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Universidade Federal do Rio de Janeiro - Instituto de História

Disciplina: História da América Contemporânea - 2023.1

Professores: Lise Fernanda Sedrez e Fernando Castro

Aluno: Daniel Machado Carvalho Branco de Assis

DRE: 123220793

Resenha crítica

Autoritarismo latino-americano: uma análise histórico-literária

O livro “O outono do patriarca”, do renomado autor colombiano


Gabriel García Márquez1, consiste no relato pessoal de um ditador - cujo nome
e idade são indefinidos - sobre sua rotina como déspota, seu apogeu e perigeu.
Originalmente lançada em 1975, a obra está inserida em um contexto de
emersão de ditaduras na América Latina, o qual reflete, também, a cultura
autoritária da região ao longo dos séculos - passando pela colonização ibérica
e chegando até as repúblicas do século XX - e descreve de maneira precisa
características basilares desse tipo de regime, elucidando-se, portanto, a valia
de se perscrutar essa narração ficcional. Com uma abordagem satírica e
complexa, utilizando-se amiúde do recurso do discurso indireto livre, o qual
permite a mistura de focos narrativos e, portanto, de perspectivas, o escritor
logra construir um enredo multifacetado, proporcionando ao público leitor uma
visão ampla acerca de regimes de exceção americanos que existiram no
desenrolar da história, o que evidencia sua aguçada percepção política e sua
refinada qualidade literária.
Consoante o discurso do sápatra, nota-se uma estrutura de poder
sedimentada na centralização em torno da figura do governante supremo e na
articulação de métodos de censura e de repressão político-ideológicas,
organizada por militares de alta patente. Fora da ficção, analogicamente,
podem ser apontadas semelhanças entre a forma de Estado no livro analisado
e governos classificados como “bananeros”2, a saber, repúblicas autoritárias
preeminentes na América Central as quais se baseavam na figura de um

1
GARCÍA MÁRQUEZ, Gabriel. O outono do patriarca. Rio de Janeiro: Record, 2019.
2
ROJAS MIX, Miguel. “La ditadura militar em Chile e América Latina”, p. 12, in: WASSERMAN, Claudia;
GUAZELLI, Cesar Augusto (org.). Ditaduras militares na América Latina. Porto Alegre: UFRGS, 2004.
caudilho (líder) cujo comando pautava-se no paternalismo, no personalismo e
na subordinação institucional aos desejos dele, traços recorrentemente
apresentados no enredo de Gabriel García Márquez. Tal sistema foi o alicerce
de diversos regimes da América Latina ao longo da história - Somoza na
Nicarágua, por exemplo3 -, demonstrando um elemento central da cultura
sociopolítica da região: a afinidade com o autoritarismo. Ao longo da obra,
ademais, o Patriarca narra o uso de prisões em massa e da intimidação da
população por meio da força policial, entre outros meios, os quais objetivavam
o manutenimento de seu poder e a construção do consenso de forma arbitrária;
essa manifestação de poder discricionário remete a ditaduras civis-militares no
Cone Sul americano, tais como Pinochet no Chile (1973-1990) e a junta militar
no Uruguai (1973-1984). Esses regimes foram especialmente marcados pela
forte perseguição a quaisquer movimentos sociais e políticos de oposição e
pela legitimação do uso extremado da força pelo Estado em prol de um suposto
bem comum nacional4, aspectos retratados com precisão pelo autor literário
supracitado, evidenciando a importância desse livro para a reflexão relativa a
alguns dos piores males do continente.
Há, outrossim, duas características vitais do governo despótico do
livro abordado que merecem destaque pela apurada proximidade com
acontecimentos vinculados a regimes autoritários da América Latina: o intenso
uso da propaganda política e a imbricada relação entre a sustentação do poder
local e a assistência essencial de potências estrangeiras. Em “O outono do
patriarca”, o déspota faz, constantemente, referências ao jornal estatal, o qual é
divulgado diariamente com notícias - nem sempre verdadeiras - com o intuito
de alavancar a opinião pública a favor do sápatra. São celebrados feitos do
governo vigente, efemérides, a imagem do líder; em suma, trata-se de um
panegírico. Aliado a isso, há menções ao papel precípuo de países forâneos na
manutenção do poder do Patriarca no tocante à costura de relações
diplomáticas e ao estabelecimento de relações econômicas impactantes para o
PIB do país. Um retrato desse cenário está no diálogo entre o protagonista e o
seu sósia em leito de morte, quando este diz que “(...) sou o único que me

3
Ibid., p. 12
4
MENDES, Ricardo Antonio Souza. Ditaduras civil-militares no Cone Sul e a Doutrina de Segurança
Nacional - algumas considerações sobre a Historiografia. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v.
5, n. 10, jul./dez. 2013.
pareço com o senhor, o único que tem a honradez de passar-lhe o que todo
mundo diz que o senhor não é presidente de ninguém nem está no trono por
suas próprias pernas senão que aí o sentaram os ingleses e o sustentaram os
gringos com o par de colhões do seu encouraçado...”5, evidenciando a
necessidade da política local de angariar ajuda de fora. Uma relação similar
com a mídia pública - no que tange à repressão de jornais de oposição e ao
financiamento de publicações pró-regime - e com um Estado central aliado -
concernente à chegada ao poder e ao manutenimento dele - pode ser pensada
no caso da ditadura cubana de Fulgencio Batista (1952-1959), que aplicava a
força policial a fim de cercear as matérias publicadas - isto é, proibir as críticas
e favorecer as complacentes -, ou seja, utilizava o Estado a fito de construir
uma opinião popular favorável, e que era umbilicalmente ligada aos Estados
Unidos, maior potência da época, com seu pleno alinhamento ideológico e
político-econômico no contexto da Guerra Fria.6
À guisa de conclusão, cabe reiterar-se a inimitável qualidade com a
qual Gabriel García Márquez escreveu a obra “O outono do patriarca”. Em uma
narrativa ficcional, conseguiu congregar múltiplas facetas de regimes
autoritários latino-americanos em torno do relato de um déspota solitário
perdido em seu próprio poder descomunal, traçando similaridades com os
regimes caudilhistas, preponderantes no século XIX (e com resquícios em
vários países no século XX), e com ditaduras civis-militares, as quais
assolaram a América Latina ao longo do século passado. A partir da alusão a
quatro pontos fulcrais desses tipos de governo - à centralização do Estado na
figura de um líder, à repressão aplicada por um aparato militar, ao massivo uso
da propaganda e do cerceamento de notícias publicadas e à dependência a
uma potência estrangeira -, o autor formou um paralelo apurado entre a
literatura e a realidade na região, alçando seu livro a um patamar de prestígio,
tornando-o assaz interessante para se observar a cultura autoritária do
continente por um prisma que não historiográfico stricto sensu, como um
complemento intelectual a pesquisadores e ao senso comum de um modo
geral.

5
GARCÍA MÁRQUEZ, Gabriel, op. cit., pp. 26-27.
6
Ver, entre outros, GOTT, Richard. Cuba: uma nova história. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.

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