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Os impactos da Ditadura Militar na religiosidade de Matriz Africana - umbanda

de Pai Fabrício (Século XXI)

Mesmo depois da abolição da escravidão, a luta pela liberdade religiosa e


contra o racismo continuam a enfrentar novos desafios. No séc. XX os ex-escravizados
continuavam a praticar sua religiosidade às escondidas, afinal tudo que praticavam era
marginalizado, não no sentido de estar à margem da sociedade com sugere o conceito da
palavra, mas no sentido mais pejorativo do termo que era de criminalizar.
(GUIMBELLI, 2008).
A liberdade de culto em público ou privado, individual ou coletivamente, além
do ensinamentos de seus ritos, está expresso no artigo 18 da Declaração Universal das
Nações Unidas, proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em Paris, no dia
10 de dezembro de 1948, há 70 anos, mas antes disso, os primeiros registros sobre os
direitos do homem já apareciam m leis que datam de 1824, 1891, 1934, 1937, 1946 e
1967, no entanto, estes direitos não incluíam os cativos. 1
Apoiado pelo Partido Português, constituído por ricos comerciantes portugueses
e altos funcionários públicos, D. Pedro I dissolveu a Assembleia Constituinte em 1823 e
impôs seu próprio projeto, que se tornou a primeira Constituição do Brasil. Das sete
Constituições, quatro foram promulgadas por assembleias constituintes, duas foram
impostas — uma por D. Pedro I e outra por Getúlio Vargas. Entre as principais
características da Constituinte de 1823 foi o voto censitário e a exclusão da participação
popular e dos cativos no processo político.
Dentre as principais características da Constituição de 1824 estava a liberdade
de expressão do pensamento, inclusive pela imprensa, independente de censura;
liberdade de convicção religiosa e de culto privado, contanto que fosse respeitado a
religião do Estado; que era o catolicismo. Vale ressaltar, que essa liberdade de culto
alheio ao catolicismo era permitido somente em ambientes domésticos ou até templos,

1
Fonte: Agencia Senado
https://www12.senado.leg.br/noticias/glossario-legislativo/constituicoes-brasileiras#:~:text=As
%20Constitui%C3%A7%C3%B5es%20anteriores%20s%C3%A3o%20as,%2C%201937%2C
%201946%20e%201967.&text=Apoiado%20pelo%20Partido%20Portugu%C3%AAs%2C
%20constitu%C3%ADdo,a%20primeira%20Constitui%C3%A7%C3%A3o%20do%20Brasil.
desde que sem grandes propagações públicas ou exteriores a estes espaços. 2 Esta
constituinte durou 65 anos.
As principais inovações da Constituição, datada de 24 de fevereiro de 1891,
foram dentre outras no que tange à religiosidade, a separação entre a Igreja e o Estado,
não sendo mais assegurado à religião católica o status de religião oficial; adotando então
o estado laico e liberando as outras religiões a professarem sua fé publicamente. 3
Entretanto, 43 anos depois, na primeira década do século XX, já na Era Vargas,
as religiões de matriz africanas enfrentavam outro tipo de restrição, pela força da Lei
expressa no artigo 156 que enquadrava como prática ilegal da medicina, a cura através
das ervas muito utilizada pelas religiões de matriz africana, além do artigo 157, no que
tange ao charlatanismo, que enquadrava as práticas mediúnicas de adivinhações, leituras
de cartas, búzios, mãos, dentre outras práticas mediúnicas praticadas pelo espiritismo,
leia-se candomblé e umbanda.
A Constituição de 1934 sofreu três emendas em dezembro de 1935, destinadas a
“reforçar a segurança” do Estado e as atribuições do Poder Executivo, para coibir,
segundo o texto, "movimento subversivo das instituições políticas e sociais”. Com base
na máxima dos “bons costumes”, começam então novas perseguições à práticas
religiosas de matriz africana.
Neste ano, o presidente da República, Getúlio Vargas, instituiu o decreto nº
24.531/34, publicado em 2 de julho de 1934, que estabelecia em seu art. 33, que caberia
à 1ª Delegacia Auxiliar, sob a direção do delegado Mattos Mendes, processar a
cartomancia, mistificações, magias, cura através das ervas que para eles era um
exercício ilegal da medicina e caracterizava crimes contra a saúde, o que levou à prisão
e invasão de muitos terreiros, agravado pela ditadura militar. O resultado foi
historicamente difícil para as religiões de matriz africana e Custódio de Souza Caravana
Filho que já dirigia as Casas de Pai Fabrício no Rio de Janeiro, chegou a ser preso em
1941.
Somente com a Constituição Cidadã de 1988 se restabelece os direitos essenciais,
dentre eles, a liberdade de culto, mas nem tudo tem sido flores desde então. Desde 1891,

2
Fonte: disponível em:
http://www.dhnet.org.br/dados/cursos/dh/br/pb/dhparaiba/4/constituicao.html#:~:text=As
%20principais%20conquistas%20asseguradas%20pela,todos%20perante%20a%20lei%3B
%20aboli%C3%A7%C3%A3o Acessado em 28/11/2022
3
Constituição de 1891 disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao91.htm
quando se instituiu a laicidade do estado, que as religiões de matriz africana sempre
estiveram à margem dos direitos cidadãos.
Em plena ditatura militar, promovida pelo então presidente Getúlio Vargas (1964 a
1985), já na década de 1970, a religiosidade praticada pela família Caravana sofreria novos
impactos, com a constante vigilância do governo e as visitas inesperadas em tom
ameaçador.
A memória coletiva da família nos oferece um amplo espectro de análise sobre esse
impacto negativo em suas vidas, mas também revela o quanto a resiliência da família este
ainda mais forte nessa época como retrata o relato de Fabrícius Custódio Caravana, que
dirige uma das três Casas de Santo deixadas por seu pai Custódio de Souza Caravana:
"Era uma manhã ensolarada, e meu pai como de costume estava
atendendo as pessoas no terreiro, quando chegaram dois oficiais da
Marinha. O Vovô que estava incorporado nele disse ao seu cambono
Tranca Lua (Francisco Jesuíno): - vai no portão que estão subindo
dois homens de farda. E para o outro, chamado de Cabiúna (Fausto
Manoel Madeira): - recepcione os homens dentro da casa e os
acompanhe até que eu possa atendê-los. Quando ele terminou de
atender os consulentes, mandou chamar um dos oficiais e disse: - leva
essas ervas aqui para cuidar do câncer da sua mulher. E mandou
chamar o outro oficial e disse: - paga o que você está devendo porque
você está correndo risco de vida. Ao saírem da casa, um deles disse ao
papai que ele ficasse tranquilo que ninguém iria mais perturbá-lo
porque esta era uma casa de cura de verdade. (Este relato foi
concedido por Fabricius Custódio de Souza Caravana em 19 de março
de 2024).

Anos depois, na cidade de Paracambi, Baixada Fluminense, seu filho Alfredo


Caravana que atuava como vereador naquela cidade (1970), chegou a ser detido como
subversivo. Ele ainda mantinha um terreiro da linha de Pai Fabricio na cidade, mas
Fabricius acredita que sua atuação em oposição ao governo militar e em defesa das causas
trabalhistas, relacionadas à época a um comunismo visto com maus olhos, também
influenciaram nesta prisão.
A ideologia dos militares que lideraram o golpe de 1964 era fortemente
anticomunista. Eles viam o comunismo como uma ameaça à ordem social, à propriedade
privada e à segurança nacional. O regime militar alegava que estava protegendo o Brasil do
perigo comunista, usando isso como justificativa para restringir as liberdades civis,
perseguir dissidentes políticos e suprimir movimentos sociais. A narrativa apresenta um
vislumbre dos reflexos do período da ditadura militar no Brasil (1964-1985), na vida da
família Caravana, oferecendo uma perspectiva única sobre como os eventos políticos e
sociais da época afetaram suas vidas, principalmente por estarem atreladas às práticas
religiosas de matriz africana, como a umbanda.
A presença de oficiais da Marinha no terreiro de umbanda evidencia a intimidação e
a pressão exercida pelas autoridades militares sobre comunidades marginalizadas. A atitude
desafiadora de Custódio de Souza Caravana Filho, 20 anos depois da sua primeira prisão na
“Devassa de 41”, oferecendo remédios para a esposa do oficial e exigindo que outro
pagasse suas dívidas sob ameaça de risco para sua vida, destacando um confronto corajoso
contra o autoritarismo do regime ao destacar a importância do seu trabalho religioso.
A detenção do seu filho, Alfredo Caravana como subversivo em Paracambi ressalta
a repressão política e a perseguição enfrentada por aqueles que se opunham ao regime. A
associação entre a prisão do filho e sua participação política como vereador, bem como suas
ligações com causas trabalhistas, sugere a amplitude da repressão do regime militar sobre
dissidentes políticos e ativistas sociais. Seu filho, possivelmente não estava sendo
perseguido somente por suas convicções políticas, haja vista, também liderar um terreiro de
umbanda naquela cidade e carregar a marca dos “Caravanas” em sua trajetória de vida.
Portanto, essa narrativa oferece uma valiosa reflexão sobre o impacto da ditadura
militar na liberdade de expressão religiosa e política desta família. Também destaca a
resiliência e a resistência frente à opressão, mesmo diante das graves consequências que
enfrentavam.

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