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OPINIÃO

Fonte: https://www.cartacapital.com.br/opiniao/no-centenario-de-jacob-gorender/
No centenário de Jacob Gorender
Visitar a obra de Gorender torna-se uma exigência quando vivemos perigosamente carentes de reflexão
à esquerda
POR ROBERTO AMARAL | 27.01.2023 08H49.

“O socialismo não é um fim imanente à sociedade e à sua história, mas um fim que os próprios homens
elaboram, sujeito a se realizar ou não. Se as condições objetivas impessoais são, num grau variável,
determinadas e determinantes, a realização dos fins, a que os homens se propõem, inclusive do fim
socialista, estará sempre sujeita à indeterminação, dependente da luta dos próprios homens.” Jacob
Gorender, Marxismo sem utopia

Historiador original, escritor prolífico, cientista social, intelectual orgânico na melhor acepção
gramsciana, comprometido a vida toda com os interesses da classe trabalhadora, Jacob Gorender figura
entre os mais destacados pensadores brasileiros do século XX. Sua bibliografia se encontra na mesma
prateleira que guarda as obras de Gilberto Freyre, Oliveira Vianna, Sérgio Buarque de Holanda, Celso
Furtado, Darcy Ribeiro e mais uns poucos, contados nos dedos de uma mão. Ao lado de Caio Prado
Júnior, pioneiro na interpretação dialética da história social brasileira, e de Florestan Fernandes,
fundador da sociologia crítica do Brasil, destaca-se como um dos nossos principais teóricos marxistas,
e dos mais criativos, porque certamente, na sua maturidade, o menos ortodoxo.

Em comum, Caio, Gorender e Florestan, percorrendo experiências existenciais distintas, associam a alta
especulação e a pesquisa científica à ação militante. Todos marxistas, os dois primeiros vinculando-se
ao Partido Comunista Brasileiro, Gorender lançando-se à ação revolucionária direta, e Florestan
dedicando-se a uma das mais brilhantes carreiras acadêmicas de nosso país, desenvolvida
fundamentalmente na USP. Todos conheceram a repressão. Os três tiveram seus direitos políticos
cassados pelo regime militar instaurado no infame 1º de abril de 1964. Nenhum, porém, permitiu que a
repressão, em qualquer momento, tolhesse a militância, o comprometimento histórico ou a produção
intelectual. Deixaram obras que merecem o epíteto de primas.

A principal contribuição científica de Jacob Gorender revela-se no estudo de nossa formação, ao superar
a disjuntiva feudalismo versus capitalismo na interpretação do modelo econômico do Brasil Colônia-
Império, modelo que, nos seus estertores, chega à república sereníssima preso à lavoura e ao
extrativismo, ainda como economia agroexportadora. A ciência deve-lhe a identificação de um modo de
produção inteiramente novo e específico, o escravismo colonial, com o qual avança sobre as formulações
anteriores de Alberto Passos Guimarães (feudalismo), Nelson Werneck Sodré (modo de produção
escravista, segundo os parâmetros do escravismo clássico) e de Caio Prado Jr., que, ao introduzir na
análise as categorias do materialismo dialético, distingue, em sua obra seminal (Formação do Brasil
contemporâneo, de 1942), o caráter já capitalista do processo colonial brasileiro. Afasta-se de Roberto
Simonsen, que enxergara os ciclos dos produtos de exportação como épocas ou sistemas econômicos e
neles identificava a estrutura exportadora da economia nacional.

Após lembrar que o escravismo colonial não pode ser visto como invenção arbitrária, fora de qualquer
condicionamento histórico, afirma-o como fenômeno específico de nossa experiência que surgiu e se
desenvolveu “dentro de determinismo socioeconômico rigorosamente definido no tempo e no espaço”.
Desse determinismo é que o escravismo colonial teria emergido “como um modo de produção de
características novas, antes desconhecidas na história humana” (O escravismo colonial, 1978).

Jacob Gorender saiu de um cortiço de Salvador (onde nasceu em 20 de janeiro de 1923) para a Faculdade
de Direito da Bahia, cujo curso abandonou em 1943 para, como voluntário, integrar a Força
Expedicionária Brasileira e lutar na Itália contra o fascismo. No regresso se reintegra ao Partido
Comunista Brasileiro de sua juventude, onde viveria uma longa trajetória de militância revolucionária.
Enfrenta o macartismo caboclo que traz para o Brasil a Guerra Fria na sucessão do conflito mundial, e,
com ela, a cassação do PCB, a repressão policial, as prisões e a clandestinidade, que voltaria a purgar
após o golpe de 1964. No “partidão” (onde chegaria ao Comitê Central) permanece até 1967, quando,
com Mário Alves e Apolônio de Carvalho, entre outros, é expulso da legenda por divergências que se
vinham acumulando e que se tornariam insuportáveis após o VI Congresso: desencontros profundos
sobre estratégia e tática, fundamentalmente sobre o caráter da revolução brasileira. Numa tentativa de
resumo pode-se afirmar que o embate se centrava em duas desilusões: a descrença numa via pacífica
para a conquista do socialismo, e a descrença numa aliança com a chamada burguesia nacional. Em
artigo de 1960 (Estudos Sociais, nº 9), Gorender enfatizava o papel do proletariado na liderança da
“revolução nacional e democrática” – em antagonismo com a linha do “partidão”, a pleiteada aliança
com a burguesia nacional -, e já dissertava que a revolução brasileira provavelmente conheceria a luta
armada.

Veremos, adiante, que reconsiderará o papel do proletariado na revolução socialista.

Em 1970, com Mário Alves e Apolônio de Carvalho, participa da fundação do Partido Comunista
Brasileiro Revolucionário-PCBR e se dedica à luta contra o regime militar, pela via que naquela altura
lhe parecia mais consequente. É nessa contingência que começa nossa amizade, por intermédio de Aytan
Miranda Sipahi, que me levara, com Valton Miranda Leitão, a acompanhá-los na aventura (que então
não supúnhamos quixotesca) de tentar construir uma organização comunista realmente revolucionária.
Fracassamos todos. Sem lograr o que fosse de positivo na luta contra a ditadura, o PCBR foi destruído
pela repressão que sobre ele se abateu de forma implacável. Toda sua direção e grande parte de seus
quadros foram encarcerados. Jacob, Apolônio e Aytan foram presos, torturados, julgados pelos tribunais
militares e condenados. Mário, empalado, foi assassinado nas dependências do Quartel da Polícia do
“exército de Caxias” no Rio de Janeiro. Familiares e amigos ainda procuram seu cadáver.
Com o fim de sua organização, Gorender dedica-se a pensar o Brasil; desvinculado da militância
partidária, elege a militância intelectual, cuja base é a autonomia intelectual e a razão livre.

Constrói obra de análise crítica engenhosa, inovadora e inevitavelmente polêmica, quando,


ousadamente, discute as carências da interpretação marxista da revolução brasileira, as limitações do
determinismo histórico, e põe em questão o papel revolucionário do proletariado, “ontologicamente
reformista”, em suas palavras. A bagagem intelectual acumulada e a longa experiência vivida levam-no
a rever muitas das posições políticas e intelectuais sustentadas ao longo da vida, a começar pelo projeto
socialista brasileiro, seu conceito e os meios de conquista do poder. A maturidade impõe-lhe o império
da realidade sobre o sonho. Não abjura o marxismo (o bolchevismo, sim), antes o vivifica. Ousa afirmar
que “já é tempo de atualizar o marxismo”, tarefa a que se dedicará, e questiona o destino revolucionário
do proletariado, bem como sua prometida ditadura. Para o Jacob Gorender desse então o socialismo
deixa de ser um determinismo histórico para constituir-se em necessidade, cuja realização depende da
ação dos homens. A concepção “autenticamente dialética do determinismo” requer “passar o marxismo
pela prova da história”, escreveria.

Combate nas Trevas (1987), produto de oito anos de pesquisa, associa investigação e testemunho do
autor, bem como suas reflexões, sua crítica e alguma autocrítica sobre a saga dos grupos da esquerda
que optaram pela luta armada desde os idos antecessores de 1964 até os anos 1970, quando os focos de
resistência armada são dizimados pela repressão. É, talvez, a primeira tentativa de desvelar a história
das torturas e dos assassinatos praticados pelos agentes do Estado.

Em Marxismo sem utopia, escreve: “Assim como Marx e Engels apostaram no proletariado industrial,
em meados do século XIX, podemos agora, às vésperas do século XXI, apostar na classe dos
assalariados intelectuais. […] Se os assalariados intelectuais constituem, em nosso tempo, a classe que
cresce e o faz a ritmo acelerado, em contraste, o proletariado rural e o campesinato se tornaram classes
residuais, de pequena significação, nos países desenvolvidos, e, na maioria dos demais, se encontram
em declínio. Ao mesmo tempo o proletariado industrial sofre o impacto do processo de encolhimento e
perda de força social. Mas os assalariados intelectuais, além de estarem em crescimento, são os
detentores do fator cada vez mais decisivo no processo de produção, ou seja, o fator conhecimento”.

Este texto de Gorender é de 1999. Passados 14 anos, sua atualidade aparece acentuada pelo processo
histórico, reclamando a reflexão dos que pensam o processo político brasileiro nas contingências de
nosso curto prazo.

Visitar a obra de Gorender (no caso deste intelectual orgânico, vida e obra constituem uma unidade
revolucionária) torna-se uma exigência quando vivemos perigosamente carentes de reflexão à esquerda.
Sua obra e sua militância são, hoje mais do que nunca, uma boa contraposição aos liberais de todos os
matizes que associam o marxismo a ortodoxia e dogmatismo, bem como aos autointitulados marxistas
que, lamentavelmente, fazem exatamente isso.
Devemos a Jacob Gorender uma existência de 90 anos dedicados à libertação de nosso povo e ao culto
à inteligência. Trata-se, acima de tudo, de um grande e precioso brasileiro. Na expressão de Eugenio
Bucci, sua vida “foi uma prova de que a humanidade pode ser melhor do que é”. No último dia 20 passou
em branco seu centenário.

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