menliff chega ao castelo de passo que, como veremos, a chegada de Hallewyn no final do filme
sua família são escutadas no momento em que a família do filme ar- não corresponde ao pavor nutrido pela família burguesa.
gentino está reunida vendo televisão. A Tia manda o mordomo ligar
O intertexto de La familia... com o horror cinematográfico não
o aparelho. A partir do gesto do serviçal, o que começa a ser trans-
se limita a Mario Bava. O filme estabelece um diálogo com o gênero
mitido pela TV, cuja imagem não vemos, nada mais é que o inicio de
também através do resgate de sua iconografia e da concepção visual
O chicote e o corpo. No instante em que no filme de Bava anuncia-se
que elabora como mise-en-scène. Sua fotografia em preto e branco,
“Kurt está de volta”, o casal integrado (11) repete o seu bordão: “es-
com luzes e sombras contrastadas e sombras projetadas em excesso,
perando a chegada de Hallewyn!”.
nos remete à estilização do cinema de horror clássico, notadamente
Nesta última cena, a relação de Menliff com Hallewyn se des- hollywoodiano, dos anos 1930 e 1940. A própria mansão burguesa
loca da conversão do primeiro no segundo. O próprio retorno de um remete ao cenário das casas mal-assombradas com suas grandes
tal Kurt, que escutamos no som transmitido pelo televisor, é reme- escadas, passagens secretas e objetos que parecem ter vida. Deste
tido à volta de Hallewyn. O chicote e o corpo é diegeticamente O modo, La familia... não é um filme de horror, e sim um filme que
chicote e o corpo sendo veiculado pela televisão e o seu protagonista se apropria de forma reflexiva das convenções do gênero. A ação,
identificado pelo nome é diretamente comparado ao “monstro” de comum em um filme de horror, do herói traspassar uma arma pon-
La familia... O primeiro já voltou e o segundo ainda está no percur- tiaguda no coração do vampiro, é no filme de Bejo invertida. Quem
so de sua volta. Identificamos pontos de semelhança entre o filme utiliza a lança não são heróis, e sim a trinca reacionária. Quem sente
de Bejo e o enredo de O chicote e o corpo, porém, há diferenças, a lança traspassar o corpo tampouco são vampiros ou monstros, e
inclusive em relação ao mote inicial. Se aquele se baseia no temor sim as mulheres, a Tia e a Filha, que se atreveram a desobedecer à
sentido pela espera de um ser misterioso à mansão e ao seio de uma ordem. No filme de Bejo, os assassinatos praticados dentro da família
família abastada, este possui como conflito deflagrador justamente o são motivados por razões políticas e ideológicas. O Avô, o Pai e o Noi-
retorno ao lar de um filho execrado por sua família. O que a família vo não são mortos-vivos, mas demonstram-se estar mortos diante
do filme de Bejo não quer que aconteça já acontece logo de início da alteridade.
na família do filme de Bava. Nele a narrativa resume o percurso da Dentro da lógica do horror-gênero, a caracterização do mons-
volta de Kurt em poucos planos e não toma a espera da família como tro se faz a partir da aversão e do medo que ele causa aos chama-
momento fundamental, e sim privilegia o horror que a presença já dos “personagens positivos”, ou seja, aqueles personagens com os
100 Estevão de Pinho Garcia audiovisual revolucionário 101

quais o espectador se identifica. É por meio do olhar e da emoção horror. Em ambos, de maneira distinta, por mais que o gênero seja
sentida por esses personagens “bons” e da identificação deste olhar introduzido para dentro de seus interiores, ele sempre será uma ex-
pelo receptor da obra que se faz a construção do monstro. Desse terioridade. No filme argentino, o distanciamento e a postura analíti-
modo, é fácil identificar Kurt Menliff como o monstro de O chicote ca ao gênero tornam-se evidentes na alteração da lógica do monstro
e o corpo. No filme de Bejo é mostrado desde o início que a família apontada acima. Tal lógica, no que tange à sua estrutura, de certa
possui repulsa e pavor em relação a Hallewyn, enquanto os seres do forma permanece no filme de Bressane. O personagem-título é o
submundo desejam entusiasticamente a sua volta. A família é forma- “monstro” no começo do filme e continuará sendo até o final. Os
da por indivíduos que têm uma casa e que comem e bebem bem. O personagens que são vítimas de suas maldades, Ritinha e Isabel, nos
submundo é integrado por seres que vivem na sarjeta. Os primeiros despertam simpatia, mas o que elas sentem pelo Barão não fica cla-
seriam os civilizados e os segundos, os bizarros. Todavia, logo perce- ro. Aqui, como no filme argentino, também temos a figura do patriar-
bemos que os membros da família que nutrem medo por Hallewyn ca que persegue e reprime as mulheres de seu núcleo familiar.
não são personagens “positivos” e, como consequência, não nos
identificamos com eles. Não estabelecida a identificação, tampouco A ideia de Barão Olavo como um monstro ou como um ser que
conseguimos nos aproximar com o que sentem pelo personagem-tí- provoca horror se esboça já nos créditos iniciais. Neles, sob as carte-
tulo. Pelas ações empreendidas pelo Avô, pelo Pai e pelo Noivo, ob- las, ouvimos uma música provavelmente extraída de algum filme de
servamos que eles sim são monstruosos. E os personagens que são horror hollywoodiano clássico. A atmosfera produzida por aqueles
vítimas ou contrários a essa trinca passam a nos parecer simpáticos: acordes é tomada emprestada. O título do filme então aparece. Em
o Filho, a Tia, a Filha e os “de fora” como um personagem coletivo. uma cartela lemos Barão Olavo e na seguinte, o horrível. A distri-
Se não chegamos a nos identificar, no sentido clássico, com nenhum buição do título em duas partes ressalta para o espectador a carac-
personagem, certamente somos levados a nos identificar com a ins- terística principal do personagem. O plano que aparece depois dos
tância narrativa em sua catalogação dos “bons” e dos “maus”. letreiros é o que, em uma floresta escura, um corpo nu se encontra
estirado no chão. O “horror” indicado nos créditos já poderia estar
Também consideramos Barão Olavo, o horrível como um fil- aqui expresso, mas não temos certeza, a imagem é pouco nítida e
me que estabelece suas conexões com o gênero mais pela intertex- não é possível saber se aquele corpo nu é de alguém vivo ou morto.
tualidade e pela apropriação de seus códigos do que pela completa Na próxima cena, Olavo, em sua primeira aparição, está enquadrado
adesão. Essa não adesão integral é demarcada por uma postura dis- em contra-plongeé. Ele segura um guarda-chuva. Na medida em que
tanciada que não encontramos, por exemplo, no filme mencionado o personagem o fecha e o balança como um gesto de raiva dirigi-
de Mario Bava. Tanto o filme de Bressane como o de Bejo seriam do a alguém, escuta-se em over uma gargalhada típica de filmes de
menos filmes de horror e mais filmes que dialogam com o filme de horror. Essa gargalhada horripilante, certamente de um personagem
102 Estevão de Pinho Garcia audiovisual revolucionário 103

maligno, sem sombra de dúvida também foi retirada de algum filme na floresta e contínuos uivos e latidos. Posteriormente, no cemitério,
pertencente ao gênero. Bressane, assim como Bejo, é um mixador, o Padre mostra a Olavo o local onde ficam os túmulos das virgens.
e o propósito de suas apropriações é estabelecer um diálogo com o Temos ciência, logo de início, de que o protagonista possui hábitos e
universo do horror e menos citar explicitamente um filme específico. gostos que fogem da “normalidade”. O seu aspecto cruel se acentua
através de outras ações que nos são mostradas pouco a pouco: a
A postura de quem está disposto a estabelecer conexões com
agressão ao Padre, o estrangulamento da Cigana, a responsabilida-
o mundo do horror, mas deixando claro um certo distanciamento crí-
de pelo aborto de Ritinha e a repressão ao romance das jovens que
tico e a ciência de que esse mundo lhe é exterior, já aparece nessa
acabará levando Isabel ao suicídio. Essas situações, contudo, não são
cena de apresentação do protagonista. Antes da inserção da garga-
mostradas com o intuito de construir progressivamente um perfil psi-
lhada, a imagem que nos é mostrada é simplesmente a de um idoso
cológico ou de reiterar aspectos de seu caráter. O que importa já é
com um guarda-chuva. O seu gesto posterior de empunhar o objeto
ponto pacífico desde os créditos iniciais: Olavo é o monstro desse fil-
raivosamente é acompanhado pela gargalhada que, de maneira algu-
me de horror autorreflexivo. Se por acaso a ilusão dessa monstruosi-
ma, lhe fornece atributos horroríficos. O riso é um elemento externo
dade por vezes parecer frouxa, isso não apresenta nenhuma relevân-
e mais parece um comentário proferido por um dos interlocutores
cia. Ele, assim como os ruídos típicos do gênero articulados ao longo
de Barão Olavo (no caso, o próprio gênero do horror) do que uma
do filme, é o resultado de uma mixagem, e não o som original. Barão
extensão dos pensamentos ou a reprodução de uma gargalhada do
Olavo contém nele próprio um histórico de vilões do cinema de hor-
personagem. Isso fica ainda mais evidente quando a gargalhada de-
ror. Instalar o “clima” do horror, que em muitos casos pode aparecer,
saparece no meio da ação e deixa os movimentos de Olavo em silên-
desaparecer e aparecer novamente em uma mesma cena, é mais
cio. Sem o áudio, temos somente a irritação de um idoso ranzinza.
importante que narrar uma história de horror. Uma narrativa condi-
O personagem, além de não causar medo, chega a atingir as raias
zente ao gênero usualmente é estruturada pelo suspense, calibrado
do cômico. Será preciso que a instância enunciativa recorra aos cli-
cronologicamente, que culmina no elemento chave: a consumação
chês sonoros do gênero (trovões, correntes sendo arrastadas, uivos,
do medo. No filme de Bressane não há um crescendo atmosférico,
gritos, ventania) e que Olavo, de fato, cometa algum ato próximo do
e sim a atmosfera abruptamente inserida e abruptamente retirada.
monstruoso. O perigo que o envolve é anunciado pelo ator Guará
Na verdade, não é que Barão Olavo não está preocupado em contar
Rodrigues, cujo personagem não tem outra função que a de alertar:
uma história de horror: ele não está preocupado em contar nenhuma
“Cuidado com o Barão! As coisas vão mal. Cuidado com o Barão!”.
história.
Mas que perigo o Barão pode provocar? Sob a tela preta, a voz
A autonomia das cenas em sua referência ao gênero não se
over do Padre informa que o seu patrão toda noite sai para matar
concretiza somente pela ausência de progressão dramática ou de
cachorros. Em seguida temos a repetição do plano do corpo estirado
104 Estevão de Pinho Garcia audiovisual revolucionário 105

uma cena seguinte que lhe confira um princípio de continuidade um jeito próprio de se fazer qualquer ação, incluindo a de realizar
mais urdido, e sim, muitas vezes, pela repetição. A cena do estrangu- um filme de horror. Esse “jeito nosso” é sinalizado quando da pano-
lamento da Cigana se repete. O plano do corpo estirado na escuridão râmica da Serra passamos para uma “sequência de montagem” com
da floresta aparece três vezes. A inserção da imagem de um trem a permanência da canção de Noel. Nela vemos Ritinha na cozinha
fantasma característico de parque de diversão de cidade do interior bebendo água, a repetição do plano em que Olavo e Cigana discutem
também ocorre três vezes. O trem fantasma, grafado com os dize- e Ritinha urinando no banheiro. A letra da canção seleciona e indica
res “Expresso do terror” e “o pesadelo ao vivo”, terá a sua imagem o que seria legitimamente nosso, em outras palavras, legitimamente
emoldurada pela mesma sequência de sons tenebrosos de cenas an- “brasileiro”. Após descrever diversas situações ordinárias, as define
teriores. Bressane não quis realizar um filme que se aproximasse do pelo refrão como “Coisa nossa, muito nossa”. Assim, em tom debo-
horror através de seus aspectos narrativos, e sim que com ele esta- chado, aponta que “o [nosso] bonde parece uma carroça”. Em outra
belecesse uma transfusão por meio da releitura de seus clichês. Mas parte, faz menção à “menina que namora na esquina e no portão
o filme não se restringe a esse procedimento. Lembremos que Barão rapaz casado com dez filhos, sem tostão” para logo vaticinar “se o pai
Olavo é um filme de horror filmado praticamente todo de dia e tem descobre dá uma coça”. A atmosfera cotidiana e corriqueira dessas
como cenário uma mansão em Teresópolis. situações classificadas como “nossas” pelo samba reverbera nos pla-
nos em que Ritinha executa ações sem importância e no plano “ten-
so” do protagonista com sua cúmplice que, por ser uma repetição,
O lado de dentro e o lado de fora perde tensão e ganha trivialidade. A sequência monta e estrutura o
mundo anteriormente visto de Barão Olavo como um cotidiano. Esse
Barão Olavo se entrelaça com a sua locação. O único momen- mundo estilizado, costurado a partir dos clichês do filme de horror,
to em que o filme se desloca da mansão e de seus arredores e se também é “coisa nossa, muito nossa”. Se este filme de horror, tal
empenha em mostrar o contexto geográfico no qual está inserido como o bonde do samba de Noel, mais parece uma carroça e não um
é quando a câmera, em plano geral, faz uma panorâmica da Serra filme de horror “original”, pouco importa. O horror “internacional”
do Mar. Após meio minuto de paisagem em silêncio, entra na banda empresta os elementos e “nós” os recriamos à nossa maneira (12).
sonora o samba São coisas nossas (1936), de Noel Rosa. Nesse ins- Na cena seguinte, o ato “aversivo” que o nosso “monstro” realiza
tante, Barão Olavo se abre para o exterior e no movimento parece é o de estar sentado no bosque comendo areia com uma pequena
deixar claro que, além de ser um filme de horror, é um filme de hor- colher. Barão Olavo come terra como se fosse sobremesa. Seria esse
ror brasileiro. A demarcação “brasileiro” como traço distintivo não gesto do monstro de degustar o nosso “solo” ou a nossa “terra” mais
se concretiza somente pela revelação do entorno ou pela inserção uma sugestão de que o filme de Bressane se coloca como um filme
de um gênero musical considerado nacional, mas pela sugestão de de horror brasileiro?
106 Estevão de Pinho Garcia audiovisual revolucionário 107

La familia... é um filme mais claustrofóbico que o de Bressane. Além da reflexividade há outro elemento que também somen-
Os dois filmes se fecham em mansões burguesas, mas enquanto o da te pertence ao submundo: a cultura popular. Entre os “de fora” há a
Belair aproveita os recantos externos e articula através da entrada de presença do futebol e a sinalização de que esse esporte originaria-
luz a relação exterior/interior da casa, o de Bejo se confina em seus mente bretão é um elemento da cultura argentina está no uniforme
interiores. O único momento em que a família sai da casa é quando, do Boca Juniors trajado pelos marginais. Eles também tomam mate,
através de uma passagem subterrânea e secreta, se dirige ao cemi- hábito que não é cultivado pelos burgueses. Na sequência específi-
tério. Ainda assim, este revela ser da família e um anexo da mansão. ca da recepção a Hallewyn, veremos a inclusão de outros símbolos
Essa sequência se passa à noite. Apesar das demais cenas serem em da cultura popular argentina: o churrasco e o tango através de um
interiores, tem-se a impressão de que diegeticamente o filme se pas- imitador de Carlos Gardel. Em La familia..., tudo o que em termos
sa inteiramente no período noturno. Se Barão Olavo é um filme de de cultura é popular ou argentino se concentra no espaço localizado
horror “solar”, La familia... é um filme de horror filiado à escuridão, “fora” da família burguesa. Em Barão Olavo, uma manifestação po-
como a grande maioria dos filmes do gênero não deixa de ser. O filme pular e brasileira como o samba pode sem problemas se infiltrar no
brasileiro se passa em uma região serrana. O filme argentino, apesar ambiente burguês. Lembramos que a canção de Noel Rosa aparece
de em nenhum momento mostrar a fachada da mansão e o seu en- como música não diegética. Portanto, se talvez a família ficcional não
torno, sugere se localizar no perímetro urbano. A família burguesa ni- cultive o samba, a narrativa sim o aprecia e não vê inconveniente em
tidamente vive em uma grande metrópole, assim como “os de fora”. colocá-lo fora do ambiente popular em que surgiu. No filme de Bres-
Estes também sempre se encontram em espaços fechados. A única sane, ao contrário do de Bejo, a dicotomia entre “de dentro” e “de
exceção talvez pudesse ser o “lugar” da cena em que esperam a che- fora” não é classista e cultural, e sim pontuada pelo o que está dentro
gada de Hallewyn com um churrasco. Ela é filmada em estúdio, e por de seu mundo ficcional e pelo o que está fora.
sua iluminação seria possível cogitar que, diegeticamente, estamos
de dia e em um espaço externo. Sem embargo, é evidenciado que se Havíamos caracterizado o mundo ficcional de Barão Olavo
trata de um estúdio. A revelação do artifício, diferentemente do que como fechado em si mesmo e apontamos que ele é permeado pe-
ocorre nas sequências da família, é concretizada. Dessa forma, pouco los clichês do horror. Esse mundo, erigido através de personagens e
importa se o ambiente indicaria exterioridade, posto que a ilusão da cenários próprios, se encerra. Entretanto, o seu “fim” não pressupõe
ficção foi rompida. Torna-se mais relevante a sensação de ambiente o fim de Barão Olavo. O filme continua, não mais na mansão de Te-
interior provocada pelo estúdio. Em suma, se “os de fora” se asse- resópolis, e sim nas ruas de Copacabana. Parte do elenco, não mais
melham aos “de dentro” por sempre estarem trancados em espaços incorporando os seus personagens e sim se situando na fronteira en-
fechados eles possuem em seus recintos algo que os “de dentro” não tre eles e suas próprias personas, provocará um happening com os
têm: a reflexividade. transeuntes do bairro.
108 Estevão de Pinho Garcia audiovisual revolucionário 109

No meio desta sequência surge, na banda sonora, a canção Do da rua de braços abertos. Grita diversas vezes clamando cuidado com
outro lado da cidade (1969) cantada por Roberto Carlos. Havíamos o Barão. Ele vira e, caminhando em direção oposta à câmera, que
afirmado que em Barão Olavo há a coexistência de dois lados distin- permanece fixa, grita: “Povo dessa cidade, cuidado com o horrível
tos: o “de dentro” e o “de fora” da ficção. De um lado, está a mansão Barão! Cuidado com o terrível Barão!”. Helena Ignez corre em sua
do personagem-título, e do outro, as ruas de uma grande metrópole. direção e o empurra, fazendo-o cair no chão. A queda o faz parar
O primeiro é uma ficção de horror autoconsciente, e o segundo o re- de gritar. O ator se levanta e continua andando como zumbi. Neste
gistro de um happening entre atores e transeuntes. A canção, utiliza- instante, a voz de Roberto Carlos retorna justamente no trecho em
da como comentário, fala da coexistência de dois lados, no caso dois que canta “desse lado da cidade não tem sol e tudo é muito triste”.
lados que pertencem a uma mesma cidade. Se Barão Olavo é um O corte nos leva para o plano geral, fixo, do pico Dedo de Deus (12).
filme dividido em dois, a cidade da letra de Roberto Carlos também Cobrindo a paisagem mergulhada em um entardecer, a canção diz:
é repartida em duas. Na canção, o emissor do discurso atualmente “eu vou mudar para o outro lado da cidade pra melhor lhe procurar”.
se encontra no lado da cidade que não lhe pertence, tampouco gosta O outro lado da cidade localizado atrás do pico é onde fica a mansão
porque “não tem sol e tudo é muito triste” já que nele “a alegria que do Barão? Este monumento geológico, aqui disposto, adquire uma
havia em minha rua não existe”. Para ele a felicidade somente está importante dimensão dentro da lógica do filme. Torna-se um elo en-
“no outro lado da cidade” e seu maior desejo é encontrar a mulher tre o lado “de dentro” e o lado “de fora” da ficção horrorífica. É o ele-
que procura e voltar para lá. Enquanto a música toca, os nossos ato- mento que fica na fronteira entre esses dois lados ou uma espécie de
res continuam sendo o outro para quem os observa na rua. Seja an- portal que os conecta. Por outro ponto de vista, se esses dois lados
dando normalmente pelas ruas e avenidas, organizadas em uma fila, ou dois mundos são delimitados pelo pico, não há nenhum elemento
sejam paradas vendo a encenação, as pessoas aparentam estar em que delimite ou distinga o grau de horrorífico que existe em cada um
um estado de letargia permanente. Tampouco é por acaso que Guará deles. O lado de fora da ficção cinematográfica de horror é tão ou até
reproduz o gestual característico de um zumbi. Os atores procuram mais horrorífico que o lado de dentro. É o que nos indica a imagem e
arrancar os anônimos da apatia ou do automatismo mediante a pro- o som que sucedem a paisagem e a alegre canção de Roberto Carlos:
vocação e a interrupção, ainda que breve, da ordem cotidiana. De a tela preta e a gargalhada horripilante respectivamente. Trata-se da
modo geral, o imobilismo, mesmo móvel, segue o seu curso e fluxo. mesma gargalhada do início de Barão Olavo. Se antes ela nos intro-
Essa apatia nos indicaria que na verdade estamos no lado triste da duziu ao protagonista aqui, ao cobrir a escuridão, nos mostra, com
cidade? Se este não é o lado alegre, qual seria? O lado em que mora humor, que o horror está para além daquela criatura fictícia ou de
o Barão? qualquer representação. O horror, definitivamente, não está no hor-
ror (13). Em outras palavras, o sentimento de horror percebido no
Enquadrado em contra-plongée, Guará se encontra no meio
momento presente é maior que o horror-gênero.
110 Estevão de Pinho Garcia audiovisual revolucionário 111

O horror, em La familia..., como a chegada de Hallewyn assim cinematográfico e sim a um clichê ou estereótipo extraído do coti-
o comprova, não estava nele. Como consequência, tampouco estava diano latino-americano: o político populista. Este, apesar de ser um
no cavaleiro de O chicote e o corpo ou em qualquer outro filme de referente “real”, não deixa de carregar elementos postiços: a peruca.
horror. O horror é a mansão burguesa, isto é, a própria Nação Argen- Conforme havíamos observado, Hallewyn é fruto de uma mixagem
tina. Hallewyn, ao ser finalmente revelado, não é nenhum monstro. entre referências políticas e referências artísticas. Nele estão reuni-
O personagem-título parece ser um político de cidade pequena que, dos Juan Domingo Perón, o protagonista homônimo da peça de Ghel-
com alegria, é recebido por seus eleitores. Sua caracterização é clara- derode, e o Kurt Menliff de O chicote e o corpo. Apesar disso, quando
mente cômica e até mesmo grotesca: bigodinho, peruca desalinhada o personagem-título aparece, as referências artísticas são eclipsadas
e terno meio surrado. A elegância não o acompanha. Tampouco os pela referência política principal. A sua chegada é televisionada: a
“bons modos” ou as regras de etiqueta à mesa. Hallewyn come um família a assiste pela televisão e, na cena da recepção, uma voz over
“típico churrasco criollo” com extrema voracidade e toma vinho pelo semelhante à de um repórter a narra eloquentemente. Hallewyn é
gargalo. O político pertence ao povo e com ele sente-se em casa. o político populista exilado que chega na mansão-país para deses-
O seu carisma e magnetismo pessoal são imbatíveis: o submundo o pero do Pai-presidente atualmente em exercício. O elo entre eles é
admira sinceramente. Se o Pai é o líder incontestável dos “de dentro”, o corpo do ator que os interpreta. Parece-nos nítido que a escolha
Hallewyn é quem lidera os “de fora”. Com a chegada do político, a do mesmo ator para interpretar os dois papéis não foi fortuita. La
oposição entre Pai/Hallewyn torna-se ainda mais evidente: temos a familia... não se identifica com nenhum dos dois. O presente, assim
autoridade conservadora e repressora de um lado e o carisma bona- como o filme, é pouco iluminado. Um futuro, que seria iluminado
chão do outro. O ditador versus o populista (14). pelo retorno hipotético do velho líder carismático, não se concretiza.
Se entre o ditador e o populista o filme prefere ficar sem nenhum,
No entanto, essa oposição pode também significar as duas
isso não quer dizer que ele os enxerga como equivalentes. O primeiro
faces de uma mesma moeda. Tanto o Pai quanto Hallewyn são in-
e todos os seus asseclas são monstruosos e nefastos.
terpretados pelo mesmo ator, Osvaldo de la Vega. Esse dado é ca-
muflado pela forma como os personagens são caracterizados. O Quando o Pai, o Noivo e o casal integrado levam a Filha para a
personagem do Pai é calvo e fortemente maquiado. Sua maquiagem mesa de sacrifício, o que escutamos na banda sonora é a Marcha de
se assemelha à do cinema silencioso de uma maneira geral e particu- la libertad (15), o hino da autodenominada Revolución Libertadora,
larmente à utilizada nos filmes expressionistas. A sua figura em si se que derrubou o governo constitucional de Perón em 1955. Apesar
conecta ao cinema e singularmente a um cinema por definição estili- de a música não ser diegética, os personagens a cantam. A narrati-
zado. Por outro lado, Hallewyn não está maquiado, e sim ao natural. va associa ideologicamente os integrantes da família e o movimento
A sua caracterização não se referencia diretamente a nenhum clichê militar que realizou o golpe e instituiu a proscrição do peronismo.
112 Estevão de Pinho Garcia audiovisual revolucionário 113

Os personagens, ao cantarem a marcha militar, a carregam para o podres. No espaço “de fora” os integrantes do submundo, sem Hal-
campo diegético e concordam com a associação. Ocorre uma regula- lewyn por perto, tiram as fantasias e se revelam atores. A ficção se
gem na relação entre a narrativa e o contexto político argentino, que finaliza. Juntos, os atores abandonam o estúdio cinematográfico e o
nesse momento se faz ainda mais explícita, completando assim a ale- deixam vazio. Foram eles encarar o horror natural do mundo “real”?
goria. Esta, em sua ação de se completar, reafirma e potencializa sua
configuração notadamente didática. Aquela família, simplesmente, é
Considerações finais
o que de mais reacionário tomou conta do país após a deposição de
Perón. Enquanto torturam e traspassam a Filha com a lança, os per-
sonagens esbravejam em prol da pátria. Este ritual se contrasta com Tanto Barão Olavo como La familia... fornecem suas respostas
um ritual anterior, ocorrido logo após a deglutição do “típico churras- ao contexto político dos quais fazem parte por meio da necessidade
co criollo”. O cadáver da Mãe/Evita é oferecido a Hallewyn e aos mar- de se expressar a qualquer custo. Pouco importa se os gritos entra-
ginalizados do submundo. O corpo é colocado na grande mesa de nhados nos filmes sejam equivalentes a uma mensagem depositada
refeição e todos o devoram em um banquete antropofágico. A Mãe em uma garrafa que acabou de ser lançada ao mar. Da mesma forma
é absorvida, assimilada, levada ao interior e aos intestinos do povo. que a garrafa poderá flutuar décadas pelo oceano até ser encontra-
Um pouco adiante Hallewyn será devorado, sexualmente, pela Filha. da e ter sua mensagem lida por alguém, Bressane e Bejo, ao reali-
Se tal devoração foi fatal, não sabemos. O político sedutor, após o ato zarem seus filmes, pareciam ter a consciência de que eles, mesmo
sexual, cai exausto e adormece. Ainda inconsciente, ele será carrega- sem garantias de distribuição e exibição, estavam sendo lançados ao
do nos ombros pelo Filho, que o carrega da mesma forma que antes mundo. O interlocutor é o mundo, e não um público supostamen-
carregou o cadáver da Mãe. Se antes o Filho violou o corpo da Mãe/ te específico (entendido como “povo”) que precisa ser persuadido e
Evita, teria ele agora violado o corpo de Hallewyn/Perón? O corpo do com isso entrar em ação para combater em prol de um projeto con-
político tão esperado é agora depositado na escadaria da mansão. O creto, ou não, de revolução política. Este, não existe nesses filmes. O
filme de Bejo parece ser claro: Hallewyn era uma ideia ou um concei- cinema não deveria se subordinar à política, e sim a política e tudo o
to que precisava preencher um vazio de ideias e de conceitos. A ideia que existe no mundo deveria ser absorvido, deglutido e transforma-
de Hallewyn é mais forte que a própria presença física de Hallewyn. do pelo cinema, que, através de sua singular linguagem, daria a sua
Mesmo se ele desaparecer novamente, a ideia que representa ficará. resposta à sociedade. Não mais dispostos em ser porta-voz ou guia
No espaço “de dentro” o horror fica mais explícito quando, ao som das massas, os cineastas marginais e subterráneos abandonam o di-
do hino da Revolución Libertadora, o Noivo coloca a cicatriz, o Pai datismo e abraçam a ambiguidade. Se a segunda é elemento onipre-
coloca os dentes de Vampiro, a mulher do casal integrado coloca o sente, o primeiro às vezes não deixa de aparecer. Conforme observa-
vestido de noiva e o homem do casal abre um sorriso com os dentes mos, La familia... é bastante direto ao adotar a estratégia alegórica,
114 Estevão de Pinho Garcia audiovisual revolucionário 115

diferentemente de Barão Olavo, que preferiu se servir de alusões e familia... (novembro de 1971), a Argentina estava sob o comando do
analogias de forma menos explícita. Em ambos a reflexividade é valo- general Alejandro Agustín Lanusse (1971-1973), terceiro presidente
militar após o golpe de 1966.
rizada, isto é, o cinema precisa se voltar para o seu próprio processo
(7) A mansão pertencia ao pintor Eliseu Visconti (1866-1944), avô
de construção e quebrar o ilusionismo naturalista característico das do cineasta Eliseu Visconti Cavallero, amigo de Bressane. Trata-se de
estéticas hegemônicas. Nesse mergulho e desmergulho no universo uma casa ateliê feita sob encomenda e que seguia os moldes dos
do cinema, não por acaso o gênero escolhido para ter a sua maqui- ateliês dos pintores do século XIX. Era uma arquitetura pensada para
ser banhada pela luz, ou melhor, trata-se de uma arquitetura da luz.
naria desmontada e revelada foi o filme de horror. Bressane incorpora as possibilidades de iluminação natural de sua
locação e realiza o seu primeiro filme colorido. A quase totalidade
das cenas é diurna e todos os espaços externos da casa parecem ter
sido explorados. Inclusive as cenas filmadas em seus interiores de-
Notas monstram que foram pensadas a partir da relação de cada ambiente
(1) Esses cineastas e vertentes não se conheceram porque, ao con- com a luminosidade exterior. Deste modo, apesar de se relacionar
trário do que aconteceu com o Nuevo Cine Latinoamericano, não se diretamente com o gênero do horror, Barão Olavo pode ser conside-
constituiu em seu entorno uma rede composta por festivais, revistas rado um filme solar.
de cinema e críticos que poderiam ter propiciado uma integração ou (8) Após a morte de Evita por conta de um câncer no útero em 26
conexão. de junho de 1952, seu corpo foi embalsamado e exposto à visitação
(2) Não é o propósito deste capítulo examinar cada uma dessas ver- pública. No decorrer do golpe de Estado perpetrado pela Revolução
tentes separadamente, tampouco analisar o seu surgimento e as Libertadora que derrubou Perón em 1955, o corpo de Evita foi rou-
polêmicas travadas no interior de suas respectivas cinematografias. bado do salão da Confederación General de los Trabajadores (CGT) e
Para estudos com essa intenção ver Ramos (1987; 2018); España enterrado clandestinamente em um túmulo não identificado no Ce-
(2005); Oubiña (2011); Wolkowiks (2015) e Garcia (2018). mitério Monumental de Milão, Itália.

(3) Produtora criada pelos cineastas Júlio Bressane e Rogério Sgan- (9) Em 1970 os Montoneros sequestram e julgam o ex-presidente Pe-
zerla e pela atriz Helena Ignes em janeiro de 1970. Em cinco meses dro Aramburu, condenando-o a morte por traição à pátria. Logo após
de existência, essa ação entre amigos produziu seis longas – três de assassinarem o ditador, propõem um acordo com o então presidente
Bressane e três de Sganzerla – e após essa aventura todos os envolvi- general Lanusse a respeito de uma troca de cadáveres, o do ex-presi-
dos partiram para o exílio. dente em troca ao de Evita. O corpo de Evita foi então desenterrado
da tumba clandestina que se encontrava em Milão e devolvido a Pe-
(4) O filme foi restaurado pela retrospectiva Júlio Bressane: cinema rón em Madri em 1971.
inocente realizada no Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Ja-
neiro em 2002. (10) Evita, após sua morte, foi representada em filmes institucionais
do governo peronista, em materiais gráficos de propaganda e em
(5) Entre esses podemos citar a tese de Wolkoviks (2015) sobre o santinhos distribuídos ao povo, de maneira bastante similar à Virgem
Cine Subterráneo e a dissertação de Esteves (2012) sobre a Belair. Maria. No mesmo ano de sua morte, recebeu do Congresso Nacional
a distinção de “chefe espiritual” da Nação Argentina.
(6) Em 1970, o Brasil tinha como presidente o general Emilio Garras-
tazu Médici (1969-1974), terceiro presidente do regime militar ins- (11) Chamado assim nos créditos iniciais por formar uma unidade e
taurado no país com o golpe de 1964. Na época das filmagens de La nunca aparecerem separadamente, esse casal, cujo grau de paren-
116 Estevão de Pinho Garcia audiovisual revolucionário 117

tesco com a família desconhecemos, pertence à ala mais conserva- Janeiro, 2012.
dora da mansão.
CARROL, Noel. A filosofia do horror ou os paradoxos do coração.
(12) É perceptível a influência da antropofagia oswaldiana. Oswald Campinas: Papirus, 1999.
de Andrade é uma referência constante na produção da Belair e se
manteve em filmes posteriores de Bressane e Sganzerla. ESPAÑA, Claudio. Cine subterráneo. La complicidad de la estética con
la política in ESPAÑA, Claudio (Org.). Cine argentino: modernidad y
(13) O pico Dedo de Deus fica nos limites do Parque Nacional da Ser- vanguardias 1957-1983. Vol. II. Buenos Aires: Fondo Nacional de las
ra dos órgãos, localizado na Serra do Mar. O pico tem 1.692 metros Artes, 2005.
de altitude e sua formação se assemelha a um dedo indicador apon-
tado para o céu. ESTEVES, Leonardo. Belair: faces de um sonho experimental de in-
dústria cinematográfica. 2012. Dissertação (Mestrado) – Pós-Gradua-
(14) Frase dita por Bressane no filme Horror Palace Hotel (Jairo Fer- ção em Artes Visuais. Escola de Belas Artes, Universidade Federal do
reira, Brasil, 1978). Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012.
(15) Lembramos que a mesma oposição já havia aparecido em Ter- FAVA, Fernanda Andrade. A fábula, o tempo e o jogo: cotejos entre Ci-
ra em transe (Glauber Rocha, Brasil, 1967) através das figuras do di- nema Marginal, Grupo de los Cinco e Cine Subterráneo (1968-1971).
tador Porfírio Diaz e do político populista interiorano Felipe Vieira. 2017. Dissertação (mestrado) – Pós-graduação em multimeios. Insti-
Cabe indicar que a caracterização (o bigode, o cabelo e as roupas) tuto de Artes, Universidade de Campinas, Campinas, 2017.
de Hallewyn lembra muito a do personagem interpretado por José
Lewgoy. Se no filme de Bejo Hallewyn é remetido a Perón, nos parece GARCIA, Estevão de Pinho. Belair e Cam: surtos experimentais clan-
pertinente recordar que no filme de Glauber o governador Vieira era destinos nos cinemas brasileiro e argentino. In: AMANCIO, Tunico.
remetido a João Goulart. Argentina-Brasil no cinema: diálogos. Niterói: Editora da UFF, 2014.

(16) Essa é a letra: “En lo alto la mirada. Luchemos por la Patria re- GARCIA, Estevão de Pinho. Belair e Cine subterráneo: o cinema mo-
dimida. El arma sobre el brazo. La voz de la esperanza amanecida. / derno pós-1968 no Brasil e na Argentina. 2018. Tese (Doutorado em
Que el sol sobre tu frente. Alumbre tu coraje camarada. Ya el brazo Meios e Processos Audiovisuais) – Escola de Comunicações e Artes,
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gentino de los años setenta. Tese de Doutorado. Facultad de Filosofía
Adriano Medeiros da Rocha17
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16 Para citar corretamente este capítulo, utilize a seguinte forma:


ROCHA, Adriano Medeiros da. Representações de um revolucionário uruguaio:
trajetória e reflexos cinematográficos de José Alberto Mujica. In: ROCHA, Adria-
no Medeiros da Rocha; LAIA, Evandro José Medeiros (Orgs.). audiovisual revolu-
cionário. São Paulo: Editora dos Frades, 2021.
17 Cineasta, professor de cinema, TV e linguagem audiovisual do curso de
Comunicação Social-Jornalismo da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP);
diretor, roteirista e apresentador do programa de TV Veredas; diretor da série
de TV Mutatis Mutandis: à procura do saber – ambos produzidos através da TV
UFOP; Doutor em Artes/cinema pela Escola de Belas Artes da Universidade Fede-
ral de Minas Gerais e Departamento de Audiovisual da Universitat Autònoma de
Barcelona. Desenvolve pesquisas científicas na linha Criação e análise da imagem
e do som. Entre suas publicações estão os livros Cinejornalismo Brasileiro (2008) e
Videorrelações (2012). Membro do grupo de pesquisa Laboratório Mídia@rte, da
EBA-UFMG. Boa parte das produções audiovisuais orientadas pelo docente na
UFOP estão disponíveis no site audiovisual.ufop.br. E-mail profissional: adriano-
medeiros@ufop.edu.br.
audiovisual revolucionário 121

Respirando filmes, escavando uma memória revo-


lucionária

A proposta deste texto é direcionar um olhar analítico e


sensível sobre a representação cinematográfica do revolucionário
uruguaio José Alberto Mujica, o Pepe. Para este desafio foram in-
terpretadas duas imagens cinematográficas reveladoras deste pro-
tagonista: o filme de ficção Uma noite de 12 anos (2018, direção de
Álvaro Brechner) e o filme documentário El Pepe: uma vida suprema
(2020, direção de Emir Kusturica).

Mesmo entendendo as diferenciações possíveis entre estes


dois gêneros, sua aproximação parece pertinente, instigante e até
mesmo desafiadora para esta investigação. Buscou-se entender
como este combatente da ditadura militar no Uruguai foi constituído
e representado cinematograficamente. Assim, foram estabelecidos
pontos de aproximação e diálogo entre as duas narrativas, descor-
tinando recortes e formas diferenciadas de perceber o mesmo pro-
tagonista revolucionário, no sentido da ousadia e da possibilidade
de renovação de padrões estabelecidos, especialmente nos campos
político e social. Em alguma medida, este texto trata sobre o imagi-
nário cinematográfico de dois autores de cinema e suas respectivas
obras, que desempenham um importante papel em diversas discus-
sões culturais, históricas e ideológicas sobre as últimas décadas. Para
desvendar parte desse imaginário foi importante descobrir e descor-
tinar algumas das principais relações existentes entre suas temáticas,
escolhas estéticas e suas próprias visões de mundo.
122 Adriano Medeiros da Rocha audiovisual revolucionário 123

Desde este momento inicial é importante salientar que não Refletindo sobre a primeira categoria, que expõe os instru-
há o desejo ou objetivo de iluminar o período de ditadura militar no mentos de descrição, optou-se por não se desenvolver a decompo-
Uruguai ou mesmo a mais recente consolidação de sua democracia. sição plano a plano nas obras como um todo. Esse procedimento foi
Esta seria uma tarefa improvável para um locus tão restrito e con- efetivado somente em cenas ou sequências consideradas vitais para
ciso como este. Mesmo apresentando alguns elementos históricos o entendimento da participação deste revolucionário nas referidas
dos períodos retratados nos filmes, será mantido o direcionamento narrativas. Além disso, buscou-se seguir o cuidado sugerido por Au-
para as características fundadoras e chaves interpretativas suscitadas mont e Marie aos elementos interpretativos obtidos a partir da ban-
na construção das representações fílmicas de José Alberto Mujica. da sonora e suas relações com a imagem.
A partir de agora, ao adentrar no universo deste personagem, ele
Uma decomposição plano a plano contribui,
será convocado textualmente de uma maneira mais próxima, apenas por definição, para perpetuar o privilégio
como Pepe. Essa característica também será adotada para citar os unanimemente (e muitas vezes inconsciente-
mente) concedido à imagem. A banda sonora
outros revolucionários que compartilham com ele o protagonismo é muito mais contínua, em certo sentido, do
que a banda de imagem – ou pelo menos as
no filme Uma noite de 12 anos.
transições sonoras efetuam-se de modo intei-
ramente diverso da “mudança de plano”. (AU-
Para a constituição de um método de análise para esta pesqui- MONT; MARIE, 2009, p. 37)
sa levou-se em conta, inicialmente, alguns dos instrumentos propos-
tos por Jacques Aumont e Michel Marie (2009). Assim, este estudo Conjuntamente ao olhar minucioso sobre a trajetória deste
de caso utiliza basicamente três categorias: instrumentos descritivos, protagonista nas narrativas fílmicas, também tentou-se remontar o
instrumentos citacionais e instrumentos documentais. perfil construtor do próprio personagem, observando-se suas prin-
cipais características físicas, sociais e psicológicas, bem como o meio
No caso da primeira categoria, o objetivo era o de descrever
em que ele propõe a ação. Em diálogo com o espaço da ação tam-
unidades narrativas maiores ou menores, de acordo com a sugestão
bém foram percebidas as relações temporais que estão envolvidas
interpretativa entendida daquele trecho ou ainda a análise descri-
com as narrativas fílmicas. Afinal, o tempo da história criada pode ser
tiva mais profunda de determinada imagem, cena e sequência ou
bem diferente do tempo cronológico no qual se delimita o enredo.
fragmento da banda sonora. Já a partir dos instrumentos citacionais,
Ainda nesta análise, foram observadas diversas questões relativas ao
buscou-se a construção de um estado intermediário e o exame analí-
sentido narrativo, sentido dos significantes visuais e sonoros e tam-
tico, porém, conservando-se mais próximo da “letra” do filme. A ter-
bém do sentido ideológico.
ceira categoria utilizada, os instrumentos documentais, diz respeito
à inclusão de informações provenientes de fontes externas ao filme, Francesco Casetti e Federico di Chio (1998) defendem que
como reportagens sobre a obra em algum veículo de comunicação. a análise fílmica não é simplesmente o deciframento de um texto,
124 Adriano Medeiros da Rocha audiovisual revolucionário 125

mas também a exposição e valoração de um modo próprio de apro- recriação. Em sua dimensão poética, o modelo pragmático primaria
ximar-se do cinema. Os autores alertam que a análise fílmica não pelo sentido da liberdade criativa.
possui uma disciplina precisa nem um trajeto puramente teórico. “En
El modelo pragmático es la representación de
la práctica de análisis ciertos pasos se efectúan sólo tácitamente: el un tipo particular de organización discursiva,
recuento final los pone entre paréntesis o los engloba en fases veci- que incluye a la intervención y a la creatividad
entre sus componentes y relaciones esen-
nas”. (CASETTI; CHIO, 1998, p. 63). Eles ressaltam que o analista de ciales. Tienes, por tanto, una irrenunciable
filmes deve responder às questões da análise usando também seus vocación práctica. En cuanto tal, su problema
es saber cómo compatibilizar el grado exigib-
próprios critérios de intervenção e sempre deixando uma margem le de construcción formalizada que requiere
para os elementos subjetivos e para a criatividade. todo modelo, con su carácter inventivo, poé-
tico y pragmático. […]. Es, además, un modelo
“icónico-analógico”, es decir, el acto narra-
El objeto-filme, por ello, como es de suponer,
tivo, que constituye la “cosa representada”
forzará algunas elecciones, requerirá procedi-
por el modelo, puede ser analizado como un
mientos concretos, pero nunca limitará u obs-
modo intuitivo y, sin embargo, las distancias
taculizará las acciones del analista. Sabiendo
y dimensiones cuantitativas de las relaciones
esto, podemos por fin afrontar el film sin nin-
pueden ser calculadas con una relativa preci-
gún tipo de temor reverencial. (CASETTI; CHIO,
sión, hasta el punto de que es posible aplicar
1998, p. 38)
a su objeto el análisis de contenido. (JIMÉNEZ,
1994, p. 52).
Ampliando a discussão a respeito da análise da narrativa fílmi-
ca, Jesús Garcia Jiménez (1994) apresenta três modelos de análise: Contudo, antes de mirar-se as obras propriamente ditas, é im-
fenomenológico, estruturalista e pragmático. Dentro dessa tríade, portante perceber e registrar algumas mudanças no caminho percor-
este último modelo parece ser o mais apropriado para a presente rido pelo cinema desenvolvido no Uruguai nos últimos anos.
investigação. Jiménez caracteriza tal modelo pragmático a partir de
seu caráter indutivo. Nele, o ponto de partida seria a análise dos tex- El cine hecho en Uruguay
tos narrativos audiovisuais para intuir as regras que presidiriam sua
construção. Assim, a maior tarefa do analista seria a de refazer o pro-
No começo dos anos 2000, o cinema uruguaio se renovou e
cesso criativo e reviver a experiência poética da criação audiovisual.
ganhou força. Um dos marcos deste período foi o desenvolvimento
O autor evidencia o ecletismo deste modelo que assume as de alguns filmes como: 25 Watts (2001, direção de Juan Pablo Re-
contribuições positivas de cada modelo anterior e trata de superar bella, Pablo Stoll), En la puta vida (2001, direção de Beatriz Flores
suas limitações. Nele, pode-se observar uma clara preferência pelas Silva) e El viaje hacia el mar (2003, direção de Guillhermo Casanova).
condições de produção do discurso e pelos efeitos de sua recepção, Essas películas ecoaram o desejo de produção autoral dentro do Uru-
126 Adriano Medeiros da Rocha audiovisual revolucionário 127

guai, que continuou crescendo e estimulou a criação da Ley de Cine Através de ações como esta, o país já começa a apresentar dados
18.284, instituída em 2008. Pela recente normativa se criou o Insti- significativos e estimulantes.
tuto de Cine y Audiovisual Uruguayo (ICAU). Através de sua diretoria
Esto impulsó a la industria uruguaya cinema-
o instituto promove: tográfica a adquirir una fuerte proyección
internacional y, en solo 10 años, obtuvo 200
a) el fomento, incentivo y estímulo de la pro- premios y distinciones internacionales. En el
ducción, coproducción, distribución y exhibi- último año, más de 15 películas de ficción y
ción de obras y proyectos cinematográficos y documental uruguayas resultaron selecciona-
audiovisuales; das en festivales y mercados internacionales.
b) la estimulación de acciones e iniciativas que Se estima que en Uruguay el sector audiovi-
contribuyan al desarrollo de la cultura cinema- sual genera 1.500 puestos de trabajos direc-
tográfica; tos, otros 3.500 indirectos y alcanza US$ 270
millones de facturación.19
c) el monitoreo del sector audiovisual;
d) la implementación y ejecución de conve- Contudo, analisando o mercado interno ainda relativamente
nios;
pequeno, o crítico Nicolás Azalbert acredita que o cinema produzi-
e) el fomento de la formación audiovisual y la
generación de condiciones para una adecuada do no Uruguai apresenta um tipo de “rebeldía de un David contra
distribución nacional.18 dos Goliats”. Esta afirmação, feita durante entrevista para a revista
Cahiers du Cinéma, ganhou destaque na explicação de entrada so-
Gradualmente, os profissionais do país estão se aprimorando bre o cinema uruguaio na página web uruguayaudiovisual.com, que
e o poder público vem buscando estimular as produções em territó- representa uma associação com o objetivo de consolidar a indústria
rio nacional. Já nos primeiros meses de 2021, o Instituto de Cine y audiovisual no país. Aqui, a frase de Azalbert e a própria atividade
Audiovisual Uruguayo abriu convocatória disponibilizando recursos cinematográfica no Uruguai serão interpretadas a partir do viés da
para financiamento em cinco categorias desta linguagem: longa- resistência, do seu potencial revolucionário.
-metragem de ficção, documentário, curta-metragem de ficção, sé-
rie documental e conteúdos experimentais. Para um país de pouco Neste caminho é importante perceber que os filmes tomados
mais de três milhões e meio de habitantes, também sofrendo com a como objetos de análise foram filmados no Uruguai, porém, ainda
pandemia de covid-19, esta parece ser uma iniciativa incentivadora. com equipes multinacionais. Em Uma noite de 12 anos, mesmo unin-
do Espanha, França e Argentina, o diretor uruguaio Alvaro Brechner
buscou dar seu tom à produção. Em 2019, a obra chegou a ganhar vá-
18 Objetivos da Dirección del Cine y Audiovosual Nacional (ICAU)
retirados do site https://icau.mec.gub.uy/innovaportal/v/4605/3/mecweb/
que-es-icau?breadid=null&3colid=1108 19 Disponível em: https://uruguayaudiovisual.com/cine-uruguayo/
128 Adriano Medeiros da Rocha audiovisual revolucionário 129

rias premiações. Entre elas, o prêmio Goya de melhor roteiro adapta- Entre seus objetivos fundantes estavam o nacionalismo antioligár-
do e o Grande Prêmio do Cinema Brasileiro como melhor longa-me- quico, o socialismo, além da integração e da solidariedade latino-a-
tragem ibero-americano. No caso de El Pepe: uma vida suprema, o mericana.
diretor sérvio Emir Kusturica montou uma equipe técnica sul-ameri-
Realizando ações que ridicularizavam as forças
cana para captação de imagens e sons. Pela relativa proximidade ma- policiais pela sua ineficiência, os tupamaros
rítima entre Montevidéu e Buenos Aires, Kusturica acabou optando efetuavam expropriações de bancos, finan-
ceiras e casas de penhora, ações de apropria-
por constituir sua equipe com vários profissionais argentinos. Além ção de documentos comprometedores sobre
dos aspectos pessoais envolvidos, essa decisão também pode apon- sonegação fiscal ou ganhos ilegais de grupos
econômicos e expropriações massivas de ali-
tar para a grande influência que o cinema argentino e seus protago- mentos que eram repartidos nas comunidades
nistas e profissionais ainda têm sobre a cinematografia embrionada mais carentes. Nessa fase, evitava-se o uso da
violência, embora já ocorresse o sequestro de
e que busca se consolidar no território uruguaio. autoridades governamentais, que eram de-
tidas nos cárceles del Pueblo, com finalidade
política ou para obtenção de informação. (PA-
DRÓS, 2005, pág. 291)
Mirando o horizonte sem capuz...
Inicialmente, a estratégia tupamara de evitar o confronto aber-
O filme Uma noite de 12 anos foi baseado no livro Memorias to com a polícia mostrava-se positiva, uma vez que poupava a vida
del Calabozo, publicado em 1989. A obra literária apresenta o teste- de companheiros que estariam diretamente envolvidos em ações
munho dos dois companheiros de Pepe a respeito dos anos que pas- armadas e também contribuía para acumular apoio de parcelas da
saram encarcerados. Essa referência é importante porque na película população que já acompanhavam suas ações com alguma simpatia.
de Alvaro Brechner o protagonismo é algo compartilhado entre esses Eles entendiam a luta armada como resultado do “esgotamento” e
fiéis revolucionários: Pepe, Mauricio Rosencof, o Ruso, e Eleuterio da “ineficiência” das formas tradicionais da política legal. Além disso,
Fernández Huidobro, o Ñato. Os três militantes integravam o grupo sem usar armas, o grupo buscava expor a ineficiência e o despreparo
revolucionário Tupamaros. do dispositivo de segurança, informação e repressão.

Historicamente, dentro da esquerda uruguaia, a principal Como partidários das teses foquistas, ou seja, da teoria re-
organização armada foi o Movimiento de Libertación Nacional-Tu- volucionária inspirada por Che Guevara e desenvolvida em grande
pamaros. De acordo com Enrique Serra Padrós (2005), a organização parte por Régis Debray, o grupo Tupamaro e sua consciência revolu-
se tornou pública em dezembro de 1966. O MLN centrou a ação nas cionária foi crescendo como onda contagiante. Padrós registra que,
denúncias de corrupção política, como no caso da Financieira Monty. em 1968, a organização teria decolado, a partir de ações vitoriosas
130 Adriano Medeiros da Rocha audiovisual revolucionário 131

e do acúmulo da simpatia de alguns setores da população uruguaia. Em Uma noite de 12 anos, as atenções se voltam para um re-
Assim, teriam também ampliado sua qualidade técnica, operativa, corte temporal no qual Pepe, Ruso e Nãto já estão detidos. Nos pri-
organizacional e influência política. meiros instantes que ganham a tela, mesmo algemados e com olhos
vendados, dentro do caminhão do exército uruguaio em pleno des-
Três formas principais de operações são iden-
tificadas na fase “Robin Hood”, geralmente locamento, eles conseguem se comunicar verbalmente, no intuito de
mescladas entre si: 1º) operações políticas descobrir quais companheiros ainda estão vivos e presentes naquele
de denúncia de corrupção; 2º) operações de
demonstração de força, que reforçavam a espaço. Estaria ali representado o elemento da coletividade, tão im-
percepção sobre o poder de fogo da organiza- portante para o movimento revolucionário tupamaro, mas também
ção; 3º) operações de expropriação financei-
ra destinadas à sustentação da infraestrutura para a luta pela sobrevivência desses três militantes nos anos poste-
clandestina e dos quadros imersos nessa rede, riores dentro do cárcere. As paredes da primeira cela na qual Pepe
bem como para a aquisição de armas, equipa-
mentos e veículos. Também havia operações é preso no filme já dizem muito do que lhes seria imposto. Através
de devassa fiscal e financeira, onde o MLN de riscos ordenados naquelas superfícies verticais Pepe lê: “Los que
sequestrava e tornava públicos documentos
comprometedores e de empresas que sone- aquí entráis, perded toda a esperanza”. Analisando este aviso rabis-
gavam impostos, praticavam fraudes e corrup-
ção em altas esferas administrativas. Ações
cado de forma improvisada na parede é possível perceber a película
que expunham mazelas da corrupção nas altas sobre a ótica da resiliência, ou seja, da capacidade emocional pela
esferas, sem utilização de violência física, ge-
ravam repercussões muito favoráveis ao movi- qual Pepe, Ruso e Ñato terão de empregar para resistir a toda sé-
mento. (PADRÓS, 2005, pág. 293) rie de eventos traumáticos que se sucederão. Apesar disso, através
de várias chaves interpretativas, pode-se afirmar que esta película
A evolução da organização tornou inevitáveis os confrontos não quer apenas tratar sobre ditadura ou tortura na América Lati-
cada vez mais violentos contra a polícia. O crescimento da violência na. Acredita-se que, antes de tudo, é um filme sobre presos políticos
acabou culminando na perda da simpatia e admiração que o MLN torturados pelo aparelho repressivo militar estatal do Uruguai que
havia conseguido em parte significativa da população. Neste contex- sobreviveram!
to, o aparelho repressor do governo ditador uruguaio ganhou força e
conseguiu, em 1973, prender vários dos “históricos” líderes do MLN. Em Uma noite de 12 anos, Pepe é aquele que menos conse-
É neste ponto que começa a narrativa fílmica de Alvaro Brechner. gue se comunicar dentro do trio de companheiros encarcerados.
Todo o contexto apontado anteriormente é muito importante para se Neste sentido, pode-se imaginar que não é tarefa simples ou fácil
entender de onde vem Pepe, em qual conjuntura ele está integrado, para o espectador montar a complexidade que existe na formação
uma vez que o filme opta por omitir ou trabalhar tudo isso de forma histórica e no entorno político e ideológico deste personagem. Um
extremamente sintética, através de poucos caracteres iniciais. dos primeiros fatores que atravessa o potencial de comunicabilidade
132 Adriano Medeiros da Rocha audiovisual revolucionário 133

de Pepe lhe é entregue de forma escrita. Trata-se de uma resolução companheiros de luta são transferidos por inúmeros espaços de en-
do comando geral do exército uruguaio destacando: “Estos tipos no carceramento. Para os mais detalhistas, é possível contar nove des-
pueden hablar con nadie. E nadie puede hablar com ellos. Son sedi- locamentos para mudança de cárcere. Alguns poderiam até pensar
ciosos subversivos. Traidores a la patria. Son muy peligrosos. Tienen a obra que se trata de um road-movie. Normalmente, esses espaços
un alto poder de convencimiento. El contacto con ellos tiene que ser são sujos, úmidos, empoeirados, insalubres. As diferentes caracteri-
mínimo”. É exatamente por isso que cada palavra e o seu respectivo zações dos cárceres também revelam uma linha de degradação, co-
uso é tão raro e, ao mesmo tempo, tão decisivo para o personagem. meçando com uma cela relativamente comum, indo para uma estru-
tura profunda e circular, até chegar a um cubículo no subsolo de uma
Isolado dos outros dois revolucionários, Pepe é vigiado diu-
mina. Em cada um desses espaços, os três são obrigados a suportar
turnamente e sofre variados tipos de tortura pelos militares. Retro-
mais arbitrariedades, abusos, escárnios, violências, torturas, absur-
cedendo um pouco no tempo é possível recordar que, com a Revo-
dos! Através das características desses espaços e ações é possível
lução Industrial do século XIX, acontece a junção e evolução de um
refletir sobre o próprio lugar da humanidade. Henrique Serra Padrós
conjunto de técnicas que Foucault chama de Vigilância Hierárquica
(2012) lembra que essa terrível modalidade repressiva da ditadura
(1987, p. 165). Nela, verdadeiros observatórios do coletivo humano
uruguaia ficou conhecida como “Política de Reféns”.
foram constituídos, afim de não somente vigiar como também criar
um aparato de poder indestrutível ao arbítrio do vigiado. Foucault Na prática, consistiu na imposição de rigoroso
isolamento de diversas lideranças e quadros
cita o acampamento militar como o modelo de aplicação ideal para a
destacados da organização guerrilheira (ho-
Vigilância Hierárquica: mens e mulheres), detidos e transformados
em reféns. Estes, enquanto tais, foram sub-
Esses “observatórios” têm um modelo qua- metidos a terríveis condições de sobrevivên-
se ideal: o acampamento militar. É a cidade cia, em locais desconhecidos (sofrendo rodízio
apressada e artificial, que se constróis e re- permanente por estabelecimentos militares
modela quase à vontade; é o ápice de um po- de todo o país). Durante anos, estes presos
der que deve ter ainda mais intensidade, mas políticos, tratados como “inimigos internos”
também mais discrição, por se exercer sobre muito particulares, sofreram uma experiência
homens e armas. No acampamento perfeito, inédita de política estatal carcerária, em ter-
todo o poder seria exercido somente pelo jogo mos de Cone Sul. (PADRÓS, 2012, pág. 13)
de uma vigilância exata; e cada olhar seria
uma peça no funcionamento global do poder.
O velho e tradicional plano quadrado foi consi-
O gradativo envolvimento emocional do espectador com
deravelmente afinado de acordo com inúme- Pepe, Ruso e Ñato vai se construindo especialmente pela experiência
ros esquemas. (FOUCAULT, 1987, p. 165)
sensorial proposta pelo diretor. Muitas vezes, a fotografia do filme
coloca o espectador não apenas muito próximo da violência, mas
Dentro desta perspectiva da vigilância constante, Pepe e seus
134 Adriano Medeiros da Rocha audiovisual revolucionário 135

também vivendo as angústias daqueles personagens através de câ- nário, envolvendo-o naquela trama psicológica. Planos de detalhes
meras subjetivas ou ainda pelo uso de planos de detalhe naqueles dos ouvidos e dos olhos de Pepe são evidenciados. Logo depois, a
minúsculos calabouços. Para exemplificar essa postura, basta lem- montagem coloca o espectador à procura de onde vêm esses sons,
brar a sequência em que a câmera está dentro do capuz, durante a através de mais uma câmera subjetiva de Pepe, que já é visto ator-
tortura de afogamento. Assim, a angústia não é apenas de Pepe, mas mentado por tudo ao seu redor, pela violência na qual está sendo
do espectador também. submetido e pelo próprio isolamento total e ausência de comunica-
bilidade.
Normalmente, Pepe é visto sujo, cabeludo, barbudo e deitado
no chão de seu cativeiro, quase sem forças. Além da constante vio- Conforme Leonor Areal (2003), diferentemente do modelo
lência sofrida, sua postura corporal vai refletindo também a fome, o de herói clássico que tende para o ideal e que apresenta um cará-
frio, a ausência de cuidados médicos e de condições mínimas de hi- ter íntegro e benévolo, o herói pós-romântico moderno assume suas
giene. Com tantos fatores contrários, Pepe vai demonstrando claros fraquezas e vive em conflito interior e em crise com o meio social.
sinais de degradação. Primeiramente ela é corpórea, vista através do Seu comportamento e suas ações devem funcionar como modelos
seu aspecto físico cada vez mais definhado. Logo após é perceptível de identificação e/ou projeção para o público atual. Assim, ele se tor-
uma degradação ainda mais profunda: a psicológica. Um dos espa- na bem mais realista e, normalmente, promove reflexões sobre os
ços de confinamento com grande afetação para Pepe nesta segunda problemas contemporâneos. Por conta desse posicionamento, Areal
vertente é uma espécie de silo de armazenagem de alimentos, aban- pensa que esse tipo de herói deve ser designado como anti-herói.
donado e transformado em calabouço. O piso é de terra. A poeira
Esse tipo de herói, ou melhor, anti-herói, agora desmistificado,
impregnada naquele ambiente é tamanha que pode ser observada
é problemático e tem, em si, a ausência de algumas virtudes daquele
se movimentando pela lente da câmera. A Luz natural que chega a
herói do passado, como a honestidade e a perseverança. Contudo,
entrar naquele ambiente reproduz grades tanto na parede suja como
ele não deve ser confundido com o vilão, uma vez que não é o an-
no próprio rosto de Pepe. Assim, o encarceramento também é evi-
tagonista, mas, sim, uma espécie de herói ao contrário. Sua reação
denciado pelas luzes e sombras. O som diegético de pombos é catali-
sado naquele ambiente. Ele já não sabe mais informações de Ruso ou ao descompasso com o ambiente e com a comunidade ao seu redor
Ñato. Uma pequena formiga é a única companhia de Pepe. Seu olhar pode ser demonstrada de várias formas, como, por exemplo, através
é direcionado e fixo nela. do delírio, da utopia ou fantasia.

Pepe começa a ouvir vozes e sons abstratos. Esses sons de Areal aponta, ainda, para dois tipos de anti-herói: aquele que
cunho psicológico se misturam ao barulho dos pombos que habitam entra em conflito com o mundo exterior e aquele cujo conflito se dá
o telhado daquele espaço. A câmera chicoteia e circula o revolucio- consigo mesmo e, a partir daí, segue até sua própria anulação. Neste
136 Adriano Medeiros da Rocha audiovisual revolucionário 137

segundo tipo, a solidão é um fator marcante. Pepe aglutina caracte- ônibus, até uma prisão em um local ermo, cercado por uma floresta,
rísticas desses dois tipos de conflito. para buscar informações de Pepe. Mesmo sendo idosa, ela precisa
aguardar de pé, do lado de fora do espaço militar, em um dia de sol
Ainda preso no silo, o calabouço interno de Pepe apresenta
a pino. A partir de uma elipse, percebe-se que muito tempo trans-
marcas mais contundentes. Ele passa a andar rápido e em círculo
correu naquela espera. O dia já deu lugar à noite e, agora, ela ain-
dentro daquele espaço. Parece bem mais atormentado pelas vozes,
da enfrenta uma chuva torrencial. Contudo, aquela mãe abnegada
delirante. Algumas frases e sons ecoam daquele lugar para sua men-
ainda está de pé, firme e inflexível na busca pelo filho. Ela é símbolo
te. A câmera é instável, refletindo a própria situação de Pepe, que
vivo da resistência ao sistema, à ditadura. Com uma mentora forte
segura firme sua cabeça com as duas mãos, tentando, desespera-
como essa, o espectador pode imaginar o quanto o exemplo dela
damente, tampar seus ouvidos com um pedaço de osso de frango.
teria influenciado o filho no engajamento político, na determinação
Seu olhar é vago, impreciso, temeroso. Um som agudo é ouvido de
e na perseverança.
forma perene durante toda a sequência. Entre os seus delírios, Pepe
começa a visualizar o vulto de sua mãe em uma das aberturas gra- O esperado encontro dos dois acontece somente um pouco
deadas daquele espaço de confinamento. Ele chega a falar com essa mais tarde na película. Depois de mais algumas transferências, Pepe
mãe imaginária. Dentro deste delírio que aponta para a busca do re- passa a tentar sobreviver num ambiente de subsolo, em celas tão
conhecido amparo materno, ela diz que trouxe para o filho itens que pequenas e baixas que ele e seus companheiros nem sequer con-
ele preza muito, como erva, doce de leite, e sua camisa favorita. seguem ficar em pé. Como mais um tipo de punição, tortura e sub-
Em compasso com os delírios de Pepe, Padrós (2012) afirma missão, obrigatoriamente seus corpos precisam se manter curvados
que o enlouquecimento dos presos políticos foi um resultado preten- o tempo todo. Dos três, Pepe se mostra mais afetado naquele lugar.
dido pelo regime ditatorial uruguaio. “Fobias, esquizofrenias, tenta- Ele está muito barbudo, cabeludo. Tem dedos e unhas com crostas
tivas de suicídio e suicídios resultaram dessa prática deliberada de de sujeira acumuladas. Fragmentos de falas e sons ecoam em seu
destruição da psique humana dos confinados naquelas condições. pensamento. Memórias perturbadoras ligadas a momentos de tortu-
Dentro dessa lógica, cabe ressaltar, mais uma vez, que o sistema ra são vistas e ouvidas como um pulsante tormento em sua cabeça.
penitenciário foi montado com o objetivo de aniquilar, indiretamen- Esses elementos causam reações exaltadas de Pepe no minúsculo es-
te, os detidos, os quais continuavam sendo considerados e tratados paço. De forma desesperada, ele tenta impedir esses pensamentos,
como inimigos até a morte.” (PADRÓS, 2012) batendo sua cabeça no teto daquele lugar claustrofóbico. Berra repe-
tidamente com todas as forças: “No voy a pensar”! É exatamente isso
Por outro lado, a mãe verdadeira de Pepe é obrigada a fazer
que a ditadura militar deseja fazer com quem ousa pensar de forma
uma grande peregrinação para descobrir informações sobre o pa-
diferente dos seus preceitos e normas.
radeiro do filho. Em uma sequência marcante, ela vai, sozinha, de
138 Adriano Medeiros da Rocha audiovisual revolucionário 139

Neste ponto do filme de Alvaro Brechner é possível promover Depois de anos de luta para reencontrar o filho, a mãe de Pepe,
um diálogo com as reflexões propostas por Michael Pollak (1989). enfim, consegue autorização para vê-lo. O encontro se dá em um am-
No texto Memória, esquecimento, silêncio, o autor afirma que a me- biente administrativo militar. Vê-se um desses militares retirando de
mória se integra como tentativas de reforçar sentimentos de per- uma sacola os objetos que ela trouxe para o filho. Um desses itens
tencimento e fronteiras sociais entre coletividades de tamanhos ou chama a atenção: um penico rosa que aponta marcas de uso.
perspectivas diferentes, como partidos, sindicatos, e estabelecendo
Antes do filho ser conduzido àquele lugar, ela está sentada,
uma aproximação com o filme, o próprio Movimento Revolucionário
séria, compenetrada, aguardando aquele esperado momento. Ele se
Tupamaro. Neste caso, a afetação perturbadora imposta pela memó-
aproxima encapuzado e carregado por militares. Quando esses agen-
ria das torturas sofridas por Pepe também poderia contribuir para
tes retiram o capuz de Pepe, sua mãe faz questão de mudar a expres-
manter o sentimento de coesão para com o seu grupo, para reforçar
são de seriedade do rosto e se apresentar sorridente e receptiva ao
o seu lugar respectivo, mas também para não deixar esquecer aque-
filho. De forma inusitada, Pepe revela à sua mãe que está atormen-
las oposições irredutíveis.
tado. Ele se mostra inquieto, tenso, apreensivo. Mal consegue olhar
Existem nas lembranças de uns e de outros diretamente para ela. Diz que os militares fizeram um ataque com
zonas de sombra, silêncios, “não ditos”. As
sons e ultrassons e colocaram um tipo de voz e antena dentro de sua
fronteiras desses silêncios e “não ditos” com
o esquecimento definitivo e o reprimido in- cabeça. Quando os devaneios de Pepe começam a se agravar neste
consciente não são evidentemente estanques
e estão em perpétuo deslocamento. [...] Ain- diálogo, ela interfere de forma decisiva. Com a postura de uma mãe
da que quase sempre acreditem que o tempo combativa (no melhor sentido desta expressão), ela se levanta e bate
trabalha a seu favor” e que “o esquecimento
e o perdão se instalam com o tempo”, os do- forte na mesa ordenando que ele pare e se cale. Apesar de ser possí-
minantes frequentemente são levados a re- vel observar muitos militares trabalhando no fundo daquela mesma
conhecer, demasiado tarde e com pesar, que
o intervalo pode contribuir para reforçar a sala, nenhum deles se atreve a intervir contra a força daquela mãe. O
amargura, o ressentimento e o ódio dos domi- diálogo travado entre os dois neste momento é a mais pura potência
nados, que se exprimem então com os gritos
da contraviolência. (POLLAK, 1989, pág. 8-9) poética de resistência, de luta, de encorajamento.

- “A mí tenés que escuchar. Yo soy tu madre.


No caso de Pepe, esse grito da contraviolência precisou ecoar, Ellos te quieren volver loco y si siguen así lo
primeiramente, pela boca de outra pessoa. Sem dúvida, essa é uma van a lograr. Me entendes”?
das sequências mais simbólicas da obra: o reencontro da mãe persis- - “Mamá”...
tente com o filho aprisionado. - “Mamá una mierda! Mamá una mierda! Es-
cuchame bien. Escúchame lo que te tengo que
140 Adriano Medeiros da Rocha audiovisual revolucionário 141

decir. Vos tenés que resistir, resistir, de cual- ra profissional, quando ele é levado até o consultório de uma mé-
quer manera, no importa lo que passe, vos re-
sití y no dejes que te maten”. dica que tenta diagnosticar seus pensamentos traumatizantes. Na
sequência, quando ela começa a indagá-lo sobre sua alimentação
- “No sé hacerlo”.
e condições de descanso, Pepe não consegue se expressar. Quem o
- “Sí que sabés. Los únicos derrotados son los
que bajan los brazos. Vas a salir de esto y vas a antecede, intercepta e responde por ele é o militar que o acompa-
seguir adelante y nadie, nadie te va a sacar lo nha. Percebendo a interferência direta, a médica pede ao soldado
que llevas dentro”.20
que busque um pouco de água para ela. Aproximando novamente
o filme do texto de Michael Pollak, podemos recordar que o silêncio
Como na maior parte das revoluções sociais, havia no discurso
tem razões bastante complexas. Para poder relatar seus sofrimentos,
daquela mãe uma urgência, no sentido de lembrar a seu filho que é
uma pessoa precisa, antes de mais nada, encontrar uma escuta, es-
preciso viver, é preciso sempre remendar-se para não se deixar ma-
pecialmente uma escuta sensível.
tar, retomar a dignidade que ainda resta. Claramente influenciado
por essa potente conversa com sua mãe, Pepe acaba promovendo A fronteira entre o dizível e o indizível, o con-
uma atitude desafiadora às autoridades repressivas, usando sua au- fessável e o inconfessável, separa, em nossos
exemplos, uma memória coletiva subterrânea
dição exacerbada. Em uma sequência na qual ele acompanha um da sociedade civil dominada ou de grupos es-
pronunciamento de militares de dentro da sua cela, resolve interferir pecíficos, de uma memória coletiva organiza-
da que resume a imagem que uma sociedade
naquele ato, gritando inúmeras vezes para chamar a atenção daque- majoritária ou o Estado desejam passar e im-
por. Distinguir entre conjunturas favoráveis ou
le coletivo. Ele berra solicitando a entrega das ervas e do penico rosa
desfavoráveis às memórias marginalizadas é
deixados por sua mãe na última visita. Acusa todos de ladrões e cha- de saída reconhecer a que ponto o presente
colore o passado. (POLLAK, 1989, pág. 8)
ma a atenção para si. O sargento que vai tentar detê-lo tem segredos
que Pepe, a partir de sua audição sensível, já descobriu e deixa claro
Quando médica e paciente estão a sós, ela pode dialogar com
que pretende revelar, em detalhes, àquela multidão. Com medo da
Pepe de forma mais próxima e atenciosa. Pepe diz a ela que precisa
possível repercussão, o sargento acaba propondo um acordo para a
parar de pensar. A médica resolve contar para ele um episódio de sua
entrega dos objetos solicitados. A potência libertadora exaltada por
própria história, um momento no qual ela quase desistiu de sua pro-
aquela dedicada mãe começa a ser reencontrada dentro de Pepe.
fissão, mas, que, depois, decidiu seguir em frente. Antes de o solda-
Ainda durante seu percurso como prisioneiro, Pepe recebe a do voltar, ela busca motivar Pepe, pedindo que ele se agarre no que
ajuda de outra mulher. Dessa vez, o auxílio vem de uma atmosfe- puder para seguir. Com a chegada do militar, a médica ainda solicita
que Pepe assine o diagnóstico da consulta. Novamente perto dele,
20 Fragmento da fala da mãe de Pepe extraído do filme Uma noite de 12
anos. ela lhe promete que vai conseguir algo para ele ler e escrever e ainda
142 Adriano Medeiros da Rocha audiovisual revolucionário 143

faz questão de afirmar, olhando nos olhos daquele paciente que pa- da por Ñato. Ele é conduzido por militares até o pátio interno de um
rece admirar: “Aguante. Sobreviva. Falta poco”. Mais uma vez a voz espaço de detenção. Vestido com uniforme de número 787 e vigiado
da resistência ecoa pelo pensamento do “histórico” revolucionário. a certa distância por mais militares, ele observa as inúmeras aber-
turas gradeadas de onde outros presos o reconhecem e começam a
Na situação de encarceramento, é possível ver Pepe esboçar
gritar seu nome com euforia. Simbolicamente, ele levanta seu braço
alguma felicidade apenas em momentos muito restritos. O primeiro
direito com o punho fechado. Os gritos se intensificam e ele simula
deles acontece quando ele está deitado no chão daquele silo aban-
que está tocando com os pés uma imaginária bola de futebol. Seu
donado transformado em cativeiro. Como é noite de Natal, os sol-
rosto resplandece de alegria. Revigorado, ele começa a driblar joga-
dados que vigiam Pepe, Ruso e Ñato lançam alguns foguetes para
dores também imaginários e a correr pelo pátio como um verdadei-
comemorar aquela data. Da pequena abertura gradeada, Pepe con-
ro atacante de futebol. Presos e mesmo sem ver esta ação, Pepe e
segue visualizar parte daqueles fogos. Observa-se um singelo meio
Ruso conseguem ouvir e entender aquela movimentação e euforia.
sorriso de contentamento em seus lábios. O segundo momento no
Também se alegram e manifestam a torcida por aquela jogada, por
qual o personagem demonstra algum tipo de alegria é quando Ruso
aquele mágico instante no qual a imaginação superava a barbárie.
consegue autorização para que os três possam se ver, mantendo uma
Neste momento, a banda sonora do filme utiliza sons de toques em
relativa distância, no pátio de um de seus locais de prisão. A cena é
bola para catalisar ainda mais a sugestão dada pelos outros elemen-
repleta de beleza, poesia e força. Mesmo de longe, os companheiros
tos da narrativa a este processo imagético. Estimulado pelos gritos
se olham cuidadosamente, sorriem um para o outro como se esti-
daquela torcida, Ñato chuta com força a bola imaginária e suscita a
vessem se abraçando bem forte, renovando suas amizades e come-
comemoração de gol em todos aqueles outros encarcerados. De ma-
morando as vidas uns dos outros. Se veem fisicamente unidos no-
neira cômica e débil, os militares que estão vigiando Ñato se viram
vamente, relativamente próximos. Aos poucos, deixam seus corpos
tentando acompanhar o pseudomovimento daquela bola imaginária
caírem ao chão banhados por aquele sol que não presenciavam há e sua nova localização. De dentro de sua cela, Pepe acompanha os
muito tempo. O vento que toca, delicadamente, o rosto e os cabe- sons daquele desfecho hilário com um sorriso aberto. O gol de Ñato
los de cada um deles também é destacado, tanto pelas imagens de também é dele e de todos os demais companheiros revolucionários.
planos próximos como pela expressão de contentamento estampada Estariam comemorando um resquício de esperança. A genialidade
em suas faces. Sutilezas importantes para potencializar a luta pela cativante de Ñato e o gol emblemático das resistências promoveram
sobrevivência. um orgulho triunfante naqueles companheiros e uma reafirmação de
O instante no qual observa-se Pepe mais entusiasmado, ainda que o imaginário é um espaço que pode unir pessoas, independen-
dentro do cárcere, trata-se de uma imagética sequência protagoniza- temente do quão frágeis ou debilitadas estejam. Afinal, todo esforço
é importante nas mentes que estão lutando para não serem quebra-
144 Adriano Medeiros da Rocha audiovisual revolucionário 145

das por inteiro. Aquele coletivo de revolucionários precisava seguir Em diálogo com a manutenção da esperança, mesmo com
jogando, nem que fosse somente em sua imaginação. todas as adversidades, desdobra-se uma sequência extremamente
simbólica que retrata os presos políticos sendo libertados. O espec-
Na concepção do filósofo e doutor em Educação, Maurício Ab-
tador acompanha Pepe saindo do complexo prisional sozinho. Seus
dalla, manter a esperança é a mais sublime atitude revolucionária.
dois companheiros mais próximos de luta são liberados em outra
Segundo ele,
leva de prisioneiros. Ele caminha de forma lenta e serena pelos cor-
“Esperança” é a atitude subjetiva de crer além redores e pátio daquele espaço. Sai sem olhar para trás ou mesmo
do que está dado pela configuração do pre- para os soldados que abrem o portão daquele famigerado espaço.
sente. É esperar além das certezas e teimar
em superar as inclinações mais pessimistas. Com bandeiras do Uruguai hasteadas em bambus e inúmeros
Esperar em tempos favoráveis não é ter espe- cartazes de boas-vindas, um grande coletivo de familiares e amigos
rança. A esperança só floresce e se mostra em
tempos de adversidade. espera a chegada dos libertos em um ponto da estrada ainda cercado
pelo exército daquele país. Quem está na espera se mostra ansioso.
[...] A esperança cria a utopia e nenhum pro-
jeto humano que transformou o mundo foi Entre aquelas pessoas está a mãe de Pepe, compenetrada e espe-
possível sem utopia. Dos primórdios da epo- rançosa.
peia do Homo sapiens aos nossos dias, tudo
foi obra da teimosia do ser humano em não se
contentar apenas em esperar o que já estava De forma paralela à saída de Pepe, também é possível acom-
disposto, mas ter a postura ativa da esperança panhar seus dois amigos de luta em outro transporte. Durante o tra-
no ainda-não.
jeto, muitas pessoas na rua comemoram a libertação do grupo, que
A esperança é a única atitude que distingue, passa dentro do velho ônibus azul. As janelas do veículo vão sendo
na essência, o(a) verdadeiro(a) revolucioná-
rio(a). Não é a indignação, não é a vontade abertas pelos revolucionários. Eles querem saudar aquelas pessoas
imediata de lutar, não é a atitude de denúncia que também gritam por liberdade, querem respirar ar puro, querem
e a revolta. Embora importantes, tais posturas
podem ser compartilhadas também por quem ver cada detalhe daquela paisagem escondida há tanto tempo. Com
não é revolucionário. A esperança, não. rostos e braços do lado de fora, Ñato e Ruso comemoram, sorriem.
Só cultiva a esperança em tempos sombrios Deixam o gracioso vento tocar seus corpos novamente. De dentro do
os(as) que estão realmente dispostos a trans-
ônibus, a vista do rio refletindo o sol é contagiante. Quando o veículo
formar o mundo de forma radical. Ter espe-
rança é ter a arma mais poderosa na luta con- chega próximo da multidão que os aguarda, os revolucionários liber-
tra a tirania e a opressão.21 tos são recebidos com aplausos.
21 Fragmentos do artigo A esperança é revolucionária, de Mauricio Abdal-
Analisando o conceito de liberdade através dos escritos de
la. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/603337-a-esperanca-e-
-revolucionaria-artigo-de-mauricio-abdalla. Hanna Arendt, a pesquisadora Auda Aparecida Ramos (2007) argu-
146 Adriano Medeiros da Rocha audiovisual revolucionário 147

menta que a liberdade só existe onde os outros estão presentes. Nes- Amor y militancia: la poesía de la vida
te sentido, haveria a necessidade do reconhecimento público de que
todos, como cidadãos, dispõem da liberdade de se opor à ação dos
O documentário El Pepe: uma vida suprema (2018) sintetiza
outros e às tentativas de dominação por parte de terceiros.
uma difícil tarefa: como retratar um dos mais simpáticos líderes polí-
Assim, a própria liberdade, embora sendo in- ticos das últimas décadas, sem se aproximar do risco de mitificá-lo?
dividual, está atrelada à presença constitutiva
e positiva do outro numa relação de reciproci- Outra questão intrigante é que esse registro cinematográfico não foi
dade. Ser livre significa estar protegido pela lei feito por cineastas latino-americanos, e sim pelo premiado sérvio
numa forma da vida social, na qual o reconhe-
cimento da liberdade é possível porque todos Emir Kusturica.
pertencem a uma sociedade que tem como
valor social a proteção das ações dos sujeitos, O próprio qualificador da vida de Pepe que o título carrega já
e que reconhecem a legitimidade destas ações
e se abstêm de interferências. (RAMOS, 2007,
diz muito sobre a obra e o posicionamento de seu diretor. Em uma
pág. 61) tradução literal a expressão supremo pode ser entendida como aci-
ma de qualquer coisa, divino, pertencente a Deus. Antes de tudo,
Voltando à ação da sequência fílmica, muitos revolucionários trata-se de um documentário afetivo, em que Emir Kusturica, tanto
vão chegando e sendo recebidos, carinhosamente, por suas famílias. de maneira observatória como participativa, deixa transparecer o
Pepe não é um dos primeiros, para apreensão de sua mãe e do es- apreço que tem por aquele revolucionário. Neste sentido, há a cons-
pectador. Ele vem caminhando lentamente. Afinal, é um esforço de trução de uma representação fílmica bastante parcial e até idealizada
mais de doze anos! Quando os dois enfim se encontram, mãe e filho deste ator social.
se tocam, se abraçam de forma sensível e demorada. Parece ser o
O filme é iniciado com Pepe preparando erva-mate. Ele enche
abraço que boa parte dos espectadores da obra gostaria de dar em
sua cuia, enquanto Kusturica o observa atentamente e acende um
Pepe, Ñato e Ruso. As lágrimas brotam em Pepe e sua mãe. É uma
charuto. Depois de provar a bebida, Pepe dá a própria cuia e bomba
demonstração de carinho que não quer acabar. Simbolicamente, a
para o cineasta também tomar. Ambos trocam um sorriso alongado e
mentora de Pepe recolhe do chão o penico que levou para o filho na
afetuoso, que pode sugerir proximidade, admiração, amizade.
prisão. O objeto foi ressignificado também de uma maneira revolu-
cionária por Pepe: ele o transformou em um tipo vaso de flor impro- Diferentemente de Uma noite de 12 anos, a base temporal
visado para sua mãe. Mais uma vez, a inventividade e a sensibilidade deste filme trabalha em um recorte temporal menor: o ano de 2015.
superam a aridez e a brutalidade. São algumas décadas após o momento de desfecho do longa de fic-
ção, no qual este mesmo protagonista voltava à liberdade. No docu-
mentário, Pepe já está mais velho, mais experiente e vivido. Fisica-
148 Adriano Medeiros da Rocha audiovisual revolucionário 149

mente, ele ganhou alguns bons quilinhos em relação ao personagem me documentário baseado, especialmente, em um dia da vida deste
da obra ficcional analisada, tem cabelos brancos e bigode encorpado. homem singular. Contudo, é importante notar que não é uma data
Em alguns trechos do filme, ele mesmo diz se sentir velho, relatando, qualquer. Trata-se de reconstruir 1º de março de 2015: o último dia
inclusive, que sofre da próstata. do líder revolucionário na presidência do Uruguai.

A base da conversa afetuosa com Kusturica acontece na mo- Para credibilizar Pepe como líder político de destaque, o ci-
desta chácara em que Pepe vive, nos arredores de Montevidéu. A neasta sérvio recorre ao uso de imagens de arquivo, evidenciando
casa é muito simples, com pintura desgastada externa e internamen- momentos simbólicos, como sua posse como presidente do Uruguai,
te e cobertura com telhas de zinco. O mato mais alto em volta da encontros de Pepe com vários outros líderes mundiais, além de um
casa demonstra certa dificuldade na manutenção de todo aquele fragmento de discurso de Pepe para uma grande multidão de eleito-
espaço. É preciso lembrar um detalhe: naquele momento Pepe é o res e admiradores. Apesar do uso quase protocolar dessas imagens,
presidente do Uruguai. O despojamento e a simplicidade deste ator Kusturica investe mais forte na intimidade de seu ator social. É possí-
social são atribuídos, por ele próprio, a um tipo de herança que ga- vel exemplificar essa tendência através da sequência na qual Pepe é
nhou dos anos de cárcere. visto deitado, descansando em sua cama. O registro sugere a simula-
ção do ato. Porém, mesmo assim, demonstra a intimidade consegui-
Una influencia fueram los anos que estuvimos
presos. Y que estuvimos presos com mucha da pelo cineasta com o protagonista da obra. Afinal, este primeiro e
soledad. Y para matenermos vivos tuvimos sua equipe estão no quarto de Pepe, gravando seu momento íntimo
que pensar e re-pensar mucho”. I le debemos
mucho a esos anos que pasamos en soledad. de descanso.
[...] Mucho de lo que hoy te digo nación en
aquel tiempo de soledad en la cárcel. No se- Aos pés da cama de Pepe, o espectador conhece sua cadelinha
ría quien soy. Sería mas fútil, más frívolo, más
superficial. Más existista, más de corto plazo. preta, a Manuela, que o observa bem de perto. Ele chega a brincar,
Más triunfador. Probablemente más embebi- dizendo diretamente para a câmera/espectador que, em todo seu
do del éxito. Más con pose de estátua. Mas
todo eso, que no soy yo, tal vez seria se no governo, a companheira mais fiel que ele tem é essa cadela. A fra-
hubiera vivido esos diez y pico de anos de pro- se, aparentemente despretensiosa, pode sugerir desconfiança e um
funda soledad. 22
entendimento muito aprofundado da complexa teia de relações no
mundo da política que um líder como ele necessita participar. No seu
Como um tipo de reflexo do próprio protagonista, a estraté-
último dia como presidente do Uruguai, Pepe é mostrado em tarefas
gia de Kusturica também é aparentemente simples: construir o fil-
de um cotidiano mais particular, ambientado principalmente em sua
22 Fragmento da fala de Pepe extraído do filme documentário El Pepe:
propriedade rural, já um pouco desgastada pelo tempo. Lá, ele mon-
uma vida suprema. ta seu trator e cultiva, sozinho, a terra.
150 Adriano Medeiros da Rocha audiovisual revolucionário 151

Em uma das saídas combinadas previamente com a equipe do bastante polêmica para um presidente de Estado: “Es la cosa más
filme, eles vão até o Punta Carreras Shopping. Ali, Pepe relembra um linda entrar a um banco com una 45 así... Todo el mundo te respeta”.
pedaço de dor na história do Uruguai: como aquele mesmo espaço
Como presidente do Uruguai, a memória de Pepe parece ser
era usado no período do estado de exceção. A câmera caminha jun-
bastante seletiva. Em uma visita ao canteiro de obras para casas po-
to com ele, enquanto o próprio protagonista vai explicando o que
pulares, dedicadas aos “pobres mais pobres do país”, Pepe acaba
mudou naquele lugar, que, anteriormente, era uma prisão. Ele vai
discutindo com um senhor em um tipo de cafeteria sobre a suposta
recordando a época na qual viveu como preso político por ali e vai
influência do Fundo Monetário Internacional dentro do país. O ho-
evidenciando as transformações identificadas. É importante salien-
mem não identificado no filme o acusa de seguir as regras daquela
tar que enquanto no filme Uma noite de 12 anos Pepe é registrado
instituição. O documentário faz registro da construção de 1.500 ca-
quase sempre isolado e sem comunicação até mesmo com os com-
sas populares e do aporte de 70% do saldo de Pepe no projeto ha-
panheiros de luta, no documentário vemos este protagonista na po-
bitacional. Com demonstração do típico sangue quente latino, Pepe
sição de figura pública reconhecida, em contato direto com inúmeras
encerra a discussão com uma frase taxativa para aquele cidadão dis-
pessoas. Neste sentido, vários transeuntes se aproximam de Pepe
cordante: “Eres um cagón de mierda”. Pouco tempo depois, a mon-
pelo saguão do shopping e pedem para tirar fotos com ele. O então tagem coloca o cineasta o observando explicar, de forma evasiva, o
presidente uruguaio parece ser bastante popular, como um tipo de que havia ocorrido: “Ni me acuerdo. Porque yo, de las cosas que no
celebridade aclamada por onde passa. Todos ao seu redor estão sor- me convienen no me acuerdo”. Vale ressaltar que este é um compor-
ridentes e manifestam certo tipo de admiração por ele. tamento extremamente diferente daquele que o espectador presen-
Contudo, no decorrer do documentário, há a desmistificação ciou no longa Uma noite de 12 anos. Na ficção, ele era atormentado
do arquétipo de herói clássico que poderia ser atribuído a ele em por fragmentos de sons e imagens das torturas que passou. Assim,
alguns momentos da obra. Um deles acontece em uma sequência não tinha controle direto sobre sua memória, sendo, muitas vezes,
na qual Pepe rememora uma ação revolucionária de “expropriación”. subjugado por ela.
Ela foi realizada na cidade de Pando, no segundo aniversário da mor- Mesmo com esta diferença, é interessante notar como a pre-
te de Che Guevara, como um tipo de homenagem armada ao revo- sença feminina, representada por uma mulher forte ao lado de Pepe,
lucionário marxista que se tornou símbolo da Revolução Cubana. A é demarcada nas duas obras. Enquanto na ficção a mãe do revolu-
equipe do filme leva Pepe para a frente da agência bancária de Pando cionário é fundamental para que ele sobreviva a todas pressões e
– onde a expropriação ocorreu anos atrás. Revendo aquele lugar de torturas, na obra de Kusturica é Lucía Topolansk que assume este
perto, o ator social também revisita suas memórias e conta, empol- papel de estímulo na vida de Pepe. Afinal, a dupla uniu duas utopias:
gado, detalhes da ação para Kusturica. Uma de suas frases parece a do amor e a da militância. Para evidenciar o relacionamento do
152 Adriano Medeiros da Rocha audiovisual revolucionário 153

casal, o cineasta sueco aposta em uma sequência bastante intimista deste protagonista em uma correlação direta ao aspecto da paterni-
e pessoal, na qual Pepe fala sobre “La poesia de la vida”, enquanto dade. Em outro momento do filme, sentado na área externa de sua
vemos fotos dele e da esposa no cultivo de flores. O próprio Pepe chácara, junto com Kusturica, Pepe arregaça as mangas da camisa e
confessa a importância de Lucía Topolansk em sua vida: “Y en la in- continua a refletir sobre seu passado, as perdas e o momento em que
seguridad, creo que a los hombres se les multiplica más la necessida- vive agora: “Destruir una pared es rápido y fácil. Ahora, construir una
de del amor”. Na sequência, ele ainda afirma que a companheira é pared no es rápido y fácil. Pero para aprender esto hay que envejecer.
seu refúgio das tensões. Durante vários trechos do documentário os Cuando somos jóvenes, vemos que es fácil romper. Mucho más difícil
dois manifestam esta relação de cumplicidade, tanto no amor como es volver a levantar”.23 Dentro de uma chave interpretativa também
nas causas políticas e sociais. Mesmo estando exercendo as funções intimista é possível dizer que ele fala tanto do seu país, de suas lutas
respectivas de presidente e senadora do Uruguai, os dois vivem de políticas, como também de si próprio.
maneira austera naquela chácara. Não há espaço para o luxo, o exa-
Exatamente por não ter tido filhos, Pepe relata que decidiu
gero ou o desperdício. Pepe é representado dentro de certo voto de
fazer uma fundação educativa com sua casa, chácara e campo. Após
simplicidade, com seu desapego aos bens materiais e uma vida dedi-
inaugurá-la com seus vizinhos, ele leva um grupo jovens para ensi-
cada ao bem comum.
nar-lhes como plantar alimentos e flores para a subsistência. Vale
Apesar do forte laço afetivo e do companheirismo demons- lembrar que ele trabalhou no cultivo de flores em paralelo a suas
trado entre os dois, esse amor não teria tido espaço e vez para ren- atividades tanto durante a guerrilha como no período em que esteve
der-lhes descendência. Esse subtema ganha foco e força em um dos no parlamento e na Presidência. Enquanto aqueles jovens começam,
trechos do diálogo entre Pepe e o próprio cineasta, quando este úl- ainda tímidos, a plantar as mudas, ouvimos, em off, uma reflexão
timo o interpela sobre arrependimento. Coçando algumas vezes a um tanto conformista e até contraditória de Pepe: “Tengo que ense-
nuca e fechando os olhos – sugerindo certo incômodo –, o presiden- narles aos pobres el oficio de las flores. Porque en este mundo todo
te revolucionário responde que se arrepende de não ter tido filhos. crece. Y siempre va haber gente muy rica. Entoces, si producen flores
Ele diz que, junto com sua companheira, eles se dedicaram a mudar para venderle a los ricos, les va bien. Les sacan um poco de riqueza”.
o mundo. Assim, não tiveram tempo para ter filhos. Para enfatizar Teria o tempo, o envelhecimento e a experiência política minimizado
ainda mais esta ausência sentida por Pepe, a fotografia o mostra o espírito revolucionário deste importante líder?
em planos mais abertos, caminhando pela chácara. Sozinho em um
Um momento síntese do filme pode ser visto na simbólica via-
cenário amplo e captado a partir de planos gerais, ele coloca água
gem de Pepe em seu fusca azul-claro, placa SÃO 1653, da sua cháca-
nas mudas de flores e verduras que cultiva naquele espaço. O vento
balança forte as flores e plantas ao redor e a câmera demonstra ins-
23 Fragmento da fala de Pepe extraído do filme documentário El Pepe:
tabilidade. Apesar de muito popular, as imagens sugerem a solidão uma vida suprema.
154 Adriano Medeiros da Rocha audiovisual revolucionário 155

ra, nos arredores de Montevidéu, até a praça do palácio de governo, ximação artística com o tango. Segundo o próprio Pepe, o estilo mu-
onde passará a faixa presidencial. A câmera do filme acompanha o sical é pura nostalgia: do que se teve e do que não se teve. “Es uma
presidente uruguaio em lugar privilegiado, de maneira muito íntima, cosa para gente que haya aprendido a perder en la vida. Hay que
dentro do automóvel, no banco de trás. De forma bem diferente de haber tenido algunas derrotas para que a uno le entre a gustar el
diversos outros líderes mundiais, Pepe vai na frente do veículo, sen- tango”. Em diálogo com esse movimento reflexivo, observa-se, nos
tado no banco do carona, ao lado do motorista. Durante o trajeto, últimos instantes da obra fílmica, Pepe e Lúcia chegando a um sim-
o carro para em um posto de combustível para abastecer. O próprio ples e pequeno bar de rua para assistir a uma apresentação de um
Pepe paga a gasolina diretamente ao frentista e em dinheiro: uma cantante e dois instrumentistas. O casal parece ser familiar ao lugar,
representação fílmica que busca constituir um líder próximo, íntimo uma vez que o próprio dono do estabelecimento os recebe, trazendo
do povo que o elegeu e do seu cotidiano. para a mesa copos com bebidas, sem que eles indiquem quais seriam
seus pedidos. Como um tipo de cumplicidade e partilha de emoções,
Pelo trajeto de carro presenciam-se várias pessoas nas late-
Pepe e Lúcia se abraçam e começam a cantar e a ecoar, para todos
rais das avenidas desejando ver, cumprimentar e festejar com Pepe
presentes e para o espectador, aquele tango que lhes cativa a memó-
aquele momento. O fusca azul entra na praça do palácio de governo
ria e as “perdas”. Assim, es elas também podem ser reverberadas no
sobre os aplausos de uma grande multidão, que também aclama o
imaginário de cada pessoa que assiste ao documentário.
nome de Pepe em viva voz. O filme acompanha parte do discurso de
despedida de Pepe, exaltando, novamente, sua proximidade com o
povo uruguaio: “Se tuviera dos vidas, las gastaría enteras para ayudar Por mais histórias revolucionárias...
tus luchas. Porque es la forma más grandiosa de querer la vida, que
he podido encontrar. No me voy. Estoy llegando. Donde esté, estaré
O problema base desta pesquisa questiona e busca perceber
por ti, estaré contigo”. Como resposta, o espectador acompanha uma
quais elementos simbólicos foram utilizados para a constituição das
parte daquela multidão aplaudindo e comemorando com Pepe.
representações cinematográficas do revolucionário uruguaio José Al-
O rito de passagem é feito com despojamento. Apesar da festa berto Mujica, o Pepe, nos filmes Uma noite de 12 anos e El Pepe: uma
popular e do sentimento de dever cumprido demonstrado por Pepe vida suprema.
em relação ao seu país, a despedida da Presidência representa, no
Com relação aos procedimentos relacionados à análise fílmi-
filme, apenas um dia dentro de uma vida inteira de luta e resistên-
ca, a adoção de um modelo pragmático deveu-se, principalmente, à
cia dedicada ao Uruguai e ao seu povo – inclusive abdicando de sua
busca da arquitetura de uma pesquisa qualitativa, aberta às novas
descendência em função disso. Pensando nessa e em outras perdas
possibilidades e alternativas que estariam surgindo durante o pro-
que Pepe teria tido, o documentário termina promovendo uma apro-
156 Adriano Medeiros da Rocha audiovisual revolucionário 157

cesso. Neste sentido, os filmes selecionados foram pensados, espe- contemporâneo feito no Uruguai, e suas representações, inquieta e
cialmente, a partir de sua estrutura narrativa e do seu protagonista/ desperta futuros e cativantes desdobramentos...
ator social principal. Tais reflexões se tornaram o princípio básico das
análises fílmicas apresentadas.
Referências
É evidente que promover diálogos, aproximações e interpre- AREAL, Leonor. O herói solitário e o herói vilão: dois paradigmas de
tações dos dois modelos construtores deste personagem/ator social anti-herói em filmes portugueses de 2003. Atas do II SOPCOM, VI
LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I. Disponível em: www.bocc.ubti.pt/
e dos elementos estruturantes das duas narrativas cinematográficas areal-leonor-heroi-solitário-heroi-vilao-dois-paradigmas-anti-heroi.
de gêneros distintos foi e é uma atividade extremamente desafia- pdf.
dora. Além disso, a própria contextualização histórica e política dos AUMONT, Jacques; MARIE, Michel. A análise do filme. Lisboa: Texto
períodos registrados no Uruguai, mesmo que de forma sintética, se & Grafia, 2009.
mostrou essencial para uma compreensão mais ampla dos recortes CASETTI, Francesco; DI CHIO, Federico. Cómo analizar un film. Barce-
lona: Paidós, 1998
temporais apontados nas obras.
FILHO, Ives Gandra da Silva Martins. Reflexões sobre a liberdade. DI-
Durante este caminho investigativo, alguns conceitos eclodi- REITO PÚBLICO Nº 4 – Abr.-Maio-Jun./2004 – DOUTRINA BRASILEIRA.
ram e se mesclaram a momentos específicos da análise das obras FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: Nascimento da prisão. Petrópolis:
e contribuíram para um melhor entendimento dos processos cons- Vozes, 1987.
trutores dessas representações fílmicas de Pepe. Entre eles, pode-se JIMÉNEZ, Jesús García. Narrativa Audiovisual. Madri: Cátedra, 1994.
destacar: vigilância, memória, pertencimento, esperança, liberdade, PADRÓS, Enrique Serra. Como el Uruguay no hay... Terror de Estado
entre outros. e segurança nacional Uruguai (1968-1985): Do Pachecato à ditadura
civil-militar. 2005. Tese. (Doutorado em História) – Instituto de Filoso-
Nessas últimas linhas é importante reafirmar que esta pesqui- fia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
Porto Alegre, 2005.
sa não tem o desejo de produzir nenhum tipo de conhecimento to-
talizador. Ao contrário, deseja contribuir para o surgimento de novos PADRÓS, Enrique Serra. Enterrados vivos: a prisão política na dita-
dura uruguaia e o caso dos reféns. Espaço Plural, vol. XIII, núm. 27,
trabalhos que também busquem analisar representações fílmicas de julio-diciembre, 2012, Universidade Estadual do Oeste do Paraná,
sujeitos revolucionários, que, como Pepe, marcaram suas trajetórias Marechal Cândido Rondon, Brasil.
com resistência e luta abnegada em prol de um bem comum, de um POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. In: Estudos His-
ideal, da liberdade em seu sentido mais amplo. tóricos, Rio de Janeiro, vol. 2, nº 3, 1989. p. 3-15.
RAMOS, Auda Aparecida de. Liberdade em Hannah Arendt: o milagre
Assim, a partir do olhar cuidadoso e sensível sobre este peque- do recomeçar humano. 2007.Dissertação (Mestrado em Filosofia),
no, porém relevante extrato fílmico, é possível afirmar que o cinema Universidade Gama Filho, Rio de Janeiro, 2007.
158 Adriano Medeiros da Rocha

ROCHA, Adriano Medeiros da. A constituição do herói no cinema bra-


sileiro contemporâneo. Tese.2015. (Doutorado em Artes), Universi-
dade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2015.
VOGLER, Christopher. A jornada do escritor. Trad. Ana Mariana Ma-
chado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.
CINE URUGUAYO. Uruguay Audiovisual, 2021. Disponível em: https://
uruguayaudiovisual.com/cine-uruguayo/. Acesso em: mar. 2021.

Filmes analisados Os tempos da revolta no


El Pepe: uma vida suprema (2020, direção de Emir Kusturica) audiovisual: uma abordagem
Uma noite de 12 anos (2018, direção de Álvaro Brechner)
dos diálogos possíveis entre o
Cinema de Contagem e o rap
dos Racionais MC’s24
Cláudio Coração25

24 Para citar corretamente este capítulo, utilize a seguinte forma:


CORAÇÃO, Cláudio. Os tempos da revolta no audiovisual: uma abordagem dos
diálogos possíveis entre o Cinema de Contagem e o rap dos Racionais MC’s. In:
ROCHA, Adriano Medeiros da; LAIA, Evandro José Medeiros (Org.). audiovisual
revolucionário. São Paulo: Editora dos Frades, 2021.
25 Professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e do curso
de Jornalismo da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Doutor em Co-
municação: meios e processos audiovisuais (ECA/USP). Coordenador do Grupo
de Pesquisa “Quintais: cultura da mídia, arte e política” (CNPq-UFOP). Email:
crcorao@gmail.com.
audiovisual revolucionário 161

A potencialidade da revolta: a sublevação

Qual seria o gesto preciso para se apreender um tempo da


revolta? Ou, ainda, como o audiovisual se firmou, e firma-se, na evi-
dência de tal gesto? Não são perguntas de respostas fáceis, eviden-
temente, mas cabe aqui dizer que a ideia de insurgência no aporte
cinematográfico prevê certo desconcerto da realidade convencional,
na abordagem e testagem do real. Há vários elementos que pode-
ríamos acionar para dizer que a representação no audiovisual qua-
se sempre se manifesta, mesmo que de modo não deliberado, no
imponderável dos significados, reorientando, assim, sua “elevação
espiritual”. Talvez esteja aí, nesse desarranjo indomável, inerente
ao atributo da visualidade, a causa de identificação junto à plateia e
suas possibilidades de voos de sentido a partir disso.

Um pouco na pista da descrição feita por Deleuze (2018), a


cristalização do tempo, no cinema, especialmente a partir das pre-
missas sonoras e visuais das vanguardas estéticas do pós-Segunda
Guerra (neorrealismo italiano, nouvelle vague francesa, Cinema
Novo brasileiro), move-se por uma espécie de ruptura do significa-
do moldado pela “ação-situação-ação” ou pela “situação-ação-sita-
ção”. Com tal ruptura do clássico romanesco, a dimensão temporal,
a partir da década de 1950, passa a adquirir uma composição que se
enreda pelo desajuste do movimento lógico, convocando, com con-
sistência, imagens de revolução contra sentidos canonizados. A partir
disso, é importante frisarmos a reflexão feita por um cineasta herdei-
ro dessas premissas em torno das estéticas cinematográficas, Andrei
Tarkovski (1932-1986), sobre a temporalidade cinematográfica, na
descrição analítica que faz sobre o tempo e a memória:
162 Cláudio Coração audiovisual revolucionário 163

O tempo e a memória incorporam-se numa só Isso nos leva a uma reflexão sobre o que está suspenso e
entidade; são como os dois lados de uma me-
dalha. É por demais óbvio que, sem o tempo, latente, no presente, e no que pode se erguer, construir-se, como
a memória também não pode existir. A memó- transformação e revolução. Pensemos algumas imagens audiovisuais
ria, porém, é algo tão complexo que nenhuma
relação de todos os seus atributos seria capaz recorrentes para visualizarmos o levante das aspirações individuais
de definir a totalidade das impressões através (e, consequentemente, coletivas):
das quais ela nos afeta. A memória é um con-
ceito espiritual! (TARKOVSKI, 2010, p.64).  O choro e o riso como dispositivos de emoção;

 A perseguição e a vigília de algo que está sendo feito às es-


“Esculpir o tempo”, nesses termos, é permitir, nos parece, um
condidas;
mergulho que oriente as sensações difusas de um cotidiano tedioso, e
a edição da memória em mutação, como extensão da dimensão exis-  A sedução amorosa como peça da traição e/ou do desejo;
tencial. Assim, a primeira ideia do tempo da revolta é o possível dos  A luta pessoal como elemento de audácia e vontade;
objetos e seus usos, dos corpos em movimento, e da “humanidade”
 A briga e a luta de, e entre, campos opostos.
e sentido existencial que damos a eles. É, em larga medida, portanto,
o avesso e a complementação daquilo que Walter Benjamin esboçou Estamos no terreno das simbologias fortes, mas também de
na imagem do “anjo caído da história”, essa composição moderna suas rupturas. A história do audiovisual se confunde com as armadi-
e aterradora, da qual o cinema, desde o seu início, insere e registra lhas da sociabilidade moderna, nesse escopo. As rupturas sedimen-
como catarse, arremate, tempo. Mas voltemos ao início da conversa tam um estatuto de vocação, de vontade e de desejo do sujeito, e
e às indagações que lançamos. As subjetividades e os imaginários de também sustentam a concepção de mudanças e transformações. A
todos nós, na rotina dos dias, podem ser compreendidos pela angús- esses afetos podemos atribuir um fio em torno de uma segunda ideia
tia pessoal. Trata-se da melhor forma de se perceber o componente do tempo da revolta, compreendendo as rupturas e inflexões do pro-
da arte criadora, da força literária, das histórias sobre o tempo de cesso histórico mais os ânimos dos sujeitos, cujo gesto decisivo passa
nossas vidas. Nem tudo precisa ser aventureiro na interpretação que ser o do levante, da sublevação. A esse respeito, Didi-Huberman vai
possamos fazer acerca de nosso lugar no mundo e sobre as instâncias destacar as potencialidades ancoradas no levante como algo intrín-
sensíveis que nos circundam, mas tal angústia pessoal está disposta, seco a vitalidade:
justamente, na representação e no desenho que fazemos do tempo,
Por todos os lados, as pessoas se sublevam:
que se vincula no retorno aos grandes e pequenos traumas pessoais, potências. Mas por todos os lados, também,
via memória espiritual (conforme afirma Tarkovski), e que anuncia o constroem barragens: poderes. Ou, então,
protegem-se no topo das falésias, de onde
grande mistério do mundo, ademais. acreditam poder dominar o mar. As barragens
164 Cláudio Coração audiovisual revolucionário 165

e as falésias parecem ter sido erguidas para pertencem a um desconcerto inerente à propositura do audiovisual
conter o movimento de algo que se levanta a
partir de baixo e ameaça a ordem das coisas e seu indevassável tom revolucionário. Para fins de exemplificação,
do alto. Assim, os levantes se pareceriam com pensemos na descrição temática de três imagens de revolta juvenil,
as ondas do oceano, cada uma delas contri-
buindo para que um dia, subitamente, a bar- em três filmes de temporalidades diferentes:
ragem afunde ou a falésia desmorone. Nesse
meio-tempo, alguma coisa vai se transforman-  Zero de conduta (Zéro de Conduite, 1933, de Jean Vigo): a
do, mesmo que de modo imperceptível, con-
forme as ondas vêm. É o “imperceptível” do revolução juvenil numa escola;
futuro (DIDI-HUBERMAN, 2019, p.115).  Sem destino (Easy Rider, 1969, de Dennis Hopper): a revolu-
ção contracultural estendida a um canto melancólico;
Percebe-se que o “imperceptível do futuro” é quase sempre  The Wall (1982, de Alan Parker): a reprodução dos dois itens
essa “fraqueza” do desejo, esse gesto caído que se institui em levante anteriores resumidos como crise revolucionária.
inevitável, paradoxalmente, cuja máxima poderia ser atribuída, por
exemplo, à configuração do melodrama clássico (no seu sentido de Poderíamos ditar uma espécie de “linha evolutiva do atributo
catarse) ou à cristalização do tempo inefável (pensando as rupturas contracultural no cinema”, por meio dos três filmes, ou de algo pró-
da imagem-ação descritas por Deleuze na observação de um “novo ximo disso, sobre o componente da narrativa clássica e suas fissuras
cinema” a partir dos anos 1940). Além disso, a sublevação salien- por dento do audiovisual: como temática contrária às convenções e
ta o princípio indomável, próprio do estatuto destrutivo/criativo da instituições sociais, mas também como potencialidade estética revo-
modernidade. Diante disso, o cinema, desde a sua feição inovadora lucionária per se, se pensarmos o “tema da revolta” como a autorre-
tecnológica ficcional, principalmente a partir dos anos 1910, adquire ferência do tempo da revolta, em regimes históricos os mais variados.
e impõe o espírito radical e destrutivo nas artes, e anuncia o protó-
Partindo dessa costura da “linha evolutiva” da temática da
tipo do tempo da revolta, ou da funcionalidade calcada na “loucura”
contracultura no cinema, o pensamento de Didi-Huberman nos
sublevada; pensemos todas as afecções engendradas nos planos fe-
ajuda a visualizar as repetições de formas no audiovisual e sua re-
chados, por exemplo, das “deusas e deuses” do cinema mudo.
produção de semblante revolucionário, tanto nos temas como nas
Partindo dessa argumentação, as torrentes (peguemos o ter- demandas de sua própria configuração social e técnica. É claro que
mo de Didi-Huberman) dos gêneros cinematográficos estão inevita- aqui a questão pode estar a serviço das intenções ideológicas dos
velmente demandadas por: a) valores morais; b) estabelecimento formatos e realizadores específicos. Mas é possível enxergar, além
do registro da identificação; c) necessidade de revolução – seja ela disso, o componente revolucionário contracultural da sublevação
pessoal, seja social. É evidente, que por meio das imagens descri- como exemplo determinante da angústia pessoal. Nesse sentido de
tas anteriormente às características da “invenção do movimento”, observação, mesmo um filme mais reacionário como Rambo: pro-
166 Cláudio Coração audiovisual revolucionário 167

gramado pra matar (Rambo: First Blood, 1982), de Ted Kotcheff, o Ainda sobre a ambivalência de Tropa de Elite, em diversos mo-
desdobramento do tal impacto anticonvencional evidencia as angús- mentos Padilha dizia que, ao assistir aos filmes de Martin Scorsese
tias do personagem John Rambo, no retorno ao lar que já não existe (sobre a baixa máfia) ou de Francis Ford Coppola (sobre gângsteres),
mais. É importante acrescentar que o tema da errância está intima- teríamos o imperativo moral de nos identificar com aqueles párias.
mente relacionado à contracultura como sintoma.
Sem querer entrar nos meandros do debate sobre os jogos
Rambo é, guardadas as diferenças, tão rebelde quanto os es- de representação e sua extensa recepção crítica, podemos descre-
tudantes de Zero de Conduta e The Wall e os hippies de Sem Destino. ver, talvez, uma estética, uma terceira ideia do tempo da revolta, que
Ao voltar à terra e às instituições que lhe dão as costas, depois de lu- parece estar fincada em temporalidades esculpidas sobre e na ideia
tar na Guerra do Vietnã, choca-se com os mitos da democracia ame- firmada de levante pessoal contracultural. É nessa disposição que
ricana e seus respaldos liberalizantes, e, a partir disso, manifesta uma podemos descrever, por exemplo, o personagem Rambo associado à
reação amargurada e solitária, cujo fascínio se confunde no elogio de era Reagan; ou o personagem Capitão Nascimento, de Tropa de Eli-
uma ruptura reacionária. te, como protótipo da performance bolsonarista, vamos assim dizer.
Além disso, os mafiosos do baixo clero de filmes como Os Bons Com-
Um parêntese necessário para um diálogo.
panheiros (Goodfellas, 1990), Cassino (1995), de Martin Scorsese, na
Na ocasião do lançamento do filme Tropa de Elite (2007), o leitura dessa aproximação do atributo estético de Rambo em Tropa
diretor José Padilha teve de lidar com críticas26 que liam o filme como de Elite, podem ser vistos, na extensão da “linha evolutiva” da con-
o elogio das atitudes de justiçamento do Rio de Janeiro, sintetizadas tracultura no cinema, ancorados na crise do canto contracultural (e
pelo personagem Capitão Nascimento. Na sua autodefesa em relação sua intensa assimilação pela indústria cultural), em meio às também
às críticas, o diretor atribuía à manifestação das imagens, embaladas fraturas da sociedade estadunidense e brasileira. A respeito desses
pela crise pessoal do protagonista, o registro de um naturalismo ra- desarranjos societários específicos, a contracultura vem impor, des-
dical que apontava as mazelas e a violência da sociedade brasileira. medidamente, como em Rambo, uma outra imagem, que pode ser
Curioso notar que as bases desse “pensamento” de Tropa de Elite resumida na frase de Caetano Veloso, na ocasião da morte do astro
foram engendradas em estudos e ações marcadamente antifascistas pop estadunidense Michael Jackson: “Michael Jackson é o anjo e é o
ou progressistas: os textos do antropólogo Luiz Eduardo Soares, as demônio da indústria cultural.”27
músicas do rapper MV Bill, a ação social da CUFA (Central Única das Ou seja, o que filmes como Tropa de Elite, de Padilha, tributá-
Favelas) e de seu presidente, Celso Ataíde. rio do naturalismo contemporâneo da produção brasileira, abarcam

26 Fonte: entrevista do diretor José Padilha ao programa “Roda Viva”, da 27 Fonte: Reportagem de O Globo: “Caetano: Michael Jackson é o anjo e o
TV Cultura, em 8/10/2007. demônio da indústria cultural’’, de 30 de junho de 2009.
168 Cláudio Coração audiovisual revolucionário 169

e contemplam (de experiências exitosas como Carandiru [2003], de Ao flertar com emblemas culturais periféricos internacionais, princi-
Hector Babenco, e Cidade de Deus [2002], de Fernando Meireles e palmente a música negra norte-americana, em flerte com a música
Kátia Lund, por exemplo) é o fascínio pelo resíduo da estética da con- negra brasileira (Jorge Ben e Tim Maia, principalmente), a partir de
tracultura. Mas o anjo e o demônio da contracultura parecem ser finais dos anos 1980, o grupo tensionou a descrição da cultura brasi-
os mesmos anjo e demônio da indústria cultural. É nessa chave, es- leira tida como cordial e fincou as bases da tematização do que D’An-
sencialmente, que Ivana Bentes vai tratar o contraste das dimensões drea (2013) vai chamar de “formação dos sujeitos periféricos” nas
estéticas e políticas em torno das mudanças decisivas, e tumultua- grandes cidades brasileiras. A trajetória da banda se confunde com
das, na sociedade brasileira, desde o Cinema Novo dos anos 1960, a as intensas transformações sociais brasileiras dos últimos 30 anos,
instituir outro tempo da revolta, esse que Tropa de Elite, inadvertida- e se anuncia nas mudanças frutos do processo, diante das tensões
mente, parece se embrenhar: colocadas como perspectivas de cisões políticas e estéticas desde a
“redemocratização” pós-ditadura, especialmente a visibilidade negra
A mudança decisiva é a dimensão política des-
sas expressões culturais urbanas e estilos de periférica. A crônica do cotidiano, característica no rap dos Racionais
vida vindos da pobreza e da violência, forjadas MC’s, de lugares historicamente jogados às margens da representa-
na passagem de uma cultura letrada para uma
cultura audiovisual e midiática. Talvez uma ção audiovisual, recompõe, desde pelo menos 1990, o eixo das te-
política inteligente de Estado devesse neces- máticas sociais no audiovisual brasileiro, coincidentemente. O rap do
sariamente incluir essas experiências culturais
que explodem nos grandes centros: música, grupo parece transmutar o componente cinematográfico brasileiro
teatro, vídeos produzidos em parceria com as do chamado Cinema da Retomada, em potencial, a resumir as vita-
favelas e vitalizando as periferias, “culturas”
periféricas que se afastam do impulso mera- lidades das quais Bentes elenca como agentes decisivos de transfor-
mente assistencialista e afirmam uma “quali- mação (nos sertões e nas favelas).
dade” político-estética (BENTES, 2007, p.13).
A título de sugestão imagética, podemos observar na música
A síntese de Bentes nos leva a uma discussão sobre intercul- “Quanto vale o show”, da fase “madura” do grupo, do álbum Cores e
turalidade e a uma reflexão sobre paisagem periférica. Sonora e ima- valores (2014), uma espécie de contato visual da periferia paulistana
geticamente. nos anos de formação identitária do narrador (Mano Brown), os anos
1980, bem como a descrição minuciosa das “cores” e dos “valores”
A lida cotidiana: a paisagem ali empenhados no resumo desta sublevação periférica:
 Os muleke tinha pressa, mano;
O grupo de rap Racionais MC’s talvez seja o principal repre-  E aí meus parcerim virou ladrão;
sentante da modernização e visibilidade midiática do rap brasileiro.
170 Cláudio Coração audiovisual revolucionário 171

 É que malandro é malandro mesmo e várias fita; precisa para fins analíticos. A presença sonora dos Racionais em pro-
duções da Filmes de Plástico, como Arábia (2017), de João Dumans
 Brasil é osso, a ideia fixa eu tinha;
e Affonso Uchoa, Temporada (2018), de André Novais Oliveira e No
 Porque pardin igual eu assim era um monte, uma pá; Coração do Mundo (2019), de Maurílio Martins e Gabriel Martins,
 Corpo negro seminu encontrado no lixão em São Paulo, a úl- prevê a demarcação dos níveis do realismo e dado procedimento
tima a abolir a escravidão, dezembro sangrento, SP, mundo técnico-estético que está intimamente ligado às aspirações, desejos,
cão promete, nuvens e valas, chuvas de bala em 87, quanto angústias dos jovens periféricos. De novo, poderíamos mobilizar Zero
vale o show?
de conduta, de Jean Vigo (e as vanguardas revolucionárias do cinema
Na montagem algo fragmentária das linhas poéticas esboça- desde os anos 1940) para tratar da temática da audácia juvenil. Mas,
das, Mano Brown demonstra uma temporalidade – e uma paisagem- o que os filmes de realizadores como André Novais de Oliveira, Ga-
-território – extensiva a quaisquer periferias, a esculpir uma quarta briel e Maurílio Martins, João Dumans, Affonso Uchoa contemplam
ideia do tempo da revolta (pessoal e periférico), sem a rendição es- é o espírito da ambiência particular do rap dos Racionais já descrito,
quemática de um naturalismo exacerbado que costuma registrar os “Quanto vale o show?”, que escancara o desenho da paisagem-terri-
níveis de mazela pela perspectiva redentora do olhar conduzido de tório aos marcos de uma poeticidade de registro cru, e menos espe-
classe média sobre a periferia. tacularizado talvez, das marcas da violência social em contraste com
o miúdo, com o prosaico da vida periférica.
Esse tempo da revolta periférico, portanto, pertence a um es-
paço de vida e de experiências esgarçadas, cuja paisagem caracte- É evidente que, se partirmos das características pontuais de
rística tão brasileira estampa, eis o termo, o espírito de uma produ- um cinema bastante particular, esse de Contagem, podemos tam-
ção/formação artística baseada e forjada no prosaico da vida diária. bém identificar aportes de resistências e revoluções no audiovisual
Há vários centros de produção do audiovisual brasileiro recente em brasileiro, em se tratando de tempos de revolta variados.
que esse aspecto parece se fundir: o manifesto Dogma Feijoada, ar-
Mas cabem aqui algumas ponderações. Vamos a elas. O Cine-
quitetado por Jefferson D (em que reivindica o cinema de temáticas
ma de Contagem imprime genericamente as seguintes temáticas: a)
afro-brasileiras, subvertendo um outro manifesto, o Dogma95 dina-
a desolação – a espera por uma transformação; b) a espera – que não
marquês), o cinema da Alumbramento Filmes, do Ceará, O diverso
é necessariamente esperança; c) a esperança – a possibilidade de um
Cinema de Pernambuco e seus múltiplos realizadores e a produção
outro mundo.
da Filmes de Plástico, da cidade de Contagem.
O elemento utópico dessas manifestações temporais é tra-
Tomemos para fins mais metodológicos e estruturais a obser-
balhado na contramão, ou no desconcerto, do gesto triunfante da
vação desse Cinema de Contagem. E aqui cabe uma associação mais
172 Cláudio Coração audiovisual revolucionário 173

sublevação cinematográfica da “cosmética da violência”, como em cuja particularidade está intrinsecamente comungada a um cinema
Tropa de Elite, por exemplo, já que ele é concebido e orientado na de resistência, porque se compreende com as feições de formação
triagem da ambiência que revela, mas que também suspende. Esse de um território específico e determinante, a cidade de Contagem:
tempo, ligado a tal ambiência, é projetado pela concepção de peri-
Contagem é a terceira cidade mais populo-
feria dos Racionais, especialmente a música “Quanto vale o show?”. sa e o terceiro PIB de Minas Gerais, supera-
Trata-se do tempo do comentário cronístico, como sintetiza Coelho, da apenas por Belo Horizonte e Uberlândia.
Não fossem as placas de sinalização, quem
ao descrever, por meio da fala dos realizadores deste cinema, sua vai para lá pela primeira vez, vindo do Centro
característica fundante maior: da capital mineira, teria alguma dificuldade
para saber onde termina uma cidade e co-
meça a outra. Com a expansão econômica e
Certa vez, Gabriel, Maurílio e André filmavam populacional, elas acabaram envolvidas nesse
no bairro Jardim Laguna quando um homem todo contínuo que é a Região Metropolitana
bêbado se aproximou da equipe e perguntou de Belo Horizonte. No passado, enquanto a
o que estavam fazendo. Eles responderam que capital concentrava o poder político, o fun-
era cinema. O bêbado disse: “Vocês estão fa- cionalismo público, as universidades, a classe
zendo cinema de comentário”? Os diretores média, a elite cultural, o comércio de melhor
estranharam e sorriram. Conversa vai, conver- qualidade e a atividades de lazer, Contagem
sa vem, deduziram que o homem quis dizer reunia as indústrias, milhares de operários, os
“cinema documentário”. A expressão vingou trabalhadores em situação precária e os que,
entre os diretores de Contagem. Agora, quan- embora estivessem empregados em Belo Ho-
do querem definir seus filmes, eles não en- rizonte, não tinha recursos para morar lá. A
contram fórmula melhor que esta: cinema de produção incessante constituía a razão de ser
comentário (COELHO, 2020). da cidade industrial, e as chaminés das fábri-
cas, em funcionamento perpétuo, não deixas-
sem que ninguém se esquecesse disso. Hoje,
A um só tempo, parece que, na descrição de uma peça que muita coisa mudou. Contagem é uma cidade
nos é revelada, é como se a fantasmagoria da chave ilusória do cine- próspera, como uma classe média numerosa,
grandes supermercados e shopping centers.
ma pudesse despontar, pelas demonstrações de tensionamento do E essa cidade na periferia da capital tem tam-
real e do documental, a “verdade” observada, comentada e vivida bém sua própria periferia, onde vive a maioria
da população, em bairros sem planejamento,
“lá fora”, na rua, ou “aqui dentro”, nos cômodos das moradas, a aná- afetados pela poluição e com serviços públicos
deficientes (COELHO, 2020).
lise renhida do tempo do sujeito periférico. Parece-nos que é isso
que se materializa em três filmes altamente reflexivos do Cinema de
Estamos diante de um cinema de formação, digamos assim,
Contagem: Arábia, Temporada e No Coração do Mundo.
pois ele atribui-se das temáticas “desinteressantes”, e constrói, a par-
Outra questão a ser observada, a partir das hipóteses a respei- tir da premissa política do prosaico, pensando as características de
to das marcas do Cinema de Contagem, é a evidência da paisagem, território de Contagem como eixo argumentativo, o tensionamento
174 Cláudio Coração audiovisual revolucionário 175

da realidade e suas pequenas revoltas, pequenos movimentos do decer a um apreço estritamente radical de temporalidade/espacia-
cotidiano. É através dessas aspirações pessoais, muito ancoradas na lidade específica, cruzar a ponte para lá. Em algumas músicas dos
recorrente reflexão existencial nos filmes, que se delineia uma “com- Racionais a imagem fronteiriça é resumida do seguinte modo:
preensão do mundo”, com o registro invulgar de elogio/denúncia
 “Dá ponte pra cá”: o mundo é diferente da ponte pra cá;
da cotidianidade. Desse modo, o Cinema de Contagem se aproxima
 “Periferia é periferia”: periferia é periferia em qualquer lugar;
muito de uma sublevação em que tempos particulares elucidam ne-
 “O homem na estrada”: um homem na estrada recomeça a
cessários fluxos nos três filmes aqui mencionados:
sua vida;
 Arábia: movimento pessoal do protagonista Cristiano –> trân-  “Vida Loka parte 2”: tudo é fase, irmão, logo mais vamos arre-
sito dos tempos –> dilema existencial prosaico;
bentar no mundão;
 Temporada: busca da protagonista Juliana –> retorno –> er-  “Negro drama”: a garoa rasga a carne, é a torre de babel.
rância;
É no mínimo curiosa a observação de que o tempo da revolta
 No coração do mundo: futuro almejado por uma teia de per-
sonagens periféricos –> presença –> purgação. se instrumentaliza, aqui, nas errâncias e atravessamentos de frontei-
ras urbanos, onde sujeitos renovam as convenções atribuídas a de-
As elaborações e o percurso do enredo fílmico se revestem, terminados espaços. Um exemplo: quando Ice Blue, integrante dos
portanto, das angústias dos moradores da periferia brasileira no li- Racionais, diz a uma entrevista a tevê Cultura, na ocasião da Virada
miar do século XX para o XXI, como síntese, a apresentar, com essa Cultural Paulista, em maio de 2013, ao afirmar: “Nós mudamos o jei-
transição, revoluções marcadas nas características de jornada perifé- to desta cidade falar: não é mais ‘ô, meu’, é ‘e aí, jão’”.
rica, e expressadas como correria.
Ora, a despeito da concordância ou não com a frase, a exito-
sa absorção de um valor estético é característica também das aspi-
O deslocamento espaço-temporal: a correria rações de uma revolução no território, na recomposição da paisa-
gem. Nas entrelinhas da fala de Ice Blue a veia crítica que o sujeito
Diante do fio de encontros que estamos propondo, podemos da correria passa a ter no caldo da paisagem urbana é característica
identificar uma quinta ideia do tempo de revolta, no audiovisual, na marcante de uma reivindicação do tempo esculpido pela memória
observação da produção do Cinema de Contagem, em consonância espoliada dos sujeitos periféricos, de grandes cinturões urbanos con-
com as outras ideias já descritas, outro atributo do universo das te- turbados como São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. A correria
máticas dos Racionais MC’s é a ideia da vinculação da correria para é instada, então, na observação da questão social e racial, do negro/
o sujeito periférico, esse ente que precisa se deslocar na urbe e obe- pobre que transita, do negro/pobre que perfura a fronteira do “mun-
176 Cláudio Coração audiovisual revolucionário 177

do dos brancos”, propondo reinvenções de sobrevivências diaspóri- cipalmente, Jordan Peele (Corra [Get Out], 2017), (Nós [Us], 2019):
cas dentro da mesma localidade, para o trabalho e/ou para o rolê. a associação do fluxo dos personagens com a correria, guardadas as
Tal descrição se casa à pontuação do filósofo Mbembe, ao falar da diferenças sociais lá e cá, pode ser estabelecida, em larga escala, com
ideia de pertencimento e terra, refletindo conceitualmente sobre as os mesmos procedimentos de um tempo da revolta periférico, à luz
fronteiras (tangíveis e intangíveis) da contemporaneidade: das imagens sintetizadas pelo rap dos Racionais MC’s, e resumidas
no Cinema de Contagem como tema, como forma, como potencial
Com a expansão colonial do ocidente, e de
estético. É preciso dizer que, quando um ator como Antonio Pitan-
modo mais decisivo com o advento do capita-
lismo, a raison d´être da fronteira se relaciona ga, personalidade-ícone do Cinema Novo dos anos 1960, corre nos
a questões-chave como: a quem pertence a
terra? Quem tem o direito de reivindicar par-
filmes, são emolduradas utopias condizentes com os atributos con-
te dela e os vários seres que nela habitam? traculturais dos anos 1960 (em filmes como Barravento [1962, de
Quem determina sua distribuição ou divisão?
Ao enquadrar a questão da fronteira dessa for-
Glauber Rocha], A grande cidade [1966, de Carlos Diegues]). Mas no
ma, estou tentando mostrar que o poder da contexto de produção do Cinema de Contagem – na transposição de
fronteira está em sua capacidade de regular
as múltiplas distribuições das populações –
cinema internacional com questões regionais – a correria se institui
humanas e não humanas – sobre o corpo da com veio de liberação de uma metáfora do coração do mundo, pre-
terra, e, assim, afetar as forças vitais de todos
os tipos de seres (MBEMBE, 2019, p.66).
sente especialmente no filme dos Martins, No coração do mundo.
Mas é pelas interpenetrações desses “corpos que correm” que po-
Os fluxos contraculturais periféricos são estabelecidos pelas demos demarcar componentes aflitivos da temporalidade fluida da
cisões e pelos deslocamentos. É por meio dessa decisão político-es- correria, ou do tempo da revolta periférico, a partir da observação
tética que eles “contaminam” a produção midiática (são os anjos e os dos seguintes personagens dos três filmes:
demônios da indústria cultural), e é no audiovisual, especificamente,  Cristiano: o trabalhador de Arábia;
que o esculpir de novos tempos, esses da tensão e do conflito, incor-
 Juliana: a trabalhadora de Temporada;
poram-se ao componente da dor vivida, ora na demanda da necropo-
lítica (conceito desenvolvido por Mbembe que prescreve os proces-  Ana, Beto, Marcos, Miro e Selma: os trabalhadores de No Co-
sos de violência na herança da escravização e que descreve o dever ração do Mundo.
e o direito da morte sobre os corpos), ora na visibilidade moldada Neles impõe-se um sentido utópico que transcende as pautas
pelas aspirações da correria. Como nas buscas por “outros mundos” oriundas das contraculturas dos anos 1950 em diante (o zen budis-
em “outros territórios” dos personagens de Arábia, Temporada e No mo, o orientalismo, as incorporações das revoluções coletivas). A in-
Coração do Mundo. Mas não só. Notemos a recente produção esta- dicação contracultural, aqui e agora, é própria desse periférico, desse
dunidense de diretores como Barry Jenkins, Steve McQueen e, prin- cinema periférico, orientado e previsto no desajuste de apreensão
178 Cláudio Coração audiovisual revolucionário 179

do amor e da pungência, no atravessamento urbano, no e pelo tra- nem na engrenagem das alegrias pontuadas como otimistas, como
balho, cujas marcas são: nas descrições clássicas do cinema melodramático americano dos
 Pendurado no trem: o pingente; anos 1940. Não é aleatório, portanto, perceber que o guru da turma
de Contagem ser Carlos Reichenbach (1945-2012), um dos principais
 Ancorado na abordagem da violência policial: o desviante; defensores da ideia de um cinema eminentemente marginal, desde
 Périplo da ida e da volta: a vida ditada pelo prosaico. os anos 1970.

A jornada diária é absorvida, portanto, pelo tempo das aspi- A engrenagem que estamos apresentando aqui – o trânsito da
rações pessoais e dos pequenos e importantes prazeres (o litrão to- produção do rap dos Racionais, a partir de “Quanto vale o show?”,
mado no bar, o baseado compartilhado na roda coletiva etc.), que com a produção do Cinema de Contagem – sustenta-se em uma in-
é político, evidentemente, mas também é composto por errância e corporação que é intercultural, mas também apresenta uma fratura
fuga psicológica (em torno da pungência, do desvio e do prosaico). particular, a convocar uma fratria, como Kehl pontua, na descrição e
A sublevação específica se entrosa nos termos das “barricadas e fa- observação da obra e poesia dos Racionais Mc´s:
lésias protetoras” de Didi-Huberman, quando ele relata acerca da O tratamento de “mano” não é gratuito. Indi-
alegoria estética da sublevação: “Quer tenha o aspecto do fogo ou ca uma intenção de igualdade, um sentimento
de fratria, um campo de identificações hori-
de tempestade aos olhos de seus contemporâneos, a revolta social zontais, em contraposição ao modo de iden-
se presta bem às alegorizações ligadas à propagação e destruição do tificação/dominação vertical, da massa em re-
lação ao líder ou ao ídolo. As letras são apelos
campo da natureza” (DIDI-HUBERMAN, 2019, p.129). dramáticos ao semelhante, ao irmão: junte-se
a nós, aumente nossa força. Fique esperto, fi-
Então, é pertinente perceber que a revolução social cabe como que consciente (KEHL, 1999, p.96).
aporte, de novo, do registro característico de um cinema que bebe
do clássico, e que manifesta o moderno criativo/destrutivo, e os três No mais, voltando e aproximando o pensamento de Kehl com
filmes aqui destacados o fazem, mas que empreende uma chave de o que diz Mbembe, estamos no território (literalmente) das revolu-
disposição distante das saídas meramente redentoras, e que aponta ções voltadas necessária e inexoravelmente à correria, ao atributo do
“em carne viva”, como já dissemos, uma temporalidade embasada na sujeito expressivo urbano atropelado, por vezes, à figura do margi-
dor e no prazer e estilhaçada nas redenções incompletas, dos sonhos nal, do outsider, do desviante. Há uma ampla literatura sobre a socio-
e esperanças interditados de um país. logia do desviante (Norbert Elias, Harold Becker), mas o que estamos
prevendo e afirmando é que o eixo revolucionário desse Cinema de
Nesse sentido, não estaríamos nem tão presos à desconstru- Contagem, especificamente, faz-se na contramão dos usos que ele
ção do happy end previsto desde o neorrealismo italiano, e também denota como realização cinematográfica, como comentário.
180 Cláudio Coração audiovisual revolucionário 181

Nesse tom, o político e o estético estão a serviço de um eu em de de abordar as características das angústias coletivas e existenciais
contato com esses outros, tão necessitados do gesto triunfante do le- periféricas etc.
vante. Eis a descrição outra que pode ser feita a partir do conceito de
É evidente que o debate proposto nos leva a escalas de alteri-
fratria de Kehl, em diálogo com os trânsitos e fluxos contemporâneos
dade e à compreensão de uma sociedade que se embrenha por meio
das fronteiras de Mbembe e das paisagens periféricas e suas pontes
de conflitos e apaziguamentos. A análise exige o tempo da revolta
demarcatórias, como no rap dos Racionais.
como esteio, que, a nosso ver, tentamos fechar no alinhavado pela
produção audiovisual de Contagem. Tal pensamento parece anun-
A alteridade e o desvelar: os outros ciar, um pouco na trilha poética de Mano Brown, em “Quanto vale o
show?”, isso que é posto como real periférico, como uma encruzilha-
da encantada nos termos de Simas: “A importância de atentar para
No ensaio O Brasil e seu duplo, Luiz Eduardo Soares explora a os fazeres cotidianos como caminho para escutar e compreender as
seguinte tese: outras vozes, além da perspectiva do fragmento como miniatura ca-
A afirmação na sociedade brasileira de um paz de desvelar o mundo” (SIMAS, 2019, p.10).
novo modelo de relacionamento com o Outro
envolve, implica e pressupõe o estabelecimen- A alteridade convocada por Simas é outro elemento urgente
to de condições (sempre multidimensionais) para pensarmos os tensionamentos do território urbano, a afirmar, a
para a construção e o amadurecimento da
individualidade, como experiência subjetiva e contrapelo, a identidade marcada pelo gestual do tempo distendido,
intersubjetiva, como categoria jurídico-políti- o “desvelar o mundo”, que se erige como desenho da realidade bra-
ca, no campo dos direitos, e como fonte e alvo
de valor, cujo sentido elementar é a dignidade sileira, essa que está, muitas vezes, dissociada dos códigos prósperos
(SOARES, 2019, p.238).
da contemporaneidade, ao fim e ao cabo. Assim, as perguntas que
apresentamos no início podem ser respondidas se postas na costura
Na esteira da reflexão sociológica/antropológica, Soares vai
dos seguintes eixos com o “desvelar do mundo” do qual fala Simas: a)
abordar as potencialidades coletivas, sincréticas e erodidas da socie-
a subelevação como esteira; b) a paisagem como norma; c) a correria
dade brasileira, assim como as querelas e demandas sobre a indivi-
como eixo; d) o tempo da revolta como inevitável.
dualidade na comunidade contemporânea globalizada. Para juntar
isso à análise, apropriando-se do tropicalismo como guia, fundamen- Mas o trânsito da revolta não cessa, esse da encruzilhada em
talmente, Soares vai identificar alguns desajustes da incorporação levante, característico do mundo interconectado pelo signo da velo-
que poderíamos chamar de tempos da revolta do sujeito periférico, cidade28, que é aqui compreendido como a possibilidade de organi-
entre eles: o êxito da ascensão do neopentecostalismo, a dificulda-
28 Ao discutir a relevância dos territórios na compreensão da autonomia
182 Cláudio Coração audiovisual revolucionário 183

zação dos termos caros aos aportes contraculturais no cinema, como momento de reflexão e autoconhecimento indigesto de um triste es-
em Zero de Conduta, Sem destino e The Wall, por exemplo. Que de- pelho que é a nossa cidade, a assumir que a descrição das paisagens
ságuam em produções mundiais diversas como pontos de desolação de “Quanto vale o show?”, dos Racionais, incorpora-se e se vincula
contracultural (Gus Van Sant, Abbas Kiarostami, Michael Haneke, a outras músicas do grupo, decisivas para os enredos nos filmes: “O
Lars Von Trier). O Cinema de Contagem, de forma quase anárquica, Homem na estrada” em Arábia, “Negro Drama” em No coração do
herda os fios da “linha evolutiva” da contracultura, mas reconfigura mundo.
um novo momento do tempo não celebratório, paradoxalmente es-
A disposição tão cara ao nosso percurso sobre potencialidades
perançado, como a reafirmar a necessidade de um descontrole, a se
estéticas é para reconhecermos e nos reconhecermos como sujei-
opor, no final das contas, ao diagnóstico que Cleber Eduardo lança
tos, a afirmarmos a viabilidade dos gestos de levantes precisos de
sobre a produção brasileira das últimas décadas:
reinvenção dos sonhos de um país, por meio da resenha cronística
O cinema da década e meia do novo século, dos Racionais e do Cinema de Contagem. O pesadelo do tempo da
de maneira predominante em seu segmento
autoral renovado, mas também no segmento historicidade medida pelo oficial parece se distanciar disso que está
autoral mais experiente, não gerou imagens sugerido em corpo, espírito e mente. Inquietos. Na conjunção das
de celebração. Houve um período de abran-
damento dos tons e de negociação, sobretudo cinco ideias do tempo da revolta aqui apresentada, o contracultural
entre 2005 e 2010, mas mesmo nesses filmes de aqui e agora, nas periferias de Contagem e do Brasil, sublevam-se
os males existenciais e subjetivos estavam evi-
denciados, com menos ou mais possibilidades de imperceptível futuro. E esperança.
de escapes. Parte desse mal-estar amplo pa-
rece ainda uma herança da má digestão entre
regime militar e democrático [...] com muitas
fugas, rupturas, deslocamentos e inviabilida- Referências
des, muitos mortos e violência, mesmo haven-
do mais dinheiro para se produzir e um país BENTES, Ivana. Sertões e favelas no cinema brasileiro contemporâ-
aparentemente menos asfixiante para se viver neo: estética e cosmética da fome. Revista Alceu, Rio de Janeiro, v. 8,
(EDUARDO, 2018, p.594). n. 15, jul./dez. 2007.
D’ANDREA, Tiarajú Pablo. A formação dos sujeitos periféricos: cultura
Seguindo a trilha, não é exagero afirmar que estamos num e política na periferia de São Paulo. 2013. Tese (Doutorado) – FFLCH/
USP, 2013.
dos sujeitos diante do imperativo da velocidade na sociedade contemporânea, o DELEUZE, Gilles. Cinema 1 – A imagem-movimento. Trad. Stella Sen-
geógrafo Milton Santos afirma: “Hoje vivemos um mundo da rapidez e da flui- ra. São Paulo: 34, 2018.
dez. Trata-se de uma fluidez virtual, possível pela presença dos novos sistemas
técnicos, sobretudo os sistemas de informação, e de uma fluidez efetiva, realizada DELEUZE, Gilles. Cinema 2 – A imagem-tempo. Trad. Eloisa Araújo
quando essa fluidez potencial é utilizada no exercício da ação” (SANTOS, 2011, Ribeiro. São Paulo: 34, 2018.
p.83).
184 Cláudio Coração audiovisual revolucionário 185

DIDI-HUBERMAN, Georges. Ondas, torrentes e barricadas. Trad. Ma- Cidade de Deus (2002, de Fernando Meirelles e Kátia Lund)
rília Garcia. Revista Serrote, São Paulo/Rio de Janeiro, IMS, n. 33, nov.
2019. Corra (Get Out, 2017, de Jordan Peele)

COELHO, Tiago. Filmes de comentário. Revista Piauí, São Paulo/Rio No Coração do Mundo (2019, de Maurílio Martins e Gabriel Martins)
de Janeiro, n. 163, abr. 2020. Nós (Us, 2019, de Jordan Peele)
EDUARDO, Cléber. Continuidade expandida e o novo cinema auto- Os Bons Companheiros (Goodfellas, 1990, de Martin Scorsese)
ral (2005-2016). In: RAMOS, Fernão Pessoa; SCHVARZMAN, Sheila
(Orgs.). Nova História do cinema brasileiro. Vol 2. São Paulo: Edições Rambo, Programado pra Matar (Rambo: First Blood, 1982, de Ted
Sesc, 2018. Kotcheff)
KEHL, Maria Rita. Radicais, raciais, racionais: a grande fratria do rap Sem Destino (Easy Rider, 1969, de Dennis Hopper)
na periferia de São Paulo. Revista São Paulo em perspectiva, São Pau-
lo: n. 13, 1999. Temporada (2018, de André Novais Oliveira)
MBEMBE, Achille. A ideia de um mundo sem fronteiras. Trad. Ste- The Wall (1982, de Alan Parker)
phanie Borges. Revista Serrote, São Paulo/Rio de Janeiro, IMS, n. 31,
mar. 2019. Tropa de Elite (2007, de José Padilha)

SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento úni- Zero de Conduta (Zéro de Conduite, 1933, de Jean Vigo)
co à consciência universal. 20. ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Record,
2011.
SIMAS, Luiz Antonio. O corpo encantado das ruas. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2019.
SOARES, Luiz Eduardo. O Brasil e seu duplo. São Paulo: Todavia, 2019.
TARKOVSKI, Andrei. Esculpir o tempo. Trad. Jefferson Luiz Camargo. 3.
ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

Filmes mencionados
A Grande Cidade (1966, de Carlos Diegues)
Arábia (2017, de João Dumans e Affonso Uchoa)
Barravento (1962, de Glauber Rocha)
Carandiru (2003, de Hector Babenco)
Cassino (1995, de Martin Scorsese)
Cidades escritas, cidades
imaginadas: narrativas
do cotidiano em Amarelo
Manga29
Flávio Barbara Reis30

29 Para citar corretamente este capítulo, utilize a seguinte forma:


REIS, Flávio Barbara. Cidades escritas, cidades imaginadas: narrativas do cotidia-
no em Amarelo Manga. In: ROCHA, Adriano Medeiros da; LAIA, Evandro José
Medeiros (Org.). audiovisual revolucionário. São Paulo: Editora dos Frades, 2021.
30 Mestre em Comunicação pela Universidade Federal de Ouro Preto
(UFOP). Bacharel em Jornalismo e História e licenciado em História pela mesma
instituição.
audiovisual revolucionário 189

O livro Cinema mundial contemporâneo, organizado pelos


pesquisadores Mauro Baptista e Fernando Mascarello, contém um
prefácio bastante provocativo, escrito por Fernão Ramos, no qual o
professor afirma que “a parte mais instigante do cinema contempo-
râneo respira o real, ou melhor, respira o mundo que transcorre na
tomada” (RAMOS, in BAPTISTA & MASCARELLO, 2014, p. 11). O cine-
ma mundial contemporâneo, após as ondas dos chamados pós-mo-
dernismos, estabelece novamente um diálogo com o modernismo. O
pastiche, principal característica estética dos cinemas pós-modernos,
vai sendo abandonado para dar espaço a uma espécie de novo rea-
lismo, o ultrarrealismo. E nesse retorno, ou melhor, diálogo com os
cinemas modernos, uma fagulha incendeia o cenário cinematográfi-
co pernambucano: Cláudio Assis.

Cláudio Assis é conhecido por uma cinematografia que retrata


uma Recife de modo seco e violento. No final dos anos 1990, o ci-
neasta, em companhia de Hilton Lacerda, escreveu o roteiro de um
curta-metragem chamado Texas Hotel (Cláudio Assis, 1999). Ao sub-
meterem o roteiro para um concurso da prefeitura de Recife, eles
conseguiram realizar o filme, que serviu como base para a ideia do
longa-metragem Amarelo Manga (Cláudio Assis, 2002). A fagulha
revolucionária que Texas Hotel lançou no cenário pernambucano se
alastrou no incêndio que Amarelo Manga causou no cenário nacio-
nal. O filme chegou aos cinemas em 2002 e provocou um grande
alarde entre a crítica. Vencedor de diversos prêmios [1], colocou o
cineasta no hall dos grandes realizadores brasileiros. De lá pra cá, o
diretor já produziu mais quatro longas-metragens, e o mais recente,
Piedade (Claudio Assis, 2020), marcou sua estreia em um dia histó-
rico, 19 de junho de 2020, dia do cinema brasileiro, via streaming.
190 Flávio Barbara Reis audiovisual revolucionário 191

Pernambucano, Claudio Assis tem como elemento principal ainda contamos com os personagens Isaac (Jonas Bloch), um necró-
em sua obra as raízes e os fatores culturais do estado e, principal- filo que é fascinado por Lígia (Leona Cavali), dona de um bar. Essas
mente, da capital, Recife. Houve um tempo, no início da década de pequenas histórias se fundem na personagem principal do longa, Re-
1990, que Recife era considerada a pior cidade do mundo. Artistas cife. É nela que os sonhos, os medos, as paixões e os desejos se reali-
locais, incomodados com esse status que a cidade adquiriu, inaugu- zam na busca incessante pela felicidade, em uma narrativa cíclica em
raram uma significativa manifestação musical que conquistou o Brasil que acontecimentos banais de um dia comum se tornam extraordi-
e o mundo: o manguebeat. O movimento surgiu como uma proposta nários. Os personagens da cidade, geralmente reduzidos pela mídia
de ressignificação das identificações sociais e propunha uma reestru- local e global a estereótipos, são desnudados em uma multiplicidade
turação musical marcada pelo hibridismo. A manifestação buscava de personalidades e narrativas particulares no filme. E em um mundo
no mangue metáforas da diversidade, produzindo novos sentidos so- no qual a informação é atualizada constantemente, a antena para-
bre a cultura popular regional. O disco Da lama ao caos (Chico Scien- bólica de Assis aponta para questões globais urgentes, superando a
ce & Nação Zumbi, 1994) é um marco desse hibridismo cultural que ideia de uma narrativa unificada e homogênea.
provoca reflexões acerca do local e global.

Uma parabólica enfiada na lama. Essa é a imagem símbolo Múltiplas narrativas, diferentes cartografias
desse movimento que aponta a lama do mangue como a parte mais
fértil recifense, significando que a riqueza cultural da “pior metrópo-
A partir de pesquisas que levam em consideração a existência
le do mundo” são as raízes pobres, violentas e perigosas. Uma vez
de uma multiplicidade de vozes em nossa sociedade, percebemos
que essa riqueza cultural é experimentada e utilizada, ela deve ser
que ela – a sociedade – é fragmentada e bastante complexa, acar-
sintonizada ao mundo todo, no mundo globalizado, sem fronteiras.
retando uma diversidade na produção discursiva. Basta uma obser-
E o cinema de Claudio Assis está intimamente ligado a essa ideia: ao
vação mais atenta ao nosso cotidiano, principalmente nas redes so-
mesmo tempo que está antenado com tendências mundiais, é pro-
ciais, lugar onde essa produção discursiva é intensa e heterogênea.
duzido com a matéria bruta – e violenta – que o regional oferece. Em
Em meio a essa abundância, o pesquisador Stuart Hall (2003) conce-
especial, Amarelo Manga.
be a ideia de que as mensagens são capazes de ter uma pluralidade
No filme, a cidade Recife é uma personagem que está intrín- de leituras, ou seja, um dissenso é estabelecido, caindo por terra a
seca na vida das pessoas que ali moram. Dunga (Matheus Nachter- ideia de uma visão hegemônica. Portando, pensar as diversas vozes
gaele) é um homossexual que nutre uma paixão pelo açougueiro e múltiplas narrativas nos leva a um ambiente físico, mas que hoje,
Wellington (Chico Diaz). Wellington, apesar de estimar a esposa Kika, conceitualmente, supera essas barreiras geográficas: a cidade.
mantém um caso extraconjugal com Dayse (Magdale Alves). No filme
192 Flávio Barbara Reis audiovisual revolucionário 193

Pensar a cidade não é tarefa simples que tem o seu fim em de todo o tipo. A cidade escrita é sempre sim-
bolização e deslocamento, imagem, metoní-
uma delimitação de sua organização espacial e arquitetônica, muito mia. [...] Escrever a cidade, desenhar a cidade,
pelo contrário. De acordo com o antropólogo Néstor Garcia Canclini pertencem ao ciclo da figuração, da alegoria
ou da representação. (SARLO, 2014, p.139)
(CANCLINI, 2008), pensar a configuração de uma cidade envolve uma
estrutura bem mais complexa que abarca “os processos culturais e
Em outras palavras, a cidade real não é uma produção discur-
imaginários” dos ali residentes. E outro fator importante entra no
siva advinda das mídias, criada a partir do que ela produz. Ela é viva,
jogo: como as cidades são “escritas”, ou seja, como a sociedade pro-
fragmentada e, principalmente, “construção, decadência, renovação
duz as imagens das cidades que compõem o cenário representativo
e, sobretudo, demolição” (SARLO, 2014, p. 139). As representações
no cinema, no rádio, nos jornais, na literatura. É necessário refle-
da cidade não devem se confundir com o que ela realmente é. Mas
tir como é feita essa disputa pela construção do imaginário. García
de que maneira estabelecemos essas fronteiras? Amarelo Manga
Canclini diz que “não atuamos na cidade só pela orientação que nos
nos fornece pistas preciosas para seguirmos nessa investigação.
dão os mapas ou GPS, mas também pelas cartografias mentais que
variam segundo os modos pessoais de experimentar as interações Logo em seus primeiros quadros, o filme nos mostra que a
sociais” (CANCLINI, 2008, p. 15). A interação que as pessoas têm com cidade atravessará a todos os seus personagens. A relação deles com
a cidade não é meramente cartesiana, ela insere percepções e repre- a rua começa quando Lígia abre as portas de seu estabelecimento, o
sentações que partem do subjetivo individualizado. Cada indivíduo Bar Avenida, e lança um olhar para fora dele, observando o dia ama-
ajuda a construir – literal e metaforicamente – a cidade em que ha- nhecer. Neste momento ela nos permite entrever que seu diálogo
bita. será travado com a cotidianidade daquelas ruas e daquele povo. É
desse ritmo cotidiano que depende sua existência; não só porque
Como consequência de uma interação particular e subjetiva
ela trabalha em um bar, lidando com pessoas, mas também como ela
com a cidade, para pensar a construção dessas cidades escritas é
enxerga a sociedade. Algo evidenciado em seu solilóquio de abertu-
essencial considerar os meios de comunicação e como as narrativas
se solidificam através deles. Beatriz Sarlo (2014), ao refletir sobre as ra. Nele, ela diz
representações da cidade, é categórica ao afirmar que Às vezes eu fico imaginando de que forma as
coisas acontecem. Primeiro vem um dia, e
Entre a cidade escrita [...] e a cidade real há tudo acontece naquele dia. Até chegar a noite,
uma diferença de sistemas de materiais de que é a melhor parte! Mas logo depois vem
representação, que não pode ser confundida o dia outra vez... e vai, e vai, e vai... e é sem
com frases fáceis como “a literatura produz ci- parar. A única coisa que não tem mudado ulti-
dade” etc. Os discursos produzem ideias de ci- mamente é o Santa Cruz nunca mais ter ganho
dade, críticas, análises, figurações, hipóteses, nada. Mas nem título de honra. E eu não te-
instruções de uso, proibições, ordens, ficções nho encontrado alguém que me mereça. Só se
194 Flávio Barbara Reis audiovisual revolucionário 195

ama errado. Ah, eu quero é que todo mundo cía Canclini (2008) aproxima-se dessa diferenciação quando pontua
vá tomar no cu.
acerca das tensões geradas pelas múltiplas identidades e a produção
discursiva que elas geram. Para ele, duas correntes se desdobram do
O cotidiano repetitivo, aquele mesmo que Chico Buarque eter-
cenário urbano: narrativas totalizantes, ou seja, aquelas que se mani-
nizou em sua célebre canção, é esse no qual Lígia fala. Todo dia ela
festam nos textos das ciências sociais (descrições antropológicas, es-
faz tudo sempre igual. Os dias se repetem e parecem todos iguais.
tatísticas, cenários políticos, entre outros), e as destotalizantes, que
Terminado o monólogo de Lígia, que é dramaticamente intensificado
vão na contramão das “cidades escritas”, sendo aquelas que compor-
pelas escolhas de enquadramento – do plano geral ao detalhe do
tam o “movimento incessante do real, as ações imprevistas, aqueles
rosto – um close up do motor de um carro mostra peças girando em
ocos ou fraturas que obrigam a desconfiar dos conhecimentos de-
seu eixo, mais uma vez evidenciando os dias repetitivos e que nunca
masiadamente compactos oferecidos pelas pesquisas e estatísticas”
saem do mesmo lugar, girando em círculos, como uma cobra engo-
(CANCLINI, 2008, p. 16). Ambas se chocam, estão em conflito.
lindo o próprio rabo.
Ao olhar para as narrativas de Amarelo Manga, a compreensão
A partir da sequência que abre o filme, é notado que a cidade
de quem são esses múltiplos indivíduos ali representados e a qual lo-
se configura como um importante meio para se entender não só o
cal eles pertencem é ponto essencial de análise. Cada um deles pos-
filme, mas também os processos comunicacionais que o permeiam.
sui um olhar único de Recife. Olhares que projetam as configurações
Em seus estudos, García Canclini (2002) aponta para a necessidade
imaginárias propostas por Canclini para os cenários urbanos globais.
da compreensão da relação entre os processos de comunicação e o
São elas: cidades do conhecimento, cidades do espetáculo e cidades
espaço urbano. O pesquisador apresenta que o crescimento demo-
multiculturais (CANCLINI, 2008). É importante destacar que, ao ana-
gráfico incongruente das cidades, com a expansão das periferias e
lisar por essas perspectivas, Canclini reconhece que muitas particula-
favelas, gera “desequilíbrios e incertezas” (GARCÍA CANCLINI, 2002,
ridades ficam de fora, o que torna a experiência do desconhecimento
p. 41) e, ainda, o pesquisador alerta para o fato de que os meios de
presente, ou seja, não é possível abarcar em sua completude o movi-
comunicação parecem tentar dar conta dessas demandas, isto é, a mento do real que se configura nas cidades, posicionamento teórico
expansão crescente da multiplicidade narrativa. Portanto, os meios que vai ao encontro da perspectiva proposta por Sarlo (2014).
de comunicação serão os principais responsáveis por conectar todas
as múltiplas identidades que compõem o cenário urbano. Observemos atentamente as categorizações que Canclini faz
das configurações imaginárias que a tensão entre discursos e rea-
No interior deste cenário urbano, tensões se desdobram. Ten- lidade produzem. As cidades multiculturais são aquelas que, em
sões já apontadas a partir do trabalho de Beatriz Sarlo (2014), mate- meio a sua formação histórica, apresentam a coexistência das mais
rializando-se entre as “cidades escritas” e “cidades reais”. Néstor Gar- diversas culturas. Nelas percebemos que a globalização não trouxe
196 Flávio Barbara Reis audiovisual revolucionário 197

uma homogeneidade, mas sim uma multiplicidade cultural e, com seja, as que se tornaram, nos últimos anos, emblemas de globaliza-
isso, a concentração dessas culturas se dá através da segregação, em ção” (CANCLINI, 2008, p. 22). São aquelas cidades globais nas quais
bairros específicos, gerando cada vez mais uma urbe separada por a concentração de turistas, artes e ciência, empresas multinacionais
muros, trancafiada em condomínios, configurando o que ele chama e as diferentes culturas se manifestam com maior intensidade. “São
de “cidade do desconhecimento” (GARCÍA CANCLINI, 2008). Basta as cidades que conseguem reinventar-se” (CANCLINI, 2008, p. 23). A
olharmos para as cidades globais cosmopolitas que abarcam dentro partir de uma renovação cultural, revitalização de áreas históricas e
de um mesmo espaço uma diversidade cultural gigante: bairros asiá- aumento da qualidade de vida, essas cidades conseguem estar sem-
ticos, africanos, latino-americanos e europeus se misturam promo- pre em transformação e antenadas com o global, sendo admiradas
vendo ao turista a experiência de um pedaço do mundo dentro de ao redor do mundo como cidades globais.
uma única cidade. Essas mesmas cidades resguardam os seus cida-
Entretanto, além dessas cidades categorizadas por García Can-
dãos atrás de muros e condomínios, estabelecendo limites e fazendo
clini, há um tipo que se configura predominante na América Latina.
com que o restante seja uma selva desconhecida, inexplorável.
Ao contrário das cidades que conseguem se reinventar, os espaços se
As cidades do conhecimento se configuram no centro das “so- desconstroem. Nessa desconstrução, o imaginário composto pelos
ciedades da informação”, ou seja, uma sociedade que está preocu- meios de comunicação edifica um quarto cenário urbano e, conse-
pada em fornecer um desenvolvimento, principalmente econômico, quentemente, o que mais nos interessa aqui: as cidades catástrofes.
que tem por base o conhecimento científico. Nessas sociedades, é Nesses espaços, a comunicação se torna o principal veículo para fo-
visível a articulação entre “informação, conhecimento, conectividade mentar o imaginário urbano, fazendo com que a cidade passe a ser
e infraestrutura que, por intermédio da educação, espera impulsio- entendida em fragmentos. Percebe-se claramente uma multiplicida-
nar a participação social no desenvolvimento” (CANCLINI, 2008, p. de de vozes emergentes que os meios de comunicação tradicionais
18). Entretanto, essas cidades do conhecimento acabam por vezes parecem não dar conta e, em consequência disso, os cidadãos são
se confundindo e/ou tornando-se uma cidade do espetáculo, isto reduzidos a lugares-comuns. A esses espaços é atribuída a categoria
é, quando há um crescimento demográfico muito grande e uma ex- de “cidades paranoia”.
ploração publicitária capaz de transformar o centro de informação
Com o status de decadência da urbe, notam-se novas manei-
em um centro de espetáculos culturais. Com uma população cada
ras de turismo. Os viajantes procuram entrar num circuito mais alter-
vez mais deslocada do centro, os meios de comunicação (TV, rádio,
nativo, e a opção dada a eles são as visitas às comunidades, favelas
Internet) funcionam como um elo que reconecta partes que foram
etc. A pesquisadora Beatriz Jaguaribe (2007) examina, em seu ensaio,
dissociadas do centro, reservado aos espetáculos.
as representações contraditórias sobre os roteiros de viagens vendi-
Cidades espetáculos, então, se revelam em “cidades sexy: ou dos a turistas para subirem ao morro e conhecerem a favela no Rio
198 Flávio Barbara Reis audiovisual revolucionário 199

de Janeiro. Nessas excursões, se o espectador procura um confronto res que são invisíveis à sociedade e que foram depositados nos su-
com o real, fazendo com que esse tipo de turismo seja atrativo, é búrbios e nos centros. Ela afirma que entre essas pessoas invisíveis
porque lhe são oferecidas comunidades autênticas, orgânicas. Essa se encontram os moradores de rua. Eles compõem uma paisagem
é a forma encontrada pelas cidades que tiveram seu imaginário (re) que não causa mais estranhamento. Eles “são o imprevisto e o não
construído pela mídia de se sobressaírem no mundo globalizado. No desejado da cidade, o que se quer apagar, desalojar, transferir, trans-
Rio de Janeiro, por exemplo, filmes como Cidade de Deus (Fernando portar, tornar invisível” (SARLO, 2014, p. 61). E, quando na primeira
Meirelles, 2003) e Tropa de Elite (José Padilha, 2007) impregnaram sequência de Amarelo Manga, Lígia abre as portas de seu estabeleci-
no imaginário uma cidade violenta que oferece perigos aos turistas. mento, observamos um exemplar desses seres invisíveis à sociedade
Porém, esse perigo é domesticado com a fetichização da estética da habitando sua porta. Para Lígia, que passa por ele sem nem sequer
favela nesses tours guiados e blindados, como uma visita a um sa- dirigir o olhar, o homem não existe, ele é invisível.
fari, no qual os animais são dóceis, soltos em seu habitat natural.
Segundo Sarlo (2014):
Dessa maneira, o espaço para uma reinserção da cidade no cenário
global se faz de forma efetiva. E a Recife de Cláudio Assis assim nos o subúrbio é o lugar em que o urbano não se
é apresentada no longa-metragem, um tour guiado e protegido pelo estabiliza, o limite interior sempre posto em
xeque pelo não urbano, que não é campo, mas
ultrarrealismo da cidade mais violenta do mundo. cascão, deterioração, aviltamento; no subúr-
bio, os cheiros e os materiais se impregnam
e se misturam, os quintais subsistentes fene-
cem, os edifícios sempre estão prestes a enve-
Recife imaginária lhecer prematuramente. (SARLO, 2014, p. 72)

Os subúrbios são os locais indesejados e invisíveis para o cen-


Após as peças do motor do carro girarem em seu eixo, conhe-
tro. São ocupados por adultos, crianças e animais que vivem em ter-
cemos uma parte de Recife. Em uma manhã qualquer, Isaac dirige
ritórios tomados por lixos e pelo que o centro descarta. Este ambien-
por ruas e avenidas enquanto escuta as notícias no rádio jornal da
te que é visto através dos vidros do carro de Isaac em um travelling
manhã. Somos apresentados às ruas desertas da cidade, através dos
contra a luz do nascer do sol, muito amarelo, amarelo-manga, ofus-
vidros do carro de Isaac, em uma sequência que ele percorre desde
cando o primeiro plano onde se encontram pessoas, evidenciando o
a periferia até o centro, em um nascer do sol muito amarelo. Nela
quão invisíveis elas são. A voz do locutor no rádio de Isaac dá bom dia
percebemos, além de toda a arquitetura que compõe a cidade, as
para todos os ouvintes, desejando-lhes um dia repleto de felicidade.
pessoas e os subsídios necessários à vida, uma interação que se faz
notável no dia a dia das pessoas que compõem os planos. Segundo O retrato da cidade é produzido do imaginário que circula pe-
Beatriz Sarlo (2014), habitam em todas as cidades homens e mulhe- los meios de comunicação, principalmente o rádio, a televisão e os
200 Flávio Barbara Reis audiovisual revolucionário 201

jornais. Como observado, as configurações das cidades globais maxi- Senso assim, podemos perceber que a narração do rádio no
mizam as diferenças dos indivíduos. Sendo assim, os meios de comu- início de Amarelo Manga vai ao encontro das palavras de García
nicação, ao contrário de orientá-los em meio a toda a complexidade Canclini (2002): em certo momento, o locutor dá bom-dia a uma co-
que se configura, acabam fornecendo subsídios para a padronização munidade específica, tentando estabelecer um diálogo direto com
e socialização com seus iguais. Neste ponto, é revelada essa cidade ela. O jingle do programa exerce função primordial ao delimitar o
que é escrita, estereotipada pelos meios de comunicação, no caso do recorte do radiojornal: ele se dedica apenas às notícias da cidade. Na
filme, pelo rádio. narração que ouvimos, é evidenciada, a partir dos acontecimentos
expostos, a falta da complexidade que García Canclini indica que o
Primeiramente, o rádio tem seu devido lugar marcado na his-
dispositivo traz. O locutor diz:
tória mundial, pois sem ele “não seria possível a formação de nações
capazes de integrar modos de falar de diferentes regiões, nem teriam [...] Esta é a sua Sopa da Cidade sempre dei-
tido sucesso líderes populistas que souberam usá-lo para comuni- xando você bem informado. Porque, afinal de
contas, nem tudo é tão difícil em Recife. Pegar
car-se com todas as classes sociais” (CANCLINI, 2002, p. 46). Ele tem a Kombi, minha senhora, por exemplo, é uma
sido usado também para uma comunicação direta com as pessoas, coisa muito fácil. Ser pego por uma Kombi
também, mais fácil ainda [...].
abrindo espaço para “gente comum” participar de seus programas
e emitir a sua opinião sobre determinados assuntos. Todavia, aqui A forma simples e reducionista com que vários problemas en-
nos interessa precisamente o argumento de García Canclini (2002) frentados em uma cidade grande são tratados pelos meios de co-
ao perceber que os discursos presentes nos rádios, mesmo que ca- municação fica marcada nessa pequena introdução do programa. No
muflados atrás da opinião direta do cidadão, integram um discurso momento em que o radialista faz o escárnio com tomar uma condu-
homogêneo e que não dá conta de abarcar a complexidade sócio ção e ser atropelado, para além da simplificação da vida cotidiana, o
urbana. A intenção que prevalece é a de locutor ainda dá pistas sobre a temporalidade em que a cidade está
reduzir a complexidade o máximo possível e situada: marcada por uma aceleração do tempo que acarreta uma
situar as opiniões diversas em um consenso perda do valor da experiência, isto é, um tempo em que o presente
imaginado como compartilhado pela maioria.
Para este ‘senso comum’ a cidade se caracte- se encontra alargado e o sentimento de depressão e vigília de uma
riza pela insegurança generalizada, o ‘despre- sociedade que vive acelerada e em um fluxo contínuo é crescente.
paro’ do corpo policial, ‘os valores do povo’ e,
principalmente, pela capacidade do rádio de Portanto, os indivíduos e a sociedade seguem a vida sem voltar o
permitir a expressão de todos (GARCÍA CAN- olhar para a experiência do passado ou se preocupar com perspecti-
CLINI, 2002, p.47).
vas para o futuro (KEHL, 2009). Nessa relação com o tempo e o espa-
ço, o homem se vê diante de uma fragmentação do mundo que dissi-
202 Flávio Barbara Reis audiovisual revolucionário 203

pa concepções temporais e espaciais que anulam completamente as ta, é indispensável que a diversidade de identidades nos possa ser
diferenças e as fronteiras (HARVEY, 2010). contada” (MARTÍN-BARBERO, 2006, p. 63). Então, uma vez que as
múltiplas identidades são traduzidas ou reapropriadas, há uma faci-
As imagens de uma cidade em movimento, que acorda e se-
lidade muito maior, no mundo globalizado, para a circulação desses
gue a vida rotineira evidenciada pelo solilóquio de Lígia, pulsa na tela
produtos, gerando uma hibridização de culturas. Dado que os mi-
através dos vidros do carro em movimento. Ainda, o som do rádio in-
crorrelatos identitários possam circular livremente, eles são reapro-
siste em dizer que o programa sempre deixa o espectador bem infor-
priados pelos meios de comunicação e se deslocam de um meio a
mado. Todavia, um questionamento deve ser ponderado: qual é essa
outro facilmente.
informação levada aos ouvintes e o que é estar bem informado? Isto
é, o programa lança notícias que os produtores julgam interessantes Nesse caso podemos perceber uma apropriação feita em certo
e em seu discurso tentam convencer o espectador que ele está não momento do filme. Nota-se que o longa é permeado como um todo
só informado, mas bem informado. O que nos faz automaticamente por imagens semidocumentais. E elas estão inseridas em momentos
retornarmos a García Canclini (2002): os cidadãos e as cidades são cruciais da trama, postas no filme para reafirmar a multiplicidade de
imaginados pelos meios de comunicação, que criam e propagam es- identidades presente nas cidades. Somado às imagens semidocu-
tereótipos no imaginário popular. mentais [2], o som diegético do programa de rádio continua:

Jesús Martin-Barbero (2006), em seu texto “Tecnicidades, [...] Vamos às notícias do dia: outro caso de
identidades, alteridade: mudanças e opacidades da comunicação no polícia. Não fosse a polícia a principal suspei-
ta do homicídio de dois meninos no grupo
novo século”, diz que escolar Jean Paul Sartre que apareceram no
banheiro da escola. Quatorze anos cada qual.
até pouco tempo, falar de identidade era falar Mortos por dois policiais que faziam a ronda.
de raízes, isto é, de costumes e território, de O motivo do crime: maconha. O negócio é o
tempo longo e de memória simbolicamente seguinte: quem viu não quer falar. Quem fala
densa. Disso e somente disso estava feita a só ouviu dizer. É isso mesmo. Essa é a Sopa da
identidade. Mas falar de identidade hoje im- Cidade com a verdade diretamente no seu rá-
plica também – se não quisermos condená-la dio [...] (grifo nosso).
ao limbo de uma tradição desconectada das
mutações perceptivas e expressivas do pre-
sente – falar de migrações e mobilidades, de Essa reapropriação do rádio, inserida no momento em que as
redes e fluxos, de instantaneidade e fluidez. imagens de recifenses comuns realizam tarefas do cotidiano, reforça
(MARTÍN-BARBERO, 2006, p. 61)
por um lado a multiplicidade de pessoas e identidades existentes na
cidade, e ao mesmo tempo revela que essas mesmas pessoas são
Além disso, o pesquisador nos mostra que “para [que] a plu-
imaginadas e estereotipadas pelos meios de comunicação. A fala
ralidade das culturas do mundo seja politicamente levada em con-
204 Flávio Barbara Reis audiovisual revolucionário 205

marcada do locutor diz especificamente de um delito, entre os vá- desde o momento que sai da igreja que frequenta até sua chegada
rios que acontecem todos os dias em grandes cidades, e se mostra em casa.
estereotipado quando este diz enfaticamente que o motivo do crime
No interior de uma cidade catástrofe, Amarelo Manga procu-
era maconha. A expressão na voz cai nos clichês das narrações de
ra se inserir em narrativas individuais e paranoicas. Nessa acepção,
programas criminais das TVs, esses que espirram sangue nas telas e
o ensaio de Vera Lúcia Follain de Figueiredo nos fornece subsídios
exploram (no pior sentido da palavra) as narrativas trágicas huma-
para a compreensão de narrativas contemporâneas. Segundo a pes-
nas, principalmente quando a palavra maconha é enfatizada de ma-
quisadora, as narrativas contemporâneas se voltam para tramas com
neira extremamente pejorativa. Além disso, no trecho, o filme deixa
apelo popular e individualizam o olhar do personagem que possui
marcada a informação que o rádio traz ao inserir “quem viu não quer
um estado mental alterado, isto é, há um privilégio dos cineastas em
falar” e “quem fala só ouviu dizer”, evidenciando a fragilidade, a falta
construírem narrativas que o ponto de vista do personagem paranoi-
de apuração e superficialidade com que os noticiários tratam o acon-
co é fundamental para a trama. No filme aqui analisado, isso não é
tecimento.
diferente. Todos os personagens são únicos, excêntricos e partilham
Destaca-se aqui o meio de comunicação radiofônico, pois per- de um universo múltiplo e fragmentado.
cebemos que ele cumpre uma função crucial na narrativa de Amare-
A pesquisadora afirma que
lo Manga. Pela locução, as características reducionistas das múltiplas
diversidades que uma cidade abarca são evidenciadas e, ainda, ele Vários estudiosos têm chamado a atenção
nos guia por uma rota segura, assim como turistas estrangeiros são para o fato de que a multiplicação dos siste-
mas eletrônicos de vigilância, na sociedade
guiados por favela tours. Além disso, o rádio aparece, também, como contemporânea, tende a criar uma atmosfera
paranoica, colocando todos sob permanente
elemento antecipador do clímax da história. Inserido no noticiário suspeita, ou seja, criando condições para o flo-
policial, o arco de Kika é revelado. Ao alterar o curso da narrativa, rescimento de uma razão paranoica. (FIGUEI-
REDO, 2004, p. 129)
antecipando o seu final logo nas primeiras cenas, o rádio se configura
como um elemento catalisador da paranoia. É através dele que a vida
Ao retornarmos para o universo em que Claudio Assis filma, o
cotidiana da cidade se desnuda de forma estereotipada. É em sua
de uma geração de artistas profundamente influenciada pelo man-
fala demarcada que, logo no início, percebemos que Kika é a “dona
guebeat, a vigilância é colocada em seu filme não apenas por apara-
de casa muito respeitada” que flagra o marido a traindo. A paranoia
tos tecnológicos inseridos na narrativa, mas também pela exploração
é revelada à medida que ela sai na rua e se sente observada o tempo
de um ponto de vista particular recifense: aquele que reafirma que
todo – inclusive é abordada no ponto de ônibus, onde um estranho
o mundo globalizado é caótico, fragmentado e, por que não, belo?
dirige a palavra a ela. Ela vive em um estado de medo constante,
206 Flávio Barbara Reis audiovisual revolucionário 207

Todos os personagens do filme partilham de uma ansiedade [2] São imagens de pessoas comuns, não atores, filmadas no dia a
constante. Lígia odeia os seus dias. Para ela, acordar é a pior parte dia. Por exemplo, indivíduos abrindo estabelecimentos comerciais,
indo para o trabalho, entre outros.
da sua existência e o seu único lapso de felicidade é quando vai dor-
mir. Ela vive uma vida infeliz e, todos os dias, ter que levantar de sua
cama e abrir o seu bar é extremamente desagradável e monótono. Referências
É uma atividade apenas necessária, não prazerosa. Os assédios sofri-
BAPTISTA, M; MASCARELLO, F. (Org.). Cinema mundial contemporâ-
dos são recorrentes e ela se sente profundamente incomodada com neo. Campinas: Papirus, 2012.
isso, chegando a um ponto tão extremo em que é capaz de mostrar CANCLINI, Néstor García. Cidades e cidadãos imaginados pelos meios
seu órgão genital, dessexualizando o olhar, transformando seu sexo de comunicação. Revista Opinião Pública, 2002. Vol. 3 n. 1. P. 40-53.
em algo simplesmente natural e biológico, sem nenhuma conotação CANCLINI, Néstor García. Imaginários Culturais da Cidade: conheci-
erótica. Isaac, homem que assedia Lígia e para quem ela mostra sua mento/espetáculo/desconhecimento. In: COELHO, T. (Org.). A cultu-
genitália, é um necrófilo que sofre todas as noites com pesadelos em ra pela cidade. São Paulo: Iluminuras/Itaú Cultural, 2008. p. 15-31.
que os mortos que ele já assediou o assombram. Ele vive no hotel FIGUEIREDO, Vera Lúcia Follain de. Narrativas paranoicas e o mal-es-
tar da interpretação. In: M. PEREIRA; R.C. GOMES; V.L.F. FIGUEIREDO.
onde Dunga trabalha. Este é obcecado por um amor que nunca terá, Comunicação, representação e práticas sociais. Rio de Janeiro/Apa-
o de Wellington Kanibal, marido de Kika. Sua paixão é tão forte que recida: Puc Rio; Ideias e letras, 2004. p. 127-140.
chega a tramar encontros que mudarão completamente a vida do ca- HALL, Stuart. Codificação e Decodificação. In: S. HALL. Da diáspora:
sal. E Kanibal, o personagem hobbesiano de Assis, é um açougueiro identidade e mediações culturais. Belo Horizonte/Brasília: UFMG;
violento que vive em permanente vigilância com o mundo, acredi- Unesco, 2003. p. 387-404
tando que os homens merecem morrer. É nessa cidade, marcada por HARVEY, D. A compressão do tempo/espaço e a condição pós-mo-
derna; o tempo e o espaço no cinema pós-moderno. In: D. HARVEY.
uma incessante sensação de medo e urgência de real, que a vida de Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 2010. p. 257-289
todos esses personagens se entrelaça.
KEHL, Maria Rita. O tempo e o cão. São Paulo: Boitempo, 2009.
JAGUARIBE, Beatriz. O choque do real: estética, mídia e cultura. Rio
Notas de Janeiro: Rocco, 2007.

[1] Grande Prêmio do Cinema Brasil (2002) de melhor fotografia MARTÍN-BARBERO, Jesús. Tecnicidades, identidades, alteridades:
(Walter Carvalho), tendo recebido ainda outras 12 indicações; Fórum mudanças e opacidades da comunicação no novo século. In: MO-
de Cinema Novo, no Festival de Berlim (2002); Melhor Filme, prêmio RAES, D. (Org.). Sociedade midiatizada. Rio de Janeiro: Mauad, 2006.
dos críticos, júri oficial e popular, melhor ator (Chico Diaz), melhor p. 51-79.
fotografia, melhor atriz coadjuvante (Dira Paes) e conjunto de elenco SARLO, Beatriz. A cidade vista: mercadorias e cultura urbana. São
no Festival de Cinema de Brasília (2002); Melhor filme no Festival de Paulo: Martins Fontes, 2014.
Cinema Latino-americano de Toulouse (2003), entre muitos outros.
El cine nacional de tres
directores mexicanos de
Hollywood31
Fernando Cruz Quintana32

31 Para citar este texto como fuen-


te de su investigación, utilice la plantilla a continuación::
QUINTANA, Fernando Cruz. El cine nacional de tres directores mexicanos de
Hollywood. In: ROCHA, Adriano Medeiros da; LAIA, Evandro José Medeiros
(Org.). audiovisual revolucionário. São Paulo: Editora dos Frades, 2021.
32 Doctor en Ciencias Políticas y Sociales por la Universidad Nacional Au-
tónoma de México (UNAM). Actualmente es profesor en Ciencias de la Comuni-
cación por la Facultad de Ciencias Políticas y Sociales de la UNAM.
audiovisual revolucionário 211

Introducción

México apareció desde épocas muy tempranas en la historia


de la cinematografía mundial puesto que, no habiendo cumplido ni
siquiera un año de existencia, el cinematógrafo llegó a este país, tan
solo ocho meses después de su primera exhibición pública. En julio
de 1986, Gabriel Veyre y Claude Ferdinand Von Bernard, arribaron a
suelo azteca para mostrar el cinematógrafo ante el presidente Porfi-
rio Díaz (De los Reyes, 1984: 8). En ese entonces dio inicio la longeva
historia del cine mexicano, que años más tarde —en tiempos previos
a la Segunda Guerra Mundial— se convertiría en una de las princi-
pales industrias cinematográficas del mundo. (Peredo, 2004: 75)
Además del escenario bélico y del hecho que México no participara
activamente de él, otras circunstancias, como era el tener un saluda-
ble esquema productivo y de distribución, así como contar con legis-
laciones que protegían a la exhibición de cine nacional, favorecieron
que esta nación conformara una gran industria y que la cinematogra-
fía se convirtiera en una de sus principales actividades económicas.
(García Riera, 1998)

Esa enorme grandeza que alguna vez tuviera el cine mexica-


no se vino a menos hacia finales del siglo XX. Muchas circunstancias
propiciaron que esta industria cinematográfica nacional tuviera un
colapso, pero dos de ellas fueron determinantes: el descuido y aban-
dono gradual de la participación estatal en materia de producción,
distribución y exhibición de cine, y la entrada en vigor del Tratado
de Libre Comercio de América del Norte (TLCAN), que desprotegió la
exhibición de cine nacional y brindó condiciones propicias para que
el cine de Hollywood permeara con mucha fuerza en las salas del
212 Fernando Cruz Quintana audiovisual revolucionário 213

país.33 Precisamente en este contexto de deterioro surgieron tres di- mente los tres hayan destacado en Hollywood no se debe solo al gran
rectores de cine mexicano que a la postre se convertirían en persona- talento que existe en México, sino también a que, tristemente, las
lidades destacadas de la cinematografía mundial por haber obtenido condiciones para hacer cine a finales del siglo XX en este país los hi-
(dos de ellos en un par de ocasiones) el premio Oscar a Mejor direc- cieron emigrar a un mejor sitio para desarrollar su potencial. Aunque
tor, que entrega la Academia de las Artes y Ciencias Cinematográficas serán revisadas algunas de las características formales del trabajo de
(AMPAS por sus siglas en inglés) de Estados Unidos. En concreto me los tres, este capítulo constituirá sobre todo un ejemplo de cómo el
refiero a Alfonso Cuarón, Alejandro González Inárritu y Guillermo del contexto socio histórico puede ser determinante en el resultado final
Toro. de una producción cinematográfica. Espero que la propuesta pueda
suscitar el interés de los lectores y que con esta se conozca un poco
El nombre de estos tres directores mexicanos es bien conocido
más respecto del cine mexicano.
en el mundo y ello se debe a que la mayor parte de su carrera la han
realizado en la industria de cine de Hollywood y con ello se han ase-
gurado una fama internacional. Este capítulo no tiene por objeto ha- El inicio de una carrera cinematográfica (abordaje
cer eco de esa notoriedad, sino voltear la mirada a momentos menos metodológico)
conocidos, cuando los tres comenzaron su carrera cinematográfica
en México. Esta es la propuesta revolucionaria de este trabajo: llamar En Análisis del film (1990), Jaques Aumont y Michel Marie en-
la mirada hacia la marginalidad, hacia aquello que se encuentra en tregan una obra destinada a comprender la complejidad de elaborar
segundo plano (como es el cine mexicano frente al hollywoodense), una metodología de análisis para un trabajo audiovisual. A lo largo
no por ser menos importante sino simplemente porque dadas sus de ese libro se expresan las ideas de que no existe un solo método de
condiciones estructurales, no recibe la misma atención que la mayor análisis y de que ninguno de ellos es infalible. Lo mismo la semiótica,
industria cinematográfica del mundo. que la sociología o la historia, e incluso la propia teoría cinemato-
No existe un mejor criterio que el de la nacionalidad para re- gráfica, son perspectivas a partir de las cuales se puede partir para
lacionar el trabajo de estos directores mexicanos, pero que precisa- analizar, o separar las partes (de acuerdo con la propia definición del
término), de un filme. Lo que importa es la claridad de cuáles son los
33 El cine proveniente de los Estados Unidos de Norteamérica siempre ha objetivos por los que se analiza una obra.
ocupado el primer lugar de exhibición en México, sin embargo, previo al inicio
de operaciones del TLCAN, se terminó con una legislación que aseguraba tiempo
Aunque pueden existir propósitos sociales y utilitarios al rea-
en pantalla para las películas nacionales. Con la entrada en vigor del TLCAN, en
donde se debía mantener una libre competencia, no se podía dar un trato prefe- lizar un análisis, coincido con Aumont y Marie cuando dicen casi al
rencial al cine mexicano frente al estadounidense (esto supondría una contra- principio de su obra que el trabajo de un analista permite que “sin-
dicción en el libre mercado) y eso a la postre terminó afectando en las ganancias
obtenidas por la exhibición y por ende también a la producción de cine. tamos un mayor placer ante las obras a través de una mejor com-
214 Fernando Cruz Quintana audiovisual revolucionário 215

prensión de las mismas.” (1990, 18) Para esto sirve el análisis cine- siderado como lo principal. Si hacemos una analogía con lo anterior
matográfico, para poder disfrutar más ampliamente de un trabajo y el escenario cinematográfico mundial, podemos considerar a Holly-
audiovisual. Probablemente esto es más claro cuando hablamos del wood como la industria más llamativa, como el centro de atención
análisis que se enfoca exclusivamente en el texto fílmico y no indaga máximo en materia cinematográfica (al menos considerado así en
en aspectos extra fílmicos. Con esto no quiero denostar de ningún cuestión económica) y al resto de las industrias cinematográficas na-
modo al ejercicio analítico como carente de utilidad, pero posiciono cionales como el segundo plano de atención. Este capítulo se centra
en primer plano el hecho de que gracias a él nos deleitamos y apro- en rescatar el trabajo que tres directores de cine mexicanos hicieron
piamos de mejor modo de las obras fílmicas. Los análisis nos revelan en México, aunque su carrera profesional se haya desarrollado sobre
un grado de profundidad distinto (e inagotable puesto que pueden todo en los Estados Unidos. Mi deseo es que se conozcan los porme-
existir muchos y la suma de ellos no agota el sentido de una obra), nores del inicio de su trayectoria y las razones que llevaron a uno de
al de una simple visualización y con ello podemos comprender de un ellos (Alfonso Cuarón) a regresar a filmar a su país.
modo amplificado el mensaje de las películas.
El punto de partida para el análisis será exponer algunos bre-
Enrique Monterde propone algunos elementos distintos al de ves elementos biográficos de cada uno de los tres directores, después
la película misma y el lenguaje audiovisual al realizar un análisis fíl- se elaborará un listado completo de sus largometrajes, en donde se
mico: la ideología, los autores, los públicos, la censura y la crítica. destaquen cuáles de ellos fueron realizados en México. Finalmente,
(1986, 45-55) Si se observa con cuidado, a excepción del primero de cada película mexicana analizada en este trabajo será estudiada a
los criterios propuestos por Monterde, el resto de ellos son recursos partir de criterios fílmicos, como son una revisión de la trama y algu-
externos a los filmes. En el caso de Aumont y Marie, éstos son consi- nos aspectos destacados de su lenguaje audiovisual; y criterios extra
derados como “instrumentos documentales” (1980, 55) que brindan fílmicos, como el relato del contexto de su realización, la recepción
información adicional para conocer no solo el sentido de una obra, que tuvo por el público y la crítica, y los premios y distinciones que
sino también las repercusiones que esta tiene al interior de una so- obtuvo dicho filme. Esta metodología de trabajo se expresa de mane-
ciedad. Si bien presento en este capítulo un análisis de algunas pelí- ra sintética en el siguiente esquema:
culas en concreto, retomaré algunos de estos instrumentos propues-
tos por Monterde y me permitiré realizar un trabajo que considere,
sobre todo, algunos aspectos extra fílmicos.

Como mencioné con anterioridad, la propuesta revolucionaria


(para ir acorde con la esencia de este libro) de este capítulo consiste
en llamar la atención hacia lo marginal, hacia aquello que no es con-
216 Fernando Cruz Quintana audiovisual revolucionário 217

1. Autor: directores de cine mexicanos más exitosos de toda la historia. Utilí-


cese esta sencilla metodología si acaso resulta práctica y conveniente
Síntesis biográfica Filmografía completa Filmografía mexi-
para rastrear la experiencia formativa de otros directores de distintas
cana
nacionalidades que, como el caso de los que aquí se analizan, han
2. Filmes: hecho la mayor parte de su carrera en algún país distinto al suyo.

Elementos extra fílmicos Elementos fílmicos La industria de cine mexicano en la última década
Contexto de realización Trama del siglo XX
Recepción por el público y la crí- Elementos audiovisuales
tica De acuerdo con el Informe sobre las Migraciones en el Mundo
Premios y distinciones 2020 de la Organización Internacional de Migraciones (OIM), México
es el segundo país con más emigraciones en el mundo, con 11 mil-
Me interesa que esta revisión filmográfica muestre la impor- lones 800 mil personas que han salido de suelo azteca para radicar
tancia de estudiar los contextos de producción y el aspecto formativo en otro país. De esa cifra, 11 millones 400 mil mexicanos radican en
de los directores mexicanos (mediante una breve revisión de su bio- los Estados Unidos y los 400 mil restantes en el resto del mundo.34
grafía). Estas circunstancias son muy importantes para el resultado Estos datos representan cifras reveladoras del destino de millones
final de las películas pues no olvidemos que de mexicanos que cruzan la frontera norte de su país, sobre todo
Un filme —como un libro— no es solamente
en busca de mejores condiciones laborales. Aunque la imagen cierta
el relato de una historia sino también la histo- que se tiene de la migración es la del movimiento ilegal motivado por
ria de un relato […] todo filme como producto
tiene su propia historia que no acaba con su la precariedad económica, existe otro tipo de migración que tiene
estreno, sino se prolonga en el tiempo a través que ver también con los estratos mediano y alto de la sociedad y que
de las alteraciones sufridas: deterioro físico de
las copias, censura, comercialidad [etc.] (Mon- responde también a la búsqueda de mejores opciones para desar-
terde, 1986: 42) rollar alguna actividad profesional que, lamentablemente, no puede
ejercerse a cabalidad desde el país de origen, como fue el caso de la
De este modo, entiendo las películas como eventos concebi- cinematografía en México durante la década de 1991 al 2000.
dos en un contexto socio cultural específico y de los cuáles existen
Aunque en el plano histórico México cuente con una salud
repercusiones más o menos significativas en la sociedad en la que
cinematográfica excepcional, leída esta solo a partir del número de
son exhibidas. Sirva este ejercicio analítico para tener una historia
ampliada de cuáles han sido los orígenes profesionales de tres de los 34 Estas cifras están redondeadas.
218 Fernando Cruz Quintana audiovisual revolucionário 219

producciones realizadas, 6 mil 846 películas de 1910 a 2019 (IMCINE, Cuando se desprotegió la exhibición de cine nacional y los fil-
2020: 242 y 243), la última década del siglo XX supuso una etapa de mes estadounidenses entraron aún con mayor fuerza al mercado na-
transición económica, política y social que tuvo también un impacto cional, se afectó por ende a la producción (además de que el aparato
en materia cinematográfica. Como mencioné, previo a la firma del productivo estatal se desmanteló poco a poco desde la década de
TLCAN la estructura jurídica, productiva, distributiva y de exhibición 1980). Esta debacle se aprecia mejor en Tabla 1 que registra visual-
se modificó para lo que supondría una nueva etapa comercial con los mente el número de producciones realizadas de 1990 al año 2000.
Estados Unidos de Norteamérica y Canadá. Una de las consecuen- Esa caída fue tal que a mediados de la última década del siglo XX se
cias más lamentables en materia cinematográfica de esta etapa fue produjeron sólo 9 películas, un número realmente bajo para lo que
la desprotección que sufrió la exhibición de cine nacional, que ase- acostumbraba la industria cinematográfica mexicana.
guraba hasta 50 por ciento del tiempo de pantalla para las películas
mexicanas y que tuvo que ser modificada para que existiera una com- El tiempo de crisis que experimentó la cinematografía en Mé-
petencia igualitaria con las películas extranjeras.35 Muchas voces na- xico propició la aparición de dos fondos de apoyo a la producción
cionales advirtieron en su momento las consecuencias lamentables cinematográfica que lograron repuntar de nuevo la realización de
de poner a la cultura sin protecciones en el libre mercado y abogaban películas: el Fondo para la Producción Cinematográfica de Calidad
porque, al menos en materia de cultura, se aplicara la llamada “ex- (Foprocine), en 1998, y el Fondo de Inversión y Estímulos al Cine (Fi-
cepción cultural”, que busca proteger las producciones nacionales de decine), en 2002. Más adelante se sumaría también un estímulo fis-
maneras diversas. cal para apoyar desde la iniciativa privada a la producción de cine, el
Eficine 226, en 2006. No pretendo entrar en detalle sobre el modo en
La diversidad cultural tiene que ver con la am- que estos apoyos funcionan, solo quiero mencionarlos para caracte-
pliación de nuestro propio imaginario en el
conocimiento de las diferentes estéticas que rizar la manera en que se reestructuró el apoyo gubernamental hacia
son propiciadas por cada cultura en particular. la producción de cine en México.
Evidencia la universalidad de la obra artística
en su propia identidad. El cine mexicano debe
estar inscrito como un bien nacional, como
parte de la “excepción cultural”, de la diversi-
dad cultural, que actualmente impulsan varios
países a favor de su patrimonio cultural y que
redundará con seguridad en nuevos plantea-
mientos estéticos. (CASAS, 2006: 78)

35 Véase Isis Saavedra Luna. Entre la ficción y la realidad. Fin de la indus-


tria cinematográfica mexicana 1989-1994, Universidad Autónoma Metropolitana,
Unidad Xochimilco, 2007, 318 pp
220 Fernando Cruz Quintana audiovisual revolucionário 221

The three amigos

Quien esté medianamente familiarizado con el cine hollywoo-


dense sabrá reconocer el mote de “The three amigos”, que se utiliza
para hablar de la amistad existente entre Alfonso Cuarón, Alejandro
González Iñárritu y Guillermo del Toro, todos ellos directores de cine
mexicanos. La relación que existe entre estos tres cineastas se dio
gracias al sentimiento de pertenencia nacional y a su propia labor
profesional en los Estados Unidos más que a un pasado en común.
Los tres se formaron en contextos distintos, comenzaron su carrera
en ámbitos diferentes y sólo establecieron contacto tiempo después,
Tabla 1. Películas mexicanas producidas (1990-2000). Fuente: Anuario Estadísti-
co IMCINE 2019. cuando ya se encontraban fuera de su país. Es, entonces, su naciona-
lidad la que los ha llevado a encontrarse y realizar múltiples colabora-
Este fue el modo en que se cayó y recuperó la cinematografía ciones y trabajo en conjunto: a veces Cuarón ha producido filmes de
mexicana en la década de 1990. En este contexto de incertidumbre, del Toro, han trabajado en Hollywood con otros cineastas mexicanos
algunos cineastas mexicanos tuvieron que buscar mejor suerte fuera (como Emanuel Lubezki) y han dirigido a actores en común (como a
de su país y dada la cercanía geográfica y el tamaño de la industria Gael García Bernal). Es también este sentimiento patriótico el que
cinematográfica del vecino país del norte, la mejor opción resultaba me ha impulsado a relatar el inicio de las carreras de estos tres direc-
emigrar y hacer cine en los Estados Unidos de Norteamérica. Esta tores para este libro revolucionario brasileño sobre el audiovisual. No
situación fue algo que tuvieron que experimentar no sólo los direc- obstante, todas estas coincidencias, los tres tienen un estilo particu-
tores de cine, sino también muchos otros profesionales del medio lar que permite distinguirlos y que por cuenta propia los ha llevado
audiovisual que buscarían oportunidad tanto en la televisión como a tener éxito en la mayor industria cinematográfica del mundo. El
en el cine estadounidense. La historia del éxito que Alfonso Cuarón, orden que he decidido para presentarlos en este capítulo es el del
Alejandro González Iñárritu y Guillermo del Toro han tenido en aquel inicio de su carrera cinematográfica.
país es bien conocida y por tanto ahora me propongo a relatar la eta-
pa previa, cuando su labor de cineastas comenzó en México.
222 Fernando Cruz Quintana audiovisual revolucionário 223

Alfonso Cuarón a Mejor Ópera prima, que entrega la Academia Mexicana de Artes y
Ciencias Cinematográficas (AMACC). Esta cinta de cine negro mexi-
cano fue considerada como una de las mejores 100 en la historia del
Alfonso Cuarón Orozco nació el 28 de noviembre de 1961 en
cine mexicano por una famosa encuesta hecha por la revista Somos
la Ciudad de México. La mayor parte de su infancia transcurrió en la
en 1994.37 De esa primera participación en la industria cinematográ-
colonia Roma de la capital mexicana; esta etapa de su vida inspiró a
fica hasta la realización de su primera cinta, Sólo con tu pareja pasa-
muchas de las situaciones que se muestran en Roma (2017) su filme
ron 7 años. En ese periodo intermedio, Alfonso Cuarón no detuvo su
más reciente. Sus padres fueron, Alfredo Cuarón, médico nuclear; y
trabajo audiovisual, sino que lo continuó en la televisión mexicana.
Cristina Orozco, química farmacéutica, pertenecientes a la clase me-
dia burguesa del México del siglo XX. Sobre todo, Alfonso Cuarón re- De 1988 a 1990, Televisa, la principal productora de conte-
cuerda la formación y manutención de su madre, puesto que la figura nidos audiovisuales en México y la cadena televisiva nacional más
paterna estuvo ausente desde que el ahora cineasta tenía 10 años. grande en ese entonces, emitió La hora marcada, una exitosa serie
de terror a través de su canal principal, “El canal de las estrellas.”
Entre 1978 y 1983, Alfonso Cuarón estudió Filosofía en la Fa-
Cada martes a las 22:00 horas se estrenaba un nuevo capítulo de 30
cultad de Filosofía y Letras de la Universidad Nacional Autónoma
minutos de duración. En total, esta serie se compone de 85 capítulos,
de México (UNAM) y después fue alumno del Centro Universitario
cada uno con una historia diferente de terror. En esta producción de
de Estudios Cinematográficos también de la UNAM (hoy en día esta
Televisa participaron más de un centenar de directores, guionistas
escuela se ubica dentro del complejo de Ciudad Universitaria y ha
y productores que laboraban ya sea en el cine o en la televisión y
sido renombrada como Escuela Nacional de Artes Cinematográficas.
por tanto fue una plataforma que permitió a muchos futuros profe-
Aunque Alfonso no concluyó los estudios en esta última institución,
sionales del audiovisual realizar sus primeros trabajos. Es el caso de
esta etapa de su vida formativa fue muy importante tanto en el plano
cineastas tan importantes como Emmanuel Lubezki, Guillermo del
personal (ahí conoció a Mariana Elizondo con quien tuvo a su primer
Toro y Alfonso Cuarón. Éste último dirigió cuatro capítulos: el episo-
hijo, Jonás) como en el profesional (también ahí conoció a Emmanuel
Lubezki, con quien hizo sus primeros trabajos escolares y junto con
xicana de Artes y Ciencias Cinematográficas (AMACC) en reconocimiento al tra-
quien trabajaría después en repetidas ocasiones). bajo de los profesionales de la industria cinematográfica mexicana. A la usanza de
los premios Oscar, estos galardones se entregan en diferentes categorías.
El primer empleo que Alfonso Cuarón tuvo en el ámbito ci- 37 La revista Somos fue una de las revistas mexicanas más famosas sobre
nematográfico fue el de ser asistente de dirección de José Luis Gar- cultura popular y entretenimiento. En julio de 1994, con motivo de su edición
número 100, publicó un número especial sobre las mejores 100 películas en la
cía Agraz para Nocaut (1984), película que obtuvo el premio Ariel36 historia del cine mexicano hasta ese entonces. Para su edición se pidió la opinión
a 25 expertos en el tema, entre los que se encontraban, cineastas, críticos de cine y
36 El premio Ariel es una distinción anual entregada por la Academia Me- estudiosos de la cinematografía.
224 Fernando Cruz Quintana audiovisual revolucionário 225

dio 2, “A veces regresan”; el episodio 5 “De ogros”; el episodio 20, Harry Potter and the prisoner of Reino Unido/Estados Unidos
“No retornable”: el episodio 57, “No estoy jugando” y el episodio Azkaban (2004)
73, “Zangamanga”. También participó en la escritura del episodio 13,
Children of men (2006) Estados Unidos/Reino Unido/
“Regalo de navidad” (dirigido por Juan Mora Catlett) y del episodio
Japón
21, “Doblemente yo” (dirigido por Alfredo Gurrola).
Gravity (2013) Reino Unido/Estados Unidos
El trabajo en La hora marcada fue el escenario ideal para que Roma (2018) México
Alfonso Cuarón demostrara sus habilidades de dirección y escritura
de audiovisuales. Un año después del término de esta serie televisi-
va, Cuarón realizaría su ópera prima, Sólo con tu pareja (1991), el pri- Sólo con tu pareja
mero de ocho largometrajes que ha dirigido a lo largo de su carrera
hasta el año de redacción de este capítulo (2020). Tras el éxito de su
El debut en cine de Alfonso Cuarón relata la historia de Tomás
primer filme, Cuarón emigró a los Estados Unidos, donde filmó cinco
Tomás (Daniel Giménez Cacho), un don Juan de mediana edad que
películas, pero regresó a México para realizar dos trabajos más: Y tu
pasa sus noches haciendo malabarismos para conquistar a muchas
mamá también (2001) y Roma (2018). En dos ocasiones Alfonso Cua-
mujeres de las que no puede mantener ni sus nombres correctos.
rón obtuvo el premio Oscar a Mejor director: en 2014 por su cinta
Su fortuna de casanova se ve arruinada cuando Silvia Silva (Dobrina
Gravity y en 2019 por la ya mencionada Roma.
Cristeva), una enfermera quien también era cortejada por él, altera
A continuación, puede verse una tabla con los largometrajes sus resultados para hacerle creer que padece SIDA. Este hecho hace
dirigidos por Alfonso Cuarón y posterior a ella un análisis de los fil- que Tomás entre en crisis y se replantee su manera de ser para con
mes que realizó en México (mismos que están destacados en negri- las mujeres y la vida en general. Con esta premisa, Alfonso Cuarón
tas en esta lista). entrega una comedia inteligente en la se abordan temas complejos
para la época, como son el VIH-SIDA y el suicidio (Haddu, 2005: 81) y
Película y año Nacionalidad en la que se da cabida a problemáticas de la clase media mexicana,
Sólo con tu pareja (1991) México que históricamente habían estado un tanto abandonados a favor de
A little princess (1995) Estados Unidos otros temas y contenidos.
Great expectations (1998) Estados Unidos En una época en la que, como mencioné antes, el cine mexica-
Y tu mamá también (2001) México no iba en plena decadencia, Sólo con tu pareja fue un verdadero éxi-
to comercial en la sociedad mexicana al convertirse en la cinta más
226 Fernando Cruz Quintana audiovisual revolucionário 227

taquillera en 1992 (Valadez, 2009: 59). Lamentablemente, el éxito al películas mexicanas por la encuesta hecha por la revista Somos, que
interior del país no tuvo una réplica fuera de él puesto que existió ya mencioné con anterioridad en este trabajo.
una problemática de distribución de la cinta entre Alfonso Cuarón y
el Instituto Mexicano de Cinematografía, quien fue una de las instan-
cias que financió parte de la película e intentó realizar esta labor de Y tu mamá también
importación de la cinta. Este conflicto fue una de las muchas compli-
caciones de hacer y distribuir cine en México en aquellos años y que Tras haber filmado dos cintas en los Estados Unidos A Little
motivaron a Cuarón a emigrar hacia los Estados Unidos. princess (1995) y Great Expectations (1998), Alfonso Cuarón regresó
a México para filmar Y tu mamá también (2001). Probablemente esta
Sólo con tu pareja estuvo nominada a 4 premios Ariel: mejor
sea la cinta con la que Alfonso Cuarón obtuvo su fama mundial. La
fotografía, mejor ópera prima, mejor guión cinematográfico y me-
historia gira entorno a dos amigos adolescentes tardíos, Julio (Gael
jor argumento original. Sólo obtuvo el último de éstos y el premio
García Bernal) y Tenoch (Diego Luna), quienes, junto con Luisa (Mari-
se otorgó a Alfonso y su hermano Carlos Cuarón, quienes conjun-
bel Verdú), realizan un viaje hacia una playa llamada “Boca del cielo.”
tamente escribieron la historia de la cinta. Como dato adicional, el
Muy al estilo de las películas llamadas “road movie” los personajes
tres veces ganador del premio Oscar por mejor fotografía, Emmanuel
atravesarán por diversas situaciones que los harán aprender sobre sí
Lubezki, fue el encargado de la fotografía en esta cinta. Esta fue la
mismos, sus tabúes y sus limitaciones.
primera colaboración que hubo entre estos dos cineastas mexicanos
y que continuó en más de una de las cintas de Hollywood que dirigió Estrenada en 2001, Y tu mamá también aprovechó el interés
Alfonso Cuarón. que la cinta Amores perros (Alejandro González Iñárritu, 2000) trajo
hacia el cine mexicano un año atrás. Pero la atención no fue sólo pro-
Más allá de la buena recepción que hubo entre el público
ducto de este impulso: junto con su hermano Carlos, Alfonso Cuarón
mexicano, Sólo con tu pareja fue también bien acogida por la críti-
ca cinematográfica. En un momento en el que escaseaban las cin- escribió una historia entretenida que mostraba aspectos variopintos
tas mexicanas, esta película supo mostrar una historia con temáticas de una cultura mexicana largamente estereotipada por el cine holly-
novedosas (o que al menos no habían sido tratadas antes en el cine woodense. Esta es una de las grandes virtudes del filme: se puede
mexicano) como es el de la enfermedad del SIDA ocasionada por el conocer un México diverso desde la mirada adolescente de los dos
VIH. Este asunto no pasó desapercibido por la crítica que la considero protagonistas de la película; llena de esperanza, ingenuidad y la ma-
un ejemplo más del llamado “nuevo cine mexicano”, que represen- licia característica de los jóvenes. Pese a ese acento nacional, el éxito
taba una ruptura con el cine de mala calidad o nada taquillero de los internacional que tuvo el filme es un indicativo de la universalidad de
años 80. La cinta también fue considerada dentro de las 100 mejores la historia contada.
228 Fernando Cruz Quintana audiovisual revolucionário 229

En el plano formal destaca como una virtud la decisión de Roma


Cuarón de haber tomado distancia de las técnicas de producción del
cine hollywoodense, en donde los movimientos de cámara mediante
Ha pasado realmente muy poco tiempo desde el estreno de
grúas, o algunos otros instrumentos y recursos, son una constante.
Roma como para considerar su verdadero tamaño dentro de la histo-
En cambio, se utilizó una cámara en mano que dotó al filme de un
ria del cine nacional en México, sin embargo, no tengo ninguna duda
tono más realista y semi documental. Una lectura, si se quiere, po-
de que será considerada como una de las más grandes que se han
dría indicar que esta característica respondió también a las carencias
filmado en mi país. Roma es la cinta más reciente de Alfonso Cuarón,
de hacer cine en México frente a lo que se acostumbra en los Estados
quien volvió a México por segunda ocasión después de Y tu mamá
Unidos, donde Cuarón filmó sus dos películas anteriores.
también y tras haber filmado 3 largometrajes fuera de su nación. An-
Extrañamente, Y tu mamá también pasó desapercibida para la tes de Roma, Cuarón repitió con éxito la dupla laboral que ha hecho
Academia Mexicana de Cine, pues no la consideró para sus premios con Emanuel Lubezki, en las cintas Children of men (2006) y Gravity
Ariel, pero en el plano internacional sí obtuvo varias nominaciones (2013). Esta última les valió ser ganadores del premio a mejor foto-
y galardones. En los premios Oscar de 2002 compitió sin éxito por el grafía y mejor director, respectivamente.
premio a Mejor guión original. Misma nominación, más la de Mejor
Roma es una película mexicana atípica por múltiples razones.
filme en lengua no inglesa, tuvo en los premios BAFTA.38 A pesar de
Lo es porque fue una de las primeras películas ganadoras de un Oscar
no haber obtenido estas distinciones para las que fue considerada,
distribuidas de manera online, en este caso con Netflix. No obstan-
Alfonso Cuarón entregó uno de sus filmes más entrañables y en don-
te, para ser considerada dentro de esta premiación tuvo un estreno
de participaron muchas de las que ahora son figuras de la cinemato-
en salas en México y el mundo y una breve estadía en la cartelera,
grafía mexicana en el mundo: de nueva cuenta hizo mancuerna con
con muy pocas copias a comparación de cómo lo hacen los grandes
Emanuel Lubezki para la fotografía, y fue la primera vez que Gael
blockbusters de Hollywood. Mucha de la fama mundial que tuvo este
García Bernal y Diego Luna (una de las duplas de actores más querida
filme la alcanzó gracias a su modelo de distribución que le permi-
por el público mexicano) participaron juntos en un proyecto cinema-
tió llegar directamente a los hogares de los espectadores. Esta cinta
tográfico.
también es peculiar por su formato en blanco y negro y por contar
una historia original inspirada en recuerdos de la infancia del propio
Alfonso Cuarón. En este relato son protagonistas Sofía (Marina de
Tavira), una madre de familia que tendrá que hacerse cargo de sus
38 Los British Academy of Film and Television Awards (BAFTA) son pre-
hijos, y Cleo (Yalitza Aparicio) una de las empleadas de la familia que
mios anuales otorgados por la Academia Británica de Artes Televisivas y Cinema-
tográficas a lo mejor de la Cinematografía del Reino Unido. tiene, entre otras responsabilidades, cuidar de los niños en la casa.
230 Fernando Cruz Quintana audiovisual revolucionário 231

En el plano propiamente cinematográfico, Roma rememora a En los años 90, Alejandro González Iñárritu comenzó su incur-
la tradición neorrealista por emplear una actriz no profesional, Ya- sión en el audiovisual. Fue cofundador de la productora Z Films, que
litza Aparicio para interpretar el papel de Cleo. El grado de realismo ha trabajado con éxito en la realización de cortos y largometrajes,
en las actuaciones se incrementó por la manera de rodar las escenas así como para el cine y la televisión. Con esta productora, Iñárritu
en continuidad con la propia trama: los actores iban descubriendo realizó un episodio piloto para Detrás del dinero, una serie televisiva
la historia día con día puesto que cada mañana Cuarón les daba los que nunca vio la luz de manera completa. El primer capítulo puede
libretos de las escenas que tendrían que interpretar. Complementa consultarse en línea en la plataforma YouTube y resulta anecdótica la
esta forma tan natural la fotografía hecha por el propio director de la participación del cantante español Miguel Bosé en la misma.
cinta y los planos de secuencia que utiliza a lo largo de toda la filma-
El debut cinematográfico de Alejandro González Iñárritu le
ción. Muchos de éstos resultan en bellísimas escenas en donde no
otorgó fama mundial y definió para siempre el curso de su carrera.
sólo importa el plano de lo visual sino también el de las actuaciones
Amores Perros (2000) ha sido una de las películas mexicanas más exi-
que dan una impresión notable de realismo.
tosas (en el plano comercial, de espectadores, de la crítica, etc.) de la
historia. Con ese inicio tan destacado, Iñárritu acaparó la mirada de
Alejandro González Iñárritu todo el mundo y, en un contexto de carencia y mínima recuperación
de la industria cinematográfica mexicana, no tardó en emigrar a los
Estados Unidos para continuar con su labor fílmica. Tras Amores per-
Alejandro González Iñárritu nació el 15 de agosto de 1963 en ros, el director citadino ha realizado cinco largometrajes más que han
la Ciudad de México. Es hijo de Héctor González Gama y Luz María sido bien recibidos por la industria hollywoodense, como se puede
Iñárritu. Alejandro González cursó la carrera de Ciencias de la Comu- apreciar en las múltiples nominaciones a los premios Oscar que han
nicación en la Universidad Iberoamericana, aunque nunca concluyó tenido todas sus películas y entre los que destaca haber ganado en
sus estudios por incorporarse desde temprano al ámbito profesional las categorías de Mejor película en 2015 por la cinta Birdman (The
de los medios de comunicación. Bien sabido es en México (pero no unexpected virtue of ignorance), y en la de Mejor director por esta
así en el extranjero) que su trayectoria inició en la Radio: fue locutor misma cinta y por The revenant un año más tarde.
de la estación WFM y después director de la misma. En este tiempo
logró posicionar a WFM como una de las principales emisoras de mú- A continuación, puede verse una tabla con los largometrajes
sica rock en el Distrito Federal.39 dirigidos por Alejandro González Iñárritu y posterior a ella un análisis
de Amores perros, el único filme que realizó en México. Es importan-
39 Hoy en día, el Distrito Federal se conoce como Ciudad de México. Esta te mencionar que la película Babel (2006) se rodó en cuatro países
es la capital del país y, junto con el Estado de México, la zona más poblada de todo
el territorio, así como el sitio en el que se concentran la mayor actividad económica. distintos: Estados Unidos, Marruecos, México y Japón. Aunque tenga
232 Fernando Cruz Quintana audiovisual revolucionário 233

secuencias rodadas en su propio país, esta cinta es una más de la das en la trama mediante un accidente automovilístico, suponían
trayectoria fuera de México de Iñárritu y por ello no la considero para una renovación estilística en la manera de narrar cine en México.
su análisis. Este estilo se comparó mucho al que Quentin Tarantino utilizara años
antes en Pulp Fiction (1994). Además de esto, son notables las ac-
Película y año Nacionalidad tuaciones de Gael García Bernal, Vanessa Bauche o Emilio Echeverría
Amores perros (2000) México (por mencionar sólo a tres actores de una larga lista) y el estilo crudo
21 grams (2003) Estados Unidos y realista que imprimió González Iñárritu a la imagen. Esta última ca-
Babel (2006) Francia/Estados Unidos/Méxi- racterística rompe con toda la artificiosidad que caracteriza a algunas
co/Marruecos/Japón cintas mexicanas y que se ve sobre manera en las producciones te-
Biutiful (2010) México/España levisivas. En el plano musical, también fue destacada esta cinta: en
primer lugar, por tener un soundtrack con la participación de muchas
Birdman (The unexpected virtue Reino Unido/Estados Unidos
de las principales bandas de rock mexicano del momento (esto es
of ignorance (2014)
muy a la usanza del cine hollywoodense y fue posible por todos los
The revenant (2015) Estados Unidos/Hong Kong/
contactos al interior de la industria musical que tenía Iñárritu), y en
Taiwán
segundo lugar por ser la primera en contar con la participación de
Gustavo Santaolalla, quien hizo la música del filme y posteriormente
continuaría haciendo dupla con el cineasta.
Amores Perros
En el plano de los galardones, la película arrasó en las nomina-
ciones de los premios Ariel y obtuvo las distinciones más importan-
En el 2000 pocos apostaban que Amores Perros tendría el éxi-
tes: Mejor película, Mejor director, Ópera prima, Mejor guión origi-
to que tuvo: era el debut de un cineasta cuya mayor experiencia pro-
nal. A nivel nacional fue tal el éxito que tuvo la cinta, que ha opacado
fesional audiovisual era haber realizado algunos cortos y videos mu-
a otras más que surgieron ese mismo año, como son Perfume de vio-
sicales, la cinta duraba alrededor de 3 horas, mostraba temas poco
letas (Marisa Sistach, 2000), Por la libre (Juan Carlos de Llaca, 2000)
gratos y ofensivos para muchas personas. Contra todo pronóstico,
o Crónica de un desayuno (Benjamin Cann y E. Carranza). En el plano
Amores perros resultó un fenómeno que posicionó de nueva cuenta
internacional Amores perros fue nominada al Oscar como Mejor pe-
al cine mexicano en el plano mundial.
lícula en habla no inglesa, situación que no ocurría en México desde
Muchas son las razones que explican el éxito de la cinta. Las que el filme Macario (Roberto Gavaldón, 1959) fuera nominado en
tres historias de la película, contadas de manera fragmentada y uni- 1959. Por todas las razones que he mencionado, Amores perros sig-
234 Fernando Cruz Quintana audiovisual revolucionário 235

nificó en su momento una propuesta fresca en un cine que iniciaba el ejemplos de la importancia que en las dos últimas décadas del siglo
nuevo milenio y que comenzaba a recuperarse tras haber concluido XX tuvo esta ciudad para la cinematografía nacional.
su década más complicada.
No es un secreto que la cinematografía estadounidense, así
como el mundo de los cómics y la literatura de fantasía y ciencia fic-
Guillermo del Toro ción sean una constante fuente de inspiración para Guillermo del
Toro. En las entrevistas donde suele hablar de su infancia o adoles-
cencia repite esta afirmación. Al igual que Alfonso Cuarón, la primera
Guillermo del Toro Gómez nació el 9 de octubre de 1964 en la
incursión profesional de Guillermo del Toro en el audiovisual fue en
ciudad de Guadalajara, Jalisco. Es hijo de Federico del Toro Torres y
la serie La hora marcada, de la que ya he hablado aquí. Él dirigió
Guadalupe Gómez. Desde muy corta edad, Guillermo mostró interés
cuatro capítulos: el episodio 9, “Con todo para llevar”; el episodio 16,
y habilidades para la dirección de cine y otras labores propias del
“Dulce Sandra”; el episodio 44, “Invasión” y el episodio 46, “Caminos
séptimo arte. En su etapa preparatoria realizó varios filmes escolares,
del ayer.” También escribió el episodio 6, “Km 22” y el 47, “En espera
que le sirvieron para saber a qué quería dedicarse profesionalmente
de la noche.”
y para después estudiar en el Centro de Investigación y Estudios Ci-
nematográficos de la Universidad de Guadalajara. Uno de los centros Tras su paso por La hora marcada, Guillermo del Toro demos-
principales desde donde se ha estudiado la cinematografía nacional. tró no sólo estar capacitado para las labores audiovisuales, sino tam-
bién se revelaron sus intereses temáticos. En 1993 dirigió su primer
El interés de Guillermo del Toro por el cine fantástico y de ter-
largometraje, Cronos, sobre el que hablaré después de la tabla que
ror lo llevó a fundar Necropia, su propia compañía de diseño de ma-
muestra la totalidad de sus cintas. Guillermo del Toro es también
quillaje. También, de manera temprana en su carrera, fue uno de los
productor, guionista, ha participado en el desarrollo de videojuegos
cofundadores del Festival de cine de Guadalajara.40 Tanto este festi-
(como con el caso de Death Stranding) y ha sido coescritor de una
val, como las investigaciones sobre cine hechas en la Universidad de
famosa saga de novelas conocidas como “La trilogía de la oscuridad”
Guadalajara (entre las que destacan la de Emilio García Riera)41 son
Al igual que sus amigos y connacionales Alfonso Cuarón y Ale-
40 El Festival de Cine de Guadalajara se fundó en 1986 y desde entonces
ha sido uno de los escenarios principales para la exhibición de cine en América jandro González Iñárritu, Guillermo del Toro fue ganador del premio
Latina. Este festival anual también supone un espacio para el encuentro de profe- Oscar a Mejor director y Mejor película, cuando The shape of water
sionales y la formación e instrucción de cineastas.
(2017) le hizo acreedor de tales distinciones. Antes de haber realiza-
41 Emilio García Riera fue un español naturalizado mexicano que dedicó
su labor investigativa a documentar la historia del cine mexicano. Este trabajo de do esta cinta (la que hasta ahora es la más reciente) Guillermo del
una vida estuvo reflejado en más de una veintena de publicaciones nacionales e
internacionales, así como en la participación de la escritura y adaptación de algu- nos filmes mexicanos.
236 Fernando Cruz Quintana audiovisual revolucionário 237

Toro nunca ha regresado a México para filmar. Él ha hecho copro- que los géneros de Fantasía o Ciencia ficción han sido poco explo-
ducciones en donde alguna empresa productora mexicana partici- rados, sin embargo, como bien documentan obras como El futuro
pa, pero sus filmes los han realizado ya sea en los Estados Unidos o más acá (Schmeltz, 2006) y Mexican Fantasy Films: A Brief History
España. (Wilt, 1999), éstos tienen una larga tradición fílmica. Guillermo del
Toro entrega con Cronos una película que tiene elementos de ambas
A continuación, puede verse una tabla con los largometrajes
vertientes, e incluso de las del cine de terror.
dirigidos por Guillermo del Toro y posterior a ella un análisis de Cro-
nos. La historia gira en torno a un pequeño artefacto en forma de
escarabajo que, tras incrustarse en la piel de quien lo toma e inyec-
Película y año Nacionalidad tarle una sustancia líquida, brinda vida eterna a su portador. Den-
Cronos (1993) México tro del universo ficcional, este extraño objeto fue inventado por un
Mimic (1997) Estados Unidos alquimista español en tiempos de la Conquista y es descubierto en
El espinazo del diablo (2001) México/España 1997 por un anticuario mexicano llamado Jesús Gris (Federico Luppi).
Blade II (2002) Estados Unidos/Alemania Aunque el escarabajo dota de una vitalidad inusual a quien lo porta,
Hellboy (2004) Estados Unidos despierta en él una sed de sangre. La trama gira en torno a cómo un
empresario rico y moribundo, Dieter de la Guardia, es consciente de
El laberinto del fauno (2006) México/España/Francia/Estados
la existencia del objeto y comienza una búsqueda desesperada para
Unidos
tratar de arrebatarlo de las manos de Jesús Gris.
Hellboy II: The golden army Estados Unidos/Alemania/Hun-
(2008) gría Probablemente, Cronos haya sido mejor recibida por la crítica
Pacific Rim (2013) Estados Unidos nacional y por la AMACC que por el público. El debut de Guillermo
Crimson Peak (2015) Canadá/Estados Unidos/México del Toro obtuvo 14 nominaciones a los premios Ariel de los cuales
resultó ganadora de 9, entre los que destacan el premio a Mejor pelí-
cula, Mejor director, Ópera prima y Guión Cinematográfico. Que este
The shape of Water (2017) Estados Unidos/Canadá
éxito no se correspondiera en la taquilla probablemente se deba al
año difícil que resultó 1993 para la exhibición de cine en México y a
que los públicos, acostumbrados a las grandes producciones de ter-
Cronos
ror estadounidenses, probablemente veían la película del Toro como
muy limitada técnicamente.
Quien desconozca la historia del cine mexicano podría pensar
238 Fernando Cruz Quintana audiovisual revolucionário 239

Consideraciones finales Me gustaría insistir en que, quienes nos apasionamos o estu-


diamos el cine en ocasiones restamos importancia a la revisión de los
aspectos estructurales que posibilitan la existencia de las películas.
Muchas son las aportaciones que el estudio de la cinemato-
Sin que esto le reste ninguna grandeza, reconozco que hoy en día la
grafía puede brindar para la comprensión de la historia. No me re-
cinematografía es una industria y por tanto es susceptible de ser ana-
fiero al caso de las llamadas “producciones históricas”, que relatan
lizada mediante esquemas económicos, como aquel que nos señala
algún fragmento del pasado de una nación, sino al hecho de que se
las fases de la producción, distribución y consumo de bienes. Sin em-
puedan revisar los pormenores en los que ocurren las producciones
bargo, no tratamos con productos o servicios cualesquiera, sino con
cinematográficas y con ellas comprender qué ocurría en esos mo-
cuestiones culturales, que son portadoras de sentidos, expresiones e
mentos en la sociedad en la que surgieron. Éste ha sido uno de los
ideas del mundo. Este es el caso de la cinematografía, a medio paso
objetivos del capítulo. No tengo por qué ocultar que ha existido tam-
entre el negocio masivo y la trascendencia cultural.
bién una motivación nacionalista al redactar este texto: saber que
se trataba de un libro brasileño me impulsó a querer hablar sobre el Muchos son los sentidos que puede tener el adjetivo “revo-
cine de mi país y específicamente sobre una etapa de la que creo que lucionario.” No siempre se trata de la radicalidad o la ruptura. Lo re-
se conoce muy poco en el extranjero. El mejor pretexto que tuve para volucionario puede ser tal por no adecuarse a lo esperado, por rom-
conjuntar estos intereses me pareció rescatar el inicio de las carreras per paradigmas o por ser innovador. La manera en que este capítulo
cinematográficas de los tres directores de cine mexicanos más im- buscó acoplarse a esta característica es, como he dicho, por llamar
portantes de los últimos años y relatar un poco sobre las condiciones la atención hacia lo olvidado o lo desconocido. Considero que los di-
socioculturales en las que comenzaron su trayectoria. rectores de cine que logran obtener el premio Oscar a Mejor director
se convierten de inmediato en un referente cinematográfico en el
Aunque estoy contento con el resultado, reconozco que el
mundo, sin embargo, no siempre se conoce cuáles fueron las circuns-
análisis sirve sobre todo a nivel indicativo y descriptivo. En detrimen-
tancias en las que surgieron y se formaron. Esta ha sido la motivación
to de la profundidad y el detalle, al elegir a tres directores y no sólo
revolucionaria de este capítulo: traer a la luz los primeros pasos de
a uno me he tenido que limitar a destacar sólo algunas de las carac-
los tres directores mexicanos más exitosos de los últimos años.
terísticas más importantes del trabajo de ellos. Sirvan los filmes aquí
mencionados como una invitación para que los lectores puedan in-
teresarse en estos directores y después, si hubiera más inquietudes, Bibliografía
profundicen en su trayectoria. Considero que la metodología sencilla
AUMONT, J y MARIE, M. Análisis del Film. 1ra edición. Barcelona,
que doy aquí puede ser replicada para estudiar el caso de otros ci- España: Paidós. 1980.
neastas en México o el mundo.
240 Fernando Cruz Quintana audiovisual revolucionário 241

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políticas do Cinema da
América Latina42
Ana Daniela de Souza Gillone43

42 Para citar corretamente este capítulo, utilize a seguinte forma:


GILLONE, Daniela de Souza. Perspectivas estéticas e políticas do cinema da Amé-
rica Latina. In: ROCHA, Adriano Medeiros da; LAIA, Evandro José Medeiros
(Org.). audiovisual revolucionário. São Paulo: Editora dos Frades, 2021.
43 Ana Daniela de Souza Gillone é professora e pesquisadora de cinema,
pós-doutorada pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Pau-
lo (ECA-USP). Leciona nos cursos de pós-graduação lato-sensu da FIAM-FAAM.
É pesquisadora do Grupo de Estudos Cinema Latino-americano e vanguardas ar-
tísticas, vinculado à UNIFESP e ao CNPq.
audiovisual revolucionário 245

Introdução

Este capítulo analisa as cinematografias latino-americanas


como autorrepresentações simbólicas das questões políticas e so-
ciais desses países e propõe discussão sobre a retórica de militância
política nos filmes produzidos em diferentes períodos. As revoluções,
as ditaduras militares, os movimentos indígenas e as repressões às
populações urbana e rural são temas recorrentes nessas cinemato-
grafias e fundamentais para o entendimento da política dos cinemas
militantes. As produções de ficção e documentários aqui relaciona-
dos para a análise desses episódios cruciais da história dos países la-
tino-americanos foram selecionadas para também subsidiar a discus-
são das relações existentes entre os aspectos políticos e sociais e as
teorias e estéticas desenvolvidas na história do Cinema da América
Latina. Uma reflexão que se expande para o estudo da condição que
este cinema encontrou para a difusão da sua própria política.

O ponto de partida é o período em que os cinemas locais ultra-


passaram as fronteiras nacionais com vistas a constituir uma proposta
que legitimasse o reconhecimento de um cinema latino-americano,
a partir do movimento Nuevo Cine Latinoamericano. Esse cinema se
legitimou em sua militância política pelas abordagens às realidades
pautadas nas incompletudes de projetos nacionais e na condição de
países subdesenvolvidos. Neste contexto, os filmes, os manifestos e
ensaios, publicados pelos integrantes do Nuevo Cine, propunham um
cinema militante, de resistência aos padrões impostos pelos cinemas
dos grandes estúdios, como Estética da fome (1965) e Estética do so-
nho (1971), do brasileiro Glauber Rocha, grande expoente do Cinema
Novo e do Nuevo Cine que se estendeu pelo continente; Hacia un
246 Ana Daniela de Souza Gillone audiovisual revolucionário 247

tercer cine (1969), dos argentinos Fernando Solanas e Octavio Geti- em Rio 40 graus (1955), de Nelson Pereira dos Santos e no cinema
no; Por un cine imperfecto (1969), do cubano Julio Garcia Espinosa; cubano em El Mégano (1955) de Julio Garcia Espinosa). A dinâmica
Teoría y práctica de un Cine junto al pueblo (1979), do boliviano Jorge de produção envolvida no filme argentino subsidiou conceitos apre-
Sanjinés; e La dialéctica del espectador (1982), do cubano Tomás Gu- sentados no primeiro manifesto, Cine y subdesarrollo, em que Birri
tiérrez Alea; Cine y subdesarrollo (1962), de Fernando Birri. coloca a necessidade de invenção de um homem novo, uma socieda-
de nova e, portanto, de uma arte e um cinema novo. Propõe a aber-
O ideal coletivo projetado pelos cineastas atuantes deste mo-
tura da câmera para documentar a realidade sob o ponto de vista
vimento trouxe visibilidade para a afirmação das culturas e identida-
realista do popular e do subdesenvolvimento.
des latino-americanas. E foi por meio do desafio da produção com
poucos recursos financeiros que foram geradas novas estéticas e Aqui também poderíamos estender a discussão para as re-
modos de representação. A aproximação entre esses cinemas em presentações nessa cinematografia, que através das distintas abor-
sua condição de militância é por decorrência da semelhança entre as dagens às jornadas de lutas coletivas recorre às figuras dos heróis
realidades socioeconômicas e políticas desses países. bandoleiros, já tematizadas em cinematografias anteriores ao Nuevo
Cine, na Argentina, no Brasil e no México. A marginalidade heroica
Os autores militantes desenvolveram manifestos, teorizaram
das revoluções e dos acontecimentos políticos foi tematizada con-
sobre formas de representação da realidade social e também sobre
forme a proposta política de determinados momentos do cinema.
modos de produção e recepção dos filmes, e ainda estabeleceram
Durante o período clássico e no cinema de resistência da década de
critérios para a avaliação das cinematografias consideradas militan-
1960, os filmes ressignificaram em versões românticas e revolucio-
tes. Importante lembrar que no movimento cinematográfico Nuevo
nárias as representações das revoltas dos heróis bandoleiros. E tam-
Cine Latinoamericano, que se define na condição política de cine-
bém poderíamos recorrer aos filmes produzidos anteriormente ao
ma revolucionário, a união de cineastas militantes se fortaleceu por
Nuevo Cine para uma comparação sobre os princípios de produção
meio de encontros organizados, principalmente na Itália, além do
envolvidos nos anos 1960 e 1970. As filmografias que vigoraram nas
marco do Festival de Cine de Viña del Mar, em 1967, entre outras
décadas de 1930 e 1940, até meados de 1950 utilizaram essas re-
edições, no Chile, que reuniu cineastas latino-americanos compro-
presentações dos heróis bandoleiros: o Lampião no Brasil, o Pancho
metidos com a crítica ao poder colonial e com proposições para as
Villa no México e o gaúcho desbravador das fronteiras na Argentina.
mudanças políticas e sociais dos países por meio do cinema.
Embora os acontecimentos históricos sejam explorados sob diferen-
Em sua gênese, o Nuevo Cine recorre a recursos do neorrealis- tes perspectivas, esses filmes tem em comum a abordagem à figura
mo e podem ser vistos no cinema argentino, em Tire dié (1956-1958), do bandido social – na acepção de Hosbsbawn (2010) – que existe
curta-metragem de Fernando Birri (e também no cinema brasileiro em ambientes rurais, pautadamente com situações de mando, em
248 Ana Daniela de Souza Gillone audiovisual revolucionário 249

que pode ser observada uma ausência do Estado. São situações em cussões sobre as questões políticas do cinema da América Latina e
que todo o sistema tradicional de mando é a partir da exploração da ampliar o debate sobre esse cinema em sua perspectiva militante.
terra e todo o sistema de trabalho é a partir da exploração do traba- Além de retomar análises dos filmes, recorre-se a esta leitura sobre
lho na contingência de subalternos e latifundiários nessa relação de o movimento Nuevo Cine Latinoamericano para relacionar cinema
poder. Essas figuras, que fizeram a história do início do século XX e e história na construção da política de resistência ao poder colonial
estiveram representadas em produções realizadas anteriormente ao reconhecida nas cinematografias da América Latina. Pois acredita-se
movimento, influenciaram na maneira de ser pensado o contexto de que através da afirmação ou da negação da militância dos cineastas
dominação e colonização pelo Nuevo Cine. do Nuevo Cine se alicerçam o pensamento teórico-crítico sobre esses
cinemas, sendo fundamentais para o entendimento dos processos e
Essa associação da marginalidade à política do cinema suscita-
ciclos cinematográficos que resultaram no que hoje reconhecemos
ria uma avaliação de filmes cujos conteúdos são elaborados com es-
como cinema latino-americano contemporâneo.
tratégias desenvolvidas por seus diretores no plano político. Mesmo
que de forma sucinta, analisar essas figuras historicamente represen-
tadas em diferentes períodos ampliaria o conhecimento e a crítica niu 12 filmes, cujas sessões foram seguidas de debates. O evento, organizado pela
para entender as novas personagens marginais e suas relações com autora, se propôs a apresentar e discutir a produção do cinema na América La-
tina com a proposta de desconstruir formas estritamente acadêmicas, expressan-
a atual política do cinema. do a busca por novos diálogos entre artistas, acadêmicos, críticos e realizadores
de cinema. Entre os cineastas e palestrantes convidados estavam os professores e
O desenvolvimento de um cinema pautado na política de re- pesquisadores Afranio Catani, Rubens Machado, Cecília Mello, Mariana Villaça,
sistência aos padrões impostos pelo cinema dominante está calca- Yanet Aguilera e Ilana Feldman, os cineastas Philippe Barcinski e Eryk Rocha e
os críticos Sergio Alpendre e Sergio Rizzo, além da pesquisadora argentina Ana
do na militância de um cinema revolucionário de descolonização do Laura Lusnish. A curadoria envolveu os seguintes filmes, relacionados neste es-
gosto. Os manifestos dizem respeito à resistência ao sistema colonial tudo: Tangos... O Exílio de Gardel (Fernando Solanas, França, Argentina, 1985),
Actas de Marusia (Miguel Littín, México, 1976), Memórias do Subdesenvolvimento
que subsiste. E mesmo que esses manifestos, teóricos, estéticos e (Tomas Alea Gutierrez, Cuba, 1968), Las Banderas del Amanecer (Jorge Sanjinés,
políticos, nem sempre sejam evidentes nas obras ou nas análises, es- Beatriz Palacios, Bolívia, Equador, 1982), São Paulo Sociedade Anônima (Luís Ser-
gio Person, Brasil, 1965), documentários Soy Cuba – o mamute siberiano (Vicen-
ses permeiam de forma indelével a cinematografia latino-americana.
te Ferraz, Brasil, 2005), Rocha que Voa (Eryk Rocha, Brasil, 2002), Whisky (Juan
Pablo Rebella e Pablo Stoll, Uruguai, Argentina, Alemanha, 2004), Cobrador: In
Os filmes e as referências selecionados que integram esta God We Trust (Paul Leduc, México, Espanha, Argentina, Brasil, Reino Unido,
análise estão relacionados à curadoria do Ciclo de cinema e deba- 2006), De jueves a domingo (Dominga Sotomayor, Chile, Holanda, 2012), Entre
Vales (Philippe Barcinski, Brasil, 2012), Pelo Malo (Mariana Rondon, Venezue-
tes sobre filmes latino-americanos44 com a proposta de retomar dis- la, Peru, Argentina, Alemanha, 2013). O Ciclo envolveu a publicação Cinema da
América Latina (GILLONE, 2014), organizada pela autora, que reúne prefácio do
44 O Ciclo de cinema e debates sobre filmes latino-americanos aconteceu cineasta João Batista de Andrade, introdução da pesquisadora Marília Franco e
em agosto de 2014 na Fundação Memorial da América Latina, São Paulo, e reu- ensaios produzidos pelos mencionados pesquisadores, críticos e cineastas.
250 Ana Daniela de Souza Gillone audiovisual revolucionário 251

O cinema militante tadura. Na Argentina, a partir de 1953, os sucessivos golpes militares


contra o governo de Perón, que defendia o projeto nacional-popular,
resultaram nos períodos de ditadura militar no país, sendo a última
Nos anos 1960, as estruturas de produção de cinema tendem
entre 1976 e 1983. No Brasil, o golpe militar contra João Goulart e
a se defasar, o que desafia os interesses dos novos cineastas. As cine-
seu projeto de governo democrático ocorreu em 1964. No Chile, em
matografias latino-americanas passam a se pautar em outros princí-
1973, ocorreu o golpe militar contra o governo de Salvador Allende.
pios de produção, distanciando-se dos modelos de cinema de estú-
Na Bolívia, no Uruguai, entre outros países da América Latina, as di-
dios, afiliado aos códigos do cinema dominante. Conforme exposto,
taduras militares nessas décadas também foram terríveis, e as vio-
o Nuevo Cine Latinoamericano foi bastante inspirado no movimento
lências aos direitos humanos, mortes e desaparecimentos deixaram
do neorrealismo italiano, e em cada país as abordagens à realidade
sequelas que ainda precisam ser confrontadas.
social adquirem características diferentes. A Nouvelle Vague e Ciné-
ma Vérité também foram fontes de inspiração para os novos modos Esse contexto político foi determinante no processo de inte-
de produção. gração dos cineastas, que se reuniam por meio de encontros e festi-
vais.45 Fundamentalmente, os manifestos desenvolvidos por eles dis-
O cinema revolucionário e militante do Nuevo Cine Latinoa-
correm sobre conceitos de cinema militante, tendo em vista a crítica
mericano tem como principais enfoques as representações da fome,
às questões políticas, sociais e culturais dos países latino-america-
violência, alienação religiosa, exploração econômica, das revolu-
nos. Os manifestos questionam o papel do intelectual e o do artista
ções e dos anos de ditaduras militares. Analisar os filmes, o proces-
na sociedade, a condição do espectador para se tornar um ator social
so de união dos cinemas nacionais da América Latina, que culmina
da militância, e ainda a construção de estéticas e alternativas de pro-
na constituição deste movimento cinematográfico, contribui com o
dução dos filmes militantes e suas propostas de revolução política
entendimento das propostas dos cineastas militantes além do reco-
contra o poder colonial.
nhecimento das influências que estruturaram seus pensamentos.
Uma revisão da história mostra essas referências, como a Revolução Os cineastas militantes, principalmente Fernando Solanas, Oc-
Cubana em 1959, que apresentou uma possibilidade de se liberar do tavio Getino e Glauber Rocha, como pensadores do cinema da Amé-
neocolonialismo. Esse mesmo período coincide com os Estados Uni- rica Latina, encontraram referências conceituais nas lutas anticolo-
dos vinculado à Operação Condor, aliança político-militar que envol- niais de Frantz Fanon, autor do livro Os condenados da terra (1961).
veu os regimes militares dos países do Cone Sul e a CIA para atuação Na proposta de um “terceiro cinema” ou Tercer Cine desenvolvida
nos golpes militares na América Latina como forma de interromper
45 Sobre essa integração dos cineastas e mesmo sobre seus manifestos e
a possibilidade de socialismo em outros países do continente. Essa
filmes, ver mais em: A ponte clandestina, teorias de cinema na América Latina
operação controlava práticas para a repressão aos oponentes da di- (AVELLAR, 1995).
252 Ana Daniela de Souza Gillone audiovisual revolucionário 253

por Solanas e Getino, junto com o grupo Cine Liberación, que se legi- Entre genocídios, revoluções, ditaduras e exílios
timou com a produção do manifesto Hacia um Tercer Cine e do filme
La hora de los hornos (1968), com uma clara mensagem para o es- O exílio vivido em consequência da ditadura militar argentina
pectador aderir à guerrilha peronista no período de ditadura do Ge- é o tema do filme Tangos... O Exílio de Gardel, que se insere assim na
neral Onganía, nesta obra o pensamento de Fanon é explícito. Suas “cartografia do exílio” traçada pelo cinema argentino antes e após a
máximas, tal como todo espectador é um covarde, ganham caracte- última ditadura no país (1976-1983). A transição democrática na dé-
res grandes nas telas e reforçam a proposta do filme, que é provocar cada de 1980 fez com que as histórias dos exilados deixassem de ser
no espectador a necessidade de atuar na guerrilha peronista. Mais exclusividade dos documentários e ganhassem espaço nas ficções.
tarde, Solanas dirigiu o filme Los Hijos de Fierro (1972), que faz uma O filme de Solanas se remete ao passado recente e utiliza o tango,
alusão à obra de Martin Fierro (1872), de José Hernández, a qual ele referente máximo da identidade argentina, para dar voz àqueles que
se refere sem a preocupação de reproduzi-la, para falar sobre a mili- tiveram de deixar seu país por conta das ditaduras. Carlos Gardel,
tância sindical no início dos anos 1970. figura emblemática do tango, é evocado no filme através da peça que
os personagens querem produzir e instaura o diálogo entre passado
O movimento Nuevo Cine, em seu princípio, se centra nas re-
e presente, provocando uma reflexão sobre os distintos períodos de
presentações do subdesenvolvimento dos países e depois o enfoque
exílio vividos pelos argentinos. Solanas faz, então, com que as his-
se expande para a militância nas ditaduras, em um período em que
tórias dos argentinos que se refugiaram na França sejam contadas
os próprios cineastas passam a ser perseguidos e se exilam. A expe-
entre a memória do tango e as tensões que surgem do desejo e da
riência do exílio também foi tema recorrente nessas cinematografias.
angústia do retorno ao país.
Inclusive o filme escolhido para a abertura do referido Ciclo, Tangos...
O Exílio de Gardel (Fernando Solanas, França-Argentina, 1985) foi fil- O objetivo do filme é apresentar a história
de um grupo de exilados, para, em seguida,
mado quando Fernando Solanas se exilou em Paris. Tangos.... foi rea-
concentrar-se na personagem Maria (Gabriela
lizado dois anos após o termino da última ditadura militar argentina. Toscano). Sua voz em off em primeira pessoa
começa a relatar a condição complexa do exi-
E apesar de ser uma obra de ficção, classificada como “filme de arte”, lado político: Maria tem 20 anos e já há oito
diferindo assim muito da proposta documentarista do “terceiro cine- transita no exílio. Outro aspecto inovador é a
disposição espaço-temporal, que desloca as
ma” defendida por Solanas e Getino, Tangos... apresenta um olhar diretrizes próprias do modelo clássico-indus-
crítico e político sobre a história e o passado recente da Argentina. trial a favor de um sistema de representação
que provoca a ruptura do cânone mimético,
a estilização das situações dramáticas e a ela-
boração de outras que se destacam por seus
componentes oníricos (LUSNICH, 2014, pág.
24).
254 Ana Daniela de Souza Gillone audiovisual revolucionário 255

Desta forma, as reminiscências do passado da “primeira gera- Santa Eulalia, no deserto mexicano de Chihuahua, essa produção re-
ção” de personagens exiladas mantêm presente o temor do esque- cria a atmosfera de um povoado mineiro chileno do início do século
cimento e as sensações de desamparo e insegurança da “segunda XX com suas casas, habitantes, taverna e assembleias sindicais, en-
geração”, diante do retorno à violência política na Argentina durante fim, o cotidiano vivenciado por trabalhadores oprimidos, submetidos
a ditadura militar. Uma vez que já não suportam a cisão causada pelo a brutalidades quase ilimitadas. A luta por melhores condições de
deslocamento forçado, que gera a sensação de não pertencimento. trabalho na mineradora de propriedade de ingleses e a mobilização
Mas há, ainda, uma “terceira geração”, os filhos da “segunda gera- dos trabalhadores para uma greve resultam na intervenção militar
ção”, que, por terem crescido na França, percebem o exílio de manei- com a trágica consequência do genocídio ocorrido.
ra diferente dos pais, sentindo-se amparados no território estrangei-
Actas de Marusia, entendo, se constitui em
ro. Essas contradições entre os exilados e seus filhos ressignificariam
ponto de inflexão do cinema chileno do século
“os sentidos do exílio”. XX, mostrando que a violência, os fuzilamen-
tos, a intimidação e a contínua utilização de
Os exílios, as revoluções, as ditaduras militares e as opressões uma máquina militar contra as classes popu-
lares sempre foram instrumentos dos quais se
das classes dominantes sobre trabalhadores rurais e urbanos são te- valeram as elites latino-americanas – chilenas,
mas que circunscrevem a própria história da cinematografia latino- no caso – para perpetuar sua dominação (CA-
TANI, 2014, pág. 40).
-americana. Os filmes selecionados para o Ciclo, e que compõem o
corpus de análise deste estudo, se ocupam de acontecimentos pas- Os trabalhadores, politicamente embasados, e unidos contra
sados para propor reflexões sobre o presente, que é tanto a época de as impostas violências, quando percebem que estão sendo dizima-
sua realização e lançamento quanto a época de cada nova exibição. dos e que a luta chega ao fim, fazem sua autocrítica: “não soubemos
São filmes projetados com o potencial de provocar o espectador à nos organizar, não soubemos procurar as alianças necessárias para
revisão crítica do passado do poder colonial, e assim também o reco- resistir, não soubemos discutir adequadamente os problemas para
nhecê-lo no presente, em pleno funcionamento. buscarmos a necessária unidade”. Uma das lideranças sindicais orde-
Actas de Marusia (Miguel Littín, México, 1976), produzido du- na que companheiros se separem e fujam com as atas que ele vinha
rante a ditadura militar chilena, retrata a violência militar contra as escrevendo ao longo dos dias, desde que chegou a Marusia, regis-
classes populares. Essa obra, ambientada no início do século XX, rei- trando o curso dos acontecimentos. São esses documentos, as atas,
tera as formas opressoras das elites latino-americanas e provoca no que permitiram que pudesse ser contada essa história.
espectador o cotejo entre as opressões do passado e do presente. A memória das lutas coletivas às opressões coloniais e a con-
Filmada em uma mina de prata abandonada na localidade de dição do subdesenvolvimento dos países colonizados aparecem em
256 Ana Daniela de Souza Gillone audiovisual revolucionário 257

Memórias do Subdesenvolvimento (Memorias del subdesarrollo, To- mento de Cuba ao bloco socialista, a política
cultural gestada pelo governo e a concepção
mas Alea Gutierrez, Cuba, 1968). Esse filme expõe parte do processo de arte que esta endossaria (VILLAÇA, 2014,
histórico da Revolução de 1959 e propõe indagações sobre os rumos pág. 70).
de Cuba. Alea (1928-1996), cineasta cubano intensamente integrado
ao processo político envolvido na Revolução e com participação ativa Assim como o personagem, que vive em suas condições de
no cinema militante, autor do mencionado ensaio La dialética del privilégios, o próprio diretor do filme, funcionário do instituto estatal
espectador, propõe um modelo de espectador militante, que deixa de cinema (ICAIC), percebeu-se esperançoso com a Revolução, mas
de ser um mero observador passivo e maravilhado com a realidade. não de forma a se tornar militante do Partido Comunista ou a con-
Ou seja, basicamente o espectador sai da condição passiva de en- cordar com as normativas dos eslavos. O momento em que foi pro-
cantamento para atuar na realidade a partir do conhecimento crítico duzido o filme coincide com o cerceamento a artistas e intelectuais e
que obteve da obra. Seria uma forma de emancipar o espectador enfrentamentos neste instituto. O filme, em sua perspectiva crítica,
que reconhece a obra em sua proposição de abertura às mediações coloca habilmente o cenário conflituoso para os artistas e intelec-
dialéticas entre o mundo simbólico e a realidade concreta. tuais e o papel do intelectual para indagar sobre as questões políticas
e sociais de Cuba em consequência da Revolução em curso (VILLAÇA,
O filme, inspirado na obra homônima de Edmundo Desnoes 2014, p. 70).
(publicada em 1965), escritor que também assina o roteiro, trata das
dificuldades de Sergio (Sergio Corrieri), homem de meia-idade, pro- Ultrapassar a revisão do passado para indagar sobre os rumos
veniente da burguesia de Havana, em se adaptar ao novo contexto do país e assumir a condição de um discurso que confronte a rea-
social, cultural e político que se configurou com a Revolução. lidade dos genocídios coloniais na Bolívia são as marcas principais
de Las Banderas del Amanecer (Jorge Sanjinés, Beatriz Palacios, Bo-
O enredo, que explora as buscas de Sergio por lívia-Equador, 1982). O filme utiliza depoimentos para recuperar a
Havana, é ambientado historicamente no pe-
ríodo compreendido entre a invasão de Playa história dos assassinatos de trabalhadores, de líderes políticos e de
Girón, em abril de 1961, e a Crise dos Mísseis, sindicais de esquerda com o objetivo de conscientizar uma memória
em outubro de 1962, dois momentos mar-
cantes da história cubana em que assistimos da resistência.
à adesão ao socialismo e à gradual definição
da relação entre Cuba e URSS. No entanto, a Em uma análise comparativa com outros filmes realizados
maior parte dos questionamentos subjacentes
às andanças e indagações do protagonista está pelo diretor boliviano, que sempre exalta a dor e luta do índio, a
vinculada ao contexto dos anos posteriores, pesquisadora Yanet Aguilera (2014) identifica as diferenças e proxi-
quando do acirramento do controle da liber-
dade de expressão, da centralização partidária midades na atuação dos personagens. O segundo longa-metragem,
e da multiplicação de debates sobre o atrela- Yawar Mallku (1969), termina com a imagem do personagem Sixto
258 Ana Daniela de Souza Gillone audiovisual revolucionário 259

empunhando uma arma e voltando a sua comunidade depois que de um período anterior ao golpe militar de 1964. O filme é uma im-
seu irmão é morto pelo exército e pela falta de atendimento médi- ponente representação de uma crise em local específico, a cidade de
co adequado. Em La Nación Clandestina (1989), Sebastian morre de São Paulo, numa época anterior à realização do filme e ao golpe mi-
tata danzante, revivendo um ritual já esquecido, a fim de ser inse- litar de 1964: o final dos anos 1950, quando a história se passa (mais
rido, mesmo morto, na comunidade da qual foi expulso. “Pode se precisamente de 1957 a 1961, conforme informa o letreiro). O filme
resumir a moral dessas histórias à luta contra o inimigo que abusa fala de crise existencial, de crescimento desordenado, de um horizon-
dos comunitários e contra o esquecimento de processos culturais e te cinzento – “a despeito de que filmar em cores no Brasil, à época,
simbólicos importantes para manter a coesão da comunidade”. As- fosse muito caro, não se imagina este filme de outro modo que não
sim, a tomada de consciência centrada nesses personagens em seus no preto e branco brilhantemente contrastado (e por muitas vezes
enfrentamentos é um dos objetivos principais. Já El coraje de un Pue- acinzentado) de Ricardo Aronovich” (ALPENDRE, 2014, pág. 76).
blo (1971) e Las banderas del amanecer (1983) são obras que têm
como protagonistas as comunidades indígenas, camponesas e urba- A crítica ao caos social na urbanidade e a tendência ao discur-
nas, que fazem parte do altiplano boliviano. Esses filmes abandonam so da distopia definem essa produção em seu diálogo com os filmes
o esquema narrativo do herói individual e se esforçam por construir produzidos nos primeiros anos após o golpe militar no Brasil, que se
várias imagens de protagonistas coletivos. No retorno ao herói indi- caracterizam pela condição de derrota e de melancolia diante do re-
vidual, em La Nación Clandestina, a retomada do desejo de conscien- gime militar, ao passo em que constroem perspectivas de resistência.
tizar não é mais um caminho de mão única – dos produtores para o E sobre a utopia do cinema militante dos anos 1960, temos,
público. O personagem Sebastian Mamani é uma metáfora de toda a ainda, representações que estão diretamente relacionadas à história
população boliviana, que tornou clandestino o significado de seu so- de militância do cinema na América Latina, como os documentários
brenome. “Afinal, a questão não é saber se as comunidades nativas Soy Cuba – o mamute siberiano (Vicente Ferraz, Brasil, 2005) e Rocha
podem ser inseridas no contexto boliviano, mas quanto os bolivianos que Voa (Eryk Rocha, Brasil, 2002), que retomam o passado revisitan-
conseguem se reconhecer no legado indígena, que foi durante tanto
do os projetos artísticos e políticos dos diretores Mikhail Kalatozov e
tempo ferozmente negado” (AGUILERA, 2014, pág. 66).
Glauber Rocha em Cuba.
Longe das utopias de lutas coletivas na América Latina, o filme
Esse documentário de Vicente Ferraz, sobre o filme Eu sou
brasileiro São Paulo Sociedade Anônima (Luís Sergio Person, Brasil,
Cuba (Soy Cuba, 1964), do soviético Mikhail Kalatozov, foi analisado
1965) aborda questões sociais nacionais a partir de experiências in-
pelo pesquisador Rubens Machado (2014), que o identifica em sua
dividuais que ressonam a caótica expansão urbana e econômica da
revelação como obra surpreendente sob diversos aspectos, em efeito
capital paulistana, entre os anos 1957 e 1961, propondo a percepção
extemporâneo de suas datadas qualidades.
260 Ana Daniela de Souza Gillone audiovisual revolucionário 261

No Brasil, devemos muito do nosso acesso e exalação de uma sombra que perambula” (MACHADO, 2014, pág.
interesse pelo filme, nestes últimos dez anos,
ao documentário nacional de Vicente Ferraz, 57). Esse mencionado plano finaliza o primeiro conto do filme, que
Soy Cuba – O Mamute Siberiano, lançado aqui retrata o encontro de um endinheirado turista americano com uma
na mesma época que o próprio longa ficcional
cubano-soviético, primeiro em nossas salas moça cubana em um cassino. O homem, que insiste em conhecer a
e depois em DVD, há coisa de uma década. casa e o deplorável bairro onde a moça simples mora, se vê em uma
É claro que não devemos ao documentário
apenas o contato interessante com a Cuba inimaginável para ele. Neste último plano, a voz que torna diz:
esquecida produção, ele também nos traz “Por que foges? Não viestes se divertir? Então, divirta-se. Esta não
elementos importantes de sua compreensão
e debate. Nisso ele ultrapassa uma é uma imagem feliz? Não desvie teu olhar. Veja! Eu sou Cuba. Dos
tendência forte na cinematografia brasileira cassinos, bares e bordéis”.
contemporânea, sobretudo presente nos
making of e documentários sobre cinema,
a certa inclinação voltada mais para a O período em que foi produzida a obra de ficção coincide com
compreensão do produzir, ou inteligência do os desacordos diplomáticos entre Cuba e Rússia. E o documentário
fazer, e menos para a compreensão do sentido
dos filmes para o público, o mundo, o crítico, de Vicente Ferraz percorre as indagações sobre os motivos que le-
o intelectual e o cientista social (MACHADO, varam a obra a seu confinamento por décadas, pelo fato de não ter
2014, pág. 48).
agradado aos eslavos e nem aos cubanos. Outro enfoque de Ferraz é
sobre a importância do filme para a Cuba nos dias de hoje, assunto
A análise de Machado sobre o documentário se expande
explorado por meio de depoimentos dos atores, do diretor do ICAIC,
para o filme de Mikhail Kalatozov e sua perspectiva estética. O
Alfredo Guevarra, entre outros envolvidos na realização do filme.
pesquisador identifica que logo nos primeiros planos o filme provoca
o espectador a perceber sua formidável singularidade. “A câmera A Cuba que recebeu intelectuais e cineastas militantes da
sobrevoa águas escuras — um cintilante oceano, em que se insinuam América Latina, assim como a fundamental presença do ICAIC e de
orlas selvagens de exuberância tropical. O passeio sinuoso da câmera Glauber Rocha, que em seu exílio em Cuba reforça posicionamentos
que vai planando em voo raso, impacta o espectador”. A respeito sobre a integração dos cineastas e as condições de descolonização
desse plano, ele ainda faz uma análise comparativa com os primeiros da produção de arte, são retratados no mencionado documentário
planos de Terra em Transe, de Glauber Rocha. Rocha que voa, realizado por seu filho Eryk Rocha.

Em outros planos analisados, Machado também coloca a Rocha que voa não é um filme sobre Glauber,
condição sensorial do espectador que se sente como se flutuasse. e sim um filme através de Glauber. Quis che-
gar, por meio dele, à efervescência político/
“Segue então esgueirando-se com a câmera suspensa, nosso olhar cultural de uma época, permear todo o filme
tão perplexo quanto o dele, no seu passo furtivo, e a voz torna, como com sua voz, com suas ideias provocantes. To-
mamos Glauber como ponto de partida para
262 Ana Daniela de Souza Gillone audiovisual revolucionário 263

entender toda uma geração e um momento guardista, crítico-humorístico e militante. As linhas de continuidade
histórico: o sonho de que o cinema era a arte
capaz de unir a América Latina (ROCHA, 2014, e ruptura entre o cinema produzido antes e após o Nuevo Cine, em
pág. 30). correspondência com o contemporâneo, podem ser observadas sob
o ponto de vista das estéticas que surgiram com as novas representa-
Para o diretor, sua experiência nessa produção significa parte ções produzidas nas filmografias recentes e atuais.
desse sonho. E a presença de Glauber Rocha e Fernando Birri, entre
outros artistas e intelectuais no documentário, complementa a ideia Diretamente, ou não, os filmes na contemporaneidade cons-
de integração dos cineastas nesse sonho. Rocha que voa foi produzi- troem imagens que reconfiguram temas clássicos das contradições
do nessa perspectiva de revisão crítica de uma época e de um movi- sociais, mesmo que restringidos a um universo individual. Em Whisky
mento para a indagação sobre o futuro. No fim do filme, um silêncio (Juan Pablo Rebella e Pablo Stoll, Uruguai, Argentina, Alemanha,
e a sensação de vazio são colocados como espaço de reflexão sobre 2004), a dureza cotidiana do universo de trabalhadores em uma fá-
o que ainda é possível sonhar e quais seriam as possíveis utopias de brica de meias reproduz as relações entre subalternos e dirigentes
hoje. Por fim, o que Eryk Rocha propõe nesta produção, e também dos velhos modos capitalistas de produção em uma Montevidéu de-
em seu documentário mais recente, Cinema Novo (2016), é um am- cadente.
plo diálogo sobre gerações e as linguagens dos filmes, de forma a in- Whisky, dez anos depois de sua realização, foi eleito por crí-
tercambiar o passado e as projeções de futuro de projetos artísticos ticos e programadores da América Latina o melhor filme latino-a-
e políticos da América Latina. mericano das últimas duas décadas. A análise da pesquisadora Ilana
Feldman (2014) sobre essa produção identifica os méritos do filme,
que, por meio de gestos pequenos e situações repetidas, promove a
O cinema latino-americano contemporâneo imersão num cotidiano dolorido e calado, apegado ao passado, que
resiste aos novos tempos. “Whisky constrói um universo autônomo
Por meio deste estudo dos filmes que remetem episódios do calcado na observação atenta das situações e dos espaços – sejam
passado, e por meio deste trajeto de reflexão que inter-relaciona as- os espaços físicos e arquitetônicos, sejam os espaços existenciais e
pectos históricos à história do cinema, identifica-se que as represen- emocionais de cada personagem”. Feldman salienta a personagem
tações construídas nos primórdios e ao longo dos últimos 60 anos mulher (Mirella Pacual), em sua dimensão política, que não distingue
são corresponsáveis por qualquer olhar do contemporâneo e pela o mundo público do trabalho do mundo privado dos afetos. “Mar-
reflexão sobre este próprio olhar, uma vez que as novas represen- ta, não por decisão racional, masculina, poderíamos dizê-lo, se torna
tações latino-americanas no cinema contemporâneo contrastam ou uma espécie de insurgente, de desobediente, não se submetendo,
dialogam com as primeiras cenas fílmicas de cunhos romântico, van- no plano micropolítico do desejo, a uma posição definida e determi-
264 Ana Daniela de Souza Gillone audiovisual revolucionário 265

nada pelo outro, pelos outros” (FELDMAN, 2014, pág. 89). Sergio Rizzo (2014).

As personagens com seus projetos individuais são recorren- Parafraseando a canção de Caetano Veloso, “O
Cobrador” sugere que há alguma coisa fora da
tes nesta filmografia recente, que se revela em seu distanciamento
ordem mundial. A inserção de uma imagem de
às jornadas coletivas que tanto foram caracterizadas no Nuevo Cine. TV com as torres gêmeas do World Trade Cen-
ter atingidas nos atentados de 11 de setembro
O cinema de Paul Leduc é um exemplo para se refletir sobre o que de 2001, bem como um outro atentado em
se modifica e se mantém entre as personagens marginais em dis- um templo brasileiro do consumo, conduzem
a um salto que insere a América em uma ló-
tintos períodos, já que o diretor atua desde a década de 1960, em gica global, a do “capitalismo enfermo” – o
um contexto contrário à produção massificada do cinema industrial modelo claudicante que, apesar disso, não foi
substituído por nenhum outro e continua a es-
mexicano. Em seu filme Reed, México Insurgente (1973), Leduc fic- palhar suas mazelas por todos os continentes
ciona a participação do jornalista estadunidense John Reed, autor do (RIZZO, 2014, pág. 96).
livro Os dez dias que abalaram o mundo, na Revolução Mexicana. Na
vida real e no filme, foi contratado para cobrir essa revolução, mas A configuração dos interesses das figuras marginais no cine-
se tornou um militante e passou a seguir o Pancho Villa. O diretor, ma recente pode ser vista dentro daquilo que Ismail Xavier (2000)
ao incluir o processo de conscientização do personagem Reed, quer chama de “pragmatismo do pobre”, ou seja, personagens das classes
levar o espectador a se identificar com a militância contra as ditadu- populares que estão motivadas por seus próprios interesses, como
ras. Consequentemente, este personagem deu visibilidade à política a inserção no mercado de trabalho ou sua sobrevivência. O cobra-
do cinema da época que primava por resistência às ditaduras. Já em dor poderia ser pensado neste âmbito do pragmatismo. O discurso
Cobrador: In God We Trust (Paul Leduc, México, Espanha, Argentina, do cobrador versa sobre a destruição para seu próprio benefício, ao
Brasil, Reino Unido, 2006), Leduc dista-se da figura do bandido social, passo em que o filme brinca com a questão do tempo e do espaço
associada aos heróis bandoleiros e às suas jornadas de lutas cole- e com aparente verdade ou ilusão dos acontecimentos em torno da
tivas recorrentes na cinematografia latino-americana. Seu bandido cobrança deste personagem.
contemporâneo, Cobrador (interpretado por Lázaro Ramos), comete Outras caracterizações de personagens no cinema contempo-
crimes porque se sente no direito de cobrar da sociedade uma dívi- râneo podem ser vistas em De jueves a domingo (Dominga Sotoma-
da, que, no entanto, é individual, e não coletiva. Seus atos não bene- yor, Chile, Holanda, 2012), que está inserido em um novo viés temá-
ficiam uma população como faria o Pancho Villa. O filme recorre aos tico do Cinema Latino-americano, que se foca em questões íntimas e
contos de Rubem Fonseca, e o protagonista é inspirado no cobrador pessoais, no qual não há a preocupação de retomar questões sociais
da literatura. As imagens da distopia urbana e a crítica que o filme faz e políticas tão presentes no cinema chileno dos anos 1960. No en-
ao capitalismo foram analisadas pelo crítico de cinema e professor tanto, velhos padrões íntimos e familiares se reproduzem no filme.
266 Ana Daniela de Souza Gillone audiovisual revolucionário 267

A vinculação entre inquietação formal e enga- rampa”, a área do lixo velho, é o refúgio dos mais fracos (BARCINSKI,
jamento político no cinema latino americano
moderno, nos anos 1960, teve como princi- 2014, pág. 109).
pal herança crítica a reivindicação do cine-
ma como representação ou como reflexo do Em Pelo Malo (Mariana Rondon, Venezuela, Peru, Argentina,
mundo social. Para lidar com De Jueves a Do- Alemanha, 2013), o tema trabalho também aparece ao ser retratada
mingo, estreia em longa metragem da chilena
Dominga Sotomayor, é preciso antes remover a mãe que luta contra a falta de emprego. No entanto, o enfoque
essa herança dos anos 60. Isso porque não
existe nada de social, de político ou mesmo
principal do filme está em confrontar com antigos padrões de do-
de nacional em suas imagens. Sua forma de minações machistas por meio da mãe com dificuldade em aceitar a
organizar as situações, longe de visar extrair
delas sentidos mais amplos, é filtrada por possível homossexualidade do filho.
experiências pessoais, quase abstratas, com
senso de intimidade. O que vemos é o que a Aqui, o foco é Junior, um garoto de nove anos
protagonista infantil vê. O que não entende- que vive com sua mãe viúva e um irmão ainda
mos é, também, o que ela ignora. A câmera bebê em um conjunto habitacional enorme e
nos aproxima demais em alguns momentos, decadente em Caracas. Fruto da união entre
sem com isso nos mostrar mais, e se mantém a mãe branca e o pai negro, Junior tem o ca-
distante em outros, sem com isso nos permitir belo encaracolado, pejorativamente chamado
ver em perspectiva (EDUARDO, 2014, pág. 99). de “cabelo ruim” (o “pelo malo” do título) na
Venezuela e em outros países da América La-
tina. Durante as férias, Junior sonha em alisar
Já o filme Entre Vales (Philippe Barcinski, Brasil, 2012) reto- o cabelo para compor um novo visual inspira-
ma o engajamento político de cinema militante com o tema trabalho do em cantores populares, e assim aparecer
na foto da escola [...]. O problema do cabelo
(que também aparece em Whisky) e ressignifica a estética do lixo, e do visual, aliado às dificuldades financeiras
que fazem com que a mãe de Junior não tenha
que caracterizou filmes no Cinema Novo e no Cinema Marginal. A
dinheiro para pagar pela foto, entremeia-se no
ficção retrata a rotina de um personagem inventivo que recupera sua filme ao despertar de sua sexualidade (MELLO,
2014, pág. 115).
dignidade nos lixões. Sua jornada começa no lixão, onde ele conhece
a exploração dos intermediários que compram o lixo dos catadores e
O primeiro longa de Mariana Rondón, Postais de Leningrado
vendem às grandes indústrias. Antônio (Ângelo Antônio) ganha mal,
(Postales de Leningrado, 2007), também parte do universo infantil
vive em regime de escambo, passando a dever dinheiro ao interme-
para narrar a história de uma criança que cresce em um grupo guer-
diário que lhe adianta materiais para montar uma barraca no lixo. O
rilheiro na Venezuela da década de 1960. O contexto político envolve
diretor do filme analisou seu personagem Antônio em sua vivência
na disputa dos territórios das áreas de despejo. Fica evidente a lógica os enfrentamentos de guerrilheiros que se lançaram nas montanhas
de produção envolvida nos lixões e entender que o lixo “fresco”, que e na cidade com o objetivo de enfrentar regimes excludentes e au-
é arado pelos tratores, é propriedade dos mais fortes e que o “pé da toritários e para lutar por uma sociedade mais justa. Postais de Le-
268 Ana Daniela de Souza Gillone audiovisual revolucionário 269

ningrado e Pelo malo são filmes que também podem ser analisados apenas a política construída nos filmes da resistência da década de
sob a perspectiva das representações das mulheres nos contextos de 1960, mas também aquela que se difere dos discursos situacionistas
situações extremamente difíceis que marcam dois momentos dife- e que, geralmente, privilegia contextualizar a política cotidiana, atra-
rentes da Venezuela, nos anos 1960 e em 2010. vés das abordagens sobre as necessidades e carências, fantasias e
reivindicações das personagens ou de uma realidade construída que
As obras de Mariana Rondón fazem parte da safra audiovisual
é marcada pelas diferenças sociais – tópicos muito presentes nesta
venezuelana que conquista projeção dentro e fora do país. São filmes
filmografia recente. Essas reflexões foram fundamentais nas análi-
vencedores de importantes prêmios, como a Concha de Ouro no Fes-
ses fílmicas em uma abordagem que envolve a relação entre diretor,
tival de San Sebastián e de Melhor Longa-Metragem no Festival de
filme e espectador de um modo diferenciado, distanciando-se das
Cine Latinoamericano y Caribeño de Margarita e na Mostra Interna-
abordagens hierárquicas que pretendia fazer do filme uma obra de
cional de Cinema de São Paulo. autor que buscava conscientizar o público.

Este estudo envolve a análise das questões políticas e esté-


Últimas palavras ticas do Nuevo Cine e dos filmes produzidos durante as ditaduras
militares na América Latina, além de uma exposição das estéticas e
O cinema contemporâneo produz e descreve uma relação afe- políticas das representações no cinema contemporâneo. As análises
tiva e política com o seu passado. Por isso, a opção em apresentar e dos filmes aqui reunidas se opuseram àquela leitura plana que se
debater obras de diferentes períodos do Cinema Latino-americano, restringe a ver o que se formaliza diretamente em uma cena, e se
instigando um diálogo entre o passado e o presente que contribui preocuparam em ver e mostrar o que vai além do enredo, tratando
para o melhor entendimento do cinema recente. Se, de um lado, as do que acontece nas imagens em uma perspectiva histórica, política
teorias e críticas nos permitiram fazer uma abordagem mais apro- e social. A preocupação foi ultrapassar a análise das questões abor-
fundada das obras analisadas, de outro essas representações nos dadas pelos filmes aprofundando-se na busca por desvelar a forma
permitiram refletir sobre os conceitos de cinema e de políticas que como cada uma das obras desenvolve suas questões para que sejam
elas constroem. Uma questão que abrange não só a política que é identificadas pelo espectador. A preocupação se estende em mos-
construída nas narrativas, mas aquela do próprio cinema e que está trar o que o diretor pretendeu evidenciar com a história, bem como
vinculada à relação entre arte e política. aquilo que a narrativa não conseguiu comunicar ou, ainda, o que não
estava na proposta do filme. As citações e referências aos pesqui-
Comumente se pensa que falar em filme político latino-ame-
sadores, críticos, cineastas envolvidos neste estudo incluem então
ricano é discorrer sobre os filmes dos cinemas novos ou os filmes
discussões sobre os procedimentos estéticos usados pelos filmes e o
de vanguarda. As abordagens feitas neste capítulo abrangem não
270 Ana Daniela de Souza Gillone audiovisual revolucionário 271

tipo de experiência que proporcionam ao espectador, identificando, BARCINSKI, Philippe. Entre Vales (Philippe Barcinski, Brasil, 2012). In:
em cada narrativa, um conjunto de estratégias e de efeitos sobre o GILLONE, Daniela (Org.). Cinema da América Latina. São Paulo: Fun-
dação Memorial da América Latina, 2014.
espectador. Não o espectador concreto, mas o conceito de especta-
CATANI, Afranio. Actas de Marusia (Miguel Littín, México, 1976). In:
dor que está pressuposto nas obras. GILLONE, Daniela (Org.). Cinema da América Latina. São Paulo: Fun-
dação Memorial da América Latina, 2014.
Também foram explorados os conceitos sobre o fazer do ci-
nema, desde os aspectos mais técnicos, como o processo de mon- EDUARDO, Cléber. De jueves a domingo (Dominga Sotomayor, Chile,
Holanda, 2012). In GILLONE, Daniela (Org.). Cinema da América Lati-
tagem, até questões de linguagem cinematográfica, como os planos na. São Paulo: Fundação Memorial da América Latina, 2014.
e a composição das cenas. Os filmes foram, ainda, analisados sob o
FANON Frantz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
ponto de vista da imagem. Os autores entrecruzaram a análise dos 2006.
temas abordados nos filmes e das opções estéticas e narrativas de FELDMAN, Ilana. Whisky (Juan Pablo Rebella e Pablo Stoll, Uruguai,
seus realizadores à discussão de questões sociais, políticas e econô- Argentina, Alemanha, 2004). In: GILLONE, Daniela (Org.). Cinema da
micas envolvidas em sua realização. O aprofundamento em relação América Latina. São Paulo: Fundação Memorial da América Latina,
2014.
aos aspectos históricos abordados ou tangenciados pelos filmes e re-
HOBSBAWM, Eric J. Bandidos. 4. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2010.
ferente à forma como esses filmes representam tais questões expõe
os diálogos ou contraposições envolvidos na representação desses LUSNISH, Ana Laura. Tangos... O Exílio de Gardel (Fernando Solanas,
França, Argentina, 1985). In: GILLONE, Daniela (Org.). Cinema da
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272 Ana Daniela de Souza Gillone

VILLAÇA, Mariana. Memórias do Subdesenvolvimento (Tomas Alea


Gutierrez, Cuba, 1968). In: GILLONE, Daniela (Org.). Cinema da Amé-
rica Latina. São Paulo: Fundação Memorial da América Latina, 2014.
XAVIER, Ismail. O cinema brasileiro dos anos 90. Praga, São Paulo, n.
9, jun. 2000.

Revuelta e imagen en
el audiovisual chileno:
Itinerarios de un estallido
(anunciado) 46
Carolina Urrutia Neno47

46 Este artículo forma parte del proyecto Fondecyt inicio 11190709, titula-
do: “Desbordes de lo real en el cine latinoamericano: Chile, Argentina y México”.
Para citar este texto como fuente de su investigación, utilice la plantilla a continuación:
NENO, Carolina Urrutia. Revuelta e imagen en el audiovisual chileno: itinerarios
de un estallido (anunciado). In: ROCHA, Adriano Medeiros da; LAIA, Evandro
José Medeiros (Org.). audiovisual revolucionário. São Paulo: Editora dos Frades,
2021.
47 Carolina Urrutia Neno es académica e investigadora. Profesor asistente
de la Facultad de Comunicaciones de la Universidad Católica de Chile. Doctora
en Filosofía, mención en Estética y Magíster en Teoría e Historia del Arte, de la
Universidad de Chile. Es directora de la revista de cine en línea laFuga.cl, autora
del libro Un Cine Centrífugo: Ficciones Chilenas 2005 y 2010, y directora de la
plataforma web de investigación Ficción y Política en el Cine Chileno (campocon-
tracampo.cl). Ha sido profesora de cursos de historia y teoría del cine en la Uni-
versidad de Chile y la Universidad Adolfo Ibáñez y autora de numerosos artículos
en libros y revistas.
audiovisual revolucionário 275

Introducción

Durante muchos años, las manifestaciones y las protestas en


Chile constituyeron una excepción. Las décadas de los noventa e ini-
cios de los dos mil fueron mayormente años de letanía y pasividad
ciudadana, de un ajuste relacionado a la transición entre la horrorosa
dictadura de Augusto Pinochet y la instalación de una democracia
cuyos pilares se construían de modo frágil e irregular.

Sin embargo en el año 201148 los estudiantes secundarios y


universitarios comenzaron a manifestarse, exigiendo al gobierno
gratuidad y calidad en la educación pública. En ese gesto vigoroso
y persistente, inaugurando una segunda década de los dos mil que,
luego de dicha movilización de los estudiantes, estuvo marcada por
protestas y marchas en las calles que veían su normalidad interrum-
pida. Los motivos de las manifestaciones eran variados –pensiones
justas y dignas, igualdad en temas de género, apoyo al pueblo ma-
puche, entre otras demandas ciudadanas–, todas tenían en común
la necesidad de un mejor vivir para todos y todas. En ese contexto,
las imágenes de los estudiantes tomándose los colegios y las univer-
sidades se volvió común al imaginario colectivo de las grandes ciuda-
des de Chile: los frontis de los establecimientos amurallados por las
sillas y las mesas sacadas de las salas de clases; las fachadas de los
edificios rallados, o bien, barricadas y fogatas en las calles en ciertas
fechas conmemorativas; cantos y consignas vitoreados por multitu-
des transversales en rangos etarios y sociales. Esas postales estaban
permanentemente acompañadas de otras que se articulaban por la

48 Ya había habido un primer movimiento estudiantil el año 2006.


276 Carolina Urrutia Neno audiovisual revolucionário 277

imagen de manifestantes siendo dispersados de modo violento por En Chile, el 18 de octubre de 2019 es una fecha importante.
las fuerzas policiales, que con sus carros lanza-aguas se hicieron cada Algo se enciende (literal y simbólicamente) en la sociedad, provoca-
vez más visibles en las calles de Santiago, de Valparaíso, de Concep- do por un hartazgo que venía acumulándose desde hace demasiado
ción, de Antofagasta y de las principales ciudades del norte al sur de tiempo. Cuando dicho hartazgo llega a un tope50 se produce un tem-
Chile. blor. Araújo lo ilustra de la siguiente manera: “El modelo neoliberal y
sus consecuencias en términos de precarización laboral (…), pérdida
Sobre las movilizaciones y las manifestaciones, señala George
de protecciones sociales y privatización de servicios sociales, entre
Didi Huberman: “Entonces todo se enciende. Algunos solo ven puro
otros, han producido lo que ha sido leído como exigencias desmesu-
caos. Otros ven surgir, en fin, las formas mismas del deseo de ser li-
radas para poder gestionar su vida ordinaria” (20). Hay coincidencia
bre. Durante las huelgas se inventan formas de vivir en conjunto. De-
transversal en ese diagnóstico por parte de distintas voces locales:
cir que ‘nos manifestamos’, es comprobar –incluso para asombrarse
sociólogos, filósofos, políticos venían advirtiendo los modos en que
por eso, incluso para no comprender– que surgió algo y es decisivo.
el malestar social se acumulaba como una olla a presión. Se hablaba
Pero habrá sido necesario un conflicto para esto” (59). Este texto,
de una desigualdad estructural en la sociedad chilena, de cúmulo de
escrito por el filósofo francés49, estuvo presente en una muestra que
abusos y de casos de corrupción, de precarización de los derechos,
Didi Huberman cura y exhibe en la ciudad de Buenos Aires, en el
de un sistema indigno de pensiones y de una educación pública muy
Centro de Arte Contemporáneo Hotel de Inmigrantes, durante el año
deficiente promotora de la inequidad y de las faltas de oportunida-
2017 bajo el título de “Sublevaciones”. La exhibición contemplaba
des. El texto de Mario Garcés, Octubre de 2019: Estallido social en el
diversas obras (más de 200), que ocupaban las distintas habitaciones
Chile neoliberal, será bastante lúcido al establecer un relato en distin-
del museo a orillas del río de La Plata y se componía por fotografías,
tos tiempos en que revisa causas, cronologías, reacciones de los ac-
documentos históricos, reproducciones de pancartas o pinturas que
tores políticos, en las semanas previas y posteriores al 18 de octubre.
contenían cuerpos y rostros de muchos en las calles, a través de imá-
El sociólogo propone que Chile se sumergía en “el mayor ‘estallido
genes de manifestaciones y revueltas en distintas partes del mundo.
social’ desde que se recuperó la democracia, es decir en los últimos
Rostros expresivos, a veces entusiastas y otras agobiados, muchos de
30 años. Un estallido que nadie podía imaginar o prever, aunque mu-
ellos congelados en el grito; alzando pancartas y lienzos blandidos al
aire. 50 El tope se produce con el alza del precio del pasaje metro. Los estudian-
tes, una vez más, son los que toman la iniciativa para alegar en contra de este alza:
Se toman las estaciones del metro y dejan que la gente pase sin gratuitamente,
49 George Didi Huberman, desde inicios del siglo pasado, se ha encargado gritando al unísono: “Evadir, no pagar, otra forma de luchar”. Esto se extiende va-
de pensar en el arte, en las representaciones, en la imagen y en el pueblo. En el rios días y culmina el día 18 de octubre con varias estaciones de metro quemadas
caso de la exposición, esta estuvo acompañada de un pequeño libro Sublevaciones. simultáneamente en distintos puntos de la capital, desde el día siguiente se inician
Editorial Untref, 2017. en las calles las convocatorias masivas de ciudadanos manifestándose en la calle.
278 Carolina Urrutia Neno audiovisual revolucionário 279

chos admiten hoy, que los síntomas existían y existen desde hace ya Los síntomas que causan la revuelta serán ampliamente explo-
bastante tiempo” . 51
rados por el cine chileno. En las películas realizadas en las décadas
de los noventa y de inicios de los dos mil, se exponen variados indi-
A ese estallido social, lo llamamos acá revuelta, al modo en
cios que (posteriormente) provocan el estallido y que se despliegan
que lo comprende Furio Jesy, quien escribe:
en diversas obras cinematográficas: largometrajes, mediometrajes,
usamos la palabra revuelta para designar un cortometrajes; de ficción y documental, series de televisión. Los di-
movimiento insurreccional diferente a la re- versos tópicos que dan cuenta del malestar creciente, que reflexio-
volución. La diferencia entre revuelta y revo-
lución no debe buscarse en los fines de una y nan sobre las ruinas de la dictadura enraizadas profundamente en
otra: una y otra pueden tener el mismo objeti- los devenires de la política, la economía, la educación con todos los
vo: tomar el poder. Lo que mayormente distin-
gue a la revuelta de la revolución es en cambio efectos que ello puede tener en la sociedad chilena, estarán presen-
una diferente experiencia del tiempo. (63). tes en nuestro audiovisual. En el caso del cine, las historias exploran
críticamente los efectos que deja la dictadura y que se traducen en
Es sugerente, entonces, pensar en la revuelta como una sus-
conflictos tangibles, de los cuales los cineastas dan cuenta, de modos
pensión de un tiempo determinado o histórico, el de una era marca-
a veces más literal y otras veces de modo simplemente latente, en
da por el neoliberalismo, el consumismo, el capitalismo, el exitismo
segundo plano.
y, por ende, el endeudamiento, la precariedad laboral, y el malestar
generalizado de las clases medias y bajas. La revuelta se llamó tam- De modo sistemático, en las películas chilenas realizadas des-
bién estallido o despertar de la sociedad. Eso implica que antes algo de el retorno de la democracia, al inicio de la década de los noventa
estaba apagado o dormido, que las masas se movían sonámbulas en y hasta el día de hoy, podemos ver las causas del malestar. En fil-
una cotidianeidad aplanada por las circunstancias socioeconómicas y mes como Caluga o menta (Gonzalo Justiniano, 1990), Taxi para tres
el impedimento de una vida plena. (Orlando Lubbert, 2011), Rabia (Oscar Cárdenas, 2006), El pejesapo
(José Luis Sepúlveda, 2009), Matar a un hombre (Alejandro Fernán-
dez Almendras, 2009), Volantín cortao (Anibal Jofré y Diego Ayala,
Chile antes de la revuelta: imágenes de protestas 2014), El primero de la familia (Carlos Leiva, 2016) y Mala junta
en el cine chileno (Claudia Huaiquimilla, 2016), entre muchísimos otros, vemos tanto
la emergencia de una clase media endeudada y empobrecida, como
la presencia de la población marginal, sin acceso a los beneficios que
51 Disponible en: Journal of Latin American Cultural Studies. https:// el sistema neoliberal le otorga a las clases privilegiadas52.
medium.com/@j_lacs/octubre-de-2019-estallido-social-en-el-chile-neoliberal-
-141a5eeedc42 52 En el libro Bordes de lo real en la ficción (Santiago, Metales pesados,
280 Carolina Urrutia Neno audiovisual revolucionário 281

Las manifestaciones ciudadanas aparecen en el cine nacio- neasta va mezclando elementos propios de la vida personal y familiar
nal. tanto cuando los filmes tratan directamente sobre ello (gene- (vacaciones con amigos, reuniones familiares, el espacio doméstico,
ralmente en documentales, cuyo foco son los movimientos sociales, el crecimiento de su hijo a quien dirige la carta) con el ámbito po-
como La revolución de los pingüinos de Jaime Díaz, 2008 o El vals de lítico del Chile de las últimas décadas (modernización, crecimiento
los inútiles de Edison Cajas, 2013, entre otros), pero también otros, urbano, residuos de la dictadura militar, etc.). El momento en que
en donde la imagen y el sonido de las marchas ingresa más bien de aparece el movimiento estudiantil y su marcha convocada en la Ala-
modo tangencial, como por ejemplo, el caso de Gloria, de (Sebastián meda de Santiago, será interesante no solo por el carácter subjetivo
Lelio, 2013). y experiencial que adopta la imagen de la movilización, sino también
porque está antecedido por dos secuencias que serán discursiva y
A continuación, nos interesa detenernos en algunas imágenes
simbólicamente potentes. La primera es la del Estadio Nacional (prin-
sugerentes de filmes en donde los movimientos ciudadanos conflu-
cipal recinto deportivo y de eventos masivos del país): las imágenes
yen de modo centrípeto: hay un tiempo en que la narración se detie-
aparecen, al igual que el resto de la película, filmadas en formato
ne y la imagen es ocupada por las manifestaciones ciudadanas.
súper 8, y van mostrando la restauración del Estadio. Sobre la imagen
En primer lugar, destacamos el cortometraje autobiográfico y se exhiben, en letras blancas sobre fondo negro, los siguientes textos
experimental Al final, la última carta de Tiziana Panizza (2012), pe- que aluden directamente al rol siniestro que tuvo el Estadio Nacional
lícula que cierra su trilogía de cartas audiovisuales53. En ella, la ci- como espacio de torturas durante la dictadura.

“28 camarines
2020), proponemos, junto con Ana Fernández, que es posible detectar en el cine
chileno contemporáneo “muchos de los problemas que originan el estallido so- 28 celdas
cial, que se van anticipando en diversas movilizaciones. Como si el cine chileno
presintiera ese descontento latente e histórico” Ahí, se profundiza en torno a di- 40 mil detenidos”.
versas películas que (a diferencia de las recientemente mencionadas) se inspiran
en ciertos casos paradigmáticos que no solo han llamado la atención de la opinión Mientras tanto, desde el sonido emerge la voz
de la cineasta quien expresa:
pública y de los medios de comunicación, sino que han provocado indignación
por parte de la ciudadanía, pasando a formar parte de la agenda política. Nos “25 galones de pintura blanca, 34 mil millones
referimos a casos de discriminación: Jesús (Fernando Guzzoni), Rara (MarÍa José de dólares”.
San Martin), Nunca vas a estar solo (Álex Anwandter); de corrupción: Aquí no ha
pasado nada (Alejandro Fernández) de abusos sexuales por parte de la iglesia: El “La autoridad dijo: el atractivo sistema de
bosque de Karadima (Matías Lira), El club (Pablo Larraín). Entre muchos otros iluminación hará que el estado nacional se
filmes que toman de los casos noticiosos las historias que son aprehendidas por transforme en un hito de modernidad urbana
la ficción, capturando su esencia pero transformando los contextos y alrededores. y símbolo de este Chile pujante y emprende-
53 La trilogía de Cartas Visuales, está compuesta por los cortometrajes dor”.
y mediometrajes Dear Nonna: a film letter (2005), Remitente: una carta visual
(2008) y Al Final: la última carta (2012).
282 Carolina Urrutia Neno audiovisual revolucionário 283

Se provoca de inmediato una tensión entre la imagen y el como modelo que genera una desigualdad que solo se acrecienta
sonido. Entre lo que se expresa visualmente y aquello que recita la con el paso del tiempo. La protagonista, Lucía (Gabriela Aguilera),
palabra en la voz de la misma directora: ambas instancias exponen vive con su padre en una antigua y destartalada casona del barrio
hechos concretos y reales, no es necesario subrayar nada porque poniente de Santiago. La casa alberga cientos de recuerdos, cachiva-
todo está a la vista, aun de modo implícito en los textos superpuestos ches, objetos de poco valor situados en espacios desvencijados. Su
o declamados mediante voice over. La segunda secuencia consiste padre pasa los días frente al televisor o se sienta en el patio a obser-
en las manos de una abuela destejiendo un pañito hecho a crochet. var los cambios que se producen en el vecindario. Lucía trabaja como
Luego de esa imagen (que remite, tal como propone la cineasta, al costurera en una pequeña fábrica de vestuario infantil: sueña con
tiempo, su duración, el modo en que avanza y se desanda, su fini- mudarse a vivir sola y visita, en su tiempo libre, los departamentos
tud) vienen la secuencia de la marcha de los estudiantes: entre los pilotos de los edificios en construcción: espacios ínfimos (25 metros
manifestantes, aparecen cineastas del campo local caminando por la cuadrados) cuyos precios de venta han crecido desorbitadamente en
avenida, entre hombres y mujeres avanzando con globos y banderas; las últimas décadas. Edificios que han invadido las ciudades (espe-
estudiantes secundarios en uniforme gritando –aunque el sonido se cialmente a Santiago) como un cáncer y que dan cuenta de una ciu-
reemplaza por una música realizada a partir de un xilófono y tam- dad que se destruye (las casas patrimoniales, los centros históricos) y
bor–, una masa multitudinaria marchando por la calle bajo el sol, en se construye sin un plan urbano que privilegie el entorno ni tampoco
una suerte de fiesta, de celebración carnavalesca, de distensión y de a sus habitantes54. El filme, entonces, transita en torno al tópico del
entusiasmo y sobre todo, de deseo compartido y común a todos los habitar y lo sitúa críticamente de modo secundario.
participantes. De ese modo, lo privado y lo político se entretejen en
El segundo tema que aborda Lucía es el de la “funa”, en rela-
la secuencia así como en toda la trilogía de cartas visuales, ambos
ción a los casos judiciales irresueltos arrastrados desde la dictadura
tópicos transcurren de modo inseparable, en parte por el formato
militar que nos presentan desde el siguiente hilo narrativo: Lucía y su
de la obra, que entremezcla lo autobiográfico, lo epistolar, lo casero
padre se enteran por las noticias de que el doctor amigo de la familia
(en tanto modalidad de un cine underground y experimental, en la
fue torturador durante la dictadura militar. Los protagonistas están
línea, por ejemplo, de Jonas Mekas y de Jay Rosenblatt en un ámbito
viendo la televisión cuando se encuentran con el informe: “Si no hay
actual).

Desde otra perspectiva, es interesante la película Lucía de Ni- 54 Durante las movilizaciones de 2020 se hizo una intervención urbana
que aludía justamente a este evento revisado por Atallah: con el nombre de “Por
les Attalah (2010), que anuncia el malestar social contemporáneo a un habitar digno” un grupo de jóvenes criticaban la construcción de “nano de-
partir de una historia profundamente centrada en la crítica al siste- partamentos” de 17 metros cuadrados, mediante un plano a escala real dibujado
sobre el suelo de la avenida. Son departamentos, además, impagables para la gran
ma económico neoliberal instalado en el Chile de la dictadura militar,
clase de media.
284 Carolina Urrutia Neno audiovisual revolucionário 285

justicia, hay funa” o “alerta, alerta vecino, al lado de tu casa vive un sus megaproyectos destruyen lo sustancial de la cultura mapuche y
asesino”, gritarán los manifestantes, instalados con pancartas fuera que nosotros estábamos desde mucho antes que sus ambiciones”.
de la clínica privada en donde trabaja el doctor en total impunidad55. Los asistentes aplauden y vitorean la intervención del líder. El diri-
Por supuesto, ni Lucía ni su padre sabían que este conocido y exitoso gente acusa allanamientos, balaceras, hombres y mujeres que ha-
médico había sido un perpetrador de crímenes de lesa humanidad. bitan en la clandestinidad y que están permanentemente acusados
El filme, entonces, parece desbordado por el peso del pasado sobre por crímenes que no se han cometido. En la película, el comunero
el presente y lo demuestra de diversos modos. (personaje entrañable, cercano a los protagonistas), será asesinado
en manos de la policía. Si bien la película es una ficción, alude a nu-
Por otra parte, la película Mala junta, de Claudia Huaiquimilla
merosos casos pasados y también futuros al estreno de la película.
se concentra en dos (incluso tres) grandes e irresueltos conflictos del
Chile actual. El primero es la tensión y deuda con el pueblo Mapuche. El último ejemplo que quisiera nombrar es el del documental
La película ocurre en La Araucanía y una de sus líneas argumentales autobiográfico Visión nocturna (Carolina Moscoso, 2020). En él, su
convoca el histórico conflicto mapuche, con el estado de Chile y la directora realiza una obra en torno a una violación sufrida hace 10
fuerza policial. El segundo tópico gira en torno al Sename (Servicio años, analizando tanto los hechos sucedidos, como también lo que
nacional de menores) y a la deuda que el estado de Chile tiene con siguió a la violación, revisando procesos mentales, anímicos y judi-
los niños y jóvenes vulnerables. El tercero, que opera como telón de ciales. El filme se estrenó en Chile en marzo del 2020, en ese mes,
fondo, es el conflicto ecológico a partir de la imagen permanente del cientos de miles de mujeres se reunieron en las distintas ciudades
bosque siendo intervenido por las industrias madereras y papeleras y de Santiago y marcharon unidas, bajo el lema “Ni una menos”, como
su imparable explotación forestal. En Mala junta, la cineasta también protesta en contra la violencia de género. Unos pocos meses antes, el
se detiene a filmar la revuelta. La movilización, la represión policial, colectivo feminista chileno Las Tesis había realizado la performance
incluso la muerte de un comunero mapuche en manos de las fuer- “Un violador en tu camino”, en referencia al himno de carabineros de
zas policiales. Los protagonistas del fime asisten a una movilización. Chile. Rápidamente el grito “el violador eres tú”, en conjunto con la
Cuando el dirigente habla dirá muy fuerte: “vergüenza le debería dar performance, se replicó en diversos lugares del mundo. Por otra par-
al estado que los mapuche tengamos que estar aquí cada cierto tiem- te, la consigna “ni una menos” se hizo masiva en diversos momentos
po recordándoles que esta tierra nos pertenece; recordándoles que del año. Visión nocturna integra, en su relato personal e intimista, la
imagen de movilizaciones de mujeres, unidas en rondas, marchando
55 La imagen de la funa se repetirá en otras películas chilenas. Por ejemplo, juntas, bailando el torno al fuego.
en Los perros (Marcela Said, 2017), en donde un ex coronel acusado de crímenes
de lesa humanidad será funado por un grupo de hombres y mujeres que se insta-
lan por horas fuera de su casa, con afiches y panfletos que tiran en el vecindario y
Se trata de una secuencia de la película que se detiene en las
en el que lo acusan por los actos cometidos durante la dictadura militar. imágenes de una manifestación de mujeres unidas con pancartas y
286 Carolina Urrutia Neno audiovisual revolucionário 287

con fotos, aparentemente, de sus agresores. Las pancartas rezan “ya feminista56, vemos cómo sobrevuela al tópico que es tan bien es gra-
no tengo miedo, tengo rabia”. Mientras las imágenes enfocan una fo- ficado. Coincidimos con lo expresado por María José Bello, cuando
gata, las mujeres bailando y haciendo una ronda alrededor, aparecen siguiere: “Es interesante ver cómo el fenómeno de Las Tesis en par-
los textos enviados por el abogado de la directora, que expresan lo ticular y la movilización social en general han invertido las tradicio-
siguiente: nales relaciones de influencia entre centro y periferia, entre norte
y sur. Las demandas de la sociedad chilena han tenido un eco en la
Carolina, no tengo buenas noticias.
comunidad internacional y parecen apuntar a problemáticas que son
Revisé la causa con el fiscal y no tenemos nin-
guna posibilidad de condena
universales”. La protesta feminista se extiende de modo global: las
marchas a favor del aborto (más allá de las tres causales que propone
Como te expliqué, el plazo de prescripción del
delito de violación es de 10 años la legislación actual), las protestas masivas en relación a los femici-
Lo que significa que la causa no puede seguir dios son constantes en el mundo y especialmente en América Latina
adelante. (los pañuelos verdes en Argentina, por ejemplo o el movimiento re-
Lamento mucho la situación. Espero que pue- lacionado al “me too”, que se inicia en Hollywood, pero tiene, lamen-
das ir sanando tus heridas por vías distintas a tablemente sus ecos en muchos lugares del globo).
la judicial.
Acá ya no se puede hacer nada.
Imágenes de la revuelta después del estallido
Intercaladas con estos textos que aparecen sobreimpresos
sobre un fondo negro, las imágenes exhiben una protesta potente En el marco del Nuevo Cine Latinoamericano surgió el ideario
y catártica, donde el sonido es reemplazado por un ruido neutro y de un cine revolucionario, un cine de la descolonización, que se aleja-
permanente de un crepitar del fuego que se va acrecentando hasta ra del mero espectáculo, que trascendiera e impulsara el cambio. Oc-
volverse avasallador. tavio Getino y Fernando Solanas pretendían la realización de un ter-
cer cine, que podría ser tanto un cine poema como un cine informe,
El documental se articula como un recorrido experiencial: la
pero por sobre todo, la oposición a los relatos hegemónicos del cine
constatación de que en el caso de la violencia sexual hacia las mu-
de consumo masivo. Proponían: “El hombre del tercer cine, ya sea
jeres la justicia es indolente y, absolutamente, insuficiente. La pelí-
desde un cine-guerrilla, o un cine -acto, con la infinidad de categorías
cula habla de la prescripción de los delitos sexuales, del abuso, de la
displicencia de las distintas instituciones relativas a los procesos de
56 Manifestaciones feministas que tienen su momento álgido en mayo de
denuncia. Si bien la realización del documental es anterior al mayo 2018, con ciertos eventos, como la toma de la casa central de la Universidad Cató-
lica.
288 Carolina Urrutia Neno audiovisual revolucionário 289

que contienen (cine-carta, cine-poema, cine-ensayo, cine-panfleto, celulares, videograbadoras, cámaras profesionales) en manos de dis-
cine-.informe), opone ante todo, al cine industrial, un cine artesanal; tintos individuos o grupos, tanto de cineastas, como de estudiantes
al cine de individuos, un cine de masas; al cine de autor, un cine de de dirección audiovisual, carreras de cine, o amateurs que filmaban
grupos operativos; al cine de la desinformación neocolonialismo, un para denunciar ciertos hechos y luego compartían sus grabaciones.
cine de la información; a un cine de la evasión, un cine del rescate Algunos de ellos se unieron y conformaron colectivos58 organizados
de la verdad (…)”57. Quizás aquello que se provoca, en términos au- para registrar las manifestaciones. Desde el inicio, las redes sociales
diovisuales, en la sublevación chilena de octubre del 2019, es lo más se llenaron de registros de marchas y de performances callejeras, de
parecido a ese derrotero enmarcado en las politizadas décadas de denuncias hacia la violencia policial y estatal. Los videos circulaban
los sesenta. no solo en redes como Facebook, Instagram, YouTube o Twitter, sino
que muchas de ellas fueron reproducidas también por los noticiarios
Esta segunda década de los dos mil se ha vuelto, en la región,
de los canales de televisión hegemónicos. Es decir, parte de la revuel-
tan convulsa como la de los setenta. El estallido chileno ocurre en
ta se relaciona con un activismo audiovisual compuesto por nuevas
un momento global de protestas, manifestaciones y movimientos
prácticas que se reinventan en la época contemporánea imaginando
sociales en diversos países que mantienen sistemas económicos y
permanentemente nuevas formas de cine y desbordaje de lo real.
culturales tan distintos entre sí como la primavera árabe, los movi-
mientos feministas en Argentina, las protestas de los estudiantes en Los registros, videos o cortometrajes surgen en gran medida
México o el movimiento de los indignados en España, son solo algu- en manos de cineastas agrupados y organizados. Tal como propone
nos ejemplos. En el caso de América Latina, vemos que en el último Laura Lattanzi en su conversatorio con los colectivos audiovisuales
año se han desarrollando masivas manifestaciones populares tanto de la revuelta: “En el estallido social […] las imágenes jugaron un rol
en Chile, como Colombia, Ecuador, Bolivia. fundamental. Se trata de la revuelta más documentada en imágenes,
pero también de la consciencia de los actores sociales sobre la nece-
Furio Jesy señala: “Toda revuelta es batalla, pero una batalla
saria disputa por los regímenes de visualidad. Existe, por un lado, una
en la que se elige participar deliberadamente. El instante de la revuel-
lucha simbólica por posicionar otros relatos y significaciones, pero
ta determina la fulmínea autorrealización y objetivación de sí como
también la necesidad y urgencia de “salir con la cámara” a testimo-
parte de una comunidad” (70). Podríamos pensar que las cámaras de
niar y buscar alternativas de comunicación”59. Es interesante la idea
registro se sitúan como armas relevantes de esta batalla. La revuelta
chilena ha sido registrada por diversos tipos de cámaras (teléfonos 58 Algunos de los colectivos que surgen son: OjoChile y Registro callejero,
que se sumaron a otras iniciativas anteriores, como la Escuela popular de cine
57 Hacia un tercer cine: Apuntes y experiencias para el desarrollo de un cine (desde 2011) y el colectivo MAFI (desde 2012) o Caosgermen (2018). Todos ellos
de liberación en el tercer mundo. Escrito por Octavio Getino y Fernando “Pino” mantienen un rol muy activo en las manifestaciones sociales de los últimos meses.
Solanas. Publicado en octubre de 1969. 59 Disponible en: http://lafuga.cl/conversatorio-colectivos-audiovisuales-
290 Carolina Urrutia Neno audiovisual revolucionário 291

del colectivo que se abre a suspender por un momento la idea de y patriarcal que oprime a las mujeres”61.
un “cine de autor” para proponer un audiovisual que se hace entre
En el cortometraje utilizan registros de la performance que
todos, que no contiene créditos ni directores individualizados en un
fue replicada en distintos lugares del mundo, en diversos idiomas,
nombre, sino la convocatoria de muchos que se vuelven anónimos
por distintas mujeres que se reunieron para realizar la coreografía.
apoyando la causa del país y del pueblo.
El cortometraje toma el material y lo interviene mediante la técnica
A continuación, nos gustaría dar cuenta de dos obras que de la rotoscopia y la animación, uniendo diversas manifestaciones en
circularon tanto en redes sociales, como también en el marco de una suerte de continuum espacio temporal. El resultado es una obra
distintas instancias de reunión y de reflexión60, ambos filmes se en- de tres minutos, que contiene el ritmo, la cadencia, pero también la
cuentran enmarcados en diversas marchas realizadas entre octubre fuerza y la violencia de la imagen de cientos de mujeres coordinadas
del 2019 y marzo de 2020; se trata de dos obras que constatan esta en un baile y un grito común. El material también es manipulado e
histórica revuelta chilena. La primera es: “Un violador en tu camino” intervenido: se impregna de una textura distinta (la imagen se vuelve
que es realizada por el colectivo OjoChile. Este cortometraje en par- áspera, opaca), contiene nuevos elementos, se tensa su transparen-
ticular estará a cargo de Niles Atallah en conjunto con otros cineastas cia. Evidenciando las posibilidades poéticas de las vanguardias artís-
y estudiantes de cine de distintas escuelas. El texto que acompaña la ticas en el cine: al cine puro y al “arte de la visión” que propone el
obra en su Instagram es el siguiente: “Desde la intervención en San- norteamericano Stan Brackage, otorgándole a la obra un aura que
tiago de Chile el Día de la eliminación de la violencia contra la mujer, los ojos de las múltiples cámaras no son capaces de aprehender, en
Las Tesis y su poderoso mensaje han explotado las redes sociales, relación a los colores, a los movimientos, a las luminosidades, a las
tanto así, que ha sido replicado por miles de mujeres alrededor del intencionalidades, a la fuerza del pie de la mujer golpeando el asfalto
mundo. El grito feminista que se revela contra una sociedad machista mientras grita al unísono: “el patriarcado es un juez, que nos juz-
ga por nacer”. En su artículo “Hacia una imagen-evento. El ‘estallido
-de-la-revuelta/1002 social’ visto por seis colectivos audiovisuales (Chile, octubre 2019)”,
60 Se destaca, en ese contexto, la iniciativa del FIDOCS (Festival Interna-
los autores Jorge Iturriaga e Iván Pinto revisan varias obras realiza-
cional de Documentales de Santiago), realizado en diciembre de 2019, en plena
revuelta y en un momento, donde el resto de los certámenes habían optado por das sobre la marcha del estadillo y las dividen de acuerdo a ciertas
suspender sus actividades debido a los contextos violentos y toques de queda im- categorías que proponen. Sugieren distinguir a partir de: “las del re-
puestos. El FIDOCS, consciente del rol político del documental, realiza una mues-
tra especial que denomina Archivo en progreso que buscaba difundir y exhibir gistro documental (mostrar), la agitación y propaganda (estimular) y
en pantalla grande (el festival se realizó en el histórico Cine Arte Normandie, el remontaje (resignificar). En esta coyuntura pareciera que la ima-
ubicado solo a un par de cuadras de La Moneda) los trabajos audiovisuales. Por
otra parte, en el lanzamiento de la edición 23 de la Revista de estudios de Cine la gen quisiese comportarse con la versatilidad de los punteros láser
Fuga, se presentarán un conjunto de cortometrajes realizados en el contexto de la
revuelta. 61 https://www.instagram.com/p/B6ksAtRpT7J/
292 Carolina Urrutia Neno audiovisual revolucionário 293

en las manifestaciones del estallido: señalando y mostrando algo; gen se pone negra y aparecen los textos ocupando toda la pantalla
obstaculizando y oponiéndose al trabajo de las fuerzas represivas; que transcriben los gritos de quienes se manifiestan: ¡NO CORRAN!
y reconfigurando la experiencia sensorial tradicional de las manifes- o ¡LLEGAN LOS CAPUCHA! o ¡EL GUANACO RETROCEDE! o ¡ESTAMOS
taciones” (sp). Efectivamente la multiplicidad de obras que surgen ATRAPADOS!. Esos gritos, que no escuchamos, son perfectamente
en los últimos meses se instalan en diversos modos de enunciación, imaginados por cualquiera que haya participado en algunas de las
apelando a veces a lo experiencial y a las posibilidades exploratorias marchas, o bien, que haya visto los registros audiovisuales que cir-
del dispositivo, otras veces, a la mera denuncia y concientización de cularon en todas las redes sociales entre octubre y marzo (cuando la
los espectadores, otras veces tienen un rol más discursivo y proposi- pandemia suspende el estallido).
tivo en términos políticos.
Una de las voces que, desde la filosofía ha analizado el estal-
Por otra parte, en una opción más narrativa, será interesante lido y la actual contingencia de Chile es la de Rodrigo Karmy. En sus
la apuesta del cortometraje: ¿Cómo se llega a la moneda?62 realiza- columnas semanales publicadas en el periódico El desconcierto y
do por Diego Soto. La obra comenzará con el siguiente texto escrito agrupadas posteriormente en un libro contingente publicado “sobre
sobre la imagen a modos de subtítulos de letras blancas sobre un la marcha” del estallido, propone que la revuelta “interrumpe ‘el flu-
bloque negro: “La plaza Italia era terreno ganado. Aunque como en jo normal’ del capital de un país, las instituciones dejan de funcionar,
un mito griego, la plaza era ganada en la mañana y recuperada por la temporalidad se suspende fuertemente” (50). Podríamos pensar
los enemigos cada noche”. Esos textos sobre la imagen darán forma que el cortometraje traduce esa interrupción a una estrategia audio-
a la voz (muda) del narrador, mientras se exhiben piedras, ladrillos y visual, donde Soto suspenderá el sonido y parte de los colores. Pero
trozos de cemento arrancado de las calles. La cámara apunta hacia no de modo permanente, sino que de golpe hace emerger el sonido
los grafitis y rayados de los muros; los manifestantes apostados en de las masas. De ese modo los peñascazos atravesando los vidrios
la Alameda (arteria central de la ciudad de Santiago), a las fogatas de un edificio, en lo que el narrador llama “un deporte”, serán mu-
en plena vía pública, al humo, al agua de los guanacos. La banda de dos, no incluirán el sonido de los cristales resquebrajándose (eso no
sonido será, casi siempre, muda. Al inicio se escuchan gritos de pro- implica que los podamos imaginar nítidamente en nuestra escucha
testa, que de pronto son descuajados y la banda sonora se suspende, fantasma). Pero si de pronto, se oyen los gritos y esos desplazan por
es habitada por un profundo silencio. Un silencio sonoro y denso. Las un momento la potencia propia de la imagen.
imágenes están viradas a un tono sepia, el tiempo al que alude es in-
El argumento de este corto de 15 minutos gira en torno a los
determinado, aunque sabemos perfectamente el año y el mes de tal
manifestantes de una marcha que buscan llegar al palacio de gobier-
acontecimiento: octubre de 2019. Entonces, aun en silencio, la ima-
no y a las fuerzas policiales que se lo impiden. En ese contexto, los
62 https://www.youtube.com/watch?v=uFlxWjCQMDA héroes de la historia son los que el narrador denomina como los “ca-
294 Carolina Urrutia Neno audiovisual revolucionário 295

pucha”, los individuos de rostros cubiertos, la “primera línea”: aquel- la ausencia de personajes principales y en la propuesta de muchos
los que preparan el terreno para que el pueblo marche en paz. En- anónimos constituyendo un pueblo. O puede ser que solo emparen-
capuchados que mantienen un sentido dual ante la opinión pública. te ambas obras la propuesta vanguardista y exploratoria frente a las
Por una parte son quienes se arriesgan para que la gran masa marche posibilidades del cine. Retomando, en hacia el final a Didi Huberman:
tranquila, por otra son aquellos “vándalos” que lanzan piedras a los “Sublevarse significa romper una historia que todo el mundo creía
efectivos policiales, que arman barricadas incendiando la señalética concluida (en el sentido en que se habla de una causa concluida,
y el mobiliario público de la ciudad. Es decir, aquellos que, tal como es decir, decidida), significa romper la previsibilidad de la historia,
observa Karmy, serían para las fuerzas del orden y para los gobernan- rechazar la regla que, según se pensaba, presidía su evolución o su
tes (en general todos quienes se oponen a la revuelta), los vándalos, conservación”. (102)
identificados por ellos como “una masa fantasma que acecha des-
tructivamente a la ciudad. (…) una verdadera topología del mal, los
falsos mitos que producen al fantasma ‘vándalo’ o ‘violentista’, pasan Bibliografía
por purificar los mitos populares traídos a bocanadas por los bríos de Araujo, Kathya (Ed.) Hilos tensados. Para leer el Octubre Chileno, Edi-
la revuelta” (36). Las hazañas de los capuchas son mostradas, en este ciones Usach, Santiago, 2019.
contexto, desde ambas perspectivas. Por una parte, se componen Didi Huberman, George. Sublevaciones. Buenos Aires. Editorial Edun-
como un grupo de manifestantes que solo quiere que sus gritos sean tref, 2016. Garcés, Mario. “Octubre de 2019: Estallido social en el
Chile neoliberal”. Journal of Latin American Cultural Studies.
escuchados por el presidente que, en el Palacio de La Moneda estaría
“sordo a los gritos del pueblo” (como observa el narrador del corto- Iturriaga, Jorge y Pinto, Iván. “Hacia una imagen-evento. El “es-
tallido social” visto por seis colectivos audiovisuales (Chile, octu-
metraje). Por otra aquella que, para avanzar ataca a la policías y a su bre 2019)”. Revista cine documental. Número 22. Dossier: “Esta-
armamento de alta tecnología (el narrador se refiere a los monstruos dos de emergencia: documental y protesta en América Latina”.
Jesy, Furio. Spartakus. Simbología de la revuelta. Argentina, Adriana
mecánicos, para describir los carros blindados en el que se mueve el Hidalgo, editora. 2014.
contingente policial).
Karmy, Rodrigo. El porvenir se hereda. Fragmentos de un Chile suble-
vado. Santiago, Sangría 2019.
Hay algo de la poética de Eisenstein inscrita en este corto,
un espíritu compartido, tanto en el montaje, como en la intención Lattanzi, Laura. “Conversatorio colectivos audiovisuales de la revuel-
ta”. Revista la Fuga, Edición 24. Otoño, 2020.
por visibilizar el hartazgo del pueblo (visible tanto en El acorazado
de Potemkin de 1927 como en Octubre, de 1928), en la idea de un Urrutia, Carolina y Fernández, Ana. Bordes de lo real en el cine de
ficción. Santiago, Metales pesados, 2020.
pueblo haciéndose visible en las calles, manifestando sus deseos de
ser libres, de ser iguales. Pero también en la estética que conforma
296 Carolina Urrutia Neno

Filmografía
Atallah, Niles. Lucía, 2012.
Huaiquimilla, Claudia. Mala junta, 2016.
Moscoso, Carolina. Visión nocturna, 2020.
Panizza, Tiziana. Al final, la última carta. 2012.
Soto, Diego ¿Cómo se llega a la moneda?, 2019.
Pelo fim da violência contra
Colectivo OjoChile. “El violador eres tú”, 2019.
a mulher: dramaturgia do
telejornalismo63
Ariane Pereira64
Iluska Coutinho65

63 Para citar corretamente este capítulo, utilize a seguinte forma:


COUTINHO, Iluska; PEREIRA, Ariane. Pelo fim da violência contra a mulher:
dramaturgia do telejornalismo. In: ROCHA, Adriano Medeiros da; LAIA, Evan-
dro José Medeiros (Org.). audiovisual revolucionário. São Paulo: Editora dos Fra-
des, 2021.
64 Jornalista, mestre em Letras, doutora em Comunicação e Cultura. Do-
cente do curso de Jornalismo e do Programa de Pós-Graduação em História da
Unicentro (Universidade Estadual do Centro-Oeste), em Guarapuava, Paraná.
Vice-líder do Grupo de Pesquisa Conversas Latinas em Comunicação. Vice-coor-
denadora da Rede TeleJOR (Rede de Pesquisadores em Telejornalismo). Coorde-
nadora geral do projeto de extensão Florescer. E-mail: ariane@unicentro.br.
65 Jornalista, mestre em Comunicação e Cultura (UnB), doutora em Co-
municação Social (Umesp), professora da Faculdade de Comunicação da UFJF
e coordenadora de seu Programa de Pós-Graduação em Comunicação. Bolsista
de produtividade (CNPq), é líder do grupo Núcleo de Jornalismo e Audiovisual
(NJA), integra a Rede TeleJor (Rede de Pesquisadores em Telejornalismo) e desen-
volve projetos de pesquisa, extensão e desenvolvimento com apoio de Fapemig,
CAPES e CNPq. E-mail: iluskac@globo.com.
audiovisual revolucionário 299

Violência contra a mulher, saber, poder e resistência

Em 2019, no Brasil, foi registrado, em média, um feminicídio


a cada sete horas. São 1.314 mulheres mortas, no total, pelo sim-
ples fato de serem mulheres. Um aumento de 7,3%, na comparação
com 2018, desses crimes de ódio motivados pela condição de gêne-
ro. Esses números fazem parte de um levantamento realizado pelo
Monitor da Violência, uma parceria entre o Núcleo de Estudos da
Violência da Universidade de São Paulo (USP), o Fórum Brasileiro de
Segurança Pública e o G1, com base em dados oficiais dos 26 estados
e do Distrito Federal66 e são registrados também por meio do tele-
jornalismo.

No audiovisual, em múltiplas telas, esses números colocam


o Brasil numa, nada honrosa, quinta posição em ranking de femini-
cídios da Organização das Nações Unidas (ONU), com índice de 4,8
desses crimes para cada grupo de 100 mil mulheres. Entre os 83 paí-
ses que forneceram dados homogêneos relacionados ao assassinato
de mulheres, o Brasil ficou atrás apenas de El Salvador, da Colôm-
bia, da Guatemala e da Federação Russa. Em termos comparativos,
o Brasil registra 16 vezes mais homicídios femininos que o Japão,
24 vezes mais que a Irlanda ou a Dinamarca, e 48 vezes mais que
o Reino Unido. “Em termos globais”, segundo Rebecca Solnit, “38%
de todas as mulheres assassinadas são mortas pelos seus parceiros
íntimos” (2017, p. 90). Para a autora, esses números mostram que
“os perpetradores de violências contra as mulheres não constituem

66 Disponível em: https://g1.globo.com/monitor-da-violencia/noti-


cia/2020/03/05/mesmo-com-queda-recorde-de-mortes-de-mulheres-brasil-tem-
-alta-no-numero-de-feminicidios-em-2019.ghtml. Acesso em: 15 jul. 2020.
300 Ariane Pereira e Iluska Coutinho audiovisual revolucionário 301

exceções nem anomalias. São epidêmicos” (SOLNIT, 2017, p. 97). A Se a violência é cultural, é possível mudar esse quadro. Mas
mesma avaliação é feita pela Organização Mundial da Saúde (OMS), como? “A mudança”, sugere Solnit, “começa pelas margens e avan-
que também considera os casos de violência contra a mulher uma ça para o centro” (2017, p. 93). Um pensamento alinhado à filosofia
pandemia, ou seja, um problema de saúde pública que é resultado analítica do poder de Michel Foucault, para quem o poder deve ser
de uma grave violação dos direitos humanos. visto desde as suas extremidades, desde baixo, como ele defendeu
durante o curso ministrado nos meses de janeiro, fevereiro e março
É equivocado pensar, por exemplo, que a violência contra a
de 1976 no Collège de France e publicado depois como livro com o
mulher no Brasil e no restante do mundo é restrita a determinados
título Em defesa da sociedade. Na ocasião, Foucault apresentou o
grupos sociais. Ela está presente, de modo significativo e quase sem-
que ele chamou de “hipótese Nietzsche”. Ou seja, o poder não como
pre velado, em todas as classes sociais. Tampouco sua incidência tem
algo que se possui, mas como algo que se exerce; o poder concebido
correlação com a escolaridade. Não são poucos os lares e famílias
como luta.
que experimentam a agressão que pode ser, segundo a Lei Maria da
Penha, física, psicológica, moral, sexual e/ou patrimonial. Assim, o poder, para ele, é relação e, se pudesse ser traduzido
por uma imagem, essa seria a de uma rede formada pelos indivíduos,
Diante desse cenário de brutalidades, onde
a mulher não é respeitada, e mais que isso, é que se ligam – os pontos de intersecção – pelo exercício do poder,
tratada com violência, é evidente que vivemos que é compartilhado. Cada um, portanto, ao mesmo tempo, é recep-
em uma sociedade desigual, onde há sobre-
posição e dominação de um gênero sobre o tor e emissor de poder. O poder, então, é um produtor de individua-
outro, onde a relação entre homem e mulher, lidades a partir de um processo de duas vias: a objetivação (o poder
por centenas ou milhares de vezes em Guara-
puava, no Paraná e no Brasil, foi mediada pela exercido pelo outro sobre mim) e a subjetivação (como eu reajo ao
violência, gerando o assassinato de muitas poder que emana do outro e, ainda, como eu exerço poder sobre
mulheres. (PEREIRA, 2018)
mim mesmo), permitindo que os indivíduos aceitem ou resistam ao
governo do outro e de si. Exercer o poder é governar ao outro e a si
Para Rebecca Solnit, “o fato de muitos homens acreditarem
mesmo. “O exercício do poder consiste”, segundo Foucault, “em con-
que têm o direito e a necessidade de controlar as mulheres, pela
duzir condutas e dispor a probabilidade” (FOUCAULT, 1995, p. 237).
violência ou por qualquer outro meio, revela muito sobre os sistemas
de crença que adotam e sobre a cultura que vivemos” (2017, p. 47). Governar, portanto, diz respeito, a lançar mão de práticas que
A violência contra as mulheres é, dessa forma, um problema funda- não atuam direta e imediatamente sobre os outros, mas sobre suas
mentalmente cultural (de muitas culturas, não apenas a brasileira), formas de ação. As relações de poder, desse modo, podem ser com-
que está ligado às relações de poder e aos modos como o saber é preendidas como um conjunto de ações que tem por objeto outras
distribuído socialmente. ações possíveis. Essa condução de condutas opera sobre um campo
302 Ariane Pereira e Iluska Coutinho audiovisual revolucionário 303

de possibilidades (a indução, a separação, a facilitação, o dificultar, e do patriarcado, como saberes, caírem por terra. Um caminho para
o estender, o limitar e o impedir), sobre uma combinação complexa esse exercício de resistência é utilizar o jornalismo audiovisual de for-
de técnicas de individualização (disciplina) e de procedimentos de ma revolucionária.
totalização (norma).
Nossa proposta, portanto, é mostrar como a dramaturgia do
Se na física a toda ação cabe uma reação, o mesmo se dá com telejornalismo (Coutinho, 2012) pode ser subvertida, de modo que os
as relações de poder para Foucault. A todo governar cabe a resistên- elementos tradicionais do jornalismo de TV – e facilmente reconhe-
cia que, para ele, é uma prática de liberdade. “Eu quero dizer que as cidos pelo público em geral – possam ser utilizados para combater a
relações de poder suscitam necessariamente, reclamam a cada ins- violência contra a mulher. Depois, discorreremos sobre como a pers-
tante, abrem a possibilidade de uma resistência” (FOUCAULT, 2015, pectiva teórica de Iluska Coutinho tem sido abordada pelo Florescer,
p. 232), que só tem início quando deixamos de nos perguntar se o um projeto de extensão colocado em prática no interior do Paraná,
poder é bom ou mal, legítimo ou ilegítimo e o interrogamos ao nível na cidade de Guarapuava. Voltado para crianças do terceiro ano do
das suas condições de existência. Ensino Fundamental da rede pública municipal, a ação extensionista
busca, por meio da dramaturgia do telejornalismo, desnaturalizar a
Desse modo, numa perspectiva foucaultiana, resistir à violên-
violência contra a mulher entre meninos e meninas com idade entre
cia contra a mulher vai além do negá-la, do rotulá-la como crime, do
8 e 10 anos, possibilitando que eles cresçam sem preconceitos de gê-
taxá-la como ilegítima. Todos esses aspectos já são inerentes a ela. A
nero e, assim, quando adolescentes, jovens e adultos não repliquem,
resistência está, então, em questionarmos quais são as práticas dis-
no caso deles, posturas violentas em relação a elas e, no caso delas,
cursivas e as práticas não discursivas – também audiovisuais – que
não aceitem nenhum tipo de exercício de controle deles por meio
possibilitam, neste século 21, as agressões de gênero, tanto físicas
da violência. Sementes plantadas agora que, a médio e longo pra-
quanto verbais, para, na sequência, buscarmos desconstruir as tec-
zos, florescerão como uma sociedade com equidade entre homens
nologias (entendidas como técnicas) de poder por trás delas a partir
e mulheres.
da formação de um novo saber.

Na medida em que saber e poder se reforçam mutuamente,


esse exercício do poder baseado no subjugar a mulher ao homem As sementes da equidade via dramaturgia do tele-
pela força física só será combatido definitivamente quando for des- jornalismo
tituído de saber. Um saber que é chamado de patriarcado e que pro-
move práticas machistas, ou seja, modos de ser e estar no mundo
O Florescer teve início no segundo semestre do ano de 2015
que formam nossa cultura atual. Assim, a violência contra a mulher,
como um projeto experimental do curso de Jornalismo da Unicentro
como exercício do poder, terá fim quando os discursos do machismo
304 Ariane Pereira e Iluska Coutinho audiovisual revolucionário 305

(Universidade Estadual do Centro-Oeste), instituição pública de Ensi- Nos meses seguintes, foi crescente o número de mulheres que che-
no Superior localizada no interior do Paraná, na cidade de Guarapua- gavam à Secretaria, buscando ajuda para romper o ciclo da violência,
va. Na época, uma das estudantes da turma atuava como voluntária contando terem reconhecido suas histórias nos relatos presentes nos
na Secretaria Municipal de Políticas Públicas para Mulheres, criada materiais produzidos pelo Florescer.
em 2013. Naquele momento, o órgão fazia apresentações em bairros
A repercussão positiva do trabalho motivou que a Secretaria
da cidade e suas técnicas (psicólogas e assistentes sociais) relatavam
de Políticas Públicas para Mulheres e a Unicentro dessem continuida-
casos de violência contra a mulher registrados na cidade e atendidos
de ao projeto, desde então como ação extensionista e com financia-
pela Secretaria. Numa tentativa de tornar aquelas histórias mais pró-
mento da Superintendência de Ciência, Tecnologia e Ensino Superior
ximas da plateia, eram apresentadas fotografias das marcas que as
do Paraná (Seti), via editais do Programa Universidade Sem Frontei-
agressões deixavam nas mulheres vítimas. As imagens, porém, eram
ras (USF) e da Unidade Gestora do Fundo Paraná (UGF). Como proje-
de casos extremos, como uma mulher que foi golpeada com uma
to de extensão, o Florescer está em sua terceira fase. Na primeira, a
machadinha na cabeça. Essas narrações – além de tudo, impessoais –
ideia seguiu sendo a mesma do período como projeto experimental,
não despertavam a emoção da audiência e não levavam as mulheres
ou seja, a produção de materiais educomunicativos de combate à
a se reconhecerem como vítimas, nem os homens a se perceberem
violência contra a mulher direcionados às vítimas de violência do-
como agressores. A necessidade de materiais que falassem direta-
méstica. Produtos construídos a partir dos depoimentos de mulheres
mente com essas pessoas se mostrou evidente.
que conseguiram romper o ciclo e que, ao mesmo tempo, informa-
Assim, foi, inicialmente, concebido e desenvolvido o Florescer vam sobre a Lei Maria da Penha, a tipificação das violências, formas
– como um instrumento de sensibilização da mulher vítima de vio- de apoio e proteção à mulher e penalidades para o agressor.
lência para que ela se reconhecesse como tal e buscasse as instâncias
Doze meses depois, as equipes do projeto e da Secretaria de
de ajuda/apoio no combate à violência contra a mulher. Os estudan-
Políticas Públicas para Mulheres avaliaram que o Florescer tinha êxi-
tes produziram, como projeto experimental, materiais educomuni-
to em suas ações de combate à violência contra a mulher. Mas perce-
cativos – vídeo-documentários, livretos e spots radiofônicos – tendo
beram, também, que falavam apenas com as vítimas e, portanto, sua
como base relatos reais de mulheres vítimas de violência que nar-
atuação ajudava no tratamento e na cicatrização das feridas, e não
ravam as agressões sofridas no relacionamento, como conseguiram
no aparecimento delas. Foi aí que se decidiu passar para uma frente
dar um fim à violência e, dessa forma, encorajavam outras mulheres
de prevenção, buscando construir uma sociedade sem violência de
a buscarem ajuda. Esses produtos foram repassados para a Secre-
gênero e com mais equidade a médio e longo prazos.
taria Municipal de Políticas Públicas para Mulheres de Guarapuava
na semana do Dia Internacional da Mulher de 2016 e começaram Assim, desde a segunda fase como projeto de extensão, o Flo-
a ser utilizados pelas técnicas nos encontros realizados nos bairros. rescer levou os elementos da dramaturgia do telejornalismo, já usa-
306 Ariane Pereira e Iluska Coutinho audiovisual revolucionário 307

dos nas etapas anteriores para a construção dos materiais de cons- portância da comunicação nas nossas vidas e como é importante que
cientização das mulheres, para as escolas públicas de Guarapuava. as crianças sejam ouvidas. Volta-se à violência contra a mulher como
Os bolsistas e voluntários do projeto passaram a trabalhar com as um problema enfrentado dentro de casa por muitos casais e filhos, e
crianças, com idade entre 8 e 10 anos, matriculadas no terceiro ano que é silenciado por medo ou pela crença de que em briga de marido
do Ensino Fundamental. Em cada turma, são realizadas cinco oficinas. e mulher não se mete a colher. Mostra-se que o falar e o procurar
ajuda, ao contrário, são essenciais para evitar mais violência e por
Na primeira delas, através de um jogo de tabuleiro, em que
fim as agressões. Assim, as crianças são estimuladas a pensarem em
as casas são bambolês e as peças são as próprias crianças, são abor-
produtos audiovisuais em que elas possam falar, da maneira delas, o
dadas questões referentes ao Estatuto da Criança e do Adolescente
que pensam e sabem sobre a violência contra a mulher. Produções
(ECA), de modo que as crianças comecem a se reconhecer como ci-
que são gravadas na oficina seguinte.67 E é sobre esses produtos que
dadãs com deveres e direitos e, assim, compreendem que são partí-
nos debruçaremos a partir daqui. Afinal, ao terem a possibilidade fa-
cipes da construção da própria história, da história da família e, tam-
lar, muitas recorrem à formatos tradicionais, como o telejornal, que
bém, da sociedade do tempo presente.
elas assistem em casa e onde viram, como contam, os repórteres e
Esse olhar permite que, na oficina seguinte, a partir de brin- apresentadores abordando casos de violência doméstica e mesmo
quedos considerados de meninos (como carrinhos e super-heróis) e de feminicídio.
de meninas (a exemplo de bonecas e panelinhas), se comece a traba-
Ao pensarem no formato para seus produtos, as crianças mos-
lhar a questão do gênero. Assim, é abordado como essa diferencia-
tram compreender a dramaturgia por trás do telejornal e trazem es-
ção faz com que elas, desde pequenas, não tenham a possibilidade
ses elementos para suas produções. Dessa forma, elas ressignificam
de vivenciar algumas experiências, que formarão imagens muitas ve-
a prática e dão ao audiovisual um olhar revolucionário, em que a
zes cheias de preconceito sobre o ser homem e o ser mulher, que são
linguagem telejornalística, muitas vezes usada para reafirmar valores
as bases do machismo e da sociedade patriarcal. Conceitos que são
machistas e patriarcais, passa a ser usada para a construção da equi-
trabalhados para que as crianças entendam que são eles que estão
dade entre os gêneros.
por trás de comportamentos que levam à violência contra a mulher e
à tolerância em relação a essa violação da humanidade da mulher. Se A narrativa jornalística televisiva, segundo Iluska Coutinho
há violência, é preciso entendê-la para que ela possa ser identificada. (2012), pode ser compreendida como uma construção textual (tanto
Assim, fala-se sobre a Lei Maria da Penha, os cinco tipos de violência, verbal quanto não verbal) que valoriza a estrutura e os elementos
a importância da denúncia e os sistemas legais de proteção à mulher.

Na oficina seguinte, os bolsistas e voluntários mostram a im- 67 Para saber mais sobre o projeto Florescer, acesse: www3.unicentro.br/
florescer.
308 Ariane Pereira e Iluska Coutinho audiovisual revolucionário 309

dramáticos – como o uso de personagens, os depoimentos ou as resistência para comportamentos socialmente aceitos, tal como hoje
sonoras, a composição imagética, os silêncios, as trilhas sonoras, os configuram-se, ainda, o sexismo, o machismo e o patriarcalismo.
áudio-ambientes – encadeados por meio da edição (tele)jornalística.
É por isso que a teoria, pensada como um modelo de com-
Essas possibilidades de narração são o que a autora denominou “dra-
preensão da prática telejornalística, torna-se um lugar para a inter-
maturgia do telejornalismo”. Para ela,
venção na própria prática. Nesse sentido, ao poder ser reproduzida,
o noticiário de televisão é espaço para que numa articulação ensino-pesquisa-extensão, a dramaturgia passa a
experimentemos os pequenos e os grandes
ocupar um lugar revolucionário. Afinal, são esses elementos reco-
dilemas cotidianos, emoções de anônimos e
autoridades, editados segundo uma série de nhecidos pelo público como próprios do jornalismo audiovisual, e
características que as aproxima das narrati-
vas de ficção, do terreno da (tele)dramaturgia à medida que são reconhecidos, permitem que as crianças possam
(COUTINHO, 2012, p. 2). também construir narrativas de desnaturalização da violência contra
a mulher.
Esse drama presente na dramaturgia do telejornalismo, em-
Se a dramaturgia do telejornalismo aponta elementos como
bora se aproxime estruturalmente do entretenimento, não pode ser
cenário, personagens, conflito narrativo, enredo, trilha sonora e lição
encarado como tal. Do modo análogo, a dramaturgia própria do veí-
de moral como parte de um modo de construir e dar a ver o mundo,
culo não faz do jornalismo de televisão necessariamente sensacio-
ela também pode potencializar outros usos dessa estrutura narrati-
nalista, embora a exacerbação dos conflitos e a reificação de papéis
va, em uma perspectiva transformadora e/ou revolucionária. No Bra-
possa servir a este fim. Segundo a perspectiva teórica proposta por
sil, país em que o audiovisual ocupa um lugar central como instância
Coutinho (2012), as histórias de vida – entendidas como recursos de
mediadora, a dramaturgia do telejornalismo se apresentaria como
humanização e/ou de personificação – e os elementos acrescidos
potência para a emergência de novas histórias e para a atuação de
durante a edição – como o sobe som e a inserção de trilhas – atuam
sujeitos, também audiovisuais.
para conferir ao telejornalismo seu maior poder, ou seja, a transmis-
são de experiências. É esse aspecto da dramaturgia que faz do te- Na sua utilização no âmbito do projeto Florescer, um dos pon-
lejornalismo uma instituição de consenso narrativo, que permite a tos de partida implica o reconhecimento de que o gênero telejornal
sociedade compreender as estórias do cotidiano, como a violência tem como um de seus elementos mais característicos a aparição, na
contra a mulher. Desse modo, explica Ariane Pereira (2018), se a dra- tela, de apresentadores e repórteres. Desse modo, a divisão dos inte-
maturgia do telejornalismo pode ser encarada como uma constru- grantes da equipe entre essas funções é uma das primeiras decisões
ção cultural capaz de conferir especial interesse e importância a um tomadas pelas crianças.
evento ou situação, ela pode ser utilizada como arma, como locus de
310 Ariane Pereira e Iluska Coutinho audiovisual revolucionário 311

Imagens 1 e 2 – Apresentador e repórter de telejornal Imagens 3 e 4 – Repórteres em ação, fazendo entrevistas para suas
matérias

Frames de telejornal produzido por crianças da Escola Municipal Dalila Oliveira,


em 2019.
Vídeo disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=iATcj_0RyJs&featu-
Frames de telejornal produzido por crianças da Escola Municipal Dalila Oliveira, re=emb_logo.
em 2019. Fonte: Florescer.
Vídeo disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=iATcj_0RyJs&featu-
re=emb_logo.
Fonte: Florescer.

O trabalho na rua/em espaços públicos, o uso do microfone


e a conversa com entrevistados são outros aspectos associados ao
trabalho do repórter e explorados pelas crianças ao construírem suas
narrativas de combate à violência contra a mulher.
312 Ariane Pereira e Iluska Coutinho audiovisual revolucionário 313

Imagens 5 e 6 – Uso de microfone com canopla pelo repórter; nas reportagens.


criança como cinegrafista
Esse é um dos elementos mais recorrentes da dramaturgia do
telejornalismo, na medida em que aproxima o telespectador do fato,
facilitando o reconhecimento da importância da temática. Mesmo
sem saber o nome técnico desse recurso, as crianças, ao planeja-
rem e executarem seus vídeos, lançam mão dele. Os depoimentos
de personagens conferem tom emocional e emotivo à narração. Se
em alguns momentos esse recurso, na TV, pode flertar com o sensa-
cionalismo, em Florescer ele está ligado à conquista, rememorando
Clóvis Rossi (1986), das mentes e dos corações dos telespectadores
para a causa do combate à violência contra a mulher.

Imagens 7 e 8 – Meninas que viram as mães ou outras pessoas da


família sofrendo ou cometendo violência doméstica articipam das
reportagens como personagens
Frames de telejornais produzidos por crianças das Escolas Municipais Dalila
Oliveira e Iná Ribas Carli, em 2019.
Vídeos disponíveis em: https://www.youtube.com/watch?v=213qJQxQ2UE&-
feature=emb_logo e em https://www.youtube.com/watch?v=Hngc4J7r4Zg&-
feature=emb_logo.
Fonte: Florescer.

As Imagens 3 e 6 também evidenciam o conhecimento, por


parte dos estudantes, de que todo repórter, para realizar seu traba-
lho, precisa de um repórter cinematográfico e, no caso das figuras 3
e 4, de fontes de informações. Além desse tipo de entrevistado, eles
também, em vários momentos, optaram pela utilização de persona-
gens – as próprias crianças da turma que já tinham vivenciado situa-
ções de violência doméstica – para exemplificar o assunto abordado
314 Ariane Pereira e Iluska Coutinho audiovisual revolucionário 315

Imagens 9 e 10 – Vinhetas

Frames de telejornal produzido por crianças da Escola Municipal Hipólyta Nu-


nes de Oliveira, em 2019.
Vídeo disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=VShXMv_x1zg&fea-
ture=emb_logo.
Fonte: Florescer.

Elemento importante da narrativa dramática do telejornalis-


mo, a inserção de personagens também possibilita que sejam refor-
çados valores morais e de conduta. No caso das crianças, que tão
cedo presenciaram cenas de violência no âmbito familiar, a presença
delas evidencia que por trás das relações desiguais de gênero estão Frames de telejornais produzidos por crianças da Escola Municipais Iná Ribas
Carli, em 2019.
seres humanos ainda em formação e, dessa forma, não há nenhuma Vídeo disponível em: https://www.youtube.com/watch?time_continue=1&-
desculpa ou atenuante algum para a violência, que, portanto, não v=Hngc4J7r4Zg&feature=emb_logo e em https://www.youtube.com/watch?ti-
me_continue=47&v=x3LCa6n3Jzg&feature=emb_logo.
pode ser aceita ou nem sequer tolerada. Fonte: Florescer.

Na edição, realizada pelos bolsistas e voluntários do projeto


Florescer, elementos de pós-produção – como trilhas sonoras, vi-
nhetas, contagem regressiva, videografismos e barras de caracteres
– são acrescentados, complementando, assim, a caracterização do
produto como um telejornal.
316 Ariane Pereira e Iluska Coutinho audiovisual revolucionário 317

Imagens 11 e 12 – Barra de caracteres Imagens 13 e 14 – Contagem regressiva e videografismo

Frames de telejornais produzidos por crianças das Escolas Municipais Raul


Henrique Lupatelli e São Pedro, respectivamente, em 2019. Frames de telejornais produzidos por crianças das Escolas Municipais Iná Ribas
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?time_continue=67&v=jGAN- Carli e Francisco Contini, respectivamente, em 2019.
1vamoc0&feature=emb_logo e em https://www.youtube.com/watch?time_ Disponível em: https://www.youtube.com/watch?time_continue=1&v=x3L-
continue=6&v=yh2Ew2hadIM&feature=emb_logo. Ca6n3Jzg&feature=emb_logo e em https://www.youtube.com/watch?v=SU-
Fonte: Florescer. Fm_jVFfTs&feature=emb_logo.
Fonte: Florescer.

Conclusão

Presente nos lares dos brasileiros e em diversos horários (e


não apenas no que se convencionou chamar de nobre), os telejor-
318 Ariane Pereira e Iluska Coutinho audiovisual revolucionário 319

nais e suas narrativas com estrutura própria foram, ao longo dos úl- pode narrar cenários de silenciamentos de mulheres, em diferentes
timos 70 anos, tornando-se referência para os brasileiros – sem dis- graus, por meio da dramaturgia do telejornalismo também compa-
tinção de sexo, gênero, classe social, nível de escolaridade, religião. rece como potência transformadora ou revolucionária. Ao revisitar
Construção textual socialmente aceita, a TV e seus noticiários têm papéis e enredos, por meio da produção audiovisual realizada nas
compreensão praticamente universal. Nesse sentido, ao contrário do oficinas do projeto Florescer, os participantes também colocam em
emprego dado por algumas emissoras de TV e/ou telejornais, a dra- cena personagens mais plurais, e atentos.
maturgia do telejornalismo pode ser extremamente útil na preven-
Uma sociedade com equidade para meninas e meninos, para
ção à violência contra a mulher em uma sociedade desigual no que
mulheres e homens é o que buscamos e, a partir do tripé de sus-
diz respeito aos relacionamentos homem-mulher como a brasileira.
tentação do Ensino Superior público, com ensino-pesquisa-extensão
Afinal, como afirma Ariane Pereira (2018), em pleno século XXI, a
andando juntos, estamos construindo. Afinal, “derruba-se um tijo-
violência contra à mulher ainda está disseminada em nossa socie-
lo, depois outro; a represa rompe, as águas se precipitam” (SOLNIT,
dade, repetindo uma configuração de desrespeito ao sexo feminino
2017, p. 80) ou, em termos audiovisuais, novas cenas configuram um
instalada no Brasil e em muitos países do mundo há séculos. A lógica
fluxo, que pode revolucionar nossa atuação, também para além das
do homem provedor e viril ampara as práticas em que a mulher deve
telas.
submeter-se ao masculino sob a pena do açoite físico, moral, psico-
lógico, patrimonial ou sexual.

Desse modo, o projeto Florescer, a partir da dramaturgia do Referências


telejornalismo, busca mudar essa concepção social e cultural atrela- COUTINHO, Iluska. A dramaturgia do telejornalismo: a narrativa da
da ao machismo e ao patriarcado com base na discussão da violên- informação em rede e nas emissoras de Juiz de Fora-MG. Rio de Ja-
neiro: Mauad X, 2012, 247 p.
cia, de suas causas e consequências com crianças com idade entre 8
e 10 anos que ainda não normalizaram, não naturalizaram a violên- FOUCAULT, Michel. Ditos e Escritos Volume 4 – Estratégia, poder-sa-
ber. 3.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015.
cia de gênero. Para isso, permite que as crianças falem o que vivem,
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fon-
pensam, acreditam e aprendem. Se até aqui, “o silêncio foi o que
tes, 2005.
permitiu que os predadores atacassem ao longo das décadas, sem
FOUCAULT, Michel. O sujeito e o poder: In: RABINOW, P.; DREYFUZ,
impedimentos, [...] ao redefinirmos qual voz há de se valorizar, rede- H. Michel Foucault: uma trajetória filosófica. Rio de Janeiro: Forense
finimos nossa sociedade e seus valores” (SOLNIT, 2017, p. 33). Se o Universitária, p. 231-248.
audiovisual, incluindo os noticiários que ainda na contemporaneida- PEREIRA, Ariane. Florescer: o telejornalismo como ferramenta para o
de se constituem na principal fonte de (in)formação dos brasileiros, combate à violência contra a mulher. Anais Intercom 2018, São Paulo,
320 Ariane Pereira e Iluska Coutinho

Intercom, 2018. Disponível em: https://portalintercom.org.br/anais/


nacional2018/resumos/R13-0150-1.pdf. Acesso em: 15 jul. 2020.
ROSSI, Clóvis. Vale a pena ser jornalista? 2.ed. São Paulo: Moderna,
1986.
SOLNIT, Rebecca. A mãe de todas as perguntas: reflexões sobre no-
vos feminismos. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
VELASCO, Clara; CAESAR, Gabriela; REIS, Thiago. Mesmo com queda
recorde de morte de mulheres, Brasil tem alta no número de feminicí-
dios em 2019. Disponível em: https://g1.globo.com/monitor-da-vio-
A cultura visual sob o enfo-
lencia/noticia/2020/03/05/mesmo-com-queda-recorde-de-mortes- que histórico-antropológico68
-de-mulheres-brasil-tem-alta-no-numero-de-feminicidios-em-2019.
ghtml. Acesso em: 15 jul. 2020. Aline Cristina Laier69
Fernando Gaudereto Lamas70

68 Para citar corretamente este capítulo, utilize a seguinte forma:


LAIER, Aline Cristina; LAMAS, Fernando Gaudereto. A cultura visual sob o en-
foque histórico-antropológico. In: ROCHA, Adriano Medeiros da; LAIA, Evandro
José Medeiros (Org.). audiovisual revolucionário. São Paulo: Editora dos Frades,
2021.
69 Doutora em Ciências Sociais (UFJF).
70 Doutor em História (UFF) e professor do Colégio de Aplicação da UFJF.
audiovisual revolucionário 323

Introdução

Em um ensaio publicado na década de 1970, Susan Sontag


afirmou que “a realidade sempre foi interpretada através do registro
fornecido pelas imagens” (SONTAG, 1981, p. 147). Embora possamos
contestar esta percepção, especialmente quando se trata de “sem-
pre”, podemos levá-la em consideração para o atual estágio societá-
rio em que vivemos, na medida em que este encontra-se tão sobre-
carregado de imagens em todos os sentidos e direções da vida social
que é impossível ignorar a afirmação de Sontag.

Se a fotografia, ou o daguerreótipo, como era chamada no sé-


culo XIX, foi capaz de abrir novos caminhos para o desenvolvimento
artístico da época (vide o impacto da fotografia na pintura) (GOBM-
BRICH, 1993, p. 488), o passo seguinte da ampliação do predomínio
da visão em termos de apreensão da realidade surgiu com o nas-
cimento do cinema, com Pathé e, posteriormente, com a primeira
apresentação feita pelos irmãos Lumière em Paris em 1895.

Apesar de ter seu nascimento datado no século XIX, foi du-


rante o século XX que o audiovisual ganhou a dimensão que possui
atualmente. O desenvolvimento dessa área, que se iniciou através
do cinema, expandiu-se de forma extraordinária e exponencial com
o desenvolvimento e expansão da televisão, especialmente a partir
de meados do século XX (HOBSBAWM, 1995, p. 320) e da publicida-
de que cresceu em seu entorno, forjando uma visão de mundo mais
homogeneizada e, como ressaltou Ortiz, capitalizando signos e refe-
rências culturais reconhecidos mundo afora, ensejou um processo de
desterritorialização cultural ao mesmo tempo que forjou uma cultura
popular internacional (ORTIZ, 2000, p. 111).
324 Aline Laier e Fernando Lamas audiovisual revolucionário 325

O desenvolvimento da internet e sua imbricação com os meios Em outros termos, o cinema, tal como ressaltou Miriam Tava-
de comunicação já existentes, assim como a adaptação destes meios res, tem o impacto que tem “porque estruturalmente funciona de
ao formato digital, “rompendo as fronteiras entre os meios de co- maneira semelhante ao nosso aparelho perceptivo: vemos filmes
municação e, de dentro de cada meio, entre o experimental e o já como percebemos o mundo à nossa volta, usando os mesmos me-
estabelecido” (BRIGGS & BURKE, 2004, p. 322), abriu uma janela de canismos mentais” (TAVARES, 2019, p. 123). Nesse sentido, quando
oportunidades para as produções audiovisuais até então inéditas, assistimos a um filme, ficcional ou não, vivenciamos, em termos ima-
tanto no campo da produção quanto no campo da distribuição do géticos, o que de certa forma nos remete à maneira como vemos a
audiovisual. realidade ao nosso redor. Logo, do mesmo jeito que vemos um filme,
sendo dirigidos pelas imagens (seus recortes, suas edições, entre ou-
Evidentemente, as questões associadas à produção do au-
tros aspectos), percebemos a realidade social de maneira recortada
diovisual foram profundamente impactadas pelo desenvolvimento
(por classe, por etnia, por gênero, entre outros). Tal fato ocorre por-
da internet e dos meios eletrônicos, tanto das câmeras quanto dos
que a direção de um filme atende às questões acima assinaladas, o
aparelhos de telefonia celular. Contudo, independentemente desses
que nos remete à análise de Aumont e Marie, segundo os quais “as
desenvolvimentos, a linguagem do audiovisual manteve suas bases
fronteiras entre documentário e ficção nunca são estanques e variam
intactas, na medida em que o processo de filmagem ainda atende
consideravelmente, de uma época a outra e de uma produção nacio-
aos paradigmas de edição de imagem, que mesmo reconhecendo to-
nal a outra” (AUMONT & MARIE, 2003, p. 87).
dos os avanços técnicos e tecnológicos atuais, manteve suas bases
praticamente intactas. Justamente essas semelhanças entre o olhar social e o olhar
cinematográfico (neste caso, seja ele ficcional, seja documental) é
Nesse sentido, o cinema documental ganhou uma relevância
que nos impelem a busca no cinema documental por uma possibi-
ímpar, na medida em que realizar entrevistas, filmar lugares e pes-
lidade de libertação das consciências, pois se o olhar social é tam-
soas, assim como situações, sejam elas manifestações, sejam festas,
bém essencialmente recortado, tal como um enquadramento de um
entre outras, tornou-se bem mais fácil. Desde os primórdios do cine-
filme, podemos então, a partir de novos enquadramentos sociais,
ma, uma das áreas que teve relativa importância em seu desenvolvi-
libertarmos aqueles que, seja por qual motivo for, não conseguem
mento foi o cinema documental. O próprio Lumière, considerado o
ou não podem e até mesmo não querem enxergar a pluralidade da
criador do cinema, em seus filmes optava por filmar a vida cotidiana
dinâmica social. Daí a importância de se analisar a produção cinema-
e dar a ela um olhar quase documental, na medida em que ao mes-
tográfica, tanto a ficcional quanto, especificamente, a documental,
mo tempo retratava imagens do cotidiano, escolha de ângulos, pers-
uma vez que essas questões ocorrem da mesma forma que no cine-
pectivas, tempos e lugares.
ma, isto é, intencional ou não.
326 Aline Laier e Fernando Lamas audiovisual revolucionário 327

Dentro desta perspectiva, a intenção deste artigo é abordar o documentários disponibilizados on-line, um intervalo de 10 anos so-
cinema documental como uma das formas ou expressões mais fulgu- bre a questão do racismo nas instituições de Ensino Superior, nota-
rantes da atualidade, na medida em que ela que é capaz de levar à damente duas instituições federais, a UnB e a UFJF. Desta maneira,
reflexão e ao mesmo tempo ao desenvolvimento de uma consciência pretendemos não somente discutir as questões raciais que estão
acerca da realidade social. Uma vez que suas imagens são, atualmen- explicitadas nos documentários como também o papel que as plata-
te, dominantes no meio social, e é através dos recortes desta realida- formas digitais possuem de disseminar essa discussão tão relevante
de, mesmo que editados, tal como devem ser, se mostram capazes de para um número extraordinariamente grande de pessoas.
ampliar e até mesmo de libertar aqueles que a veem. Nesse sentido,
Nossa análise desses documentários se baseará em uma in-
o cinema documental possui um caráter revolucionário e libertador.
terpretação histórico-antropológica, uma vez que compreendemos
Analisaremos dois documentários que foram disponibilizados que é justamente a partir de uma perspectiva dialógica e analógica
em plataformas on-line, o que nos remete à imbricação atual entre (dois aspectos essenciais para a Antropologia e a História, respecti-
os diversos meios de comunicação e ao alargamento de seu alcan- vamente) que podemos entender de forma mais complexa tanto os
ce. Um dos documentários, Raça Humana, foi realizado em 2010 e elementos presentes nos documentários que serão analisados como
abordou a adoção, pela Universidade de Brasília (UnB), do sistema o papel das plataformas em que eles estão disponibilizados.
de cotas puramente racial. Essa instituição foi a primeira a adotar tal
critério no Brasil. Apesar de não ter sido feito exclusivamente para O audiovisual e as Ciências Humanas: uma aborda-
uma plataforma on-line, ele está disponibilizado na plataforma cole- gem teórica e metodológica
tivoresistencia.com.br na seção de documentários.

O segundo documentário já foi realizado e pensado para uma O impacto do universo visual nas Ciências Humanas iniciou-
plataforma virtual, a saber, a da Universidade Federal de Juiz de Fora -se com os trabalhos antropológicos, particularmente com Bronislaw
(UFJF). Realizado em 2020 pelos membros (acadêmico e estudantil) Malinovisky e sua pesquisa sobre a população das Ilhas Trobriand,
do Laboratório Afrikas de Audiovisual (LabAfrikas), da própria UFJF, o nas primeiras décadas do século XX, que proporcionou o nascimento
documentário O outro em branco: reflexo reverso tem como propos- da pesquisa etnográfica de campo concomitante com a antropologia
ta discutir o conceito de branquitude, que é uma forma de analisar e visual, uma vez que Malinovisky, além de fazer anotações a respeito
discutir o racismo a partir da questão do pertencimento étnico-racial do modo de vida daquela população, também fez várias fotografias,
dos brancos. tanto do cotidiano quanto dos rituais lá praticados, visando com-
preender a partir de dentro aquela população. Como frisou François
Logo, teremos a oportunidade de analisar, com base nos dois
328 Aline Laier e Fernando Lamas audiovisual revolucionário 329

Laplantine, Malinovisky “se não foi o primeiro a conduzir uma pes- Evidentemente o enfoque das análises daqueles pensadores
quisa etnográfica, isto é, em primeiro lugar, a viver com as popula- era o impacto do cinema ficcional, e quanto a isso nada podemos
ções que estudava e a recolher seus materiais e seus idiomas, radica- criticar. Contudo, ao deixarem de lado o documentário, não foram
lizou essa compreensão por dentro” (LAPLANTINE, 2000, pp. 79-80) capazes de perceber que o cinema poderia ir para além daquilo que a
indústria cultural desejava, chegando a um público e ao mesmo tem-
Na década de 1930, esse ramo da antropologia, denomina-
po conscientizando-o das mazelas sociais provocadas pelo próprio
do antropologia visual, deu passos importantes, especialmente com
capitalismo. É dentro dessa perspectiva que percebemos a relevância
as pesquisas realizadas pela antropóloga estadunidense Margaret
do documentário no universo do audiovisual.
Mead, em Bali, que envolveram tanto fotografias quanto filmagens
em sua pesquisa de campo sobre o desenvolvimento das crianças ba- No campo da História, as reflexões acerca do campo audiovi-
linesas. Percebe-se, portanto, que os trabalhos de campo da antropo- sual demoraram muito a chegar, seja pelo preconceito de tratar com
logia quase sempre caminharam lado a lado com o desenvolvimento fontes recentemente produzidas, seja pela dificuldade teórica em
da fotografia como forma de apreensão da realidade cotidiana das tratar este material. Segundo Ciro Cardoso, mesmo quando o tema
populações estudadas, ao mesmo tempo que também ultrapassava passou a ser levado em consideração pela historiografia, particular-
esta perspectiva, na medida em que, para o antropólogo, a fotografia mente a francesa, a principal marca era “a ausência de um tratamen-
não é mero registro, mas uma forma de inserção e de imersão social to sistemático do tema” (CARDOSO, 1997, p. 205). Ainda segundo
(HERZFELD, 2014, p. 358). Cardoso, o tema da imagem (especialmente sobre a fotografia e o
cinema) aparecia nas análises daqueles historiadores:
Dentro ainda das reflexões acerca do papel da imagem cine-
matográfica no campo das Ciências Humanas, os teóricos da Escola [...] fragmentado, sempre incompleto e, na
de Frankfurt desenvolveram uma análise inicial, mas mesmo assim maioria dos casos, é objeto de conselhos me-
todológicos vagos e pouco úteis – quando não
muito refinada sobre o impacto do cinema norte-americano, com- transparece uma forte prevenção de alguns
preendido como um elemento do que eles classificaram como uma dos autores a respeito das fontes iconográfi-
cas, levando-os a aconselhar um uso limitado
indústria cultural, na sociedade em geral (ADORNO & HORKHEIMER, e crítico delas (CARDOSO, 1997, p. 205).
1985, p. 101). Apesar de reconhecermos a importância das análi-
ses realizadas pelos frankfurtianos, precisamos considerar que esses Cardoso defende o uso da análise semiótica para que os his-
pensadores analisaram exclusivamente o cinema ficcional, deixando toriadores possam não somente analisar com maior precisão o que
de lado o cinema documental, uma vez que o projeto em que esta- estão vendo/estudando como também se inserir dentro deste uni-
vam envolvidos era o desvendamento do fetichismo da mercadoria verso de pesquisa munidos com um arsenal teórico e metodológi-
na sociedade capitalista. co mais robusto, capaz de encarar a imagem visual como “um todo
330 Aline Laier e Fernando Lamas audiovisual revolucionário 331

fechado de significação: um texto suscetível de análise” (CARDOSO, por outro lado, o papel da internet nesse contexto é crucial, na me-
1997, p. 213). Não temos a pretensão de discordarmos da utilidade dida em que seu alcance vai muito além do de qualquer distribuidora
da semiótica para as análises fílmicas, e nem mesmo de sua relevân- de filmes do mundo. Logo, a grande contribuição da teoria antropo-
cia para a pesquisa histórica sobre o universo audiovisual. Contudo, lógica para a compreensão do papel do audiovisual nas redes digitais
pretendemos partir para outro campo, a saber: a imbricação entre encontra-se justamente no entendimento da questão da escala, algo
História e Antropologia e, nesse sentido, buscaremos os referenciais com que os antropólogos estão muito mais familiarizados do que os
teóricos e metodológicos para o desenvolvimento de nossa análise historiadores.
justamente no campo da Antropologia.
Evidentemente o campo da História não fica apenas no papel
Entendemos que a antropologia, por trabalhar há mais tempo de consumidor de teorias. A analogia, uma questão essencial para o
com a produção do audiovisual, seja em trabalho de campo, como trabalho do profissional da História, ganha relevância quando pre-
mostramos acima, seja na compreensão desta produção a partir de tendemos analisar a produção documental existente nas e em fun-
análises sobre a cultura, é capaz de fornecer um manancial teórico ção das redes digitais. Tanto pelo caráter específico que a analogia
e, por que não, prático, para o entendimento dos historiadores sobre tem para o historiador quanto pela função que esta possui para o
este campo, que conforme assinalou Cardoso, ainda carece de análi- cinema, pois, segundo Aumont e Marie, o cinema herdou a tradição
ses mais robustas. Nesse sentido, Herzfeld nos alerta que: analógica da pintura, justamente quando esta a abandonava (AU-
MONT & MARIE, 2003, p. 17).
Podemos definir as mídias de massa como
meios de comunicação que são, ou podem
ser, largamente distribuídos de forma virtual- Em outros termos, a união das análises histórica e antropoló-
mente idênticas; estas incluem não somente o gica, das ciências sociais no geral, ou seja, das perspectivas dialógica
cinema, o vídeo, a televisão, o rádio e os perió-
dicos impressos – as formas que mais comu- e analógica, é um exercício essencial para a compreensão das várias
mente veem à mente quando falamos sobre dimensões que envolvem o documentário, seja pela relação de po-
“a mídia” – mas também impressos litográfi-
cos, letreiros de publicidade e a Rede Mundial. der intrínseca à própria natureza do trabalho documental cinemato-
O estratagema está em recusar ser enganado gráfico, e que envolve tanto as questões técnicas quanto as tecno-
pelo significado da escala (HERZFELD, 2014, p.
359). lógicas e os impactos que elas têm sobre aqueles que estão sendo
filmados e sobre aqueles que estão assistindo, seja pela percepção
O alerta de Herzfeld sobre a questão da escala é essencial para de que o autor/cineasta não fala pelos entrevistados, mas apenas da
o que aqui pretendemos. Se, por um lado, o documentário dificil- voz destes (dialogia), pela percepção temporal que os depoimentos
mente tem o apoio das grandes redes de cinema para a sua distribui- fornecem e que necessitam de contexto (analogia) para que possam
ção, e isso o colocaria em uma escala menor que o cinema ficcional, ser completamente compreendidos.
332 Aline Laier e Fernando Lamas audiovisual revolucionário 333

Racismo no Brasil: uma análise de dois documen- raciais e estudantes da própria instituição. Invariavelmente, os au-
tointitulados brancos que foram ouvidos durante o documentário
tários
mostram-se contrários, enquanto os próprios cotistas negros mos-
traram-se favoráveis. É interessante analisar que quando a câmera
O primeiro documentário que será analisado, Raça Humana, de Dulce Queiroz transita por várias áreas do campus da UnB, pode-
uma produção de 2010 com direção e roteiro de Dulce Queiroz, fez -se constatar que o sistema de cotas ampliou a diversidade étnica-ra-
uma importante abordagem da adoção do sistema de cotas raciais cial da supracitada instituição.
pela Universidade de Brasília (UnB). Ao longo dos 42 minutos de du-
É interessante assinalar que invariavelmente as críticas contra
ração, várias vozes aparecem, umas defendendo a ação da univer-
a política de cotas adotada pela UnB enfatizavam o desrespeito à me-
sidade e outras criticando. A diretora optou por não dirigir o teles-
ritocracia. Entretanto, estudos como o de Tarcília Nascimento (2015,
pectador para uma única opinião, buscando dar voz aos diferentes
p. 179) e Emmanuella Miranda não encontraram diferenças substan-
atores sociais e aos seus distintos pontos de vista. Apesar deste cui-
ciais entre os rendimentos de cotistas, seja no Ensino Superior (no
dado, o que salta aos olhos é o problema ainda não resolvido sobre
curso de Medicina da UERJ, no caso de Nascimento), seja no Ensino
a escravidão e sua herança no Brasil. Tanto entre os argumentos a
Médio (entre estudantes do Instituto Federal do Sudeste de Minas,
favor quanto entre os contrários, o que fica muito evidente é que
campus Muriaé, no caso de Miranda), apesar de neste último caso o
esta questão simplesmente não foi tratada de maneira adequada nos
“passar no vestibular” em uma instituição federal de Ensino Superior
últimos 100 anos.
seja tomado por muitos dos profissionais que lá trabalham (profes-
A adoção de uma política de cotas raciais antes mesmo de sua sores e técnicos) como uma chancela para o que chamam de “ensino
aprovação pelo Congresso Nacional em 2012 gerou profundas críti- de qualidade” (MIRANDA, 2017, p, 168). Se a questão da meritocra-
cas, tal como fica evidente no documentário. Segundo Tarcília Nasci- cia fosse realmente relevante, esses cotistas não teriam como acom-
mento, o modelo adotado pela Universidade de Brasília (UnB) consis- panhar os demais colegas que entraram fora do sistema de cotas. O
tia em um “processo de avaliação racial submetendo os candidatos que fica claro, tanto pela análise do documentário de Dulce Queiroz
a uma perícia sobre sua declaração e autoidentificação racial, que quanto pelas análises de Nascimento e Miranda, é que o argumento
gerou fortes críticas de estudiosos e da sociedade”, o que acabou por da meritocracia simplesmente serve para encobrir argumentos es-
gerar acusações de “tribunais raciais” (NASCIMENTO, 2015, p. 24). sencialmente racistas.

As acusações apontadas por Nascimento atravessam várias O documentário não foi pensado inicialmente para platafor-
vozes durante o documentário, tanto de professores da instituição mas digitais, mas atualmente ele encontra-se na página do coletivo
quanto de professores externos convidados a debaterem as cotas resistência (https://www.coletivoresistencia.com.br/). Esta página
334 Aline Laier e Fernando Lamas audiovisual revolucionário 335

foi criada em 14 de março de 2016 e inicialmente era um grupo de beneficiou de uma ação política nas redes sociais, que permitiram a
WhatsApp que pretendia congregar pessoas que se mostravam in- ampla divulgação de um trabalho que não foi inicialmente projeta-
dignadas com as críticas que culminaram no pedido de impeachment do para uma plataforma digital, o trabalho do LabÁfrikas já nasceu
da presidente Dilma Rousseff. Atualmente, a página da internet dis- pensando em utilizar a força desse meio de comunicação para atingir
ponibiliza acesso a links com filmes (ficcionais e documentais), livros, seus objetivos.
cursos, tutoriais, entre outras atividades. Em outros termos, apesar
Ao iniciar o documentário com uma pergunta trivial (“você
de não ter sido planejado inicialmente para a divulgação em mídia
está apaixonada?”), o documentário percorre uma feira livre na cida-
digitais, estas ampliaram o alcance deste documentário, abrindo no-
de de Juiz de Fora solicitando a descrição (estética) da pessoa amada.
vas janelas de oportunidades para chegar a um público mais amplo e,
O resultado é interessante, pois ao buscar descrever alguém que era
desta maneira, realizar seu fim último, a saber: levar a discussão para
um herói, a pessoa afirma que seu pai seria o modelo de beleza que
amplas camadas sociais.
ela procura. A frase é típica da “confusão” brasileira sobre a questão
O segundo documentário, O outro em branco: reflexo reverso, racial, pois na fala a interlocutora diz que seu pai é branco para logo
foi produzido pelo Laboratório Afrikas de Audiovisual, uma iniciativa em seguida dizer que “na verdade ele é negro”, mas que o arquétipo
acadêmica interdisciplinar que engloba estudantes de graduação de de herói e de beleza está relacionado com o ser branco. Daí a esco-
diversos cursos da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), como lha estética de dizer que o pai, apesar de ser negro, é encarado pela
Ciências Sociais, História, Jornalismo; Rádio, TV e Internet, Artes e interlocutora como branco.
Design e Cinema. Conta também com a participação de uma estu-
Esta fala nos remete a um famoso quadro intitulado A reden-
dante do Mestrado em História. Este documentário, de apenas pou-
ção de Can, do pintor espanhol Modesto Brocos (1852-1936), radi-
co mais de 10 minutos, pretende ser o primeiro episódio de uma sé-
cado no Brasil por mais de 40 anos. A pintura foi feita pouco depois
rie proposta pela coordenadora do LAbÁfrikas, a professora Doutora
de declaradas a abolição da escravidão (1888) e da República (1889)
Fernanda Thomaz, que também dirigiu e roteirizou o documentário.
no país. No caminho para um suposto progresso, o Brasil adotava
Diferentemente de Raça Humana, O outro em branco: reflexo a Europa branca como referência, desconsiderando, portanto, que
reverso já foi produzido e pensado desde o início para ser divulgado sua população pouco se assemelhava à europeia. Dentro desse ideal
em plataforma digital, no caso, a plataforma do próprio laboratório elitista, o negro representava o passado e o atraso que deveriam ser
na página da UFJF. Em outros termos, a diferença deste documentá- a todo custo superados.
rio é que ele propõe uma atividade acadêmica que visa extrapolar o
âmbito do próprio meio acadêmico, fazendo uso da capilaridade do Foi também dentro deste contexto que surgiram as chamadas
meio digital. Ou seja, enquanto o documentário de Dulce Queiroz se teorias científicas do branqueamento, propondo como solução para
336 Aline Laier e Fernando Lamas audiovisual revolucionário 337

o problema misturar a população negra com a branca, incluindo os rio, uma vez que, ao tratar a questão racial de modo reflexo, traz à
imigrantes europeus, geração por geração, até mudar o perfil “racial” tona questões que anteriormente ficavam ocultadas por terem sido
do país, de negro para branco. Tal questão pode parecer ultrapassada naturalizadas socialmente durante muito tempo. O documentário de
em termos teóricos, pois há décadas que antropólogos, historiadores Fernanda Thomaz, portanto, desencadeia uma reflexão social extre-
e sociólogos apontam para esse erro analítico da sociedade brasileira mamente importante, pois toca na questão do privilégio a partir de
como uma “democracia racial”, contudo, como ficou bastante claro um olhar que poderíamos classificar inicialmente como trivial, bus-
ainda no início do documentário realizado pelo LabÁfrikas, a questão cando desvendar uma estrutura social por meio de “vozes comuns”,
é persistente está disseminada no meio social brasileiro como um isto é, não de acadêmicos, mas de populares durante a realização de
todo (LAIER, 2019, p. 35). uma feira. Dentro desta perspectiva, o documentário de Fernanda
Thomas pode ser enquadrado, ao mesmo tempo, como dialógico, na
Continuando, vários interlocutores da feira caracterizaram o
medida em que através do diálogo busca entender questões bastan-
branco como de “vários tipos”, alto ou baixo, mas com algumas ca-
te profundas e analógicas, uma vez que estabelece analogias sociais,
racterísticas fenotípicas específicas, como cabelos lisos, pela clara,
presentes tanto na atualidade quanto no passado histórico.
olhos claros e outras características de caráter socioeconômico, es-
pecialmente o fato de ser “privilegiado”. Essa última fala nos remete
ao fato de que as camadas populares brasileiras são capazes de per- Considerações finais
ceber que o topo da pirâmide social brasileira ainda é predominan-
temente branco e que os aspectos fenotípicos são considerados para
A arte, independentemente da época em que ela é produzida,
essa subida ao topo socioeconômico brasileiro.
não possuía a capacidade de salvar a humanidade de si mesma. Por
Neste momento o documentário toca na questão específica outro lado, não podemos deixar de perceber que a arte tem uma for-
que ele pretende levantar: a branquitude, ou seja, o lugar de privilé- ça transformadora e libertadora das consciências sociais e que, por-
gio que as pessoas brancas possuem na sociedade. Tal privilégio não tanto, ela não pode ser simplesmente relegada a um segundo plano.
precisa ser exclusivamente de ordem econômica, apesar deste as-
O encontro da arte cinematográfica documental com as plata-
pecto sempre permear a presença de praticamente todas as formas
formas digitais nos mostra um caminho primoroso para a ampliação
de privilégio, mas eles podem ser também de ordem simbólica, ou
e o fortalecimento de uma consciência social que se oponha com
seja, marcadores sociais, sejam eles estéticos, sejam culturais, entre
veemência à barbárie que ora nos apresenta. Evidentemente, os
outros, que ajudam na perpetuação da desigualdade racial.
mesmos recursos que podem libertar podem também oprimir, pois
Neste ponto reside a grande originalidade deste documentá- como sugere a análise de Adorno a respeito de Freud, “a barbárie en-
338 Aline Laier e Fernando Lamas audiovisual revolucionário 339

contra-se no próprio princípio civilizatório” (ADORNO, 2011, p. 120). Paralelo a isso, buscamos também indicar o importante papel
Isso fica claro no atual cenário brasileiro com as amplas e incessantes que as mídias digitais possuem no presente momento. Se um dos
divulgações de fake news pelas redes sociais, assim como impacto documentários, como já salientamos anteriormente, não foi essen-
negativo que tiveram em um passado recente (vide as eleições de cialmente pensado para este tipo de plataforma, mas beneficiou-se
2018) e que ainda têm e ainda podem ter num futuro relativamente dele a partir de uma ação externa aos realizadores do documentário,
próximo. o outro, que analisamos, foi basicamente pensado dentro desta pers-
pectiva. Independentemente de ter sido feito conscientemente ou
Apesar de tudo, desistir não é uma opção, nem para as artes,
não, o fato é que a associação do audiovisual com as mídias digitais
nem para as Ciências Sociais. Os dois documentários deixam claro
abre novas possibilidades.
que a luta por uma sociedade mais igualitária, livre de preconceitos
ainda está longe de ser plenamente atingida. Ambos também mos- Em outras palavras, o que tentamos realizar neste artigo foi
tram a força que as plataformas digitais possuem para a divulgação apenas indicar que as novas possibilidades abertas pelos meios digi-
a um público mais amplo e como elas podem influenciar a própria tais para a produção e principalmente para a divulgação do audiovi-
produção do audiovisual. Enquanto o documentário de Dulce Quei- sual podem trazer repercussões bastante interessantes e essencial-
roz (realizado em 2010) beneficiou-se de forma não intencional dos mente libertadoras na medida em que proporcionam, ou podem e
meios digitais, o trabalho de Fernanda Thomaz (realizado em 2020) devem proporcionar uma ampliação da consciência social em dimen-
partiu da lógica de imbricação entre essas duas formas de comunica- sões até então ainda não vistas.
ção, a saber, o audiovisual e as plataformas digitais.

O que fica claro na análise dos dois documentários é justa- Referências


mente a relevância social e didática que ambos possuem para tra-
ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento.
tar temas delicados e ao mesmo tempo relevantes para a sociedade Trad. Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
brasileira. Se, por um lado, esses temas vêm recebendo tratamento ADORNO, Theodor. Educação e emancipação. Trad. Wofgang Leo
acadêmico há muitos anos, tal como ficou evidente pelas disserta- Maar. São Paulo: Paz & Terra, 2011.
ções, teses e livros elencados ao longo deste artigo, por outro lado, AUMONT, Jacques; MARIE, Michel. Dicionário teórico e crítico do ci-
nema. Trad. Eloísa Araújo Ribeiro. Campinas: Papiros, 2003.
o que estamos defendendo aqui é justamente a possibilidade do au-
diovisual de libertar e revolucionar a consciência social na medida BRIGGS, Asa; BURKE, Peter. Uma história social da mídia: de Gutem-
berg à Internet. Trad. Maria Carmelita Pádua Dias. Rio de Janeiro:
em que é capaz de tratar com mais leveza, mas, ao mesmo tempo, Zahar, 2004.
com a contundência necessária temas que, enquanto ficam restritos CARDOSO, Ciro Flamarion. Narrativa, sentido, história. Campinas: Pa-
à discussão acadêmica, não atingem a maior parte da população. pirus, 1997.
340 Aline Laier e Fernando Lamas

GOMBRICH, E. H. A história da arte. 15. ed. Trad. Álvaro Cabral. Rio


de Janeiro: LTC, 1993.
HERZFELD, Michael. Antropologia: prática teórica na cultura e na
sociedade. Trad. Noéli Correia de Melo Sobrinho. Petrópolis: Vozes,
2014.
HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos: o breve século XX (1914-1991).
Trad. Marcos Santarrita. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
LAIER, Aline Cristina. Trajetórias e travessias transatlânticas: um es-
tudo sobre estudantes guineenses e cabo-verdianos nas universida-
des brasileiras. 2019. Tese (Doutorado) – UFJF, Juiz de Fora, 2019.
O intempestivo na televisão:
miudezas e torções na
LAPLANTINE, François. Aprender antropologia. Trad. Marie-Agnès
Chauvel. São Paulo: Brasiliense, 2000. cobertura de protestos entre
MIRANDA, Emmanuella Aparecida. A política de cotas no Instituto Fe- junhos71
deral de Educação, Ciência e Tecnologia do Sudeste de Minas Gerais:
análise do acesso e da permanência. 2017. Dissertação (Mestrado) Evandro Medeiros72
– UFV, Viçosa, 2017.
Lara Linhalis73
NASCIMENTO, Tarcília Edna Fernandes do. As cotas na Medicina: per-
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Lumina – Revista do Programa de Pós-graduação em Comunicação
da Universidade Federal de Juiz de Fora/UFJF. Juiz de Fora, PPGCOM
– UFJF, v. 13, n. 1, p. 122-131, jan./abr. 2019. 71 Para citar corretamente este capítulo, utilize a seguinte forma:
MEDEIROS, Evandro; LINHALIS, Lara. O intempestivo na televisão: miudezas
e torções na cobertura de protestos entre junhos. In: ROCHA, Adriano Medeiros
da; LAIA, Evandro José Medeiros (Org.). audiovisual revolucionário. São Paulo:
Editora dos Frades, 2021.
72 Evandro José Medeiros Laia - professor do curso de Jornalismo da
UFOP, doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ, co-fundador do Observató-
rio jornalismo(S).
73 Lara LInhalis Guimarães - professora do curso de Jornalismo da UFOP,
doutora em Comunicação e Cultura pela UFRJ, co-fundadora do Observatório
jornalismo(S).
audiovisual revolucionário 343

Parte 1: torção

Há um trecho do livro Rumores discretos da subjetividade


(PRECIOSA, 2010) que nos capturou uma eternidade, e conduziu cer-
ta urgência de enlaçar as palavras deste artigo.

Tem gente que quebra espelhos e aspira o


azar, quem sabe um outro nome para acaso.
Dispõe-se a explorar o estranho em si, conec-
tar-se com o intempestivo, o sem nome que
lhe dá boas-vindas. E força uma fenda em sua
intimidade. Rompe com a cadeia de condicio-
namentos a que chamava viver. Desalojada
das formas em que se reconhecia, um discreto
lamento começa a assediá-la, mas finge não
escutá-lo. Decide apegar-se com fúria à ur-
gência dessa nova vida, intensivamente frágil.
Não lhe passa pela cabeça rotulá-la. Prefere
carregar consigo esse inominável estado iné-
dito. Prefere de agora em diante deixar a porta
aberta. ‘[...] Não sou mais eu mesmo como an-
tes, fui arrebatado em um devir outro, levado
para além de meus Territórios existenciais fa-
miliares’ (p.26).

Mais à frente, nesta mesma obra, temos a imagem evocada


por Preciosa do personagem de um curta-metragem de Carlos Na-
der, de 1998. “Trata-se de alguém em empenhada transformação. Al-
guém aceso”. Essa ideia, do manter-se aceso, em empenhada trans-
formação, vincula-se à necessidade de explorar o estranho em si, o
que funciona como um requisito. De acordo com o conhecimento
produzido por uma (in)certa antropologia, da qual faz parte a ideia
de invenção de Roy Wagner (2013), só é possível olhar para algum
eu quando há o olhar que captura algum outro e nos coloca dian-
te desse estranho, como em um espelho. Em Wagner, essa equação
344 Evandro Medeiros e Lara Linhalis audiovisual revolucionário 345

aparece da seguinte forma: a cultura é o que precipita do choque Mas, considerando esse nosso modo de ser e estar no mundo,
cultural, do encontro entre dois outros. Antes disso, não há cultura, baseado no humanismo, em que o capitalismo gerencia o que é o eu
há comportamentos naturalizados, os nossos “territórios existenciais e o que é o outro (tratando de mantê-los separados), há maneiras
familiares”. Por essa via, não há reflexão sobre o eu sem reflexão so- de se manter aceso? “Não há jornalismo aleatório” (GUIMARÃES e
bre o outro. Parece-nos que um mundo possível, e um jornalismo LAIA, 2015, p. 8), como alertamos em um artigo tempos atrás, fruto
possível, necessitam fortemente abandonar os hábitos de ser, explo- das observações das jornadas de junho de 2013 e das manifestações
rar o estranho em si. Há modos de ser e estar no mundo que fazem “Não vai ter Copa”, de 2014. O agenciamento de certo jornalismo é
muito bem essas torções, principalmente os povos animistas, como fruto do devir modernidade-capitalismo, aquele que inventou certa
os povos indígenas. Tornar-se outro é condição da existência do ser. humanidade, a do “clube seleto”, que não tem mais cotas à venda,
O outro como margem da existência do próprio. como define Ailton Krenak (2020), que deixa mais povos-perspectivas
alijados que integrados, criando uma emenda maior que o soneto.
Essa manobra vital, para alguns povos ameríndios, foi traduzi-
da em conceito pelo antropólogo Eduardo Viveiros de Castro (2002). Por essa via, há uma necessidade perene de reflexão sobre
O Perspectivismo abriga a crença, partilhada por povos indígenas como aquilo que se convencionou chamar de “o” jornalismo – o he-
amazônicos, de que o mundo é habitado por diferentes tipos de se- gemônico, aquele legitimado na prática profissional, ao menos como
res (humanos e não humanos) que são sujeitos, ou seja, têm capaci- modelo a ser seguido – é fruto desse paradigma e se esse jornalis-
dade de agência sobre o mundo, são pessoas (mesmo que pessoas mo dá conta da multiplicidade de mundos que se proliferam e são
não humanas), agem com base em intencionalidade e reflexividade. postos em tensão no contexto contemporâneo. Esse jornalismo – o
Nesse conceito está também a ideia de que cada um desses seres se legitimado – é filho da modernidade, logo, de uma visão cientificista
vê como humano, vendo todos os outros, então, como não huma- de mundo: aquela que separa natureza de cultura, fato de versão,
nos. Isso porque, em algumas cosmologias não ocidentais, prevalece realidade objetiva de representação. Por essa via, caberia ao jorna-
a ideia de que há uma humanidade moral comum a todos os seres lista a tarefa árdua de buscar sempre ver os acontecimentos de uma
(uma só alma, uma só cultura), os quais se diferenciam então pelo perspectiva distanciada, ou atuar “do lado de fora” dos fatos, exer-
corpo (pela “natureza”). Ser humano, assim, seria uma posição ocu- cendo uma postura imparcial a respeito, ao menos como meta. Esse
pada somente em relação a um outro, o que nos faz mirar a ideia ideal de conhecimento está baseado na crença de que conhecer é
de humanidade como capacidade, não como condição essencial. E objetivar, ou seja, despir os fatos de suas subjetividades, a fim de
põe no horizonte, ainda, a multiplicidade potencial de condições de conhecê-los melhor.
existência.
Subjetivar o jornalismo, por outro lado, é basicamente o que
trata as propostas de um Jornalismo em Equívoco (LAIA, 2016) e
346 Evandro Medeiros e Lara Linhalis audiovisual revolucionário 347

de um Jornalismo de Perspectivas (GUIMARÃES, 2016). A primeira que intempestivo, atravessando as frestas, de lampejo, em pequenos
aponta para uma outra abordagem possível do fenômeno jornalís- acontecimentos.
tico, a partir do entendimento de que esta é uma atividade que se
Este tratamento do jornalismo de forma não sacralizada, lon-
propõe como tradução de mundos. A ideia de equívoco (VIVEIROS
ge do fetiche, permite enxergá-lo como uma construção. Portanto,
DE CASTRO, 2015) explica a comunicação transespecífica, entre hu-
ser jornalista não é um fim, mas um meio, passagem, condição agen-
manos e não humanos, na mata, a partir do dissenso: em mundos
ciada pela perspectiva que se ocupa, emergência da diferença que
diferentes, uma mesma palavra pode ter significados diversos, e é
produz comunicação de um jeito fora da convencionalização, nem
justamente quando se assume esta impossibilidade que se faz uma
mais nem menos legítima que outras formas. Por isso há momen-
tradução melhor, justamente porque deforma a língua de origem as-
tos em que este diferenciante emerge, ao menos como promessa. E
sumindo os riscos do processo, assumindo a diferença inegociável. É
deixa rastros. Junho de 2013 ensaiou uma série de modos de fazer e
um tipo de “comunicação transversal entre incomunicáveis” (VIVEI-
pensar jornalismo que tencionava modelos hegemônicos, principal-
ROS DE CASTRO, 2015, p. 171). É a partir desta torção que um análo-
mente no que diz respeito ao telejornalismo, marcado pela produção
go possível do jornalismo, um outro jornalismo “diferenciante”, nos
de narrativas audiovisuais, tensionadas naquele momento pelas nar-
ajudaria a entender o nosso próprio jornalismo. Este análogo, este
rativas dos “comuns” (LAIA, 2016), aqueles que mimetizam o modo
outro jornalismo diferenciante, estaria bem próximo do que fazem
legítimo de narrar o mundo, o jornalismo, vez por outra inventando
os xamãs, os tradutores do mundo, diplomatas da cosmologia ame-
outros caminhos, nas miudezas, nos pequenos acontecimentos. Esta
ríndia. Nesse sentido, interessa muito o modo como os xamãs, os
foi uma ótima incubadora de invenções de jornalismo, de exercício
mestres do esquematismo cósmico, realizam o diálogo entre espé-
de novas técnicas, rotinas, de novos jornalistas, ou seja, de novos
cies de seres, como eles rompem os limites da própria perspectiva na
sujeitos que se autonomeavam, ali, jornalistas. Mapeamos muitos
tentativa de ver como e traduzir um ponto de vista outro para o seu
desses momentos e seus desdobramentos, no Brasil e nos Estados
mundo. Entendendo o jornalismo em sua tarefa de traduzir mundos,
Unidos, que deram origem às abordagens que propomos. E que dei-
fazer dialogar pontos de vista, como algum jornalismo pode se nutrir
xam à mostra o jornalismo como uma rede de agenciamentos, por-
do pensamento ameríndio para realizar uma tradução de mundos
tanto, como passível de mudanças, de transformação, e não como
que, trabalhando na chave do equívoco, do entendimento de que
uma essência.
não falamos a mesma coisa, não reduza tanto a diferença? Como ver
como? Aí reside a segunda proposta: um Jornalismo de Perspecti- Quando estas narrativas produzidas fora da re-
va, um modo diferenciante de narrar o mundo, próximo à operação dação começam a se sistematizarem como um
modo outro de narrar os fatos, uma invenção
xamânica, que está presente na nossa cosmologia também, mesmo diferenciante, ameaçam o discurso jornalís-
tico mainstream, constituindo-se um tipo de
348 Evandro Medeiros e Lara Linhalis audiovisual revolucionário 349

produção de difícil apropriação, por parte dos Muita coisa que aconteceu entre 2013 e 2015 continua rever-
jornalistas, o que tira deles o controle da cons-
trução coletivizante dos fatos, ou seja, muda a berando, outras não. Poderíamos ainda usar este mesmo nome? O
perspectiva e cria a possibilidade de uma tra- nome jornalismo foi precipitado a partir de uma rede sociotécnica
dução do mundo que não passa por esta rede.
É preciso uma série de arranjos e negociações específica, e continua sendo usado para se referir, de maneira pre-
para que uma notícia seja possível. Mas quem cária, ao que fazemos ainda hoje. Se a palavra jornalismo ainda im-
a produz e quem a recebe sequer enxerga este
processo de negociação, de construção. Uma porta aqui, não é no singular, mas no plural, como possibilidades,
rede não é enxergada como tal se as coisas atravessada por mediações instáveis que se transformam de acordo
funcionam, sem intercorrências. O jornalismo
parece um bloco único, uma ação executada com a entrada e saída de atores. É importante que isto seja definido
sem contraditório, no geral, quando vemos a aqui, já que, também entre 2013 e 2020 o modo de se construir as
reportagem em casa, esta é a perspectiva do
jornalista também. (LAIA, 2016, p. 183). narrativas jornalísticas mudou muito: “do vem pra rua para o fique
em casa”, citando novamente Ivana Bentes (2020), desta vez em re-
Apenas quando surge o imprevisto é que é possível ver a es- flexão sobre estas mesmas mudanças, em live da série Traduções,
trutura reticular da rede, seus nós em detalhe, não como um blo- do Observatório jornalismo(S), locus a partir do qual emergiu uma
co homogêneo, indivisível, mas como um devir. Parece claro aqui, coleção de pequenos acontecimentos, ainda em fase de ajuntamen-
mas nunca é demais lembrar, que abordamos o jornalismo como to, trabalho sobre o qual temos nos debruçado atualmente. Alguns
uma rede sociotécnica (LATOUR, 1994), fruto das relações comple- desses acontecimentos serão trazidos no breve espaço deste artigo.
xas entre atores humanos e não humanos, suscetível a reconfigura- O fato é que Bentes sintetiza naquela frase quase um slogan, um re-
ções, à medida que novos atores entram na rede e a desestabilizam corte temporal no qual estão inscritas transformações que levaram
temporariamente. O que nos parece uma proposta bem adequada o Brasil de um movimento difuso que se dizia não partidário a uma
para pensar o telejornalismo, cujas configurações, como rede, estão guinada conservadora acelerada pela pandemia do novo coronaví-
marcadas por uma série de atores não humanos de origem técni- rus. Por isso, antes de falar dos acontecimentos, é preciso dar mais
ca e tecnológica. Um exemplo: um repórter de TV não domina toda um aviso: não se trata aqui de fazer um balanço positivo ou negativo
a parafernália de câmeras, antenas de transmissão, satélites, assim sobre os rumos que uma possível revolução de junho de 2013 tomou
como também não domina os outros humanos que fazem parte des- em junho de 2020. Deleuze (1992) faz uma importante distinção de
tas associações. Esta reflexão nos serve como ponto de partida para história e devir quando afirma que “o acontecimento em seu devir
pensar que um certo jornalismo, este sobre o qual comumente nos escapa à história”, ou que “a história não é a experimentação, ela é
debruçamos como pesquisadores, mudou, e muito, desde que este apenas o conjunto das condições quase negativas que possibilitam a
modo de traduzir o mundo foi inventado, precipitado, junto com a experimentação de algo que escapa à história” (p. 210).
Revolução Francesa.
350 Evandro Medeiros e Lara Linhalis audiovisual revolucionário 351

É aí que Deleuze defende algo que nos deixa acesos: esse de- Parte 2: Miudezas
vir revolucionário que escapa à história é, para ele, o que Nietzsche
chama de Intempestivo, e é nisso que devemos prestar atenção. Ou
A própria reunião de pequenas miudezas, desta força revolu-
seja: na esteira desta revolução em processo, entre junhos, os mo-
cionária que tomou o Brasil em junho de 2013 parecia, em si mesma,
dos de narrar o mundo também mudaram, de fora para dentro, das
uma miudeza, frente ao devir que integrava, em escala global (CAS-
pessoas para as instituições, não apenas nos indivíduos, mas tam-
TELLS, 2013). Três anos antes, em 2010, um vendedor ambulante se
bém nos modos de habitar o mundo, nos regimes narrativos, por isso
autoimolou, depois de ter se recusado a pagar propina a um mem-
mesmo, também no jornalismo corporativo. Talvez especialmente
bro do governo local, na Tunísia. O vídeo da tragédia, feito com um
nos telejornais, tão afetados pela perda do flagrante, da primazia do
telefone celular, foi postado em uma rede social e o mundo árabe
registro audiovisual do fato, a partir da participação dos “comuns”,
entrou em transe depois disso. A revolução no Egito, que acabou der-
aqueles que estão mais dispostos a ajuntar miudezas, que, em devir,
rubando um ditador que comandava o país fazia três décadas, veio
promovem o intempestivo, justamente porque não estão no lugar de
logo depois, tendo como epicentro a Praça Tahir, no Cairo. Em 2011,
legitimidade, estão fora do cânone de um certo jornalismo.
o movimento sacudiu a Espanha, com o 15M, seguindo, logo depois,
Deleuze (1992) pensa nessas miudezas como força criadora, para o outro lado do Atlântico, com o Occupy Wall Street, iniciado em
os curtos-circuitos que abrem fenda para um futuro. O filósofo diz Nova York, mas que tomou todos os 50 estados do país. Só depois,
se interessar mais pelo devir revolucionário que pelas revoluções em junho de 2013, fez a mesma coisa com o Brasil. O rebote veio
históricas, ou seja, mais pela jurisprudência que pela lei (ou que pe- algum tempo depois: o retorno das ditaduras em países árabes, o
las leis), em como se adapta a norma (ou as normas) às situações Brexit (a saída da Grã-Bretanha da União Europeia e a ameaça ao
de fato. Os xamãs atuam justamente dessa forma, segundo Viveiros bloco europeu), a eleição de Donald Trump e a ascensão da extrema
de Castro (2015): mais interessados na adaptação, de modo diferen- direita no Brasil, com a eleição de Jair Bolsonaro como presidente.
ciante, que na legislação, de modo “coletivizante”. O xamanismo é Junho de 2013, nos parece, de fato, um mês que já dura sete
uma questão de jurisprudência. Isso se relaciona com o que Rosane anos. Foi no dia 12 que um protesto, na Avenida Paulista, em São
Preciosa (2010, p. 30) chama de “brotar pelo meio”: “opor-se a um Paulo, foi organizado pelo Movimento Passe Livre, com foco no trans-
destino que progride em direção a algo”, criando linhas transversais, porte público, contra o aumento de R$ 0,20 na passagem de ônibus
respiros, lampejos. urbano. Os protestos em São Paulo ganharam mais adeptos depois
das notícias das agressões. E dia após dia foram se estendendo para
outras capitais e depois também para cidades do interior do Brasil.
No Rio de Janeiro, uma grande manifestação, no dia 17 de junho de
352 Evandro Medeiros e Lara Linhalis audiovisual revolucionário 353

2013, colocou de vez a cidade no mapa do movimento. Uma multi- De qualquer modo, este devir revolucionário deixou marcas
dão de manifestantes e de acoplamentos marchou da Igreja da Can- profundas no modo como narramos o mundo, jornalisticamente,
delária até a Cinelândia, ocupando toda a Avenida Rio Branco, lugar tanto na apropriação de uma estética “suja”, de imagens “amadoras”,
simbólico de lutas e protestos. Houve aglomerações, maiores e me- quando nas estratégias de apuração, registro e transmissão que o te-
nores, em todo o país, inclusive em cidades do interior. O movimento lefone celular trouxe para o telejornalismo. Sobre o restante, há que
não tinha liderança (formal, reconhecida), e reunia gente dos mais se fazer uma sociologia da derrocada. Ou mesmo uma psicanálise da
diferentes espectros ideológicos. Um dos pontos mais importantes, autodestruição, o retorno do recalcado desta nação, entre 2013 e
para a nossa reflexão aqui, é lembrar como os jornalistas, especial- 2020. Retomando Deleuze, há que se registrar a revolução histórica
mente os de televisão, muito especialmente os da TV Globo, tiveram e sua derrocada. Aqui, o que nos interessa são as coisas pequenas,
dificuldades de cobrir as manifestações “do lado de dentro”: eles o intempestivo que aparece no fazer jornalístico pelas imagens, que
eram proibidos, muitas vezes até ameaçados fisicamente. estão para além da queda, rastros do devir revolucionário. Que miu-
Este é um dos motivos que fez emergir, como potência, o fe- dezas observamos em junho de 2020 que nos remetem a junho de
nômeno dos streamers, os midiativistas que transmitem as manifes- 2013? É aí que começamos com a provocação, publicada no dia 7 de
tações, de dentro, ao vivo, pelas redes sociais, usando um telefone junho de 2020, que nos acendeu a ponto de se tornar título ao artigo,
celular conectado à internet (LAIA, 2016; GUIMARÃES, 2016). Este para a partir disso derivar muitos acontecimentos telejornalísticos,
modo de narrar o mundo seria um modo menos “manipulado” de cartografando algumas pequenas miudezas que o texto-rede de Iva-
mostrar o que acontecia, inclusive para proteger manifestantes dos na Bentes agrega, no piscar de olhos das ideias.
excessos e da violência policial. Mas isto não surgiu só por este moti-
vo, começou bem antes, em experimentações anteriores, e teve mui-
tas consequências depois. Houve controvérsias entre streamers, que
reivindicavam, não raro, o termo jornalismo para caracterizar o que
vinham fazendo; e os jornalistas dos veículos tradicionais, que, mui-
tas vezes, viam os streamers como manifestantes, como “comuns”,
ou, para usar duas expressões que causaram muitos equívocos na
época, como black blocs e/ou vândalos. Mas o que percebemos, em
campo, eram aproximações estreitas entre os dois modos de narrar:
assim como o de fora, o de dentro era também estratégico, a partir
de recortes, com artifícios que revelavam ou ocultavam determina-
dos aspectos do acontecimento.
354 Evandro Medeiros e Lara Linhalis audiovisual revolucionário 355

Figura 1 – Postagem de Ivana Bentes no Facebook sobe sons, de protestos em todo o Brasil, a favor da democracia, mas
também contra o racismo (um importante lampejo que será contem-
plado alguns parágrafos à frente).

A reportagem sobre o assunto explicava que as faixas a favor


da democracia e contra o racismo tinham relação com fatos recentes
mostrados por reportagens da TV Globo. A mesma matéria mostrava
os manifestantes a favor do presidente Jair Bolsonaro, em menor nú-
mero, e o esquema policial montado para garantir a segurança. Des-
taque para a imagem do chefe do Gabinete de Segurança Institucio-
nal, Augusto Heleno, cumprimentando amistosamente os policiais.
Mas o que chamou a atenção foi o início da reportagem, mostrando a
concentração da manifestação de Brasília, liderada por torcidas orga-
nizadas, no momento em que o grupo foi instruído a não responder
Disponível em: https://www.facebook.com/ivana.bentes/ provocações, evitar brigas e não deixar de usar a máscara. Um tipo
posts/3248096751890339
de mirada pouco comum em relação ao que observamos na cober-
Em junho de 2020 houve manifestação pedindo intervenção tura dos protestos entre junho de 2013 e julho de 2014, na Copa
militar e o fechamento do Superior Tribunal Federal, mesmo durante do Mundo. Desde o início, houve uma confusão sobre o sentido de
a pandemia no novo coronavírus, quando supostamente não deveria expressões como black blocs, midiativistas, manifestantes e ninjas,
haver aglomerações. Houve também manifestações a favor da de- criando, assim, uma controvérsia, um equívoco. Este entendimento
mocracia, alicerçando uma contranarrativa àquelas pró-Bolsonaro. que aproxima no imaginário todas essas possíveis categorias parece
No caso das primeiras, as aglomerações reforçaram a orientação do ter se forjado na necessidade diária de purificar, ou seja, de classifi-
presidente do não cumprimento da medida sanitária de isolamento car e hierarquizar, como forma de construir uma narrativa no modelo
social, o que deu o tom do modo como seu governo enfrentou a crise clássico de reportagem.
global de saúde pública. Na cobertura do dia 7 de junho, um domin-
Nas conversas com jornalistas, ouvi por diver-
go, dia da semana em que as manifestações costumavam acontecer, sas vezes falas nas quais o termo black bloc vi-
o Fantástico74, da TV Globo, começou com um clipe de cenas, com nha impregnado de múltiplos sentidos, inclu-
sive para se referir aos midiativistas [...]. Este é
um tipo de simplificação, ou purificação, para
74 Disponível na plataforma Globoplay: https://globoplay.globo. usar o termo latouriano, que retira as nuances
com/v/8609447/.
356 Evandro Medeiros e Lara Linhalis audiovisual revolucionário 357

da rede, reinserindo a narrativa em um esque- do ponto, de uma questão nevrálgica: a retirada de verbas de finan-
ma dualista. (LAIA, 2016, p.132).
ciamento de programas de repressão da polícia nos Estados Unidos.

O que aparece nas reportagens do Fantástico que tratam do Há que se fazer uma anotação importante: a discussão sobre
assunto, no dia sobre o qual tratamos aqui, é bem diferente disso, racismo e violência policial também chegou ao Brasil, mas só depois
como confirma a reportagem apresentada em seguida no programa de iniciada a partir de um episódio de racismo e abuso policial nos
dominical: um giro mostrando as manifestações nas principais capi- Estados Unidos, mesmo com o número de mulheres e homens ne-
tais do Brasil, com uma leve ironia sobre o número bem menor de gros mortos por forças de segurança no Brasil.75 Lembremos que foi
manifestantes a favor do governo, pedindo intervenção militar. necessária uma decisão do Superior Tribunal Federal para que a Se-
cretaria de Defesa do Estado do Rio de Janeiro parasse as operações
Foi ainda na primeira semana do mês de junho de 2020 que
policiais nas favelas durante o período em que o isolamento social
uma câmera de telefone celular registrou, em Minneapolis, cidade
atingiu a mais alta porcentagem no Rio de Janeiro.76 Na mesma edi-
dos Estados Unidos, o momento em que um policial branco asfixiou
ção, logo após as reportagens sobre os protestos, o Fantástico do dia
um homem negro, George Floyd, detido e sem chances de defesa por
7 de junho trouxe ainda uma reportagem com mães e filhos, negras
mais de oito minutos, esmagando o pescoço dele com o joelho até
e negros, que vivem no Capão Redondo, comunidade da Zona Sul
a morte, enquanto ele gritava: “Eu não consigo respirar!”. O vídeo
de São Paulo, capital. O repórter Manoel Soares, negro, com tranças
circulou nas redes sociais e se tornou central em reportagens jorna-
rastafári, de máscara, conversou com eles sobre o medo da violência
lísticas em todo o mundo, reforçando a perspectiva de que os “não
policial e das abordagens abusivas, mesmo durante a pandemia. As
humanos fazem os humanos fazer coisas”, como nos lembrou André
mães contaram como instruem os filhos para evitarem o risco, desde
Lemos (2020), em conversa numa das lives do projeto Traduções, ci-
cedo. Um dos filhos, Yuri, de 14 anos, explicou que já sabe o que
tado na parte 1 deste texto. A morte de George Floyd fez eclodir, em
fazer quando a polícia chega, de acordo com o que a mãe ensinou:
plena pandemia, manifestações contra o racismo em todo o mundo,
inclusive com a retirada, em algumas localidades, de estátuas de fi- 75 Em uma comparação, o Atlas da Violência, do Fórum Brasileiro de Se-
gurança Pública, mostra que a polícia dos Estados Unidos matou 1.099 pessoas
guras históricas ligadas ao tráfico de negros escravizados. E trouxe a
em 2019. Dessas, 259 eram negras, 24%. No Brasil, a polícia fez quase 6 vezes mais
questão racial para a centralidade do debate jornalístico. A primeira vítimas: 5.804, no mesmo período. Do total, 4.533 eram negros, 75%. Disponível
reportagem exibida pelo Fantástico do dia 7 de junho foi justamente em: https://www.poder360.com.br/internacional/policia-brasileira-matou-17-ve-
zes-o-n-de-negros-do-que-a-dos-eua-em-2019/.
sobre isso, acompanhando as manifestações que completavam uma 76 Na decisão, o ministro Edson Fachin citou o caso do menino João Pedro
semana, ininterrupta, em todo o país, “tranquilas e pacíficas”, nas pa- de Matos Pinto, de 14 anos, alvejado pela polícia civil do Rio de Janeiro mais de 70
vezes, dentro de casa, durante uma operação no Morro do Salgueiro, no dia 18 de
lavras do repórter Thiago Eltz. A reportagem tratava, em determina- maio de 2020. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.
asp?idConteudo=444960&ori=1.
358 Evandro Medeiros e Lara Linhalis audiovisual revolucionário 359

“Não falar grosso, não fazer movimentos bruscos, não olhar direta- repercussão negativa do programa Em Pauta, do dia 2 de junho de
mente e manter as mãos levantadas”. 2020. O programa discutiu a fala do presidente da Fundação Palma-
res, Sérgio Camargo, que disse que o movimento negro é uma “es-
A partir da observação do noticiário sobre as manifestações
cória maldita”. O fato de que apenas comentaristas brancos trataram
contra o racismo, Rosane Borges (2020), em live do Observatório
da questão gerou repercussão negativa. No dia seguinte, a edição
Jornalismo(S), pontuou duas questões importantes. A primeira foi a
do Em Pauta, no dia 3 de junho, trouxe exclusivamente jornalistas
adoção do termo racismo estrutural, a ideia de que o racismo, muito
negras (Maju Coutinho, âncora do Jornal Hoje, da TV Globo; Aline
mais que individual, é condição das estruturas sociais no Brasil. A
Midlej, repórter da GloboNews; Flávia Oliveira, editora de Economia
segunda observação, que contradiz, em termos, a primeira, é que a
do Jornal O Globo; Lílian Ribeiro, repórter da Globo News, e Zileide
imprensa “mostrou que o que acontecia era provocado pela banda
Silva, repórter de Política da TV Globo, em Brasília), numa conversa
podre da polícia, que corrompia o sistema, como exceção, o que não
mediada pelo também jornalista negro Heraldo Pereira. O programa,
é bem assim”, de acordo com Rosane. Para ela, esta é uma política
considerado histórico, foi reexibido pela TV Globo, em sinal aberto,
de estado. Ou ainda, uma necropolítica de estado. O conceito avan-
no Globo Repórter77 do dia 5 de junho de 2020, com um importante
ça na ideia de necropolítica, do filósofo camaronês Achille Mbembe
adendo: um depoimento da repórter e apresentadora Glória Maria
(2016). Ele basicamente entende que o modo como populações ne-
sobre situações de preconceito que sofreu na carreira, um momento
gras foram colocadas à disposição do capital séculos atrás, podendo
inédito da primeira jornalista de televisão negra de destaque no Bra-
ser descartadas a qualquer momento ou substituídas, para a constru-
sil. A partir deste episódio, a GloboNews escalou Zileide Silva e Flávia
ção do capitalismo; agora, no capitalismo tardio, qualquer povo, po-
Oliveira como comentaristas fixas do programa Em Pauta, que ainda
pulação, pessoa pode ser colocada na mesma condição. A pandemia
não contava com nenhum comentarista negro.
da covid-19 estaria marcando a instauração do que Hilan Bensusan
(2020) chamou de “consolidação da era da necropolítica preponde-
rante” no Brasil, do qual o racismo é uma faceta, fundada na mes-
ma operação de exclusão da homotransfobia, do machismo e outros
preconceitos, a partir de uma mola propulsora única: o avanço do
capitalismo, que é excludente e gera outras operações. A pandemia
tem sido laboratório para avançar na nova etapa da necropolítica:
pela fome, pela bala, pela motosserra.

Parece que o jornalismo tem criticado isso, dando um pas-


77 Disponível na plataforma Globoplay: https://globoplay.globo.
so atrás. A GloboNews voltou atrás e fez uma autocrítica depois da com/v/8607371/.
360 Evandro Medeiros e Lara Linhalis audiovisual revolucionário 361

Figura 2 – Frame do Globo Repórter do dia 5/6/2020 passa buzinando.78 “Está buzinando por que, seu merda do cacete?
Deve ser um, com certeza, não vou nem falar de quem, eu sei quem
é, sabe o que é?», disse ele, que cochicha supostamente a palavra
“preto” no ouvido do entrevistado ao seu lado. Waack foi afastado
e posteriormente demitido da TV Globo por causa deste episódio.

Parte 3 – Um pequeno deslocamento

Disponível em: https://globoplay.globo.com/v/8607371/ Por fim, neste rápido ajuntamento, impreciso pelo espaço,
mas importante como uma mirada sobre o período entre junhos,
Na CNN Brasil, canal que estreou durante a pandemia do co- trazemos uma das controvérsias fundamentais que reverberam na
ronavírus, quem deu o recado sobre o assunto também foi uma jor- vivência etnográfica feita durante a Copa do Mundo e que marcou a
nalista negra, convidada para comentar a cobertura dos protestos, ruptura definitiva, observada ali, entre as redações e os midiativistas,
retomando uma velha história que envolve a TV Globo. Alexandra depois de uma breve lua de mel que começou em junho de 2013. No
Loras, ex-consulesa da França no Brasil, lembrou, em participação ao dia 10 de fevereiro de 2014, o cinegrafista Santiago Ilídio Andrade, da
vivo, no dia 2 de junho, quando era entrevistada pela jornalista Da- TV Bandeirantes, morreu, enquanto trabalhava, depois de ser grave-
niela Lima, no Programa CNN 360 graus: mente atingido na cabeça por um rojão disparado por um manifes-
Hoje a CNN e toda a mídia brasileira tem o tante em protesto no Rio de Janeiro, dias antes. O telejornal de maior
poder de convidar acadêmicos negros para audiência no Brasil dedicou, neste dia, um editorial ao assunto, refor-
conversar sobre esta temática. Quando eu
vejo que William Waack foi mandado embora çando a importância do jornalismo profissional.79 O âncora e editor
por um episódio de racismo e hoje ele deba- do Jornal Nacional, da TV Globo, William Bonner, chamou o episó-
ter tanto tempo sobre racismo, eu acho que
deveríamos também convidar negros, no lugar dio de atentado à liberdade de imprensa. Importante lembrar que o
de fala deles, para debater sobre este assunto. editorial exaltava a função dos jornalistas “profissionais” na constru-
ção do conhecimento sobre o mundo: “Foi uma atitude autoritária,
Loras referia-se ao vídeo que mostra o apresentador William porque atacou a liberdade de expressão; e foi uma atitude suicida,
Waack conversando nos bastidores, durante a cobertura da eleição
78 Trecho disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=WR2CcT-
de Donald Trump, em 2016, para o Jornal da Globo, do qual ele era
WeM_A&feature=emb_logo.
âncora. As imagens mostram Waack xingando um motorista que 79 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=jvqaTbOWqQc.
362 Evandro Medeiros e Lara Linhalis audiovisual revolucionário 363

porque sem os jornalistas profissionais, a nação não tem como to- Renata: A história vai registrar o trabalho valo-
roso daqueles que fizeram de tudo para com-
mar conhecimento amplo das manifestações que promove”. O que bater a pandemia. Os profissionais de saúde,
chamou a nossa atenção naquele momento foi que, quando Bonner em primeiro lugar.
cita “jornalistas profissionais”, deixa de fora uma série de outros ato- William: Mas a história vai registrar também
res importantes na construção das narrativas jornalísticas, naquele aqueles que se omitiram, os que foram negli-
gentes, os que foram desrespeitosos. A histó-
momento, visto que os registros que Ana Paula Goulart de Andrade ria atribui glória, mas atribui desonra. E histó-
ria fica pra sempre.
(2018) classificou posteriormente como “apócrifos”, ou seja, fora do
cânone do telejornalismo “padrão”, eram (e se tornaram com o tem-
Mais uma vez o termo “jornalismo profissional” aparece aqui,
po ainda mais) parte indissociável das narrativas inventadas pelos
reforçando, por um lado, a importância de um trabalho qualificado
“profissionais”. Como separar, como purificar?
de informação durante a pandemia, em contraposição à onda de de-
Durante a pandemia do novo coronavírus, um editorial do Jor- sinformação que acabou fazendo do Brasil, meses depois, o segun-
nal Nacional também teve um papel importante na definição de uma do país com maior número de casos de mortes por coronavírus no
ideia de jornalismo, agora em outro contexto, em outro junho, no dia mundo. Por outro lado, reforçando também, mais uma vez, a excep-
20, quando completaram-se 50 mil mortes pela covid-19 registradas cionalidade da tradução de mundo feita pelos jornalistas. No texto,
no Brasil. O editorial80 falava em empatia, “a capacidade que o ser os apresentadores se referem também a um editorial anterior, do
humano tem de se colocar no lugar do outro, de entender o que o dia 23 de março,81 bem no início da pandemia no Brasil, quando a
outro sente”, nas palavras de Renata Vasconcellos. Ela pede que o dupla pediu “calma” aos telespectadores, numa pausa/editorial feita
país pare, assim como o JN diante dos rostos da tragédia, estampa- logo após a escalada do telejornal, num tom premonitório/otimista.
dos no cenário. “Olha o porquê desta pausa aqui no JN hoje: a gente precisa respi-
rar. A gente precisa entender que esta crise vai ter altos e baixos,
William: E é um sinal triste dos tempos que
vivemos que a gente tenha que explicar esta vai exigir sacrifícios, mas no fim o Brasil e o mundo vão superar”,
atitude. Não pra imensa maioria do povo bra- explicou William Bonner. Ele lembrou, mais uma vez, os profissionais
sileiro, de jeito nenhum, mas pra uma minoria
muito pequena, mas muito violenta, pra quem que fazem o jornalismo da Globo, explicando que eles estão entre as
o que nós fazemos, o jornalismo profissional, categorias de profissionais que prestam serviços essenciais, que não
devia, se não fechar os olhos pra esta tragédia,
ao menos não falar dela com essa dor. [...] podem parar.

80 Disponível na plataforma Globoplay: https://globoplay.globo. 81 Disponível na plataforma Globoplay: https://globoplay.globo.


com/v/8641310/. com/v/8425010/.
364 Evandro Medeiros e Lara Linhalis audiovisual revolucionário 365

Renata: O trabalho do jornalista é reunir in- são do vírus. Relembrando a Teoria Ator-Rede, a controvérsia da pan-
formações pra ajudar, pra deixar você atento,
informado. Informação num momento destes demia abriu a caixa-preta do jornalismo, a rede está exposta. São
é vital, é fundamental, é como lavar as mãos, inúmeros os exemplos e será necessário fazer um inventário, mapear
tem que lavar, e a gente tem que se informar.
o desenrolar deste momento potente, rico para pensar o jornalismo
William: Mas repare uma coisa: quando a Glo- brasileiro. Mas há que se anotar, antes que esta miudeza se perca no
bo aumentou o tempo diários que é dedicado
ao jornalismo foi exatamente pra levar esta in- caminho: os editoriais que ajuntamos aqui continuam defendendo
formação necessária sem correria. É pra você
ver e ouvir o que tá acontecendo e pra você
as ideias de objetividade, de isenção, e, principalmente, uma ideia
saber como se proteger. É claro que a gente de verdade, além, claro, da noção da excepcionalidade do jornalista
tem medo de adoecer, aqui não tem super
herói. como tradutor legítimo do mundo. Há, neste último, porém, uma pe-
quena, mas importante diferença: a afirmação de que os jornalistas
Há aqui uma definição completa: o que é o jornalismo, qual da Globo são “profissionais”, mas são também “comuns”, habitam
é o seu papel e como pode colaborar para o combate da pandemia dois mundos ao mesmo tempo, atravessam ontologias para traduzir
do coronavírus. A afirmação acontece na crise, que preferimos cha- cosmologias. O que isso significa? É preciso observar as cenas dos
mar de controvérsia, quando uma rede sociotécnica está instável, em próximos capítulos.
processo de reconfiguração. Em 2013, os “comuns” inventaram um
De fato, considerando alguma totalidade possível, coerente;
outro jornalismo, contrainventado pelos “profissionais”. Agora tam-
nada insurgente nos parece completamente poderoso. Mas não é no
bém, a partir da entrada de outros atores, e talvez o mais significativo
campo das totalidades por onde nosso pensamento caminha. Estive-
deles sejam as notícias falsas, que desestabilizam a rede-jornalismo a
mos aqui apontando miudezas imperfeitas: aquelas que, pelo modo
partir de um ponto fundamental: a credibilidade. Massimo Di Felice
como tensionam pilares sustentadores dos modos hegemônicos de
(2020) lembrou, em conversa na live Traduções, que a ficcionalidade
pensar/fazer jornalismo, precipitam algo diferenciante (WAGNER,
faz parte, na verdade, da própria natureza da notícia.
2013). Aquelas que torcem a história e nos convocam ao intempesti-
Não temos dúvidas de que tudo isso tem sido potencializa- vo, ao menos como promessa.
do pela pandemia, com jornalistas em casa, trabalhando a partir de
gambiarras tecnológicas expostas todos os dias nos telejornais, colo- Referências
cando à mostra o jornalismo como uma rede instável, formada por ANDRADE, A. P. G. Telejornalismo apócrifo: a construção da notícia
humanos e não humanos. As emoções têm aflorado com frequência com imagens amadoras e de vigilância. Santa Catarina: Insular, 2018.
nas reportagens, não só nas lágrimas, nos abraços, mas também na GUIMARÃES, L. L. 2016. Uma invenção de jornalismo: ninjas, xamãs
condução: há um posicionamento contra o que agencia a transmis- e outras perspectivas. Rio de Janeiro, RJ. Tese de doutorado. Univer-
366 Evandro Medeiros e Lara Linhalis

sidade Federal do Rio de Janeiro. 177 p. Disponível em: http://www.


pos.eco.ufrj.br/site/download.php?arquivo=upload/tese_lguima-
raes_2016.pdf. Acesso em: 20 fev. 2020.
GUIMARÃES, Lara Linhalis; LAIA, Evandro José Medeiros. O equívo-
co da manipulação. Disponível em: https://portalintercom.org.br/
anais/nacional2015/resumos/R10-2850-1.pdf 2015.
JORNALISMOS. Canal do YouTube. 2020. Disponível em: youtube.
com/jornalismos. Acesso em: 15 jul. 2020.
LAIA, E. J. M. 2016. O jornalismo em equívoco: sobre o telefone ce-
A vida virou uma live:
lular e a invenção diferenciante. Rio de Janeiro, RJ. Tese de douto- reflexões sobre o conceito de
rado. Universidade Federal do Rio de Janeiro. 221 p. Disponível em:
http://www.pos.eco.ufrj.br/site/download.php?arquivo=upload/ amadorismo e transmissão
tese_elaia_2016.pdf. Acesso em: 20 fev. 2020. ao vivo a partir das lives
PRECIOSA, Rosane. Rumores discretos da subjetividade: sujeito e es- musicais num contexto de
critura em processo. Porto Alegre: Sulina/Editora da UFRGS, 2010.
pandemia82
Jhonatan Mata83

82 Para citar corretamente este capítulo, utilize a seguinte forma:


MATA, Jhonatan. A vida virou uma live: reflexões sobre o conceito de amadoris-
mo e transmissão ao vivo a partir das lives musicais num contexto de pandemia.
In: ROCHA, Adriano Medeiros da; LAIA, Evandro José Medeiros (Org.). audiovi-
sual revolucionário. São Paulo: Editora dos Frades, 2021.
83 Jornalista, Doutor em Comunicação pela Universidade Federal do Rio
de Janeiro – Ecopós UFRJ, com Doutorado Sanduíche-Capes realizado na Blan-
querna School de Barcelona. TAE e Mestre em Comunicação pela Universidade
Federal de Juiz de Fora – UFJF. Autor dos livros Um telejornal pra chamar de seu
(Insular, 2013) e O Amador no audiovisual (Editora UFJF, 2020). Coordenador do
Projeto TPA “Música para olhos e ouvidos: a televisão revista pela música brasilei-
ra”. E-mail: jhonatanmata@yahoo.com.br.
audiovisual revolucionário 369

A necessidade de isolamento social trazida pela pandemia


causada pelo coronavírus no ano de 2020 promoveu como espécie
de “contraponto terapêutico” um formato de transmissão ao vivo
também disseminado em escala mundial: as lives84. Caracterizadas
como uma transmissão de áudio e vídeo na internet em tempo real,
geralmente feita por meio das redes sociais, as lives amenizaram, ao
menos em promessa, as restrições de contato físico cumpridas em
maior ou maior escala em cada região do globo, agrupando milhões
de pessoas de forma não presencial. Foi o caso da iniciativa “One
world: together at home” (“Um mundo: juntos em casa”), que ficou
conhecida como a “live das lives” com pico de 600 mil visualizações
simultâneas no dia 18/4/20. Organizado pela cantora pop Lady Gaga
(fig.1), em conjunto com a Organização Mundial da Saúde (OMS), o
gigantesco festival de lives contou com artistas de todo o mundo, de
estilos musicais distintos, em 8 horas de programação, entre 15h e
23h e arrecadando US$ 127,9 milhões.85 O festival contou com a par-
ticipação de músicos consagrados, como Paul McCartney, Elton John,
Stevie Wonder e The Rolling Stones, entre outros, e foi exibido em

84 Live, em português, significa, no contexto digital, “ao vivo”. Na lingua-


gem da internet, a expressão passou a caracterizar as transmissões ao vivo feitas
por meio das redes sociais. As lives são feitas de forma simples e ágil, geralmente
sem limites de tempo de exibição ou de quantidade de espectadores, que as acom-
panham via celular ou computador. Geralmente há um espaço específico criado
para a transmissão e os seguidores do perfil recebem notificações de que ela está
acontecendo naquele momento. Informação disponível em: https://www.techtu-
do.com.br/noticias/2020/03/o-que-e-uma-live-saiba-tudo-sobre-as-transmis-
soes-ao-vivo-na-internet.ghtml.
85 O valor arrecadado foi divulgado no Twitter da ONG Global Citizen e
será destinado para ajudar os profissionais de saúde que lutam contra a pandemia
da covid-19. Disponível em: https://www.theguardian.com/music/2020/apr/20/
one-world-together-at-home-concert-lady-gaga-raises-127m-coronavirus-relie-
fhttps://www.theguardian.com/music/2020/apr/20/one-world-together-at-ho-
me-concert-lady-gaga-raises-127m-coronavirus-relief.
370 Jhonatan Mata audiovisual revolucionário 371

plataformas como Youtube, Facebook, Instagram e Twitter. No Brasil, A explosão das transmissões ao vivo não tem precedente. Se-
o evento também foi transmitido pelos canais de televisão MTV, Co- gundo dados do YouTube obtidos pela Revista Exame86, as buscas por
medy Central e Paramount Channel. conteúdo ao vivo cresceram 4.900% no Brasil na quarentena. Nos
Figura 1 – Lady Gaga se apresentando para o One World: Together meses de março e abril, foram aproximadamente 3,5 bilhões de mi-
at Home nutos de conteúdo por dia na plataforma. De acordo com a diretora
do YouTube para América Latina e Canadá, Amy Singer, que coordena
a operação em mais de 30 países, as transmissões ao vivo oferecem a
artistas e empresas a oportunidade de se conectar com o público de
forma mais natural. A diretora adianta que a visualização de vídeos
será o “novo normal”, mesmo num futuro pós-isolamento:

Há um sentimento de comunidade que as pes-


soas encontram nos vídeos neste período de
distanciamento social. Isso elevou os vídeos
Fotografia: Um mundo de cidadão global: Toge / AFP via Getty Images ao vivo a um novo patamar. [...] O que impul-
siona o formato é a espontaneidade. No Brasil,
as lives de música são as maiores do mundo
Entretanto, cumpre destacar o cenário singular do Brasil na todo. Os artistas estão reunindo pessoas de
realização e consumo de lives musicais durante o período de pan- uma forma que nunca vimos antes. É por isso
que acreditamos que não seja algo passageiro.
demia. Das dez maiores lives da história do YouTube, todas realiza- (SINGER, 2020. Disponível em: https://exame.
das entre abril e maio de 2020, sete são brasileiras. O país se tornou com/revista-exame/o-mundo-e-uma-live/.
terreno fértil para o formato, o que nos fez questionar, inclusive, o
título de “live das lives” da iniciativa internacional citada acima. Se Diante da necessidade de análise do boom de lives no cenário
levarmos em conta o número de nações mobilizadas on-line, talvez o mundial e de suas nuances peculiares no Brasil e no âmbito das ati-
primeiro lugar no pódio permaneça com a live “One World: Together vidades realizadas junto ao Projeto “Música para olhos e ouvidos: a
at Home”, por seu alcance global. Porém, se o critério de julgamento televisão revista pela música brasileira”, desenvolvido na Universida-
levar em conta o número de acessos simultâneos, a produção inter- de Federal de Juiz de Fora (UFJF), voltamos nossas retinas e tímpanos
nacional, com 600 mil usuários logados ao mesmo tempo, passa lon- para um recorte específico de sete lives nacionais, realizadas no mês
ge das lives de todos os cantores brasileiros de nosso recorte, como de abril de 2020.
Marília Mendonça (3,31 milhões), Jorge e Mateus (3,24 milhões),
Gustavo Lima (2,77 milhões), Sandy & Junior (2,55 milhões). 86 Disponível em: https://exame.com/revista-exame/o-mundo-e-uma-
-live/.
372 Jhonatan Mata audiovisual revolucionário 373

A fatia a que nos dedicamos neste trabalho tem justificativas possui “estratégias sensíveis” particulares, reforçadas pelo uso do re-
múltiplas para existir, a saber: 1- as produções estão entre as dez curso do “ao vivo”, merece atenção especial. Bem como notas sobre
maiores audiências do mundo da história do YouTube, trazendo im- a cultura musical e audiovisual no Brasil e sobre as peculiaridades
portantes questões de discussão sobre o engajamento e consumo que polos (mais dispostos que opostos) amador e profissional en-
de música nacional, bem como uso de plataformas digitais no Brasil; gendram são pontos que não podemos desprezar e que irão afinar a
2- todas as lives mais vistas trazem a música como produto ofertado leitura de sons e imagens que se descortinará em seguida.
– algo que diz muito sobre usos e preferências do formato no país e
no mundo; 3- os dados jogam luz sobre o valor contemporâneo do
audiovisual num país cuja cultura oral se sobressai frente à cultura da Ao vivo e informal: estratégias de construção de
escrita; 4- o recorte pode, ainda, ser vislumbrado como valioso sin- um audiovisual visceral
toma sobre formas de ocupação do tempo e entretenimento em um
período atípico de isolamento social. Nosso objetivo principal con-
Nossa análise se afina sob a premissa basilar de que a pes-
siste em perceber que tipos de evocações audiovisuais são dirigidas
quisa acadêmica precisa estar situada no tempo-espaço em que se
ao público, quando os artistas elencados se “manifestam” a plateias insere, no qual contextos e camadas interpretativas não podem ser
virtuais gigantescas. Como são construídos cenários, diálogos com a vistos com os óculos da dissociação. Essa diretriz se reflete em diver-
audiência, posturas de palco, ainda que este palco possa ser o am- sos procedimentos aqui adotados, incluindo a escolha da metodo-
biente doméstico dos músicos? Como a informalidade, o improviso logia para leitura das lives em questão e a utilização de dezenas de
e a naturalidade – aqui vistos como sinônimos do próprio conceito hipertextos (artigos, análises audiovisuais e podcasts) criados sobre
de live e o sentido de comunidade – são construídos a partir desses e no momento da pandemia. Este percurso contou com o suporte da
produtos, realizados, em tese, por artistas profissionais que agora análise da materialidade audiovisual, desenvolvida por Iluska Couti-
lançam mão de “estratégias amadoras” para gerar identificação com nho (2016), que será melhor detalhada no próximo tópico. Por ora,
o público? cumpre destacar que o método foi eleito, sobretudo, por se mostrar
Antes, porém, da análise dos produtos selecionados, julgamos capaz de associar o fazer científico das especificidades dos produtos
pertinente transitar pelo arcabouço teórico que alicerçou a análise dos espelhos. Ou seja, se eu estou no espelho e estou com uma iluminação azul,
aqui tecida. A existência de um “bios midiático”87 (SODRÉ, 2002), que sou o cidadão azul do espelho. É esse azul, vermelho ou roxo que a mídia ilumina
que é, propriamente, o bios midiático. O bios é uma qualificação, uma iluminação
particular. Um lado de pura aparência que permite contágio e refração infinitos:
87 O espelho reflete e ao mesmo tempo encerra a imagem em sua super- uma imagem remete a outra, que remete a outra, infinitamente, e até eu recebê-
fície rasa. Não tem profundidade de vida, e esse estar encerrado numa superfície -las já estou tão acostumado a elas que eu próprio já sou imagem (SODRÉ apud
rasa é a condição do homem que vive no bios midiático. É como Alice no país MOURA, 2002, p.89).
374 Jhonatan Mata audiovisual revolucionário 375

audiovisuais, em suas etapas de feitio e circulação. Em seus conjun- ouro a ser alcançada por todo artista que se propôs a criar e transmi-
tos discursivos que criam determinada “unidade” formada a partir tir suas lives em rede: reunir, aglutinar, aglomerar o “povo inteiro” –
da junção de texto, som, imagem, tempo e edição, que aqui, espe- propostas tão condenáveis num contexto de disseminação viral, mas
cificamente, caracterizamos como uma “dramaturgia da pandemia”. totalmente permitidas num ambiente de virtualidades. Essa reunião
acaba por ativar, em escala mundial, aquela que seria a característica
Cabe salientar, ainda, o caráter germinal das reflexões aqui
fundante dos conteúdos ao vivo, já que “o traço distintivo da trans-
tecidas, que tratam de um objeto não apenas recente para os es-
missão direta é a recepção, por parte de espectadores situados em
tudos da comunicação como também de uma projeção e utilização
lugares muito distantes, de eventos que estão acontecendo nesse
deste formato sem precedentes, conforme já retratamos. Soma-se a
mesmo instante” (MACHADO, 2000, p. 125). Ao analisar o recurso
tal “combo de ineditismos” a causa maior de toda a movimentação
do “ao vivo” diante das novas possibilidades tecnológicas na era di-
dos mercados globais do século XXI, dentre os quais o mercado de
gital, Eugênio Bucci propõe a hipótese da “instância da imagem ao
audiovisual se insere, que é a própria pandemia. Palavra conhecida,
vivo” a partir da descrição da natureza do espaço público, entendido
mas até então não experimentada por boa parte dos viventes do pla-
aqui como um ambiente comunicacional, mais que institucional ou
neta na contemporaneidade. Ao abordarmos uma crise econômica
jurídico. Nas palavras do pesquisador (2009, p. 65), a instância da
generalizada, gerada por fatores como o fechamento de fronteiras,
imagem ao vivo é apresentada “não como sendo a imagem ao vivo
desgastes diplomáticos, suspensão de atividades da indústria e co-
em si mesma, mas o plano de representação em que ela se inscreve,
mércio, anorexia do setor de turismo dos países, com um terço da
plano este que se põe como o principal fator de unificação do espaço
população mundial dentro de casa em abril de 2020, é também ne-
público em seu sentido mais amplo”. Assim, acreditamos que as lives
cessário sublinhar o caminho oposto experimentado pelas indústrias
tenham como promessa principal, ainda que de modo metafórico, a
da informação e entretenimento, com aumentos generosos em ba-
ideia de reduzir distâncias e aproximar pessoas, livres dos julgamen-
ses de assinantes e nas audiências em serviços de streaming, plata-
tos que os encontros físicos simbolizaram, em um período no qual
formas de audiovisual e canais de TV aberta e por assinatura, entre
se tornaram sinônimo de descompromisso para com o coletivo em
outros setores, conforme apuração divulgada pela Revista Exame
escala mundial.
(2020)88.
Em nível nacional – e esta foi uma das principais motivações
As origens etimológicas do termo “pandemia” remetem à
para nosso estudo – os usos do formato promoveram um “retorno
ideia de “povo inteiro”. Que, curiosamente, parece ser a meta de
às origens” da palavra live. Algo para além do contexto digital, sinô-
88 Dados sobre o “efeito coronavírus” no aumento de audiências múl- nimo de “transmissão ao vivo” e mais próximo da tradução conven-
tiplas, tráfego de dados e uso de serviços de streaming podem ser acessados em:
cional do termo em inglês, sinônimo de vida ou habitação. Partimos
https://exame.com/revista-exame/o-mundo-e-uma-live/.
376 Jhonatan Mata audiovisual revolucionário 377

do pressuposto de que, no Brasil, as lives atuaram como bálsamo nas redes sociais, teve na recondução do conceito de morte para um
discursivo para confortar (e mesmo confrontar) a própria noção de lugar de tabu a sua principal estratégia. O resultado nos meios de
morte. Isso porque não é forçoso reconhecer, desde o início da pan- comunicação, visto em seus sintomas mais severos no audiovisual e,
demia no país, uma postura do Governo Federal, sobretudo na figura sobretudo, no telejornalismo, foi um clamor intermitente para que
do presidente Jair Bolsonaro, em voltar suas preocupações para os os comunicados sobre número de mortes e letalidade da doença
impactos da pandemia e, consequentemente, do isolamento social, anunciados em tela fossem minorados ou substituídos pelos anún-
na economia nacional. Sob essa ótica, a ideia da morte, que paira cios de números de curados e também por produções mais “otimis-
sobre a discussão a respeito de qualquer doença (e que foi elevada tas”, num flerte com as softnews, que incluíssem ou não a temática
à enésima potência em função da pandemia) foi vislumbrada, prio- da pandemia.
ritariamente, a partir da iminência da “morte” do empresariado. E,
É interessante perceber que os critérios de noticiabilidade90
com esta, a consequente morte do trabalhador por falta de recursos
e valores notícia (TRAQUINA, 2005), imersos na suspensão do coti-
para a subsistência. As atenções sobre as possibilidades de morte e diano em função da pandemia, no caso do Brasil, não saíram ilesos a
padecimento em função de complicações trazidas pela própria doen- determinadas contaminações e distorções. Na concepção de Simmel
ça, cuja taxa de mortalidade hospitalar89 no país esteve em torno dos (1998), a morte é uma temática estrutural para o homem. Nelson
9%, ficaram em segundo plano nas propostas de enfrentamento ao Traquina define a morte como o primeiro valor-notícia. Para o autor,
vírus no país. (2005, v. 2, p. 79) “podemos dizer que todos nós seremos notícias
A postura discursiva do Governo brasileiro em relação à pan- pelo menos uma vez na vida – no dia seguinte à morte, ou nas pági-
demia, na contramão de diversos países que a enfrentaram e das di- nas interiores ou com destaque da primeira página”. Interditada prin-
retrizes da própria Organização Mundial de Saúde, se não foi a causa cipalmente no audiovisual, a ideia de morte, se não banida, foi ao
maior (problema de pesquisa que resultaria em outro interessante menos “higienizada” quando transportada para o ambiente das lives,
trabalho) estimulou em muito a adoção de uma leitura enviesada numa “habitação”, ou bios midiático91 (SODRÉ, 2002) particular, onde
dos fatos. A narrativa, adotada por parcela da população e com eco 90 Restrições ligadas à organização do trabalho jornalístico, sobre as quais
se criam convenções profissionais, para definir o que é notícia. Englobam desde o
89 Utilizamos aqui o termo “taxa de mortalidade hospitalar” e não “taxa uso das fontes até a seleção dos acontecimentos. Impacto sobre a nação, interesse
de mortalidade” em função da baixa testagem no país, que acaba por comprome- coletivo e quantidade de pessoas envolvidas no fato são exemplos destes critérios.
ter o resultado final da análise, de acordo com estudo liderado pelo Laboratório (TRAQUINA, 2005, p. 29)
de Inteligência em Saúde da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, ligado à 91 O espelho reflete e ao mesmo tempo encerra a imagem em sua super-
Universidade de São Paulo (USP), coordenado pelo professor Domingos Alves. fície rasa. Não tem profundidade de vida, e esse estar encerrado numa superfície
Para o pesquisador, como há muito menos casos notificados, a taxa de letalidade rasa é a condição do homem que vive no bios midiático. É como Alice no país
da doença que vemos nos dados oficiais é maior. Disponível em: https://www.bbc. dos espelhos. Ou seja, se eu estou no espelho e estou com uma iluminação azul,
com/portuguese/brasil-52732620. sou o cidadão azul do espelho. É esse azul, vermelho ou roxo que a mídia ilumina
378 Jhonatan Mata audiovisual revolucionário 379

as promessas narrativas, ao menos em tese, eram a de um “lugar” literária O Amante, de Marguerite Duras, e o amador presente em
informal, natural, doméstico, alegre e descontraído, onde o vírus e a diversas narrativas audiovisuais.
morte não têm lugar. E onde o aparato técnico e as grandes equipes
Entregando-nos aos perigos, inconstâncias,
humanas, que tradicionalmente acompanham os artistas aqui anali- mas também à importância das generaliza-
sados, foram substituídos por uma proposta enxertada, que transita ções, temos, em ambos, uma “espécie” de
narrador experimental, habitante de histórias
entre o profissional e o amador, na busca por um audiovisual visceral, fragmentadas, mudanças de pontos de vista.
vivo, com um pé na catarse do público e outro no engajamento do Um “narrador-primeira-pessoa”, que caminha
pela trama - de Saigon ou do “planeta-vídeo”
mesmo, como perceberemos na análise dos vídeos. de forma intensa, quase alegórica, realçando
afetos ou rancores com pegadas discursivas
Tendo por base a obra As estratégias Sensíveis, de Muniz So- profundas e, ao mesmo tempo, desenraizados
do “campo especializado”. [...] Há outra “as-
dré (2006), levamos em consideração que a suposta aura amadora sinatura” compartilhada, conformada como
das lives, mesmo que veiculada em espaços pré-estabelecidos com um diferencial do produto, que, segundo nos-
sa hipótese, corresponde justamente a uma
suas respectivas estratégias discursivas, opera com a relação entre “não-estratégia” dos modos de atuar, produzir
duas subjetividades, ou seja, os interlocutores. Sodré resume, com conteúdos e formatos em áudio e vídeo e/ou
representar os acontecimentos. (MATA, 2020,
uma interrogação, o que seriam as “estratégias sensíveis” (2006, p. p. 52)
9): “Quem é, para mim, este outro com quem eu falo e vice-versa?”.
O questionamento, que não é elucidado apenas com a racionalida- Na publicação, contemplada com edital público da Editora
de linguística ou lógicas argumentativas da comunicação, encabeça a UFJF, o autor explica que, a partir da inserção de processos e recursos
“estratégia”, já que configura jogos de vinculação dos atos discursi- vistos como amadores num ambiente profissional, os valores simbó-
vos às relações de localização e afetação dos sujeitos no interior da licos e afetos ganham destaque, já que “não temos mais um corpo
linguagem. Esta suposta “indefinição de fronteiras” entre amadoris- posto a trabalhar e uma alma independente de paixões, mas uma
mo e profissionalismo apontada com a “alma das lives” na contem- alma posta a trabalhar” (MATA, 2020, p. 65.). E é justamente esse
poraneidade reaviva questões já analisadas na recém-lançada obra “trabalho da alma”, construção que soa romântica, mas por nós pode
O amador no audiovisual (MATA, 2020). Num dos trechos do livro, ser vislumbrada como “a produção de si” que pretendemos mapear
Mata tece uma analogia entre o amante-amador da premiada obra a análise apresentada. Isso porque operamos com a ideia de que as
lives em questão retiram a produção amadora de seu romantizado
que é, propriamente, o bios midiático. O bios é uma qualificação, uma iluminação
particular. Um lado de pura aparência que permite contágio e refração infinitos: núcleo familiar e despolitizado e as colocam num espaço-tempo de
uma imagem remete a outra, que remete a outra, infinitamente, e até eu recebê- atuação pública. E, simultaneamente, tentam forjar, nesse espaço hí-
-las já estou tão acostumado a elas que eu próprio já sou imagem (SODRÉ apud
MOURA, 2002, p.89).
brido, um ambiente doméstico, com cenários e modos de apresentar
380 Jhonatan Mata audiovisual revolucionário 381

que tomam emprestados cômodos da casa da celebridade que canta, das lojas físicas. E até o Papa Francisco transmitindo, pela internet, a
equipe pequena com integrantes da família auxiliando na produção, tradicional missa de Páscoa.
entre outros “aparatos”, utilizados para reforçar um sentido de “estar
Em âmbito familiar, as lives substituíram conversas de texto e
em casa”, mesmo que com as portas virtuais abertas para mais de
envio de áudios, colocando integrantes de um círculo familiar e de
três milhões de pessoas ao mesmo tempo.
amizades numa espécie de reality show, em que o distanciamento
social foi substituído por sessões diárias de conversa entre as câme-
Só para os (milhões de) íntimos: uma análise au- ras, levando, inclusive, à saturação e aversão ao formato por parte de
diovisual das maiores lives do planeta alguns. Voltando nosso olhar para as dez maiores lives do planeta, to-
das musicais e, dentre estas, sete pertencentes a artistas nacionais,
Assumimos nesta pesquisa uma noção de “cultura visual” vemos revigorado o conceito de “ativismo musical”. O termo foi de-
muito próxima daquela conceituada pelo professor de Artes Visuais senvolvido pelos organizadores da obra Cidades Musicais, Cíntia San-
da Universidade Federal de Goiás Raimundo Martins (2012, p. 70). martin Fernandes e Micael Herschmann, quando ressaltam o papel
O pesquisador a coloca num campo emergente, transdisciplinar e político da música (2018, p. 7), reafirmando a importância da música
transmetodológico, sob um prisma que discute e trata som e imagem brasileira na construção de imaginários relevantes nas e das cidades.
para além de seu valor estético. Dessa forma, buscamos “compreen- Para analisar os níveis deste ativismo e outras possíveis narrativas em
der o papel da imagem na vida da cultura” (MARTINS, 2012, p. 26), tempos de pandemia, quando o caminhar pelas cidades foi inviabili-
inserindo nosso objeto numa espécie de “dramaturgia da pandemia”. zado pelo isolamento social, escolhemos a análise da materialidade
Esta foi composta, dentre muitos outros elementos, pela onipresen- audiovisual, proposta por Coutinho (2016). A pesquisadora explica
ça das máscaras de proteção faciais nas ruas e nas telas, controles de que os procedimentos metodológicos envolveriam inicialmente
trânsito de pessoas entre fronteiras territoriais regionais, nacionais
a identificação objeto empírico a ser investi-
e internacionais e também pela utilização de meios de comunicação gado, e o estabelecimento de eixos e itens de
para informar e estabelecer contatos. Nessa dramaturgia, é válido avaliação tendo em vista as questões de pes-
quisa, o referencial teórico utilizado e ainda,
destacar que o papel singular das lives pode ser visualizado também mas não menos importante, os elementos pa-
ratextuais que se inscrevem em uma determi-
em produções não musicais, o que nos levou ao título do artigo, já
nada materialidade audiovisual (COUTINHO,
que “a vida virou uma live”, com aulas de yoga a disciplinas de facul- 2016, p. 10).
dades sendo ofertadas no formato, lojas on-line de todos os tipos
inaugurando o conceito de shopstreaming com vendedores ofere- Uma vez definido nosso objeto, que trata de sete das dez maio-
cendo seus produtos em tempo real para compensar o fechamento res lives do planeta, produzidas por artistas brasileiros do campo da
382 Jhonatan Mata audiovisual revolucionário 383

música, ressaltamos a forma de obtenção do material de análise, sendo o primeiro anterior à obra e o segundo referido a materiais
feita exclusivamente por meio do repositório de compartilhamento que circulam fora dela. Dessa forma, ao classificarmos as lives aqui
on-line YouTube. Uma vez já explicitadas nossas ancoragens teóricas, analisadas como textos audiovisuais, as repercussões múltiplas que
procedemos à definição de eixos e itens de avaliação dos produtos, tais produtos propiciaram nas redes, em função da divulgação das
que totalizam 32 horas de audiovisual transmitido. transmissões e de incidentes ou fatos que marcaram cada produção,
foram levados em consideração. Quais sentidos estes produtos pro-
puseram a seus públicos e para suportes e canais nos quais estão ins-
critos? Como as produções mobilizaram a crítica midiática, especiali-
zada ou amadora? Operando neste terreno e na tentativa de operar
com uma ficha de leitura de materialidade audiovisual, nossos eixos
de avaliação das lives ficaram assim definidos:

1- Espontaneidade, informalidade e domesticidade: o bios mi-


diático das lives
2- Níveis de abertura para participação do público/audiência: o
papel político das lives
3- A instância da imagem ao vivo e a ideia de tempo real

Espontaneidade, informalidade e domesticidade:


Fonte: elaborado pelo autor
o bios midiático das lives do Brasil
A criação dos eixos aqui propostos levou em consideração os
conceitos e promessas já explicitados do formato live, bem como a Levando-se em consideração que o bios midiático pontua-
aplicação destes num cenário atípico de pandemia. A ideia de pa- do por Sodré (2002) é um “espaço” com iluminação particular, que
ratexto, descrita por Gerard Genete (2009) e aplicada por Coutinho permite contágios e refrações infinitas, percebemos que a luz lança-
(2016) à análise da materialidade audiovisual, foi norteadora no de- da sobre as produções analisadas se ancora em um ambiente que
correr de nosso contato com o recorte. Refere-se ao material que mescla domesticidade e ostentação. Essa mistura, aqui vista por nós
acompanha o texto e que contribui para sua leitura/interpretação. como “estratégia sensível” (Sodré, 2006), cria uma nova racionalida-
Este se dividiria em dois grandes subconjuntos, peritexto e epitexto, de inerente às tecnologias da informação. Uma nova cidade humana,
384 Jhonatan Mata audiovisual revolucionário 385

que implode a oposição logos/pathos (razão e paixão). E mostra a classificar a informalidade e naturalidade nada convencional dos ar-
urgência de outra posição interpretativa que atue para além da in- tistas brasileiros e seus respectivos shows ao vivo. Um contraste sub-
teração entre forças mecânicas e valorize os dispositivos de afeto, linhado com marca-texto quando comparamos, imageticamente, a
como a simpatia, a antipatia, o amor. Sodré cita Giberto Freyre e sua apresentação do cantor Charlie Puth (fig.3) em seu modesto quarto,
tentativa de análise da sociedade brasileira para além do poder do com sua cama bagunçada (que viralizou em formato de memes) ou
Estado e privilegiando afetos, formas e até odores em seus estudos. mesmo de Lady Gaga sozinha em sua casa com as lives de Marília
É nesse contexto que refazemos a pergunta feita, via podcast,92 por Mendonça ou da dupla Jorge e Mateus. Essas últimas, que encabe-
Braulio Lorentz e Rodrigo Ortega, respectivamente editor e repórter çam, respectivamente, o primeiro e segundo lugar das maiores lives
de Pop, Arte e Música no portal G1: “Por que as lives gringas são da história, trazem detalhes opostos ao conceito fundador de infor-
mais sóbrias que as brasileiras?” (2020). Na produção, em que os malidade das lives que são sintomáticos e representativos de nos-
analistas discutem a febre das lives no Brasil na pandemia, levanta-se so recorte. As estratégias para fazer “parecer estar em casa” trazem
uma questão pertinente ao nosso estudo: a ambientação das lives Marília Mendonça em ambiente bem adornado, com direito a uma
brasileiras aponta para uma distinção que não é apenas técnica, se poltrona vitoriana (fig.2), para que a “rainha da sofrência” – e agora
comparada às lives “estrangeiras”. As lives nacionais foram, no geral, também “rainha das lives” – se acomode. Cumpre lembrar que o 8º
superproduzidas. E contaram, em alguns casos, com aglomeração de lugar no ranking das maiores lives também pertence à cantora, com
pessoas da equipe, realização de churrascos e consumo de bebidas produção realizada na área externa de sua mansão, no dia 9 de maio
alcoólicas. Além da exibição de cenários luxuosos, contrastando com (fig.4).
a ideia de “ambiente doméstico” experimentada pela grande maioria
Figuras 2, 3 e 4 – Diferenças de “cenários” informais. Marília Men-
da população de um país onde a desigualdade social e econômica é donça e Charlie Puth
uma das maiores do mundo.

Criamos a expressão “formato intimista golden prime”93 para

92 Disponível em: iframesrc=”https://audioglobo.globo.com/widget/wid-


get.html?audio=299288&podcast=537&color=C4170C” width=”648”
height=”253” frameborder=”0” scrolling=”no”></iframe>.
93 Cumpre mencionar aqui duas lives que não entraram no recorte, mas
também são sintomáticas do formato “intimista golden prime” que conceituamos:
a da cantora Ivete Sangalo, que tentou fugir da ostentação de cenários aqui apon-
tados e apelou para a informalidade. Para isso, a intérprete cantou da cozinha de show, em 25/4/20, em função da repercussão. E a cantora Anitta, que mobilizou
casa e utilizou, de forma espontânea e não publicitária, um pijama, avaliado em a mídia com a live #LatinosUnidos, que ocorreu em sua casa e chamou a atenção
R$ 395, cujo estoque de 400 unidades se acabou três dias após a realização do pelo número de cenários e trocas de figurino durante o show, em 23/5/20.
386 Jhonatan Mata audiovisual revolucionário 387

Leonardo com Eduardo Costa, com superprodução de cenário e inti-


tulada “Cabaré em casa”, segue a linha intimista golden prime, com
direito a grandes cortinas vermelhas de veludo, muitos adereços cê-
nicos dourados e letras gigantes formando com luzes a palavra “caba-
ré”, além de mesa montada ao centro com grande sorte de bebidas
alcoólicas e freezer. As lives de Gustavo Lima (fig.5), Jorge & Mateus
(fig.6) e Leonardo e Eduardo Costa (fig.7) foram patrocinadas, res-
pectivamente, pelas marcas de cerveja Bohemia, Brahma e Petra.94

Figuras 5,6 e 7 – Consumo de álcool, doações de alimentos, osten-


tação e aglomerações.

(Foto: reprodução Youtube)

A aglomeração de 18 pessoas nos bastidores marcou a reper-


cussão da live da dupla Jorge e Mateus, a segunda maior do mundo
realizada numa “garagem-cenário” (em alusão ao ambiente em que
a dupla começou a se apresentar, a garagem do pai de Mateus), bem
produzida, que inclusive dá nome à live. Na transmissão de Gustavo
Lima, a quarta maior live do planeta, a polêmica (e também contra-
ponto ao conceito de doméstico e de isolamento social) ficou por
conta da contratação de garçons para servirem churrasco e cerveja
aos presentes na live, que durou mais de sete horas. A produção,
denominada “Buteco em casa”, realizada em Goiás na mansão de 15
94 A Ambev acredita que 250 milhões de pessoas já assistiram a shows
mil metros quadrados do cantor, rendeu advertência do Conar (Con- sertanejos “ao vivo” patrocinados pela empresa, mais acostumada a patrocinar
selho Nacional de Autorregulamentação Publicitária) em função do rodeios e shows de música para promover suas marcas, de acordo com o vice-
-presidente de marcas, Ricardo Dias. Disponível em: https://www.uol.com.br/tilt/
alto consumo de bebida alcóolica durante a transmissão. A live de noticias/reuters/2020/05/02/show-ministro-ceo-lives-viraram-novo-horario-no-
bre-do-brasil-diz-yt.htm.
388 Jhonatan Mata audiovisual revolucionário 389

produção dos arranjos, repertórios e cenários: “Isso aqui a gente


montou sozinho no final de semana. Diretoria de arte de Mônica
Belini (esposa de Júnior), Noeli operadora de teleprompter (mãe
da dupla). E nós temos um hold muito chique, que é o Xororó”, se
referindo ao cantor sertanejo e pai da dupla.
Figuras 8 e 9 – Lives das duplas Sandy e Júnior e Henrique & Julia-
no: domesticidades possíveis

Lives de Gustavo Lima e das duplas Jorge e Mateus e Eduardo Costa e Leonardo
(Foto: reprodução Youtube)

O cantor e produtor musical Lucas Silveira, em entrevista


para o podcast do G1, ponderou que as lives do “mainstream,
sertanejo, popularzão” (em suas palavras) trouxeram produções
profissionais, mas ao mesmo tempo receberam muita crítica por
mobilizar equipes e pela falta de um ar intimista. “Minha live será (Foto: reprodução Youtube)
uma monografia, pra eu mostrar que posso fazer uma transmis-
são de qualidade sem aglomeração. A live como abertura de uma Em contraste com casas luxuosas e espaços com produção
janela de casa”, apontou (2020). As lives da dupla Sandy e Júnior profissional que em pouco diferem de gravações de DVDs musicais
(fig.8) e de Henrique & Juliano (fig.9) foram as únicas de nosso com apelo para informalidade artificial de garagens e varandas gour-
recorte a apresentar um ambiente minimamente “doméstico e met, a “naturalidade amadora” das lives ficou por conta da postu-
improvisado” em termos de cenário, na casa de Sandy, em Cam- ra dos cantores. Em suas “conversas” com a audiência, os artistas
pinas, e na cozinha da dupla masculina. Na própria live, a can- expuseram impasses do ambiente doméstico, bem como um tom
tora Sandy salientou ao público que apenas a família atuou na de interlocução casual. Exemplos são Marília Mendonça e Gustavo
390 Jhonatan Mata audiovisual revolucionário 391

Lima, que abusaram de palavrões e piadas. Marília reclamou do ar- de proteção, dentre outros itens. Cinco das sete lives contaram com
-condicionado de sua casa e confessou que ela mesma havia feito o intérprete de libras, ampliando a acessibilidade das produções au-
penteado para o show. Em outro momento, a cantora troca o tênis diovisuais, como analisa Scoralick (2017) em sua tese. No que diz
por chinelo, citando a marca do calçado, parceira no projeto. Gustavo respeito à participação do público, as lives brasileiras seguiram cami-
Lima bebeu vodca no gargalo, cuspiu a bebida no chão e emendou: nho próprio e permitiram chats em tempo real com a audiência, que
“se amanhã eu parar na UTI vocês me socorrem”. opinava a respeito dos shows e também sobre a pandemia, o isola-
mento e a crise política do Brasil. Se, nos shows, percebemos uma
“informalidade estrategicamente pensada”, em cenários de domesti-
Níveis de abertura para participação do público/ cidade artificial, foi nesses espaços de comentários públicos abertos,
audiência: o papel político das lives não apenas de nosso recorte, que a informalidade “in natura” se fez
presente, pautando inclusive a imprensa nacional. Muito em função
As lives analisadas acabaram por dialogar com as projeções dos debates políticos e clamores populares que, não visualizados nas
que são feitas em relação à própria televisão e ao audiovisual e suas bocas dos artistas, fizeram coro na voz do público, subindo hashtags
narrativas do/com o povo, como seu poder de “incorporar as aspi- de indignação contra o governo (#forabolsonaro). Ou cobrando das
rações da população” (BECKER, 2015) e “estruturar o conhecido e próprias empresas patrocinadoras das lives a devolução de empre-
organizar o diferente” (FRANÇA, 2009). É interessante, ainda, pon- gos extintos em função da pandemia, como o fizeram internautas/ex-
tuar que esse universo popular se pauta geralmente em uma ideia -funcionários em críticas a Ricardo Eletro (loja de eletrodomésticos),
de periferia, seja esta discursiva, seja geográfica, contribuindo (ou ao na live do cantor Wesley Safadão,95 que durou dez horas e teve pico
menos tentando colaborar) para o ativismo musical anunciado por de 1,8 milhão de visualizações simultâneas. Todas essas mensagens
SanMartin e Herschmann (2018). compartilhadas (pela indústria da informação e pelo público) podem
ser categorizadas como elementos paratextuais (GENETTE, 1997, p.
Esta função pode ser percebida sob alguns prismas. O primei- 4-5), ou seja, recriações ou reutilizações da “obra” original – no caso,
ro deles diz respeito ao caráter assistencial das iniciativas, com tone- as lives.
ladas de alimentos arrecadados, para atender aos milhares de brasi-
leiros em estado de vulnerabilidade social em função da pandemia e
95 Devido à pandemia, a rede de varejos teve que fechar algumas de suas
do isolamento. Todos os sete projetos tiveram como destino oficial lojas e, com isso, demitir funcionários. Como alguns deles não haviam recebido o
das arrecadações o projeto Mesa Brasil – Rede Nacional de Bancos dinheiro acordado no momento da rescisão, aproveitaram a live de Safadão para
cobrar a empresa, pedindo, inclusive, que o artista interviesse em favor deles. Dis-
de Alimentos, do Sesc (que atua contra a fome e o desperdício), além
ponível em: https://www.otempo.com.br/diversao/live-de-safadao-dura-10-ho-
de arrecadações pontuais para compra de álcool em gel, máscaras ras-e-tem-publico-3-vezes-maior-que-one-world-together-1.2326812.
392 Jhonatan Mata audiovisual revolucionário 393

A instância da imagem ao vivo e a ideia de tempo No caso das lives internacionais, o grupo de k-pop sul-coreano
BTS, que foi classificado nos postos 7 e 10 das maiores lives, ofertou
real
ao público trechos de shows gravados entre 2014 e 2016. Reprodu-
zidas via YouTube em horário agendado nos dias 18 e 19 de abril, as
Neste tópico de nosso percurso, operamos especialmente lives do grupo (que está no topo lista Forbes Korea Power Celebrity
com duas premissas da análise da materialidade audiovisual: as pro- para 2018 e que classifica as celebridades mais poderosas e influen-
messas discursivas ou de laços do recorte e a avaliação mais aberta, tes da Coreia do Sul) não traziam nenhuma interação ao vivo e não
construída a partir da descrição de aspectos que caracterizem aquela permaneceram na plataforma de vídeos após a exibição. Já a live do
materialidade audiovisual como única. Se tomarmos por base que o cantor Andrea Bocelli, intitulada “Music for Hope”, foi transmitida
principal sentido proposto pelo conceito de live é a ideia de um pro- ao vivo da Catedral de Milão, trazendo o cantor executando as can-
duto ofertado simultaneamente ao momento em que é produzido, é ções na igreja vazia, acompanhado apenas de um pianista (fig 10).
necessário recorrer a uma comparação entre as sete lives brasileiras Cumpre ressaltar que o concerto contou com inserção de imagens
e as três não nacionais que completam o ranking das dez maiores pré-gravadas por meio de drones sobrevoando cidades da Itália e do
lives do planeta e ainda a live “One World: together at home”. É jus- mundo afetadas pela pandemia (fig.11). Esses trechos permitiram,
tamente aqui que a ideia de “senso de ao vivo”, que não necessaria- inclusive, entreter o público enquanto o intérprete se deslocava do
mente significa transmissão em tempo real, apontada por Mathias interior para o exterior da Igreja (fig.12), finalizando o show que du-
(2018), nos trouxe reflexão paralela, por deixar explícitas estratégias rou 28 minutos.
opostas das propostas nacionais e internacionais.

As lives nacionais trataram, sem exceção, de produções em


que os artistas atuaram cantando e habitando os espaços em tempo
real. A única distinção se deve ao fato de que alguns deles optaram
por cantar com bases instrumentais gravadas (Marília Mendonça
e a dupla Leonardo e Eduardo Costa) ou misto de instrumentos ao
vivo com pré-gravados, como foi o caso de Jorge & Matheus. Sandy
e Júnior, Henrique e Juliano e Gusttavo Lima operaram com vozes e
instrumentos totalmente ao vivo, pedindo, de antemão ao público,
desculpas pelos equívocos de execução, em função das limitações.
394 Jhonatan Mata audiovisual revolucionário 395

Figuras 10, 11 e 12 – Live do tenor Andrea Bocelli: imagens pré- trechos gravados, com utilização de dublagens, auto-tunes, áudios
-gravadas (ao meio) de diversas outras cidades acometidas pela pré-gravados e edição sonora considerável. Braulio Lorentz e Rodrigo
pandemia facilitam deslocamento ao vivo para área externa da Ortega (2020) classificam esses recursos como “Photoshop sonoro”.
catedral de Milão Segundo os analistas, o formato pré-gravado na live internacional se
fez presente primordialmente por se tratar de uma mobilização de
muitos artistas espalhados pelo globo, com fusos horários distintos.
Para a gerente de programação do Multishow, Bruna Damaison, a
qualidade é fator norteador desta opção.

A vantagem do formato pré-gravado é que


você consegue garantir uma qualidade de áu-
dio e vídeo maior do que o de uma live. A gente
tem visto muitas lives em que você fica depen-
dendo do sinal de internet, do equipamento
que cada um tem na sua casa, o que pode
não garantir uma boa mixagem e qualidade
de conteúdo. Disponível em: iframesrc=”ht-
tps://audioglobo.globo.com/widget/widget.
html?audio=299288&amp;podcast=537&am-
p;color=C4170C” width=”648” height=”253”
frameborder=”0” scrolling=”no”></iframe.

Nesse sentido, pontuamos, diante deste ranking, que a pre-


sença conjunta e simultânea de espectadores consumindo determi-
nada produção é a grande responsável pelo senso de ao vivo no fluxo
audiovisual das lives, maior até que a operação de instrumentos ou
a execução de uma canção em tempo real, em que a produção do
programa cria um caráter de tensão e urgência por meio da edição,
transgredindo regras absolutas de classificação como conteúdo ao
vivo. Levamos em consideração, ainda, a hipótese de Bucci (2009, p.
(Foto: reprodução YouTube) 65) de que as “novas possibilidades tecnológicas da era digital não
A própria live “One World: Together at Home” trouxe muitos revogam esse plano de representação da imagem ao vivo, mas ape-
nas o revigoram, à medida que o problematizam”.
396 Jhonatan Mata audiovisual revolucionário 397

Considerações finais porque os artistas aqui estudados trazem, em sua quase totalidade,
uma biografia marcada por um passado humilde no campo ou em
cidades do interior e um presente de triunfo, na “música muito po-
Este trabalho aborda e é filho da simultaneidade, já que é
pular brasileira” (MENEZES, 2017), termo utilizado para caracterizar
contemporâneo ao momento em que as lives se tornaram “o novo
a dominação do gênero sertanejo numa análise de 134 bilhões de
horário nobre no Brasil”, como apontou Sandra Jimenez, diretora de
execuções de 2014 a 2017, empreendida pela Folha de S.Paulo.
parcerias musicais do YouTube na América Latina. Nessas novas ri-
tualísticas do “ao vivo”, em que os paratextos pululam, as produções Liderando o ranking dos artistas mais visualizados no YouTu-
demarcam e reavivam uma estratégia de identificação e engajamen- be em 2017 (4,1 bilhões de visualizações) e mantendo essa coloca-
to com o público já bastante conhecida: a projeção nas celebridades ção ainda em 2020, à frente de nomes como Michael Jackson e Lady
ou olimpianos, na concepção de Edgar Morin (1977). Uma espécie de Gaga, Marília Mendonça (a verdadeira proprietária da “live das lives”)
“catarse voyeurista”, que faz com que um país que registra um ren- a nós se descortina como estandarte de eloquência dessa estratégia
dimento domiciliar per capita de R$ 1.438,67, em 2019 (de acordo amadora-profissional típica das lives mais visualizadas. Sua colocação
com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua – Pnad em cena consegue agrupar, em nosso entendimento, aquilo que os
Contínua) se realize ofertando audiência a artistas que transmitem núcleos pobres e ricos das telenovelas brasileiras sempre ofertaram
ao vivo suas produções “informais” em mansões e cenários a partir as suas audiências: humor, acessibilidade e autenticidade de um lado
de um “amadorismo profissional”. E se torne o povo mais “liveiro” do e requinte associado aos bens materiais de outro. E gera, tal qual na
mundo, se dividirmos o número de visualizações pela soma dos likes, telenovela, um engajamento pautado na identificação com o passa-
comentários e compartilhamentos. do humilde, o linguajar informal, o uso de chinelos, enquanto canta
A militância como uma “tecnologia do amor” (SODRÉ, 2006), para mais de três milhões de pessoas em uma mansão, realizando
nas lives estudadas, ganha força a partir de um altar sincrético ocu- em tela o desejo de uma vida melhor das classes mais humildes. Nes-
pado majoritariamente (seis das sete lives) por cantores sertanejos, ta narrativa, em que a cantora convoca sua audiência chamando-a de
reafirmando o poder ativista da música brasileira. Isso num ambiente “gado” e “rebanho”, as sensações de pertencimento, espontaneida-
em que predomina a cultura oral sobre a escrita e onde o brasileiro de, intimidade e conexão são potencializadas, tornando as lives mu-
é “educado” pela TV aberta. Acreditando que as estratégias sensí- sicais um contraponto à própria ideia de morte levantada por uma
veis se pautam na ideia de que “a eficácia da razão em certas ações pandemia. E, ao mesmo tempo, subvertendo a ideia de contágio ou
humanas depende dos afetos” (SODRÉ, 2006, p. 44), temos na elo- “viralização” para um campo semiótico distinto daquele “sombrio”
quência como apelo ao lado emocional do discurso argumentativo estampado nos telejornais, onde os mortos e as fênix, sobreviventes
uma possível explicação para o êxito das produções analisadas. Isso da pandemia, se aglomeram.
398 Jhonatan Mata audiovisual revolucionário 399

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 https://exame.com/revista-exame/o-mundo-e-uma-live/
 https://www.uol.com.br/tilt/noticias/reuters/2020/05/02/
show-ministro-ceo-lives-viraram-novo-horario-nobre-do-bra-
sil-diz-yt.htm
 https://f5.folha.uol.com.br/musica/2020/04/de-sandy-a-ma-
rilia-mendonca-lives-fazem-buscas-por-artistas-crescer-ate-
-110-no-streaming.shtml
 https://g1.globo.com/pop-arte/musica/noticia/2020/05/22/
lady-gaga-e-ariana-grande-se-unem-em-rain-on-me-musica-
-que-integra-o-disco-chromatica.ghtml
 h t t p s : / / t v e f a m o s o s . u o l . c o m . b r / c o l u n a s / l e o -
-dias/2020/04/19/lives-simultaneas-de-roberto-e-henrique-
-e-juliano-redefinem-termo-mpb.htm
 https://br.noticias.yahoo.com/cen%C3%A1rio-das-lives-can-
tor-mans%C3%A3o-194824461.html
 file:///C:/Users/jhona/Desktop/ARTIGOS%20LIVES/
MORTE%20E%20VALORES%20NOTÍCIA.pdf
Links das lives:
1- Marília Mendonça 1: https://www.youtube.com/watch?-
v=s-aScZtOfbM&feature=youtu.be
2- Jorge e Mateus: https://pt-br.facebook.com/mundifm/videos/jor-
ge-mateus-live-na-garagem/202713414357941/
3- Andrea Bocelli: https://www.youtube.com/watch?v=huTUOek4LgU
4- Gusttavo Lima: https://www.youtube.com/watch?v=d3gZkfEFHRc
5- Sandy e Júnior: https://www.youtube.com/watch?v=pXbTY5We-
wiM
6- Leonardo e Eduardo Costa: https://www.youtube.com/watch?-
v=4Ldq4EKWptU
7- BTS: sem link.
8- Marília Mendonça 2: https://www.youtube.com/watch?v=mkw-
3jkXHjEc
9- Henrique e Juliano: https://www.youtube.com/watch?v=absT-
wHy4-Ys
10- BTS: sem link.

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