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A sombra do objeto caiu sobre meu texto

Fábio Dal Molin


Psicólogo, Doutor em Sociologia, Psicanalista Associado à Associação Psicanalítica de Porto
Alegre (APPOA), Professor Associado da Universidade Federal de Rio Grande (FURG)
Coordenador do Laboratório de Extensão e Pesquisa em Psicanálise e Arte (LEXPARTE),
Editor do projeto de coleta e escrita de sonhos Morphonautas: www.morphonautas.com
O artigo a seguir foi construído propositalmente de maneira rápida e sem tempo para o leitor
respirar. Como a morte tem sido.
É realmente como se o mundo tivesse chegado na ficção científica. Os anos se
passaram e a disparidade, a lacuna temporal, começou a se preencher até que
finalmente não existisse mais. Não estávamos mais escrevendo sobre o futuro. em certo
sentido, o próprio conceito de projetar o futuro perde o sentido porque já estávamos lá,
em nosso mundo real”. Philip K, Dick (2014), em sua última entrevista, concedida em
1982. Dick morreria de AVC poucos dias depois, três meses antes do filme “Blade
Runner”, inspirado em sua obra, estrear.

Um ano se passou e mais de 300 mil brasileiros e brasileiras morreram vítimas do


acoplamento funesto entre um vírus letal e de uma democracia agonizante e autofágica. A
pandemia é a evidência estética mais apavorante de uma verdade tão grande que somos
incapazes de percebê-la: vivemos em um mundo que já acabou, e que estamos usufruindo
apenas dos momentos finais da total aniquilação.
O historiador Eric Hobsbawn deu o título de seu livro "A Era dos extremos" por
considerar o que ele chama de "breve século XX" (que, segundo ele, breve porque teria
começado em 1914 e terminado em 1989) o período de maiores avanços humanos e
tecnológicos e também do de maiores genocídios de nossa história. Segundo o autor, as duas
grandes guerras foram os primeiros conflitos em escala global e bateram recordes de civis e
soldados mortos, e na violação de inúmeros códigos de guerra até então respeitados no
chamado mundo civilizado. Um trecho de sua obra:

As maiores crueldades de nosso século foram as crueldades impessoais decididas à


distância, de sistema e rotina, sobretudo quando podiam ser justificadas como
lamentáveis necessidades operacionais. Assim o mundo acostumou-se à expulsão e
matança compulsórias em escala astronômica, fenômenos tão conhecidos que foi
preciso inventar palavras para eles: ‘ sem Estado’ ‘apátridas’ e ‘genocídio’ ( Hobsbawn,
1995 p.24)

Genocídio segue sendo “a palavra” ou #bolsonarogenocida.

Nós, habitantes da bolha ontológica do século XXI, abrimos livros de história e lemos
palavras silenciosas e frias, ou acessamos documentários ou filmes inodoros que mostram o
moedor planetário de carne em um período de 30 anos: holocausto judeu, massacre armênio,
campos de concentração alemães na polônia e japoneses na Manchúria, duas bombas
nucleares no japão, bombardeios de Napalm, submarinos, canibalismo e congelamento no
front Russos. Hitler, Mussolini, Stalin e a indústria bélica americana ganhando status de
motor da economia...

Talvez o século XXI tenha começado em 2020

Afinal, 80 mil jovens negros e negras morrem nesse território há decadas e uma boa
parcela da nação não percebe ou apoia. Juntando a gestão da barbárie com a dinâmica das
massas, o Mito mitômano é visto por grande parcela dos trabalhadores e pequenos
empresários como alguém sensível e solidário às suas demandas. Afinal já diz o bom e velho
Freud (1915/2020) junto com Hamlet que não há representação da morte além da fantasia,
nenhum viajante retorna do “país desconhecido” não há como saber se a morte é um fardo, a
dor ou o nada Mas todos temos boletos a pagar ou já ficamos desempregados ou temos agora
que suportar o horror de sequer podermos velar e enterrar nossos entes queridos pois UTIS,
necrotérios e cemitérios estão sobrecarregados e a fumaça dos crematórios já está
prejudicando o meio-ambiente, como diz o aforismo de Bukowski “pneus furados, torneiras
pingando, arroubos de paixão: tudo é mais triste que a morte”.

Não é necropolítica, é apenas morte

O corpo sem pensamento e sem movimento é um cadáver, e enquanto ele não se


dissolve nas redes biológicas, é mais imóvel que a mais antiga das rochas.
Agora, o que acontece quando o corpo se move sem o pensamento, sem a existência,
sem a vida? Lendas antigas vindas do continente africano versam sobre feiticeiros cujos
poderes ocultos fazer os mortos emergirem da terra e caminharem sob seu controle, e a estes
corpos que andam é dado o nome de Zumbis, ou Zombies.
Desde os anos 60, o cinema de Hollywood produz histórias sobre experiências
científicas ou acidentes bioquímicos geradores de massas ululantes de cadáveres moventes e
aterradores, que atacam populações de classe média em cenários de pequenas cidades,
invadem cotidianos e se reproduzem por contágio. Meu filme preferido deste gênero é “A
Volta dos Mortos-Vivos” (Dan O’Bannon, 1986), cujos zumbis são gerados por um gás
tóxico oriundo de uma arma biológica e percorrem as ruas alimentando-se de cérebros. Quase
todo o roteiro consiste em pessoas vivas sendo perseguidas pelos zumbis que se multiplicam
por contágio, ou seja, quando um ser vivo tem seu cérebro comido, torna-se um morto-vivo.
Slavoj Zizek (2003) assistiu a este filme, e, como bom filósofo vivo, pergunta-se: um
ser vivo pertence ao mundo dos vivos, ele pensa, discursa, respira, imagina projeta universos
e utopias; O cadáver é pouco mais do que uma pedra que não rola…
O morto-vivo é uma terceira categoria, que não pertence nem aos vivos nem aos
mortos, que vive com apenas um objetivo: prosseguir diligentemente na tarefa de saciar uma
fome paradoxal, visto que, enquanto morta, não necessita de alimento. Mas afinal, na sua
errância cadavérica, o morto-vivo nunca pára para pensar por quê come cérebros sem precisar
comê-los, ou nunca para para pensar porque nunca pára para pensar.
Zizek produz a analogia dos zumbis com a das pessoas que perderam a memória por
tragédias biológicas, ou as eternas vítimas das grandes catástrofes, os escravos
contemporâneos ou aqueles trabalhadores que não detém a propriedade intelectual daquilo
que fazem, os novos proletários. Os zumbis da contemporaneidade são proto cidadãos que
habitam cidades, fábricas, empresas e circulam pelas ruas, consomem, caminham, ocupam
espaço, porém desprovidos da paralaxe entre o cérebro e o discurso.
Vladimir Safatle, no programa Café Filosófico1 intitulado “ A melancolia do poder”,
refere-se ao texto de Freud relacionado ao poder e à política no Brasil. Muitos de nós, mesmo
sem saber da fonte, fomos embalados desde o nascimento pela ideia do Brasil como o “país
do futuro”, cheio de riquezas, um povo acolhedor, alegre e pacífico, e talvez nossa
constituição narcísica como brasileiros, esse “eu” tenha formado seu ideal a partir de um
país-objeto, e ele nos tenha levado a acreditar em algum momento na política. No entanto do
outro lado da ponta do Iceberg da nossa história há um mar de lava sangrenta, o maior fluxo
de escravizados de todo período colonial, 80 milhões de nativos massacrados, nações inteiras
dizimadas e, após a independência, um século de guerra civil em rebeliões sufocadas, mais a
guerra do Paraguai onde fomos protagonistas pela destruição de um país inteiro. Em que
espelho está perdido esse ideal de país tropical abençoado por Deus e bonito por natureza
estará apodrecendo em algum quadro horrendo?
Quando 54 milhões de pessoas depositaram seu voto em uma criatura sem corpo, sem
alma, sem órgãos, sem vida, esse ideal do eu se desmanchou junto com a moldura do quadro.

Falando em Zumbis…

1
https://youtu.be/NtqCR5845XY
É impossível não fazer a analogia do Brasil contemporâneo com a série “The
Kingdom" (King Seon-Hun, Park In Je Netflix, 2019). A série é ambientada na Coréia feudal,
em um Estado governado por uma elite rica e corrupta que massacra um povo doente e
faminto. Quando o rei morre de varíola, um general conspirador, pai da rainha, ordena ao
médico real que o ressuscite com uma planta medicinal que outrora havia sido usada como
arma em uma guerra contra o Japão. O rei, transformado em zumbi, não aparece mais em
público, e o poder de fato passa para o general, que simboliza o real poder feudal: o militar. A
tradicional epidemia de história de zumbis ocorre quando o rei zumbi mata por acidente um
de seus serviçais e o corpo vai parar em um hospital de caridade, onde os pacientes, famintos
o devoram em uma emulação de um banquete totêmico, e se contaminam. Da Coréia feudal
ao Brasil pós-golpe de 2016, a realidade se entrelaça com a ficção na fita de moebius.
Lembram da frase do K. Dick que abre este texto?
Aliás, espero que os leitores percebam que todos os filmes e séries do gênero
“apocalipse zumbi” são sobre epidemias e pandemias, e o que há em comum entre eles é que
a sociedade só passa a acreditar quando é tarde demais.
Eu já escrevi em outro momento, citando Zizek 2, que estamos vivendo as cinco fases
do luto, e uma delas é a negação. Contudo, pensando nos textos Freudianos “Considerações
contemporâneas sobre a guerra e a morte ” (1915/2020) e “Luto e melancolia” (1915/2013) e
“A psicologia das massas e a análise do eu”(1921/2013) sou levado a concordar com Safatle:
nosso objeto perdido nunca existiu e hoje somos uma nação melancólica, que se identifica
com um objeto morto, que não é capaz de rir de nada além de si mesma. Como diz Freud
(1915/2013) “ a sombra do objeto caiu sobre o eu”. No Brasil do Genocida não há sequer
sombra. Vivemos o meio-dia da morte.
Na época em que Mary Shelley escreveu seu romance na Europa e em toda a
Inglaterra pessoas morriam por atacado, e não por acaso as escolas de anatomia começavam a
se proliferar. Os cadáveres eram considerados algo sem propriedade, apenas pessoas ricas
tinham condições de realizar enterros cristãos. Da fusão da medicina pré-científica, entre
anatomia, galvanismo e alquimia, o Dr. Frankenstein, o Prometeu moderno, decidiu aquilo
que Nietzsche (1882/2007) meio século mais tarde, enquanto Zaratustra, descendo a
montanha, dá as costas a um velho, exclama: “Será possível? Este santo ancião não ouviu em
sua floresta que Deus morreu?”O homem-além-homem de Mary Shelley produzido de restos
de cadáveres comprados por alguns vinténs em verdadeiros açougues humanos veio a
2

https://www.appoa.org.br/correio/edicao/298/estamos_em_guerra_e_dai_a_negacao_no_brasil_equili
brado_no_raio_da_lanterna/843
sintetizar os atuais sujeitos forjados na melancolia brasileira: uma “criatura”, não nascida, não
desenvolvida, cuidada, olhada, que sequer é desamparada porque jamais experimentou o
amparo. As experiências no Brasil se multiplicam nesse sentido, como mostra Daniela Arbex
no “Holocausto Brasileiro”3 (2016): entre os mortos vivos, Josés e Marias de tal,
hebefrênicos, esquizofrênicos residuais, oligofrênicos estão em sua maioria negros e negras,
tendo seus corpos eletrificados, medicados, torturados e vendidos para faculdades de
medicina (incluindo bebês natimortos). Mais recentemente o filme “M8: quando a morte
socorre a vida” (Jefferson De, 2018, Netflix) um aluno de uma faculdade de medicina
percebe, no laboratório de anatomia, que ele e os cadáveres do morgue são os únicos negros
da aula. O racismo explícito de seus colegas e dos ambientes que frequenta encobre todos os
espelhos e o colocam em uma situação de ser apenas possível identificar-se com os mortos.
E hoje, da minha sala confortável com minhas máscaras N95 e às portas da vacinação
eu vejo a notícia nada surpreendente de que, ao contrário do que alguns imaginam, a COVID
escolhe vítimas sim, como a tuberculose, a sífilis, a AIDS e todas as guerras em que pobres e
negros lutaram na infantaria.
Segundo o jornalista Mike Davis4 o vírus da COVID não surge do acaso, mas fruto de
um logo cultivo que envolve gripe suína, aviária, influenza, surgidos de uma das
características estruturais do capitalismo: a repetição em larga escala: nos alimentamos de
dois ou três tipos de aves, bovinos, suínos, das mesmas sementes de soja, trigo e milho,
grande parte da população mundial vive da mesma, forma. Nessa perspectiva, o vírus se
multiplica na biosfera humana como uma Ferrari em uma estrada lisa e reta, sem percalços,
sem grandes dificuldades de produzir mutações para sobreviver. Praga, é o nome disso.
Tudo sempre retorna ao inorgânico, diz Freud em Além do princípio do prazer, e a
pulsão de morte não surge da repetição? No fim da saga da Marvel “The Avengers”, o vilão
Thanos decide que para acabar com a fome, a guerra e a miséria é preciso uma solução final,
o genocídio. Ao concentrar o poder das cinco jóias do infinito Thanos mata metade dos seres
vivos da galáxia randomicamente. Thanos (referência óbvia a Tânatos), como Hitler e seus
ideais higienistas, quer o bem da raça humana, e salvar a economia. Lembra algum genocida
que conhecemos?
3
https://youtu.be/5eAjshaa-do
4
https://blogdaboitempo.com.br/2020/03/16/mike-davis-o-coronavirus-e-a-luta-de-classes-o-monstro-
bate-a-nossa-porta/
Não é necropolítica, é apenas morte.

Chegamos, por fim, ao objetivo precípuo do texto: o desaniversário das edições


anteriores do Correio sobre a pandemia Naquela época tudo parecia virtual e distante, 10.000,
20.000… Hoje a sombra do objeto caiu no meu texto, todos os dias é o pai de um amigo, um
ator famoso, a babá de um paciente, o primo do dono da garagem e enquanto bato nas teclas
recebo a notícia da passagem do querido Contardo Calligaris, que não foi de COVID mas
dissolve-se no oceano mórbido “como lágrimas na chuva”.
Há alguns anos li uma pesquisa sobre a AIDS e Educação em Moçambique (Cossa,
2007) que trazia um dado estarrecedor: devido à alta mortalidade pela síndrome o ministério
da educação contemplava em seu orçamento a contratação de novos professores para
reposição
Há alguns dias o noticiário da Globonews comemorou a abertura de 250.000 postos
de trabalho no Brasil como um sinal de recuperação da economia. Façam as contas.
Ano que vem ninguém entenderá a frase acima porque serão um milhão e teremos
cadáveres boiando nos rios, interrompendo o trânsito...

Referências Bibliográficas

Cossa, Lourenço Línguas nacionais no sistema de ensino para uma educação em Moçambique.
Dissertação de mestrado apresentada ao PPG em Educação da UFRGS, 2007
Dick, Philip K. Andróides sonham com ovelhas elétricas? São Paulo, Aleph, 2014
Freud, Sigmund. Cultura, sociedade, religião: O mal-estar na cultura e outros escritos. Belo
Horizonte, Autêntica Editora. Edição do Kindle, 2020.
Freud, Sigmund Luto e melancolia (1915) São Paulo, Cosac Naify, 2013
Hobsbawn, Eric A era dos extremos São Paulo, Cia das Letras, 1995
Nietzsche, Friedrich, Assim falava Zaratustra: um livro para todos e para ninguém (1882) Petrópolis,
Vozes, 2007
Shelley, Mary Frankenstein ou o Prometeu moderno Jandira, SP, 2020
Zizek, Slavoj, Bem-vindo ao deserto do real São Paulo, Boitempo, 2003

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