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Nós, habitantes da bolha ontológica do século XXI, abrimos livros de história e lemos
palavras silenciosas e frias, ou acessamos documentários ou filmes inodoros que mostram o
moedor planetário de carne em um período de 30 anos: holocausto judeu, massacre armênio,
campos de concentração alemães na polônia e japoneses na Manchúria, duas bombas
nucleares no japão, bombardeios de Napalm, submarinos, canibalismo e congelamento no
front Russos. Hitler, Mussolini, Stalin e a indústria bélica americana ganhando status de
motor da economia...
Afinal, 80 mil jovens negros e negras morrem nesse território há decadas e uma boa
parcela da nação não percebe ou apoia. Juntando a gestão da barbárie com a dinâmica das
massas, o Mito mitômano é visto por grande parcela dos trabalhadores e pequenos
empresários como alguém sensível e solidário às suas demandas. Afinal já diz o bom e velho
Freud (1915/2020) junto com Hamlet que não há representação da morte além da fantasia,
nenhum viajante retorna do “país desconhecido” não há como saber se a morte é um fardo, a
dor ou o nada Mas todos temos boletos a pagar ou já ficamos desempregados ou temos agora
que suportar o horror de sequer podermos velar e enterrar nossos entes queridos pois UTIS,
necrotérios e cemitérios estão sobrecarregados e a fumaça dos crematórios já está
prejudicando o meio-ambiente, como diz o aforismo de Bukowski “pneus furados, torneiras
pingando, arroubos de paixão: tudo é mais triste que a morte”.
Falando em Zumbis…
1
https://youtu.be/NtqCR5845XY
É impossível não fazer a analogia do Brasil contemporâneo com a série “The
Kingdom" (King Seon-Hun, Park In Je Netflix, 2019). A série é ambientada na Coréia feudal,
em um Estado governado por uma elite rica e corrupta que massacra um povo doente e
faminto. Quando o rei morre de varíola, um general conspirador, pai da rainha, ordena ao
médico real que o ressuscite com uma planta medicinal que outrora havia sido usada como
arma em uma guerra contra o Japão. O rei, transformado em zumbi, não aparece mais em
público, e o poder de fato passa para o general, que simboliza o real poder feudal: o militar. A
tradicional epidemia de história de zumbis ocorre quando o rei zumbi mata por acidente um
de seus serviçais e o corpo vai parar em um hospital de caridade, onde os pacientes, famintos
o devoram em uma emulação de um banquete totêmico, e se contaminam. Da Coréia feudal
ao Brasil pós-golpe de 2016, a realidade se entrelaça com a ficção na fita de moebius.
Lembram da frase do K. Dick que abre este texto?
Aliás, espero que os leitores percebam que todos os filmes e séries do gênero
“apocalipse zumbi” são sobre epidemias e pandemias, e o que há em comum entre eles é que
a sociedade só passa a acreditar quando é tarde demais.
Eu já escrevi em outro momento, citando Zizek 2, que estamos vivendo as cinco fases
do luto, e uma delas é a negação. Contudo, pensando nos textos Freudianos “Considerações
contemporâneas sobre a guerra e a morte ” (1915/2020) e “Luto e melancolia” (1915/2013) e
“A psicologia das massas e a análise do eu”(1921/2013) sou levado a concordar com Safatle:
nosso objeto perdido nunca existiu e hoje somos uma nação melancólica, que se identifica
com um objeto morto, que não é capaz de rir de nada além de si mesma. Como diz Freud
(1915/2013) “ a sombra do objeto caiu sobre o eu”. No Brasil do Genocida não há sequer
sombra. Vivemos o meio-dia da morte.
Na época em que Mary Shelley escreveu seu romance na Europa e em toda a
Inglaterra pessoas morriam por atacado, e não por acaso as escolas de anatomia começavam a
se proliferar. Os cadáveres eram considerados algo sem propriedade, apenas pessoas ricas
tinham condições de realizar enterros cristãos. Da fusão da medicina pré-científica, entre
anatomia, galvanismo e alquimia, o Dr. Frankenstein, o Prometeu moderno, decidiu aquilo
que Nietzsche (1882/2007) meio século mais tarde, enquanto Zaratustra, descendo a
montanha, dá as costas a um velho, exclama: “Será possível? Este santo ancião não ouviu em
sua floresta que Deus morreu?”O homem-além-homem de Mary Shelley produzido de restos
de cadáveres comprados por alguns vinténs em verdadeiros açougues humanos veio a
2
https://www.appoa.org.br/correio/edicao/298/estamos_em_guerra_e_dai_a_negacao_no_brasil_equili
brado_no_raio_da_lanterna/843
sintetizar os atuais sujeitos forjados na melancolia brasileira: uma “criatura”, não nascida, não
desenvolvida, cuidada, olhada, que sequer é desamparada porque jamais experimentou o
amparo. As experiências no Brasil se multiplicam nesse sentido, como mostra Daniela Arbex
no “Holocausto Brasileiro”3 (2016): entre os mortos vivos, Josés e Marias de tal,
hebefrênicos, esquizofrênicos residuais, oligofrênicos estão em sua maioria negros e negras,
tendo seus corpos eletrificados, medicados, torturados e vendidos para faculdades de
medicina (incluindo bebês natimortos). Mais recentemente o filme “M8: quando a morte
socorre a vida” (Jefferson De, 2018, Netflix) um aluno de uma faculdade de medicina
percebe, no laboratório de anatomia, que ele e os cadáveres do morgue são os únicos negros
da aula. O racismo explícito de seus colegas e dos ambientes que frequenta encobre todos os
espelhos e o colocam em uma situação de ser apenas possível identificar-se com os mortos.
E hoje, da minha sala confortável com minhas máscaras N95 e às portas da vacinação
eu vejo a notícia nada surpreendente de que, ao contrário do que alguns imaginam, a COVID
escolhe vítimas sim, como a tuberculose, a sífilis, a AIDS e todas as guerras em que pobres e
negros lutaram na infantaria.
Segundo o jornalista Mike Davis4 o vírus da COVID não surge do acaso, mas fruto de
um logo cultivo que envolve gripe suína, aviária, influenza, surgidos de uma das
características estruturais do capitalismo: a repetição em larga escala: nos alimentamos de
dois ou três tipos de aves, bovinos, suínos, das mesmas sementes de soja, trigo e milho,
grande parte da população mundial vive da mesma, forma. Nessa perspectiva, o vírus se
multiplica na biosfera humana como uma Ferrari em uma estrada lisa e reta, sem percalços,
sem grandes dificuldades de produzir mutações para sobreviver. Praga, é o nome disso.
Tudo sempre retorna ao inorgânico, diz Freud em Além do princípio do prazer, e a
pulsão de morte não surge da repetição? No fim da saga da Marvel “The Avengers”, o vilão
Thanos decide que para acabar com a fome, a guerra e a miséria é preciso uma solução final,
o genocídio. Ao concentrar o poder das cinco jóias do infinito Thanos mata metade dos seres
vivos da galáxia randomicamente. Thanos (referência óbvia a Tânatos), como Hitler e seus
ideais higienistas, quer o bem da raça humana, e salvar a economia. Lembra algum genocida
que conhecemos?
3
https://youtu.be/5eAjshaa-do
4
https://blogdaboitempo.com.br/2020/03/16/mike-davis-o-coronavirus-e-a-luta-de-classes-o-monstro-
bate-a-nossa-porta/
Não é necropolítica, é apenas morte.
Referências Bibliográficas
Cossa, Lourenço Línguas nacionais no sistema de ensino para uma educação em Moçambique.
Dissertação de mestrado apresentada ao PPG em Educação da UFRGS, 2007
Dick, Philip K. Andróides sonham com ovelhas elétricas? São Paulo, Aleph, 2014
Freud, Sigmund. Cultura, sociedade, religião: O mal-estar na cultura e outros escritos. Belo
Horizonte, Autêntica Editora. Edição do Kindle, 2020.
Freud, Sigmund Luto e melancolia (1915) São Paulo, Cosac Naify, 2013
Hobsbawn, Eric A era dos extremos São Paulo, Cia das Letras, 1995
Nietzsche, Friedrich, Assim falava Zaratustra: um livro para todos e para ninguém (1882) Petrópolis,
Vozes, 2007
Shelley, Mary Frankenstein ou o Prometeu moderno Jandira, SP, 2020
Zizek, Slavoj, Bem-vindo ao deserto do real São Paulo, Boitempo, 2003