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Título: Revisitando as reverberações de uma “guerra maldita” – a Guerra do

Paraguai e a Crise do Império


Profa. Dra. Wilma Peres Costa (Universidade Federal de São Paulo)

Uma estranha memória

Olhando a partir da experiência histórica brasileira, a tarefa de revisitar uma


guerra que coevos e contemporâneos qualificaram como “maldita” impõe retomar as
razões subjacentes dessa “maldição”, vale dizer enfrentar o paradoxo de uma vitória
militar que não consegue fortalecer o regime político que a empreende, antes, torna-se
um dos vetores fundamentais de sua queda.
O convite a revisitar a Guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai (1865-
1897) em um esforço compartilhado a partir de diversas perspectivas é tão estimulante
quanto relativamente raro no mundo acadêmico. Os trabalhos que procuraram
ultrapassar a abrangência nacional têm sido poucos e devidos sobretudo a estudiosos
provenientes de outras regiões do globo distantes desse que foi o mais sangrento
conflito da América do Sul. Procuro refletir aqui sobre a experiência brasileira,
desdobrando minhas considerações em dois movimentos que espero, ao longo desse
texto, articular. Trata-se, de um lado, de indagar sobre as razões que fizeram daquela
cabal vitória militar a demarcação temporal para a crise do regime monárquico,
contrariando desígnios dos contemporâneos e a própria lógica da relação histórica
entre o poder político e a arte da guerra. O esforço seria, entretanto, incompleto, se
não buscássemos, ainda que de forma inicial e indicativa, dialogar com as visões que
emergiram do conflito na memória que dela registraram os contemporâneos,
imprimindo sua marca sobre a seu lugar na escrita da história do século XIX no
Brasil. Vale dizer que, ao lançarmos o olhar sobre o passado, recortando o tempo e
procurando lhe atribuir sentidos, como nos impõe o ofício, fazemos também um
esforço por pensar as temporalidades inscritas no próprio conflito tentando enfatizar
seus ritmos e sem esquecer o modo como deles tomaram consciência os que o
viveram e procuraram registrar para a memória dos pósteros. Para enfrentar esse
desafio trazemos algumas evidências sobre a materialidade do conflito - a intensidade
do esforço de guerra, sua incidência relativa pelo vasto território do Império e os seus

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custos, que pesaram não apenas sobre os coevos, espraiando-se por mais de uma
geração na dívida pública.
A intenção é a de subsidiar o entendimento da relativa ausência de uma
historiografia “patriótica” da Guerra da Tríplice Aliança, muito embora ela tenha sido
uma retumbante vitória militar. As comemorações foram modestas, evitaram-se os
desfiles retumbantes, a desmobilização dos contingentes foi milimetricamente
planejada para envidar um retorno dos recrutas às suas províncias em que pequenos
grupos, evitando sua aglomeração na corte1. Em 1871, o aniversário do Imperador foi
comemorado com a primeira apresentação brasileira da ópera O Guarani, de Antonio
Carlos Gomes, reiterando o mito romântico do sacrifício indígena na construção da
nacionalidade e lançando o manto do esquecimento sobre a morte de milhares de
guaranis reais, de ambos os lados da fronteira. No mesmo ano, veio a público A
Retirada da Laguna, escrita em francês pelo jovem Alfredo de Taunay, ele mesmo
participante da coluna que tentou expulsar o inimigo do Mato Grosso. A narrativa,
vazada no molde da Anabase, de Xenofonte, não oculta a crítica severa sobre os
comandos e sobre os políticos do Império, engrandecendo a coragem e a
inventividade dos jovens soldados e a fidelidade de sertanejos e indígenas. Essa, que
se tornaria a mais popular narrativa sobre a guerra, consagrada pelo próprio Exército
Brasileiro em múltiplas edições, trata a guerra como uma saga que se desenrola tendo
como inimigo o próprio território do Império, suas distâncias inexpugnáveis, suas
populações ainda por colonizar para a vida civilizada.
Nos círculos políticos da época, a guerra foi persistentemente qualificada como
desastrosa e mesmo como “maldita”, particularmente pelos próceres conservadores
como o Barão de Cotegipe e o Marquês de Caxias,2 que tiveram que leva-la a termo,
embora tenha sido iniciado por um Gabinete Liberal. 3 Os liberais, entusiastas da
intervenção no Uruguai em 1864, tampouco puderam dela se beneficiar, pois desta


1 FRAGOSO, Augusto de Tasso. História da Guerra entre a Tríplice Aliança e o Paraguai, RJ: Imprensa do
Estado Maior do Exército, 1934. (4 vols). Vol. IV, pp. 205-217. Os detalhes podem ser consultados nos relatórios
do Ministério da Guerra, disponíveis em formato digital em
2 DORATIOTO, Francisco. Maldita Guerra. Nova história da Guerra do Paraguai. São Paulo: Editora
Companhia das Letras, 2002.
3 O período da Guerra do Paraguai foi um dos mais conturbados da vida política do Segundo Reinado, sobretudo
por conta da cisão no campo Liberal. Essa cisão, contando também com alguns elementos conservadores como
Nabuco de Araújo produziu um notável complicador na “política de clientelas” que caracterizava o sistema
político imperial e que se assoberbava com as demandas da própria guerra. Ver NABUCO, Joaquim. Um estadista
do Imperio : Nabuco de Araujo : sua vida, suas opiniões, sua época (4 vols.), RJ: Progresso Editorial, 1949, vol.
II, passim; COSTA, Wilma Peres, A Espada de Dâmocles – o exército, a Guerra do Paraguai e a Crise do
Império, S.P. HUCITEC, 1996, cap. VI.

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vez mais um “tradicional” conflito platino na Banda Oriental acabou por envolver
todo o sistema político imperial em uma “guerra total”, para a qual não estavam
preparadas as forças armadas do império, as suas frágeis estruturas políticas e o seu
esgarçado tecido social, urdido pela escravidão. O sistema de revezamento partidário
arbitrado pelo Poder Moderador do Imperador foi a sua primeira vítima, ferido de
morte no confronto entre Caxias, general em chefe das forças brasileiras e prócer
conservador e o gabinete liberal progressista de Zacarias de Góes e Vasconcellos, em
1868. A morte seria lenta, arrastando-se por mais duas décadas, mas o funcionamento
do mecanismo se quebrara quando o Imperador sacrificou o Gabinete ao General4. O
estrondo provocado pela queda do Gabinete iria reverberar no esforço de refundação
do partido Liberal, no surgimento de um Partido Republicano, na emergência da
“questão servil” como tema da política partidária.
Foi um historiador de cepa liberal, que não esteve na Guerra, mas a aprendeu na
vasta documentação de seu pai, quem consagrou a guerra do Paraguai como divisor de
águas na temporalidade do Império e como demarcador da crise do regime
A Guerra com o Paraguai teve importância tão decisiva sobre o
nosso destino nacional, teve-a também sobre o de todo o Rio da
Prata, que se pode ver nela como que o divisor das águas da história
contemporânea. Ela marca o apogeu do Império, mas também
procedem dela as causas principais da decadência e da queda da
dinastia ...5

Nessa leitura, representativa do ideário mais sofisticado do campo monárquico,


a guerra marcou o momento em que foram postas em xeque as mais profundas
convicções do ideário monárquico - a superioridade das instituições monárquicas
frente as repúblicas platinas, o Império como símbolo de paz e estabilidade frente a
caudilhismo sul-americano. Toda a sua análise das origens da Guerra oscila nisso que
parecia ser a esfinge indecifrável da política externa do Império - o temor da
"contaminação" platina e a inevitabilidade da intervenção nas questões do Prata.
A ameaça sempre viera da República Argentina e o campo de disputa se travava
no Uruguai, pelo menos desde a criação daquele país em 1828. No plano do
imaginário político, a Tríplice Aliança, ao promover uma reviravolta no cenário


4 A análise das várias dimensões da inversão partidária de 1868 perpassa todo o clássico HOLANDA, Sérgio
Buarque de. 1972. História Geral da Civilização Brasileira, Tomo II, vol. 7 “Do Império à República”. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 1972.
5 NABUCO, Joaquim, op. cit. (II) p. 185.

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platino contra o inimigo comum - o Paraguai de Lopez - promovera, para o Império, a
realização de um pesadelo - a contaminação platina e a conversão republicana que,
em seus primeiros momentos, parecia aproximar o Brasil do militarismo e do perigo
de fragmentação identificados ao republicanismo sul-americano. Do Prata vinham
também, paradoxalmente, exemplos de civilização e desenvolvimento que fascinavam
os brasileiros., vinha, ainda, o sentimento de opróbrio pela permanência da
escravidão:

(A Guerra do Paraguai) marca o apogeu do Império mas também


procedem dela as causas principais da decadência e da queda da
dinastia: o aspecto e o desenvolvimento do Prata com a fascinação
que ele exerce, o ascendente militar (pelos nomes chamados
legendários, pelas reivindicações da classe, tendo a frente os homens
que se deram a conhecer ao exército e se ligaram entre si pela
camaradagem de campanha); o americanismo; a própria
emancipação dos escravos que por diversos modos se prende à
guerra (residência em países sem escravos de milhares de brasileiros
de todas as classes; ultrajes constantes ao Brasil por causa da
escravidão por parte dos inimigos e da Aliança; inferioridade militar
efetiva por esse motivo; liberação, graças ao Conde D'Eu, marido da
herdeira do trono, dos escravos da nação vencida); a propaganda
republicana (em parte de origem platina, influência das instituições e
homens do Prata, durante a guerra, sobre Quintino Bocaiúva e
outros, influxo político de acampamento aliado sobre nossa
oficialidade, principalmente a rio-grandense).6

A ideia de que a guerra demarcava a crise da monarquia, não obstante a vitória


obtida nos campos de batalha era bastante clara nos anos que se seguiram à queda do
Império, quando a cristalização de uma versão sobre ela foi tratada como “tarefa de
memória” por letrados e pensadores do campo do reformismo monárquico, que
comportava egressos do campo conservador e do campo liberal, inconformados com
a queda da monarquia (1889), que haviam imaginado como capaz de auto reforma,
sobretudo depois da abolição da escravidão (1888). Coube ao seu mais erudito porta-
voz, Joaquim Nabuco, estabelecer sobre a guerra uma percuciente análise em sua obra
magistral Um Estadista do Império, publicada entre 1893 e 1899, enquanto que seu
amigo e confrade conservador, Alfredo Taunay, a tratou de forma extensa e em tom


6 NABUCO, Joaquim, op. cit., (II) pp.185-186

4
confessional em suas Memórias, que foram escritas a partir de 1891, mas só vieram à
público muitas décadas depois.
O sentido de “missão” dessas obras se fazia como um genuíno combate em
favor da própria história, na tentativa de fazer frente à maré vitoriosa dos jovens
militares positivistas que, segundo os derrotados do momento, queriam eliminar a
monarquia da história, e com ela a própria história, em uma forma perversa de
etapismo evolutivo. Estes, por sua vez, não haviam em sua maioria vivido a guerra,
mas aprenderam sobre ela lições amargas na Escola Militar sobre o descaso que os
políticos da monarquia tinham para com os militares e para com o exército como
instituição. Os mais radicais dentre os jovens positivistas que seguiam o Major
Benjamin Constant condenavam a guerra, chegavam mesmo a propor a devolução dos
troféus e bandeiras, desenvolvendo uma estranha forma de “pacifismo” no qual se
delineava um novo papel para as forças armadas – a encarnação da modernidade pela
ciência contra os bacharéis de raízes rurais que haviam conduzido os destinos da
nação no período monárquico.7
É relevante lembrar que se, cada um a seu modo, Nabuco e Taunay buscam
cristalizar uma memória da guerra, na história do império e na história da vida, esses
escritos sugerem também um novo imaginário sobre o território, demarcado pelos
pontos invadidos nas fronteiras sul e oeste. Para Nabuco, é no espelho do Prata que a
tragédia da monarquia brasileira se desenvolve, fazendo da rendição de Uruguaiana o
lugar onde o Império se desnuda frente a inimigos e adversários. Para Taunay, é a
fronteira oeste, quase inatingível, o tema da narrativa. O inimigo, na verdade, é pouco
visível. Não sabemos se ele se configura na vastidão do próprio território ou na
incúria da política imperial, gerando, por outro lado, uma descoberta do sertão
inóspito e dos seus habitantes, de quem os jovens militares passaram a depender para
a sua própria sobrevivência.
Quem relê hoje a narrativa de Nabuco com olhos treinados percebe com
clareza a aflição que transparece naquele episódio, em que parte do território nacional,
ocupada pelo fracasso defensivo da até então sacralizada “milícia gaúcha”, esteve


7 FRAGOSO, Augusto de Tasso. História da Guerra entre a Tríplice Aliança e o Paraguai, RJ: Imprensa do
Estado Maior do Exército, 1934 (4 vols.). Outros trabalhos de cunho oficial e memorialístico se sucederam no
início do período republicano. O principal deles foi SCHNEIDER, J. L. A Guerra da Tríplice Aliança contra o
governo da República do Paraguai, anotado por J. M. da Silva Paranhos, RJ: Garnier, 1902, tornado precioso
pelas extensas anotações feitas por José Maria da Silva Paranhos Junior, Barão do Rio Branco. Ele era filho do
Visconde do Rio Branco, que teve ativa participação nas fases iniciais da Guerra e na elaboração do Tratado da
Tríplice Aliança.

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quase a ser “liberada” com o concurso de um comandante em chefe republicano, o
General Mitre, em presença do próprio Imperador. A situação, os embaraços por ela
gerados, as glosas das gazetas da corte, a guerra de panfletos entre os partidos pontua,
de um lado, a narrativa de uma crise política que começa a se aprofundar, ao mesmo
tempo em que as fragilidades militares do Império se expunham e as imagens
projetadas pelo inimigo e pelos aliados acentuavam a presença de ex-escravos no
exército, cuja composição era prioritariamente mestiça e negra. Na tentativa de salvar,
no episódio, a imagem do Imperador, Nabuco localiza em Uruguaiana a decisão de
tomar medidas contra escravidão, e para explicar esse movimento ele aponta, como
motivo
“o seu contato com Mitre e Flores em Uruguaiana, o seu vexame de sentir que
a escravidão era o labéu que o Paraguai atirava ao nosso exército; a inferioridade
que descobriam em nós os nossos próprios aliados. Na posição em que se achava, o
Imperador era quem recebia qualquer afronta feita ao país, e o escárnio, a
humilhação, vinha de toda a parte, de amigos e inimigos, do Semanário paraguaio
como da Revue des Deux-Mondes, dos congressos pan-americanos como das
caricaturas porteñas”8.

O próprio episódio da rendição seria objeto de uma acerba polêmica, trazendo


à tona a delicada situação da imagem da monarquia diante da constrangedora situação
de por pouco não ter o território brasileiro “libertado” sob comando republicano, em
terras gaúchas, tema discutido nos panfletos, e em ácidos comentários na imprensa da
província rio-grandense e na corte. As narrativas do episódio produziram um estranho
“Domingo de Bouvines” na historiografia da guerra, expressão das contradições e
conflitos que afloravam, em momento em que os impressos e sua circulação, atingiam
as cidades (e especialmente a corte) com grande intensidade.9

Os contemporâneos nos legaram, também, o registro de um sentimento de


mudança nas sensibilidades associada aos anos da guerra, seja pelo modo como as
notícias eram absorvidas nos grandes centros, seja pelos números inéditos que elas
revelavam. Era números nunca vistos e, se a tragédia que eles evidenciavam poderia

8 NABUCO, Joaquim, op. cit. II, pp. 369-370
9 Ver Jequitinhonha, Francisco Gê Acaiaba de Montezuma, Visconde de. Protesto do Senador Visconde de
Jequitinhonha contra a intervenção dos alliados no sítio, e rendição da cidade de Uruguayana, Rio de Janeiro :
Typ. Universal de Laemmert, 1865; Rio Branco, José Maria da Silva Paranhos, Visconde de, A convenção de 20
de fevereiro demonstrada á luz dos debates do Senado e dos successos da Uruguayana, Rio de Janeiro : B. L.
Garnier, 1865; BOCAIÚVA, Quintino de (atribuído). Contraprotesto feito por um brasileiro em resposta ao Sr.
Visconde de Jequitinhonha, relative à reundição de Uruguayana, RJ, Typ. Universal de Laemmert, 1865.

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parecer longínqua para os moradores da corte, elas não deixavam de conter também
uma macabra maneira de comparatismo, que fazia com que as “nossas guerras”
platinas, onde costumavam se envolver centenas de homens, agora continham
milhares, aproximando-se daquelas que se travavam na Europa, se não conseguiam
alcançar os números terríveis da guerra civil americana. É o que a mordacidade de
Machado nos lembra, em 1892. Pela tragédia de seus números, a guerra enfim tornava
as nações americanas comparáveis às europeias.

Senhores, eu conheci um homem que durante a guerra de 1870, não era francês nem
alemão, mas aritmético. A volúpia com que ele falava das centenas de milhares de
soldados era única; parecia que ele os comandava todos de um e de outro lado, que
compusera os dois exércitos, que eram seus, sangue do seu sangue, carne da sua
carne. A batalha de 24 de maio, na guerra do Paraguai, mostrou-me igual fenômeno;
um sujeito, aliás bom patriota, tão fascinado ficou pelo numero dos combatentes, que
não atendia ao fulgor da batalha, e dizia que era a primeira da América do Sul, não
pelos prodígios de valor, mas pela quantidade de homens. (A Semana, 11 de fevereiro
de 1892)10

A vertigem dos números apontava para a trágica modernidade dessa guerra


também pela possibilidade de que os números fossem vistos em conjunto, em blocos
cada vez maiores e mais sangrentos, associando-se a uma “sensação do tempo” nova.
A população da corte (e talvez também a das maiores cidades), ávida por notícias
tornava-se uma “comunidade imaginada” por que os números tocavam a todos,
envolvendo brasileiros de todos os quadrantes. Os números ganhavam dramaticidade
por que vinham inseridos em narrativas que lhes conferiam sentidos, entretecidos com
as polêmicas que se exacerbavam naquele que foi considerado o ambiente político
mais envenenado de todo o período imperial. As notícias das batalhas longínquas
chegavam inteiras, em “partes oficiais” avidamente esperadas pela população da
cidade.

Oh! a sensação do tempo! A vista dos soldados que entravam e saíam de semana em
semana, de mês em mês, a ânsia das notícias, a leitura dos feitos heróicos, trazidos de
repente por um paquete ou um transporte de guerra... Não tínhamos ainda este cabo
telegráfico, instrumento destinado a amesquinhar tudo, a dividir as novidades em
talhadas finas, poucas e breves. Naquele tempo as batalhas vinham por inteiro, com
as bandeiras tomadas, os mortos e feridos, número de prisioneiros, nomes dos heróis

10 Obra completa de Machado de Assis, acesso em 04 de julho de 2016, disponível em
http://machado.mec.gov.br/images/stories/html/cronica/macr12.htm, acesso em 04 de julho de 2016

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do dia, as próprias partes oficiais. Uma vida intensa de cinco anos. (A Semana, 11 de
novembro de 1894)11

Contrastando com a intensidade que ela teve na memória dos coevos, a Guerra
da Tríplice Aliança com o Paraguai esteve relativamente ausente do campo
historiográfico brasileiro, marcado por uma espécie de silêncio envergonhado, ao qual
se misturaram frequentemente os temores em tocar nos temas sensíveis às forças
armadas, em país onde a intervenção militar na política se tornou endêmica a partir da
década de 1920. Não por acaso, esse silêncio seria quebrado pelo trabalho
monumental de um historiador militar, o General Augusto de Tasso Fragoso (1934),
mas sua leitura ficou em grande parte restrita ao campo dos especialistas e do meio
militar. Hoje, ele ainda é uma referência importante para os historiadores, pelo
tratamento extensivo e cuidadoso da correspondência diplomática e das fontes
oficiais. Esse foi o estado da arte que procuraram modificar os historiadores
conhecidos como “revisionistas” que na década de 1970 durante durante a ditadura
militar brasileira, fizeram reverberar os temas da guerra do Paraguai em ruidosas
análises ainda hoje presentes nas interpretações e no ensino escolar12. Essas análises
traziam fortemente a marca do peso das resistências às ditaduras militares que se
expandiam na América do Sul e também reverberavam as paixões anti-imperialistas
trazidas pela guerra do Vietnã e os conflitos pela independência das nações africanas.
Elas tiveram, entretanto, o inestimável valor de propor uma agenda nova para o
estudo do conflito 13 . A violência da guerra e da sociedade que a engendra, por
exemplo, pelo recrutamento forçado dos subalternos, a questão do escravismo e das
outras formas de trabalho compulsório na formação das milícias e das forças de linha,
os recursos materiais envolvidos, os efeitos da guerra sobre o desenvolvimento (ou a


11 Obra completa de Machado de Assis, acesso em 05 de julho de 2016, disponível em
http://machado.mec.gov.br/images/stories/html/cronica/macr12.htm,

12 Ver POMER, León. A guerra do Paraguai, a grande tragédia rioplatense. São Paulo: Global, 1980. E também
Paraguai: Nossa guerra contra esse soldado. São Paulo: Global, 2001. Para o Brasil ver
CHIAVENATTO, Julio José. Genocídio americano: a Guerra do Paraguai. São Paulo: Brasiliense, 1981.
13 Para as primeiras interpretações críticas do revisionismo ver, SALLES, Ricardo H. 1990. Guerra do Paraguai:
Escravidão e cidadania na formação do Exército. Rio de Janeiro: Paz e Terra e COSTA, Wilma Peres, A Espada
de Dâmocles, o exército, a Guerra do Paraguai e a crise do Império, SP. HUCITEC, 1996.

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ruína) material dos países envolvidos, foram alguns desses temas, sobre os quais vem
se debruçando os historiadores nas últimas décadas. .14

A guerra e seu contexto: novos desafios e uma bizarra inversão do imaginário


político

Retomar hoje a indagação sobre a relação entre a guerra e a crise do Império


impõe repensar não apenas a guerra, mas a noção de crise com a qual operamos e sua
operacionalidade. Vale dizer, é necessário que alarguemos seu potencial heurístico
alargado, para além do sentido econômico que frequentemente se associa ao conceito,
muito embora este seja aqui também muito relevante, como veremos a seguir. O
diálogo com as narrativas coevas nos ajuda a trazer a crise para o campo da
experiência dos homens que a viveram e construir a possibilidade de pensar
historicamente aquilo que é específico dessa guerra, o que a distingue de todas as que
a antecederam na mesma região e com os mesmos envolvidos, em síntese, dando
substrato à ruptura do tempo que se pretende identificar e explicar. A crise se enraíza
muitas vezes em dimensões que não são apreensíveis de forma imediata pelos coevos,
mas ela se faz presente na consciência dos homens como esgotamento de certas
práticas, como inviabilização de certos comportamentos, como busca insólita de
agarrar-se as práticas antigas ao mesmo tempo em que expressa a premente
necessidade de engendrar novas estratégias15.


14 Na última década, uma miríade de novos estudos englobados sob o título de “nova história militar” veio renovar
o campo do estudo da guerra, incluindo-se aí a Guerra da Tríplice Aliança,. Cf. CASTRO, C.; KRAAY, H.;
IZECKSOHN, V. (orgs.). Nova História Militar Brasileira. Rio de Janeiro: FGV, 2004; CASTRO, Celso. Os
militares e a república: um estudo sobre cultura e ação política. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995; IZECKSOHN,
V. O cerne da discórdia. A Guerra do Paraguai e o Núcleo Profissional do Exército. Rio de Janeiro: BIBLIEx,
1997. Para uma perspectiva comparativa entre a Guerra do Paraguai e a Guerra Civil Americana, ver,
IZECKSOHN, V. Slavery and war in the Americas: race, citizenship, and State building in the United States and
Brazil, 1861-1870. Charlottesville: University of Virginia Press, 2014. Na última década a Guerra do Paraguai tem
sido objeto de trabalhos de grande abrangência, fora do contexto latino-americano. Ver, por exemplo, BEATTIE,
P. M. The tribute of blood: army, honor, race, and nation in Brazil, 1864-1945. Durham: Duke University Press,
2001, CAPDEVILA, Luc. 2007. Une guerre totale, Paraguay 1864–1870: Essai d’histoire du temps présent.
Rennes, France: Presses Universitaires de Rennes, além do mencionado estudo monumental de Thomas
WHIGHAM, La guerra de la Triple Alianza, Asunción, Taurus, 2011-2013 (3 vols.) e WHIGHAM, T. e KRAAY,
H. (eds). I die with my country: perspectives on the Paraguayan War. 1864-1870, Lincoln, University of Nebraska
Press, 2004. Para um balanço historiográfico ver, MAESTRI, Mário. A guerra no papel: história e historiografia
da Guerra no Paraguai. (1844-1870). Porto Alegre : LCM Editora ; Passo Fundo, PPGH UPF, 2013

15 JANCSÓ, István. Na Bahia, contra o Império – História da sedição de 1798, São Paulo/Salvador,
Hucitec/EDUFBa, 1996, p.203

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Vista da experiência brasileira, a crise se enraíza na dificuldade de tratar com
as dimensões novas de uma guerra que operava paradoxalmente em um espaço de
conflito endêmico desde o período colonial, sendo, portanto, dotada de todo um
conjunto perverso de novidades e de desafios inesperados. Olhada em seu conjunto, a
principal especificidade da Guerra do Paraguai reside na sua abrangência, que
superava a de qualquer outro conflito regional enfrentado até então, pelo volume de
homens, armas e recursos econômicos envolvidos, adquirindo esse caráter de “guerra
total”.
Uma primeira dimensão significativa dessa novidade vem do panorama
internacional nesses conturbados anos 1860, onde as conturbações internas da Europa
se entretecem nas relações do velho e do novo continente, reconfigurando-as – a
Guerra da Tríplice Aliança começa no momento em que termina a guerra civil norte
americana e em que estão em curso as intervenções nas Repúblicas do Pacífico e no
México (1867). O fim do escravismo norte-americano tingia de luzes sombrias o
horizonte do Império brasileiro, pois se tratava do destino das duas ultimas nações
independentes que eram escravistas, e onde, a escravidão longe de ser um resíduo,
estivera entramada profundamente no processo de independência e na construção
nacional. Tanto no Brasil como nos Estados Unidos, os conflitos expressavam, em
distintos graus e maneiras, o caráter explosivo do escravismo em fronteiras vivas. No
caso dos EUA, as fronteiras internas, depois que o expansionismo externo e o pacto
federativo não foram mais capazes de conter as tensões promovidas pela escravidão.
No caso do Brasil, as fronteiras externas, particularmente as da região platina, onde os
antigos conflitos coloniais se ressignificavam durante o processo de construção dos
estados nacionais, opondo regimes políticos e sistemas de trabalho divergentes, em
vastas áreas de cultura e vida material similar.
Para os coevos, habituados aos conflitos platinos e ao seu uso para o prestígio
da monarquia, a inovação mais perturbadora se revelou logo no início do conflito
quando o Tratado da Tríplice Aliança veio a publico: a Aliança que então se formava
invertia a direção "tradicional" dos conflitos do Prata. Estes até então haviam tido por
epicentro sobretudo a Banda Oriental do Uruguai e haviam oposto a Confederação
Argentina e o Império, monarquia e república, federalismo e monarquia que se definia
como unitária. Essa inversão, que teria importantes desdobramentos internos no
Império Brasileiro e provocava forte oposição e muitos círculos monárquicos,
apresentava-se entretanto como fundamental para o Império, precisamente por que a

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solidão que ficava o Brasil como última nação independente e escravista pesava
fortemente sobre o Império desde o início da guerra e durante todo o seu desenrolar.
A imagem da monarquia escravista contra a pequena república guarani foi
reproduzida nos noticiários tanto na América quanto na Europa, e a leitura a partir do
final da Guerra Civil Americana que era desenvolvida na imprensa francesa pelo
trabalho de Juan Bautista Alberdi e Elisée Reclus não era benéfica para o Império16. A
aliança com da República Argentina amenizava esse potencial isolamento17.
“Não foi menor resultado do Tratado de 1 de maio, o ter feito o
Império aparecer na guerra contra o Paraguai ao lado de duas
Repúblicas em momento que, de outro modo, seria crítico para ele. O
momento, com efeito, da tentativa e Napoleão III e de Maximiliano da
Áustria, outro Habsburgo, no México, e da vitória da causa
abolicionista nos Estados Unidos, era perigoso para qualquer
afirmação de prestígio e do ascendente do Brasil em luta contra a
América Republicana. O pronunciamento da América Latina contra nós pode-se dizer
que foi geral, e se não tivéssemos o ante-mural argentino, antes, pelo
contrário, tivéssemos Mitre cooperando com Prado, com Perez, com
Johnson mesmo, o isolamento do Império teria sido fatal”.

Se o contexto externo era conturbado, é preciso que observemos também as


dificuldades que operavam no plano interno. Para isso é necessário dar continuidade à
desconstrução de um persistente mito historiográfico18: aquele que afirmava o vigor
da centralização política operada pelo estado imperial brasileiro por oposição aos seus
vizinhos americanos. Isso requer recuperar o caráter compósito da formação social
brasileira no século XIX e a permanência de forças centrífugas que operavam sob os
mecanismos de concentração de poder operados pela monarquia. Se essas eram
moderadas pela escravidão, que impedia a radicalização dos conflitos intra-
oligárquicos alimentados pelas forças milicianas, não quer dizer que não
continuassem a operar. É preciso levar em conta que, apesar da proverbial
centralização operada pela monarquia, o Império brasileiro era uma formação
compósita de forças provinciais, um “mosaico” de identidades regionais e de


16 COSTA, W.P., “Los tormentosos años 60 y la crisis de la monarquía en Brasil: guerra, esclavitud e imaginarios
políticos”, in PALACIOS, G. and PANI, E. (eds), El Poder y la Sangre - Guerra, Estado y Nación en la década de
1860, México: Ed. Colegio de Mexico, 2014.
17 NABUCO, Joaquim, op. cit., 1949, II, p.315.
18 Sobre isso ver GUIMARÃES, Manoel Luís Salgado. 1988. “Nação e civilização nos trópicos: O Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro e o projeto de uma História Nacional”. Estudos Históricos 1988 1(1). 5-27.

11
identidades políticas de longa existência desde o período colonial 19 , que se
acomodavam em perene tensão no interior da referida centralização. A tensão
envolvia uma busca de maiores autonomias provinciais e maiores recursos para o
desenvolvimento das economias regionais e operava um sistema político composto de
vastos sistemas de clientelas que se enraizavam no plano das províncias e se
compunham em tensão permanente com os dois grandes partidos nacionais – o
Conservador (defensor dos mecanismos de centralização monárquica) e o Liberal
(defensor de maior autonomia provincial)20.

Uma mobilização sem precedentes – a ruptura da tradição miliciana

Para entender a contundência do desafio militar que a Guerra da Tríplice


21 Aliança trouxe para o Brasil, é preciso ter em mente que, a despeito de sua
intervenção endêmica nos conflitos platinos ( e talvez, em parte, por isso mesmo), o
Império brasileiro descansava sua capacidade armada sobretudo em forças de caráter
miliciano, como a Guarda Nacional, força cara aos liberais, criada em 1831, para
substituir o exército de linha, tido por pouco confiável, indisciplinado e permeável à
demandas populares e radicais, expressas nas “manifestações de povo e tropa” que
levaram à Abdicação do primeiro imperador. A Guarda Nacional recria, em tempo
novos e com novas roupagens, a longa tradição miliciana que se desenvolvera em
todas as províncias durante o período colonial, forças que operavam as guerras da
Coroa sob o comando dos grandes senhores territoriais, donos de terras e escravos,
cuja posse e garantia passava, por sua vez, pelo apoio de contingentes armados. Essas
forças milicianas vieram a mostrar, nas décadas de 1830 e 1840, um forte potencial
disruptivo, pois muitas vezes serviram aos propósitos das elites políticas regionais em
suas disputas contra o centro político, o que veio a favorecer a reorganização do
exército de linha, ao longo das décadas de 1840 e 1850.


19 Ver os ensaios contidos em JANCSÓ, I. Brasil: formação do estado e da nação, SP: HUCITEC, 2003.

20 DOLHNIKOFF, M. O pacto imperial: origens do federalismo no Brasil. São Paulo: Globo, 2005
21 Castro, J. B. A milícia cidadã: a Guarda Nacional de 1831 a 1850. São Paulo: Editora Nacional; Brasília: INL,
1977.Uricoechea, F. O minotauro imperial. Rio de Janeiro: DIFEL, 1978 e Ribeiro, J. I. Quando o serviço os
chamava. Milicianos e Guardas Nacionais no Rio Grande do Sul. Santa Maria: EdUFSM, 2005. MUGGE,
Miqueias, Senhores da Guerra:Elites militares no Sul do Império do Brasil (Comandantes Superiores da Guarda
Nacional – 1845-1873). Tese de Doutoramento UFRJ, 2016.

12
A frágil centralização operada pela monarquia dependia de forças milicianas,
tanto para sua defesa quanto para a manutenção de uma política intervencionista no
Prata. Nos conflitos platinos, em que o exército de linha atuava, com a Marinha de
Guerra, como apoio da cavalaria miliciana gaúcha, a partidarização política dos
conflitos se entretecia também com uma forte base material, pois se disputava o
controle dos fornecimentos de guerra – cavalos, gado, forragens – ligando a guerra ao
mundo dos negócios e este, à aquisição de novas terras, gado, escravos e força
política22.
Os esforços de organização do exército das décadas de 1840 e 1850 operaram
sobretudo no campo da oficialidade, criando cursos e mecanismos de acesso, que
atraíram as camadas menos ricas dos senhores de terra e uma incipiente classe média,
atraída pela gratuidade dos cursos e pela relativa estabilidade da carreira23. A tropa de
linha, por sua vez, sofria a contínua drenagem dos efetivos que permaneciam nas
forças milicianas e no controle privado. À tropa estavam destinados aqueles
elementos sem nenhuma proteção política, ou vítimas dos adversários políticos dos
seus protetores, o que se considerava como uma escória social. A violência era uma
constante, assim como as deserções. O recrutamento era, sempre, uma das armas
políticas mais importantes do partido vencedor. Aqueles que fugiam a ele, iriam
buscar proteção entre os grandes senhores, em troca de trabalho e serviços, inclusive
nas milícias. Esse caráter misto da força armada, combinando forças de linha e forças
milicianas, adequava-se ao tipo de guerra travado nos conflitos platinos, onde
enfrentava com frequência forças de tipo similar, e adequava-se sobretudo à orgânica
necessidade da ordem escravista de manter a violência sob controle privado, nas
fazendas e nos rincões do interior. Os postos mais altos da oficialidade tinham
também o seu destino fortemente entremeado pelos partidos políticos, dependendo
frequentemente do favor político para as promoções e sendo, por sua vez, recrutados
para a vida político-partidária. Era comum dizer-se que “cada partido tinha o seu
general”. 24


22 Ver MIRANDA, M. E.. A Estalagem e o Império: crise do Antigo Regime, fiscalidade e fronteira na Província
de São Pedro (1808-1831). São Paulo: Hucitec, 2009 e COSTA, WP. E MIRANDA, M. E. . “Entre senhores e o
Império: transformações fiscais na formação do Estado brasileiro (1808-1840)”. Illes i Imperis, v. 13, p. 87-115,
2010

23 SCHULZ, J. 1996. O exército na política – origens da intervenção militar (1850-1894). SP: EDUSP

24 COSTA, Wilma Peres, A espada de Dâmocles … cap. 1

13
Visto tudo isso em conjunto, percebe-se que o desdobramento do imaginário
territorial que presidiu a formação do estado nacional brasileira descansava sobre um
vasto campo de tensões. A concepção de um “direito” ao território pelo seu caráter
“herdado” fruto da própria opção monárquica (e preservação dinástica) operava em
tensão com a enormidade e impenetrabilidade do território que se operava como
“defesa natural” na fronteira norte, opera como ameaça na fronteira oeste (Mato
Grosso invadido) e na fronteira sul. Se, no Norte, o conflito se dava por aquilo que a
fronteira dividia (a vizinhança das grandes potencias europeias e sua cobiça sobre a
bacia amazônica), ao sul, os temores operavam menos por aquilo que a fronteira
dividia do que por aquilo que ela conecta – regiões de grande convergência étnica e
cultural como o pampa gaúcho e a ocupação das várias etnias indígenas espraiadas
pelas fronteiras políticas da mesopotâmia platina. A ação paraguaia coloca o poder do
estado imperial em cheque por que desnuda a fragilidade do poder do centro sobre
essas fronteiras longínquas e de difícil acesso, colocando a monarquia perante o
desafio de seu próprio imaginário territorial em duas dimensões principais – nos
riscos da aliança entre regimes políticos e sistemas de trabalho distintos em fronteiras
vivas e no desafio imposto pelo território em si mesmo, inatingível em suas fronteiras
distantes do centro político, separadas dele pela vastidão de sertões habitados por
gente muitas vezes estranha aos valores e objetivos que comandavam o processo
civilizatório do Estado Nacional. O desafio seria respondido por uma mobilização
militar sem precedentes, que viria a tensionar até o limite as relações entre o centro
político e as províncias, entre os poderes públicos e as resistências privadas, entre a
cultura miliciana e a necessidade de forjar um exército profissional.

Para se ter uma ideia do volume da mobilização e de sua distribuição pelas


províncias do Império lançamos mão dos dados fornecidos pelo Ministério do
Exército em seus relatórios, sumarizados no trabalho de Augusto Tasso Fragoso e
completados com dados de outras fontes. A análise das tabelas que se seguem nos dá
a possibilidade de ter uma visão aproximada da contribuição relativa das diferentes
províncias para o esforço de guerra, bem como da natureza das forças. Em cada uma
delas destacamos um tipo de efetivo – Voluntários da Pátria, Guardas Nacionais,
Recrutas e Libertos e Substitutos (escravos libertados para a guerra)25. As rubricas


25 Sobre os libertos ver SALLES, Ricardo, op. cit. e IZECKSOHN, Vitor. “Resistência ao recrutamento para o

14
são naturalmente imprecisas, pois elas se baseiam nas classificações das Listas de
Recrutamento, tais como aparecem nos Relatórios do Ministério da Guerra. Na
verdade, as distinções que operam nas duas primeiras categorias são muito
permeáveis. Os Voluntários da Pátria foram uma categoria criada pelo Imperador D.
Pedro II (Decreto nº 3.371, de 7 de Janeiro de 1865) para estimular os sentimentos
patrióticos. Os que se alistassem voluntariamente teriam algumas vantagem, tais como
prêmio de trezentos mil réis; lotes de terra com vinte e duas mil braças em colônias
militares; preferência nos empregos públicos; patentes de oficiais honorários;
liberdade a escravos; assistência a órfãos, viúvas e mutilados de guerra 26 . As
narrativas e os debates coevos dão conta de que, depois de 1866, a rubrica
crescentemente envolve “voluntários” e “involuntários”, vale dizer os recrutados à
força. Os presidentes de província se esforçavam para cobrir quotas de voluntários,
com o alistamento forçado generalizado. Na verdade, a qualificação de um indivíduo
como Voluntário ou Recruta dependia sobretudo do favor político e a distinção foi
perdendo sentido ao longo da guerra, praticamente desaparecendo no período de
comando de Caxias, que pressionou por uma integração dos diferentes corpos.
Partimos do quadro geral, para apresentarmos em seguida o peso das distintas
categorias de recrutamento nas diferentes províncias. Há que se observar, em todos
os casos, a sobrevalorização do Município Neutro, termo que designava à época, o
Rio de Janeiro, capital, distinguindo-o da Província do mesmo nome. A capital era um
centro de recrutamento e também um centro de envio de tropas vindas das várias
partes do território, e que acabavam por constar nas listas da capital. Por outro lado,
nas tabelas do Ministério havia uma evidente sub contagem da Província do Rio
Grande do Sul, de onde os homens partiam diretamente para a frente de batalha, sem
muitas vezes estarem contados nos mapas do Ministério. A correção foi feita com
auxílio dos dados de Paranhos, nas suas anotações à obra de Schneider, com o
acréscimo de 20.400 homens, o que torna a província aquela que mais forneceu
efetivos para o conflito.


exército durante as guerras Civil e do Paraguai: Brasil e Estados Unidos durante a década de 1860”. Estudos
Históricos (Rio de Janeiro), Brasil, v. 27, 2001, p. 84-109; KRAAY, H. 1996. “The Shelter of the Uniform’: The
Brazilian Army and Runaway Slaves, 1800-1888,” Journal of Social History 29:3 (Spring 1996): 637-57;
KRAAY, H..1997.“Slavery, Citizenship and Military Service in Brazil’s Mobilization for the Paraguayan War,”
in Slavery and Abolition 18:3 (December 1997), 228-56.

26 Sobre os Voluntários ver DUARTE, P. Q. Os voluntários da pátria na Guerra do Paraguai. RJ. Bibliex, 1981

15
Tabela 1. Efetivos distribuídos por províncias do império classificadas pelo percentual da população total.

V.
Província Pátria % G.Nacional % Recrutas % Libertos % Tot.Efet. População %
R. G. dl Sul 460 1,22 23.787 46,10 279 1,60 357 7,55 24.883 434.813 4,38

Bahia 7.764 20,52 5.312 10,29 1.861 10,66 290 6,13 15.227 1.379.616 13,89

Mun. Neutro 6.234 16,48 1.851 3,59 1.170 6,70 2.212 46,80 11.467 274.972 2,77
Rio de Janeiro 3.585 9,48 2.315 4,49 1.615 9,25 336 7,11 7.851 782.724 7,88

Pernambuco 4.158 10,99 1.104 2,14 1.734 9,93 140 2,96 7.136 841.539 8,47
São Paulo 2.271 6,00 1.125 2,18 2.553 14,62 555 11,74 6.504 837.354 8,43

Ceará 1.412 3,73 3.096 6,00 1.019 5,83 121 2,56 5.648 721.686 7,27
Maranhão 1.509 3,99 1.787 3,46 1.083 6,20 157 3,32 4.536 359.040 3,62

Minas Gerais 894 2,36 1.768 3,43 1.366 7,82 42 0,89 4.070 2.039.735 20,54
Pará 1.461 3,86 1.440 2,79 861 4,93 65 1,38 3.827 275.237 2,77

Mato Grosso 1.417 3,75 1.843 3,57 38 0,22 0 0,00 3.298 60.417 0,61
Piauí 960 2,54 1.134 2,20 446 2,55 165 3,49 2.705 202.222 2,04

Alagoas 1.041 2,75 787 1,53 791 4,53 37 0,78 2.656 348.009 3,50
Paraíba 984 2,60 599 1,16 820 4,70 51 1,08 2.454 376.226 3,79

Sergipe 1.099 2,91 724 1,40 391 2,24 40 0,85 2.254 176.243 1,77

Paraná 480 1,27 1.296 2,51 230 1,32 16 0,34 2.022 126.722 1,28

Santa Catarina 969 2,56 264 0,51 180 1,03 124 2,62 1.537 159.802 1,61

R. G. do Norte 542 1,43 348 0,67 419 2,40 2 0,04 1.311 233.979 2,36

Espírito Santo 341 0,90 285 0,55 324 1,86 16 0,34 966 82.137 0,83

Amazonas 247 0,65 309 0,60 167 0,96 1 0,02 724 57.610 0,58

Goiás 0 0,00 424 0,82 118 0,68 0 0,00 542 160.395 1,62
37.82
Total 8 100 51.598 100 17.465 100 4.727 100 111.618 9.930.478 100
*Fonte FRAGOSO, Gal. Augusto de Tasso, vol. IV, 235-239, acrescida de Schneider. Vol. II, pp. 121-122 para o Rio Grande
do Sul.

As tabelas seguintes apresentam os mesmos dados, separando cada uma das


categorias de recrutas, para melhor visibilidade. A tabela 5 apresenta também a
população escrava do Império distribuída por província, de acordo com o Censo de
1872.

16
Tabela 2. Voluntários da Pátria por Província

Vol.
Província Pátria % População %
7.764 20,52 1.379.616 13,89
Município Neutro 6.234 16,48 274.972 2,77
Pernambuco 4.158 10,99 841.539 8,47
Rio de Janeiro 3.585 9,48 782.724 7,88
São Paulo 2.271 6,00 837.354 8,43
Maranhão 1.509 3,99 359.040 3,62
Pará 1.461 3,86 275.237 2,77
Mato Grosso 1.417 3,75 60.417 0,61
Ceará 1.412 3,73 721.686 7,27
Sergipe 1.099 2,91 176.243 1,77
Alagoas 1.041 2,75 348.009 3,50
Paraíba 984 2,60 376.226 3,79
Santa Catarina 969 2,56 159.802 1,61
Piauí 960 2,54 202.222 2,04
Minas Gerais 894 2,36 2.039.735 20,54
Rio Grande do
Norte 542 1,43 233.979 2,36
Paraná 480 1,27 126.722 1,28
Rio Grande do Sul 460 1,22 434.813 4,38
Espírito Santo 341 0,90 82.137 0,83
Amazonas 247 0,65 57.610 0,58
Goiás 0 0,00 160.395 1,62
Total 37.828 100,00 9.930.478 100,00

17
Tabela 3. Efetivos da Guarda
Nacional por Província

Província G.Nacional % População %


R.G. do Sul 23.787 46,10 434.813 4,38
Bahia 5.312 10,29 1.379.616 13,89
Ceará 3.096 6,00 721.686 7,27
Rio de Janeiro 2.315 4,49 782.724 7,88
Município Neutro 1.851 3,59 274.972 2,77
Mato Grosso 1.843 3,57 60.417 0,61
Maranhão 1.787 3,46 359.040 3,62
Minas Gerais 1.768 3,43 2.039.735 20,54
Pará 1.440 2,79 275.237 2,77
Paraná 1.296 2,51 126.722 1,28
Piauí 1.134 2,20 202.222 2,04
São Paulo 1.125 2,18 837.354 8,43
Pernambuco 1.104 2,14 841.539 8,47
Alagoas 787 1,53 348.009 3,50
Sergipe 724 1,40 176.243 1,77
Paraíba 599 1,16 376.226 3,79
Goiás 424 0,82 160.395 1,62
R.G. do Norte 348 0,67 233.979 2,36
Amazonas 309 0,60 57.610 0,58
Espírito Santo 285 0,55 82.137 0,83
Santa Catarina 264 0,51 159.802 1,61
Total 51.598 100,00 9.930.478 100,00

18
Tabela 4.
Recrutas por
província

Província Recrutas % População %


São Paulo 2.553 14,62 837.354 8,43
Bahia 1.861 10,66 1.379.616 13,89
Pernambuco 1.734 9,93 841.539 8,47
Rio de Janeiro 1.615 9,25 782.724 7,88
Minas Gerais 1.366 7,82 2.039.735 20,54
Município Neutro 1.170 6,70 274.972 2,77
Maranhão 1.083 6,20 359.040 3,62
Ceará 1.019 5,83 721.686 7,27
Pará 861 4,93 275.237 2,77
Paraíba 820 4,70 376.226 3,79
Alagoas 791 4,53 348.009 3,50
Piauí 446 2,55 202.222 2,04
Rio Grande do
Norte 419 2,40 233.979 2,36
Sergipe 391 2,24 176.243 1,77
Espírito Santo 324 1,86 82.137 0,83
Rio Grande do Sul 279 1,60 434.813 4,38
Paraná 230 1,32 126.722 1,28
Santa Catarina 180 1,03 159.802 1,61
Amazonas 167 0,96 57.610 0,58
Goiás 118 0,68 160.395 1,62
Mato Grosso 38 0,22 60.417 0,61
Total 17.465 100,00 9.930.478 100,00

19
Tabela 5.
Libertos
Pop. Escrava
Província Libertos % da Provincia %
Município Neutro 2.212 46,8 47.260 3,06
São Paulo 555 11,74 169.964 10,99
Rio Grande do Sul 357 7,55 83.370 5,39
Rio de Janeiro 336 7,11 304.744 19,70
Bahia 290 6,13 173.639 11,23
Piauí 165 3,49 25.533 1,65
Maranhão 157 3,32 74.939 4,85
Pernambuco 140 2,96 93.496 6,05
Santa Catarina 124 2,62 14.730 0,95
Ceará 121 2,56 33.960 2,20
Pará 65 1,38 30.989 2,00
Paraíba 51 1,08 27.245 1,76
Minas Gerais 42 0,89 333.436 21,56
Sergipe 40 0,85 32.974 2,13
Alagoas 37 0,78 33.242 2,15
Paraná 16 0,34 10.715 0,69
Espírito Santo 16 0,34 22.738 1,47
Rio Grande do
Norte 2 0,04 13.484 0,87
Amazonas 1 0,02 1.183 0,08
Mato Grosso 0 0,00 7.064 0,46
Goiás 0 0,00 11.876 0,77
4.727 100,01 1.546.581 100,00

Ainda que as informações sejam indicativas, podemos perceber que, fato inédito
em qualquer conflito anterior do Império, a mobilização atingiu todo o território, o
que já de si fala sobre uma guerra que se processava no extremo sul e à qual as
províncias do Norte deviam se sentir bastante estranhas. Os presidentes de província
eram nomeados pelo Gabinete, ou seja, pelo poder central e porfiavam-se em
conseguir recrutas, sob diversas formas, seja estendendo os privilégios dos voluntários
à Guarda Nacional (que de outra forma seria refratária) seja utilizando o mesmo
critério para o recrutamento forçado, poupando os afilhados políticos, atuando
discricionariamente na concessão de vantagens e isenções. Por essa razão é bastante
difícil aquilatar o volume das formações milicianas (Guarda Nacional), com exceção
daquele proveniente do Rio Grande do Sul. São frequentes as queixas de que a
Guarda Nacional era refratária ao recrutamento e que muitos recrutados à força

20
estavam sendo listados como Guardas Nacionais para preencher as tabelas e agradar o
governo. De qualquer modo é importante observar também que é muito grande o peso
do Norte, principalmente quando abstraímos os dados referentes ao Município Neutro,
que, exceto no que se refere aos “libertos e substitutos” podiam referir-se a
combatentes oriundos das diversas partes do Império que para aí vinham para partir
para a Guerra. Os libertos e substitutos refletem, em parte significativa, aos “escravos
da nação”, escravos pertencentes a Coroa que foram libertados para a guerra, o que
traz um peso maior para esse segmento na corte. Eles não foram em tão grande
número, o que contesta a imagem do exército composto por escravos, glosado nas
caricaturas paraguaias e portenhas. Provavelmente, além do uso das imagens como
arma de guerra, essas representações refletiam o fato de que os combatentes
brasileiros não eram brancos, eram mulatos, mestiços e muitos eram negros, o que não
quer dizer que fossem libertos. Elas expressavam também o racismo dos aliados, com
efeito devastador sobre a autoimagem das elites do Império. A contundência da
discussão racial nas décadas seguintes é um sinal dessa experiência, como os textos de
Nabuco anteriormente citados demonstram claramente.
Há também uma evidente sub contagem, no que se refere à Guarda Nacional do
Rio Grande do Sul, formação miliciana que designava vastos contingentes da
província. Mesmo tendo em conta essas observações, podemos notar que o norte, e lá,
particularmente Bahia, Pernambuco e Maranhão, possuidores de grande contingente
de escravos tiveram a contribuição mais expressiva, enquanto que no Sul, reponta a
contribuição de São Paulo, província onde se concentrava já a grande produção
cafeeira e a maior parte da escravaria. Este é um ponto importante a ressaltar, pois as
décadas de 1850 a 1870 vão testemunhar a expansão do café na Província de São
Paulo, atraindo também boa parte da escravaria do Norte, através do tráfico interno.
No período da guerra, a Província de São Paulo está dando impulso à sua malha
ferroviária, o que tornava ainda mais aguda a premência por braços. Evidentemente,
algumas províncias conseguiram evitar as agruras do esforço de guerra em quase
todas as rubricas, como foi o caso de Minas Gerais.
É importante considerar que os efetivos iriam chegar à frente de combate de
forma descontínua, sendo os Voluntários restritos ao primeiro período, antes da
invasão do território Paraguaio (1866). O esforço brasileiro seria crescente a partir daí
enquanto que o dos aliados seria declinante. Um historiador militar assim descreve o
movimento dos efetivos das três forças e do Paraguai:

21
“Ao deflagrar a guerra, em novembro de 1864, os efetivos dos
exércitos variavam de 8.000 homens na Argentina para 18.000 no
Brasil e na Banda Oriental; no Paraguai alcançavam 64.000 afora
uma reserva de veteranos avaliada em 28.000 (...) Em abril de 1866,
ao ter início a invasão do território paraguaio, os exércitos da Tríplice
Aliança engajados na operação, atingiam 66.000 homens, dos quais
38.000 brasileiros, 25.000 argentinos e 3.000 uruguaios.
Contrapunham-se aos invasores, 45.000 paraguaios (...) Mais tarde,
para a execução da marcha de flanco (julho de 1867), os aliados
moveram 64.000 homens (57.000 brasileiros e 7.000 platinos, na
tentativa de cerco aos 30.000 combatentes guaranis (...) Quando se
desencadeou a série de batalhas conhecidas como “dezembrada”,
(dezembro de 1868), a coligação movimentou ainda 31.000 homens
(25.000 brasileiros, 5.000 argentinos e 1.000 orientais), mas o inimigo
já não podia reunir mais do que 18.000. Nos estertores da guerra,
durante a Campanha da Cordilheira (ano de 1869), os brasileiros
somavam 26.000, os argentinos 4.000, e os paraguaios 600, enquanto
os efetivos paraguaios baixavam para 13.000 e 8.000 sucessivamente.
Por fim. não excedia de 3.000 homens o destacamento brasileiro que,
nos primeiros meses de 1870, se lançou na perseguição ao exército
inimigo, já então simbolizado nos últimos 300 combatentes envolvidos
na ação culminante de Cerro Corá, no dia 1 de março”.27

Embora o esforço brasileiro fosse crescente, a guerra se desenvolvia, a partir de


1866 em território Argentino. Isso inviabilizava, de saída, pela força do Tratado da
Tríplice Aliança, que o comando do conjunto das forças da aliança pudesse ser feito
por um brasileiro, muito menos por um príncipe real, como frequentemente se cogitou
nos círculos políticos. Essa possibilidade só se efetivou (com Caxias e, depois, com o
Conde d’Eu) depois que o General Mitre deixou o comando.

A guerra teve um ritmo errático depois da breve fase de defensiva estragégica


que se encerrou com a libertação da cidade brasileira de Uruguaiana, libertada pelas
forças conjuntas dos aliados setembro de 1865. O outro ponto do território brasileiro
ocupado pelos paraguaios, na Província de Mato Grosso, só foi liberado no final da
guerra.
Com a rendição de Uruguaiana, o alívio momentâneo propiciado pela retirada
apenas ocultava que se iniciava o que seria a fase mais longa e penosa da Guerra de
Tríplie Aliança contra o Paraguai, qualquer que seja o indicador que se utilize para
expressar as dificuldades Entre a penetração das forças paraguaias em território

27 SOUZA Jr., Antonio, “A Guerra do Paraguai” in HOLLANDA, S.B. (org.) Historia Geral da civilização
Brasileira, Difel, 1972, vol. IV, Tomo II, pp.100-101

22
argentino e brasileiro e sua retirada havia decorrido nove meses. Cinquenta meses
haveriam ainda decorrer antes que as forças aliadas penetrassem em Assunção,
através dos destroços da nação paraguaia, que resistiria ainda, por ação de seu líder, a
mais um ano de perseguição e guerra de guerrilhas até o desfecho, com a morte de
Lopez, em Cerro Corá.
A ofensiva, tampouco, teve um ritmo constante. Os preparativos são lentos e as
manobras demoradas. Contam-se em meses e até mesmo em anos: três meses para a
reunião das forças aliadas (setembro a dezembro de 1865), quatro meses de
preparativos para a invasão (abril de 1866). Entre o ponto da invasão (Paso de la
Patria) e o núcleo do objetivo estratégico (a fortaleza de Humaitá) mediavam apenas
20 quilometros, mas 27 meses transcorreram até a rendição de seus últimos
defensores (5 de agosto de 1868). De Humaitá a Assunção, seguir-se-iam mais 5
meses de intensos combates. Fases intensas e sangrentas eram entremeados de longos
períodos de inação.
Foi durante a ofensiva estratégica que o conjunto das forças de terra brasileiras
teve efetivamente o seu batismo de fogo (combate da Ilha da Redenção), na
preparação para a invasão do território paraguaio. Para se ter uma ideia aproximada
do ritmo sangrento da guerra, até a rendição de Uruguaiana, 922 homens eram
listados como fora de combate (incluindo a esquadra e as forças de terra). As doenças,
nessa fase, ainda matavam muito mais do que os combates. O mesmo autor nos fala
de 4380 doentes no primeiro corpo do exército em 1 de março de 1866. Em junho do
mesmo ano, depois da primeira batalha de Tuiuti (24 de maio), o número de doentes
já se elevava a 10 465 homens, em um total de 34.470 combatentes, formando
aproximadamente um terço dos efetivos, incluindo já os feridos em combate. A
mesma proporção entre efetivos e homens fora de combate será encontrada por Caxias
ao assumir o comando (outubro de 1866). Mesmo a irrupção da cólera morbo nos
acampamentos (março a abril de 1867) que chegou a ceifar mais de 4000 vidas, já não
rivalizava com as perdas em combate. Computando-se apenas as perdas brasileiras
nas ações principais, observa-se que elas perfizeram 546 nas operações de invasão ao
território paraguaio. Daí até o revés de Curupaiti 10.688. De Curupaiti até a tomada
de Assunção 23.644 baixas.28 Nesse, que foi o conflito mais sangrento da América do


28 SCHNEIDER, op. cit. Anotações de Paranhos. Ver. Vol II, p. 113 e segs e mapas p. 442. Ver também
FRAGOSO, op. cit, vol. III. P. 168 e seguintes.

23
sul, calcula-se que o Imperio perdeu em torno de 1/3 de seus quase 120.000
combatentes. Dentre as baixas, cerca de 2/3 foram causadas pelas doenças.

Em julho de 1867, José Maria da Silva Paranhos, (futuro Visconde do rio


Branco) e um dos responsáveis pela costura política do Tratado da Tríplice Aliança
escrevia a Antônio da Rocha Faria, futuro Barão de Nioac, um dos mais importantes
lideres políticos do Rio Grande do Sul e comissionário do fornecimento dos exércitos
brasileiros na fase inicial da guerra. Paranhos dizia-se “na mais cruel ansiedade,
entre uma grande esperança e um grande receio ... As coisas não se me figuram
fáceis como as outras, O terreno dos aliados está muito minado por toda a parte.
Não receio uma derrota, mas receio uma vitória sanguinolenta e que não seja
decisiva.” (grifo meu) 29 Preocupava-o a situação nova que se apresentava com a
ofensiva estratégica, agora sob comando do Marquês de Caxias, com a intensificação
do recrutamento, as dissídias que se avolumavam entre os aliados e sobretudo as
dificuldades com os fornecimentos já que o cenário de operações se distanciava
crescentemente do território brasileiro. A partir de 1867, e mais precisamente a partir
do comando de Caxias, a Guerra iria entrar em sua fase mais sangrenta, ao mesmo
tempo em que o aumento do recrutamento passava a pressionar o pacto federativo de
forma intensa, chegando a tocar na ordem escravista. Noticiam-se revoltas escravas
em vários pontos (Bahia, Maranhão), enquanto que a drenagem de homens livres
enfraquece as milícias privadas que sustentam a ordem.
A drenagem de homens e recursos fere de forma distinta, mas igualmente
intensa as regiões mais prósperas do sudeste cafeeiro, envolvido nesse momento com
a expansão das ferrovias. No norte, regiões já em dificuldades, se verão drenadas de
homens e recursos. No sul, o proverbial negócio da guerra vai escapar das mãos dos
fornecedores habituais.

A partidarização de todas as questões referidas à guerra é uma das principais


contribuições que a narrativa de Nabuco nos fornece para a compreensão do período,
onde se entretece a disputa partidárias em torno dos comandos com a intensa
corrupção propiciada pelos fornecimentos de guerra. A guerra dizia ele era como uma


29 J.M da Silva Paranhos. http://187.16.250.90:10358/handle/acervo/8050 I-ACN-21.07.1867-RB.d

24
“cornucópia” se derramava sobre a província, assemelhando-se à descoberta de minas
de ouro. Segundo ele, ocorria
a mais extensa simulação de prets, munições cavalhadas, reses e tudo o mais.
Os partidos acusavam-se uns aos outros de falta de moralidade e eles se conheciam,
como bons vaqueanos. Ao lado do político, do general, do comandante de fronteira,
chefe local, formava-se uma clientela ávida de dinheiro, que só pensava em
enriquecer à custa do tesouro, e que para isso prestava ao partido, à situação ou
oposição que um dia havia de ser governo, todos os serviços (...) Para semelhante
clientela a guerra foi, em linguagem popular (...) uma verdadeira Califórnia. Os
partidos todos criaram nova vida: o Baronista, o do governo, aumentou
consideravelmente, da noite para o dia, como os rios depois de grande chuvas; o
Liberal, que se levantara sob Furtado com Canavarro e Osório, ainda contava com a
presença do Imperador, de Ferraz e de Caxias, dentro de pouco general em chefe,
com a presidência do Conde de Boa Vista, cuja feição conservadora não enganava a
ninguém. Cada um deles, para o serviço de campanha, para os comandados, os
postos, os contratos, as distinções a repartir entre os seus aliados e amigos, tinha
alguém em quem esperar: o mais considerável de todos os patronatos da época, o da
guerra, estava repartido entre os três partidos.30

Um dos fundamentos da dissidia se revelavam na carta, entretecendo o jogo


partidário local com os negócios da guerra. É importante observar que durante o
período em que os preparativos se concentraram nas imediações do Rio Grande, os
fornecimentos, como era habitual nas guerras platinas, propiciavam grandes ganhos
aos estancieiros do sul e também a banqueiros e armadores como o Barão de Mauá.
Até 1867, quando começou o comando do Marquês de Caxias, Antônio da Rocha
Faria, futuro Barão de Nioac teve a comissão de todos os fornecimentos, parte da qual
favoreceu também José Luis de Cardoso Salles, aparentado com a família de Mauá. A
partir do comando de Caxias todos os fornecimentos iriam se concentrar nas mãos da
firma argentina Lesica e Lanus.
Se as províncias do norte foram desproporcionalmente sangradas por uma
guerra que se desenvolvia em espaço geográfico e político distante de seus interesses,
as províncias do sudeste viam seus planos de expansão econômica e modernização
tecnológica colocados em risco pela drenagem de homens e recursos, o Rio Grande do
Sul, onde se situava o nervo militar do Império veria romper todos os pactos que


30 NABUCO, Joaquim, op. cit. II, p.216/217n

25
sustentavam a cultura miliciana das guerras platinas, inclusive no plano da relação
entre a guerra e os negócios. 31

O legado financeiro e a crise do pacto federativo

A segunda ordem de reverberações da guerra para as décadas subsequentes


estabeleceu-se no plano econômico. Avaliando o endividamento brasileiro para o ano
de 1888, o cônsul inglês no Rio de Janeiro afirmava que o Brasil era o maior devedor
da América do Sul, avaliando a sua dívida total em £ 72,097,230, sendo £ 28,598,400
externa e £43,498,830 interna. Incluindo a dívida não fundada, o total do
endividamento poderia ser estimado em £ 90,000,000. Apenas os juros da dívida
geravam encargos de £ 1,400,000 (externa) e £ 2,515,903 (interna) em 1886. Os
encargos somados era maior do que o total das receitas provinciais para o mesmo ano
(£ 3,580,397). O déficit orçamentário somava £ 3,255,089. Comentando as causas do
endividamento, o cônsul britânico explicava, exagerando talvez um pouco nos
números das perdas humanas :

"Causa tristeza relembrar que a guerra do Paraguai custou ao Brasil


uma soma estimada em £ 41,000,000, £ 45,000,000 ou até £ 60,000,000, assim como
170.000 vidas. O Brasil nunca conseguiu pagar por ela, no sentido em que todos os
anos desde então tem havido um déficit representando os juros das dívidas
contraídas, não havendo sinal de que esse déficit possa desaparecer. Por exemplo, o
déficit médio entre 1873 e 1883 foi de £ 2,800,000, o que significa mais de um quarto
da receita pública".32

Esse custo incidia de forma perversa não apenas nas finanças do poder central,
mas, centrado como estava na dívida interna concentrada no sistema bancário do rio
de Janeiro, promovia, como procuraremos demonstrar, o esgarçamento do pacto
político entre as províncias e o centro. É importante também observar que os
vultuosos empréstimos internos realizados para custear a guerra operavam, na

31 Sobre o Norte ver MELLO, Evaldo Cabral de, O Norte Agrário e o Império, RJ, Nova Fronteira, 1984, cap. 1.
Sobre o Sul, ver MUGGE, Miqueias, op. cit.

32 Hugh Wyndham - Report on the Finances of Brazil for the year 1889 - to March 1890 F.O., n. 715, p.24.

26
verdade, com a mesma lógica dos empréstimos externos, pois tinham sua variação
indexada ao ouro.

Tabela 6. Brasil - Empréstimos externos durante o Império


ANO VALOR NOMINAL TAXA DE PREÇO DA OBJETIVO
JUROS EMISSÃO
1824 1.333.300 5 75 Para cobrir déficit, débitos flutuantes, juros e amortizações de
empréstimos anteriores
1825 2.352.900 5 85 Idem - despesas relacionadas com a Independência
1829 769.200 5 52 Idem
1839 411.200 5 76 Idem
1843 732.600 5 85 Idem
1852 1.040.600 4.5 95 Idem
1858 1.526.500 4.5 95.5 Para a extensão da E.F. D. Pedro II
1859 508.000 5 100 Para pagar o restante do empréstimo de 1824
1860 1.373.000 4.5 90 Para a extensão da E. F. de Pernambuco
1863 3.855.300 4.5 88 Para cobrir déficit, débitos anteriores, juros e amortizações.
1865 6,363.600 5 74 Guerra do Paraguai
1871 3.459.600 5 89 Déficit, Juros e Amortizações
1875 5.301.200 5 96.5 Idem
1883 4.599.600 4.5 89 Para melhorias das ferrovias, suprimento de água do R.J. e outros
1886 6.431.000 5 95 Para cobrir déficit e dívidas de curto prazo
1888 6.297.300 4.5 97 Extensão das E.F. Federais e outras despesas relacionadas com Abolição
1889 19.837.000 4 90 Conversão dos títulos anteriores de 5 para 4%

Fonte - F. J. Normano, Brazil, a study of economic types, Chapel Hill, Univ. of Noth Carolina Press, 1935, p. 161. Há acréscimos
da autora nas observações

Tabela 7. .Emissão das apólices da dívida interna fundada 1827-1889

ANO DA FINALIDADE IMPORTÂNCIA (Mil


EMISSÃO Réis)
Apólices de 6% convertidas em títulos de 5%
1828-1832 Suprimento de Déficit 13.496.600
1832-1834 Pagamento de presas 5.974.600
1837 Pacificação Províncias Pará e Rio Grande do Sul 1.723.000
1837-1838 Suprimento de déficit 5.861.400
1839 Suprimento de déficit 1.918.000
1840 Despesas do arsenal da guerra 303.400
1841 Suprimento de déficit 4.105.600
1842-43 Suprimento de déficit 5.346.600
1842-45 Pagamento de reclamações brasileiras e portuguesas 2.124.200
1843-44 Dote e enxoval da princesa de Joinville 1.720.000
1843-46 Suprimento de déficit 1.495.000
1844-45 Suprimento de déficit 2.344.000
1844-48 Suprimento de déficit 7.505.400
1846 Suprimento de déficit 336.000
1851-53 Suprimento de déficit 5.213.800
1858 Pagamento de reclamações portuguesas 5.400
1860-62 Permuta de ações da E.F. Pernambuco 2.466.400
1860-63 Idem da Bahia 186.600
1860-72 Idem da E.F. D. Pedro II 11.328.000
1861-62 Resgate Papel-moeda do banco do Brasil 2.150.000
1863 Indenizações guerra da independência e do Rio da Prata; Resgate papel-moeda e bilhetes tesouro 5.890.400
1864 Encampação da Cia. União e Indústria 3.161.000
1865 Resgate papel moeda e casamento princesa 1.228.000
1865-72 Despesas com Guerra do Paraguai 143.894.700
1869 Pagamento de terrenos da Lagoa 50.000
1870 Compra da Ilha das Enxadas 1.705.000
1870 Resgate bilhetes do tesouro 25.000.000
1873-74-76 Pagamento à Cia. Doca da Alfândega do RJ 2.734.000
1876 Suprimento de déficit 8.600.000
1877 Diversos 30.000.000
1879 Consolidação da Dívida Flutuante 40.000.000
1880-82 Permuta de ações da E.F. Baturité 605.000
1882-94 Idem E.F. SP/RJ 9.860.800

27
Apólices de 5%
1830-83 Pagamento da dívida inscrita 2.002.600
1886 Consolidação da dívida flutuante 50.000.000
Apólices de 4%
1834-35 Pagamento da dívida inscrita 119.000
1889-1890 Auxilios à lavoura, imigração , despesa com seca e epidemias e redenção de papel moeda 100.000.000

Fonte: F. Freire. Relatório Apresentado Ao Vice-Presidente Da República Dos Estados Unidos Do Brasil Pelo Ministro Do
Estado Dos Negócios Da Fazenda No Ano De 1894, R.J, Imp. Nac., 1894, ANEXO TABELA 12;

O período da Guerra do Paraguai (1865-1870) aparece como um divisor


de águas no endividamento público, determinando um crescimento notável tanto no
estoque da dívida quanto no peso do seu serviço sobre as receitas do Estado.

Tabela 8. GASTOS MILITARES DURANTE A GUERRA (em contos de réis)

ANO MINISTÉRIO DA GUERRA MINISTÉRIO DA MARINHA RECEITA TOTAL


ORÇADO* GASTO* ORÇADO GASTO

1865 - 1866 13.175.204 66.137.381 7.506.594 19.928.424 58.533.370


1866 - 1867 13.175.204 53.389.947 7.506.594 17.588.476 64.776.843
1867 - 1868 14.360.730 67.288.270 8.087.206 23.854.594 71.200.927
1868 - 1869 14.360.730 59.388.064 8.087.206 18.040.709 87.542.534
1869 - 1870 14.360.730 54.974.048 8.087.206 16.952.738 94.847.348

TOTAL 56.257.394 235.040.329 31.768.212 76.436.517 318.367.652


*Valores em Contos de Réis

Fonte: Relatórios do Ministério da Guerra e do Ministério da Marinha – anos pertinentes

28
Tabela 9. Receita e Despesa do Império (1840 a 1889) (contos de réis)

Exercício Receita Despesa Diferença


1860-1861 50.052 52.358 -2.306
1861-1862 52.489 53.050 -561
1862-1863 48.342 57.000 -8.658
1863-1864 54.801 56.494 -1.693
1864-1865 56.996 83.346 -26.350
1865-1866 58.523 121.856 -63.333
1866-1867 64.777 120.890 -56.113
1867-1868 71.201 165.985 -94.784
1868-1869 87.543 150.895 -63.352
1869-1870 94.847 141.594 -46.747
1870-1871 95.885 100.074 -4.189
1871-1872 101.337 101.581 -244
1872-1873 110.713 121.874 -11.161
1873-1874 102.652 121.481 -18.829
1874-1875 104.707 125.855 -21.148
1875-1876 100.718 126.780 -26.062
1876-1877 98.970 135.801 -36.831
1877-1878 109.221 151.492 -42.271
1878-1879 111.802 181.469 -69.667
1879-1880 120.393 150.134 -29.741
1880-1881 128.364 138.583 -10.219
1881-1882 130.456 139.471 -9.015
1882-1883 129.698 152.958 -23.260
1883-1884 132.593 154.257 -21.664
1884-1885 121.974 158.496 -36.522
1885-1886 126.883 153.623 -26.740
1886-1887* 218.763 227.045 -8.282
1888 150.726 147.451 3.275
1889 160.840 186.165 -25.325

*três semestres

Fonte: Fonte: Repertório Estatístico do Brasil - Quadros Retrospectivos n.1, Separata do Anuário Estatístico do Brasil, Ano V,
1939-1940, R.J., Serviço Gráfico do IBGE, 1941, p..120

29
Tabela 10. Evolução da Dívida Fundada do Império e Juros por Qüinqüênios (em mil réis)

Ano Div.Externa Juros Dív.Interna Juros Câmbio

1840 44.240.336 2.216.798 30.282.600 1.993.006 30


1845 59.078.701 5.899.196 48.529.200 2.889.388 25 1/8
1850 53.782.251 2.757.620 54.312.400 4.026.468 27 1/2
1855 52.242.430 3.434.951 59.615.600 3.556.644 27
1860 45.677.229 4.059.526 63.191.000 3.770.364 25
1865 69.073.980 3.639.917 80.376.400 4.801.814 27
1870 156.771.600 8.039.556 234.312.000 14.525.380 20
1875 132.635.580 6.548.942 285.592.200 17.237.439 26 1/2
1880 177.338.386 7.572.426 363.569.700 23.618.487 23
1885 199.800.655 7.956.456 405.640.400 23.954.714 22 1/8
1889 270.395.555 *19.148.077 543.585.300 *25.178.034 27

* Estimativa sobre serviço da dívida no orçamento.

Fonte: Liberato Castro Carreira, História Financeira e Orçamentária do Império do Brasil, Brasília/R.J., FCRB/Senado Federal,
1980, anos indicados

Tabela 11. Percentual dos Juros sobre a Receita

Ano Receita Total Juros %

Milreis
1840 18.674.698 4.209.804 22,54
1845 25.693.664 8.788.584 34.20
1850 31.532.764 6.784.088 21,51
1855 38.634.356 6.991.595 18.09
1860 50.051.703 7.829.890 15.64
1865 58.523.370 8.441.731 14.42
1870 95.885.278 22.564.936 23.53
1875 99.338.017 23.786.381 23,94
1880 127.076.363 31.190.913 24,89
1885 125.275.722 31.911.170 25,47
1889 160.840.297 44.326.111 27,56

O que queremos aqui enfatizar, com o peso crescente assumido pela dívida
pública a partir dos anos 70, é a relação a um tempo lógica e explosiva entre o
estreitamento da capacidade financeira do Estado e o recrudescimento das demandas
“federativas”, expressas na grita generalizada contra a centralização que se
desenvolve no período, e que iria ser a bandeira por excelência da campanha
republicana. Ela advém, em parte, das pressões regionais crescentes por mais recursos
com a finalidade de enfrentar a transição para o trabalho livre, pressão que era distinta
nas áreas mais prósperas da cafeicultura do sudeste, daquelas das demais regiões
cafeeiras e das áreas açucareiras do nordeste. Enquanto uns demandavam o

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financiamento da imigração europeia pelo poder público, para fazer face à crescente
“fome de braços” de uma cultura em expansão, os demais demandavam recursos de
infra-estrutura e beneficiamento (estradas de ferro e os engenhos centrais, por
exemplo). As demandas crescentes, em direção divergente colidiam com o aperto
imposto sobre as finanças públicas, dificultando a composição de interesses. Por outro
lado, o aperto das finanças públicas impedia qualquer reformulação, no sentido da
descentralização, da distribuição dos recursos entre o centro e as províncias. Da
mesma forma, reduz drasticamente a tolerância do governo central para com as
sucessivas ilegalidades cometidas pelas províncias, na invasão da sua competência
fiscal.

Tanto o Norte como o Sul, por motivos distintos, tendiam a se insurgir contra a
centralização fiscal, traduzindo-se em acusações mútuas. As províncias do norte e
nordeste apegavam-se à questão dos saldos provinciais (diferença entre a renda
arrecadada e o gasto efetuado na província pelo governo central) acusando o governo
imperial de explorar as províncias do norte em benefício das já prósperas províncias
do centro-sul ou na defesa militar (caso do Rio Grande do Sul). São Paulo, por sua
vez desenvolvia o argumento em favor da riqueza crescente gerada pelo café que não
se mantinha na província, expropriada em favor das regiões parasitárias e decadentes
do Nordeste. Os dados da Tabela 6, não autorizam uma interpretação baseada na
"transferência" de recursos entre as áreas prósperas e decadentes, em qualquer das
direções apontadas pelos contendores. Procuramos confrontar aí o montante da
arrecadação com o montante de gastos efetuados pelo governo central nas províncias
e aponta que a grande transferência é de todas as províncias em direção à Corte, com
a única exceção relevante do Rio Grande do Sul e do Mato Grosso, que se explica
pelos gastos militares nas províncias fronteiriças.

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Tabela 12. Impostos arrecadados e gastos efetuados pelo governo imperial nas províncias (1885-
1886)

(em contos de réis)

Províncias Impostos % Gastos %


Corte 66.730 52,77 82.476 66,22
Bahia 10.995 8,96 6.817 5,47
Pernambuco 10.104 7,99 7.941 0,37
São Paulo 9.654 7,63 2.789 2,23
Pará 9.021 7,13 2.420 1,94
Rio Grande do Sul 7.501 5,93 8.117 6,51
Maranhão 2.224 1,77 1.674 1,34
Minas Gerais 1.821 1,44 2.021 1,62
Ceará 1.744 1,37 1.644 1,32
Rio de Janeiro 1.314 1,03 488 0,39
Alagoas 993 0,78 852 0,68
Amazonas 963 0,76 606 0,48
Santa Catarina 791 0,62 747 0,59
Paraná 554 0,43 879 0,70
Paraíba 400 0,31 628 0,50
Mato Grosso 396 0,31 1.624 1,30
Sergipe 394 0,31 566 0,45
Espírito Santo 306 0,24 467 0,37
Piauí 273 0,21 569 0,45
Rio Grande do Norte 182 0,14 440 0,35
Goiás 64 0,05 776 0,62
Total 126.447 100,00 124.451 100,00

Fonte: Liberato Castro Carreira, op. cit., pp. 658-659.

A centralização fiscal que caracterizava o sistema imperial ganhava agora um


novo elemento: o sistema financeiro que se concentrava na corte faziam com que o
peso da dívida pública (principalmente a interna), funcionasse como uma formidável
bomba de sucção que o serviço da dívida faz operar em direção à Corte e, de lá, para
Londres e para a praça bancária do Rio de Janeiro.

Podemos concluir sublinhando que a associação entre a Guerra do Paraguai e a


crise do Império estabeleceu-se por mecanismos que não jaziam apenas nas estruturas
e no tecido social do Império – sua necessidade de operar enquanto Império, em
permanente intervencionismo no cenário platino e sua dificuldade em estabelecer
mecanismos de extração e coerção capazes de sustentar o monopólio da violência.

A convergência perversa do ritmo da guerra com aquele da política põe


em marcha a queda do gabinete e, com a aceleração própria dos tempos de crise,
impede a reiteração das antigas prática. A crise política, tornada endêmica, seria uma
das dimensões da “guerra inconclusa”, prefigurada por Paranhos, o legado que se
desdobraria nas décadas subsequentes.

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Como disse Paranhos, seria sangrenta e como provavelmente ele podia apenas
suspeitar, seria inconclusa, pelas reverberações que ela deixaria para os fundamentos
da ordem monárquica e para o pacto politico que a sustentava. A crise, porém, vista
pelos coevos, operava com uma temporalidade que se desdobrava em uma ruptura
com o passado – a introdução de mecanismos novos no cenário geopolítico do Prata,
que tensionavam até a ruptura o sistema imperial. Mas que se projetava também no
interior de ritmos que eram os da própria guerra, ritmos que se impuseram a partir de
1866 quando as trágicas novidades do conflito desnudavam os elementos de uma
“guerra total” e impulsionavam a colisão entre o ritmo da guerra e aquele da política.
Por último, projetando-se sobre as décadas subsequentes, a guerra se fazia não apenas
“maldita” e sangrenta, ela se fazia inconclusa, e a disputa sobre a sua memória foi
breve, caindo um silêncio envergonhado sobre o passado, que nos desafia como
historiadores ainda hoje.

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