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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA- ICHF


DEPARTAMENTO DE GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Beatriz Carvalho de Andrade

Os desafios para a formação da identidade latino-americana

Ensaio para a disciplina eletiva "Formação Política da América Latina" ministrada pelo Prof.
Dr. Marcial A. Garcia Suarez

Niterói
2022
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O presente ensaio possui como objetivo analisar os desafios para a formação da


identidade latino-americana ao longo do tempo. Nesse sentido, os autores Maria Lígia Prado
e Thiago Gehre serão utilizados como referência.
Desse modo, é pertinente para essa discussão salientar que o Brasil possuiu uma
formação distinta dos demais países latino-americanos, visto que o modo com que os
impérios português e espanhol operaram suas colonizações foi distinto. Enquanto na
América Espanhola houve a fragmentação em quatro vice-reinos, na América Portuguesa
havia apenas duas divisões, sendo essas em “Estado do Brasil e ”Estado do Maranhão e
Grão-Pará“. Porém, até ocorreu uma tentativa de fazer algo parecido no Brasil por meio das
capitanias hereditárias, mas esse sistema não funciounou na prática, ao contrário da divisão
em vice-reinos, que foi bem sucedida. Esse cenário facilitava a fragmentação da América
Espanhola, enquanto na colônia portuguesa estimulava-se a integração regional. Contudo,
também haviam semelhanças dadas as características em comum da cultura ibérica e o
próprio período da União Ibérica, que representou o compartilhamento de uma herança
política em comum.
Todavia, esse distanciamento se concretizou durante o período de invasões na
Europa por parte do general francês Napoleão Bonaparte na transição do século XVIII
para o XIX, posto que quando Bonaparte conquistou o trono espanhol, instaurou-se um
cenário propício para que a elite criolla da colônia realizasse movimentos de independência.
Entretanto, o que ocorreu no Brasil foi o oposto disso, já que a corte portuguesa passou a
viver na colônia fugindo do general francês, o que culminou em um fortalecimento do regime
monárquico. Já as províncias da América Espanhola, conquistaram suas independências
e implementaram o modelo republicano devido à força do pensamento iluminista em suas
elites locais. A partir disso, surge um antagonismo político entre o Brasil e os demais países
latino-americanos por conta da diferença de sistemas políticos nas regiões, como aponta a
doutora em História Maria Lígia Prado:
Como já foi indicado pelos analistas de sua produção, Varnhagen consagrava a
monarquia como regime ideal, louvava a figura de D. Pedro I e invocava a Divina
Providência como guardiã da unidade nacional. O destino unitário do Brasil, nas
páginas do Visconde de Porto Seguro, revelava-se, desde o período colonial, com
a vitória portuguesa/brasileira sobre as assim denominadas invasões estrangeiras.
O esmagamento das tentativas radicais republicanas de independência, como na
Inconfidência Mineira, na Revolta dos Alfaiates ou na Revolução Pernambucana de
1817, também demonstrara ter sido “acertado”. Esses ideólogos do Império, que
escreveram a história oficial do Brasil, defendiam a monarquia que se opunha às
“repúblicas caóticas” da parte espanhola. Dessa maneira, estava clara a diferença
que se devia estabelecer entre “nós” e “eles”, entre o Brasil e os demais países
da América do Sul, onde campeavam a desordem, a desunião e a fragmentação,
todas alimentadas pelas ideias republicanas. O Brasil, em oposição, era forte,
unido e, portanto, poderoso.
(PRADO, 2001)

Nesse sentido, com a criação do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil durante


esse período em que Dom João VI estava no País houve o intuito de construir a imagem de
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um Brasil monárquico, tendo a sua força expressa pela integridade territorial e a soberania
portuguesa. Assim, o regime republicano dos demais países da América Latina era consi-
derado uma “desordem” política e a própria separação dos antigos vice-reinos em países
distintos era algo extremamente mal-visto pelos intelectuais brasileiros do período. Essa
divergência política foi uma das justificativas para Dom João VI exercer uma campanha
expansionista na região da Cisplatina, disputada por Brasil e Argentina. Essa disputa conti-
nuou até o reinado de Dom Pedro I, tendo acabado com a derrota de ambos os países e
com o surgimento de uma nova nação, o Uruguai. Como demonstra Prado, esse conflito
evidenciou as críticas sobre os regimes políticos tanto na Argentina quanto no Brasil:
A guerra demonstrava que Buenos Aires continuava com suas aspirações de
formação da “Grande” Argentina. Um dos argumentos em defesa da guerra contra
o Brasil se baseava na associação entre a falta de respeito pelos direitos individuais
e o regime monárquico. O jornal de Buenos Aires, Nacional, caracterizava a
guerra como um conflito entre monarquia e república, anunciando para breve o
desmoronamento do império brasileiro. Associava a ideia de liberdade ao regime
republicano, indicando o “caráter” europeu e anti-americano do sistema político
brasileiro. Em oposição, a república significava o rompimento com a Europa e
marcava a dimensão de uma identidade americana presente em seu país.
As constantes referências depreciativas ao Imperador enfatizavam o fato de ele
ser europeu e consequentemente anti-americano (‘déspota luso-brasileiro’, ‘tirano
europeu’, ‘o Nero do Continente Americano’), sendo comparado a Fernando VII
como inimigo da América e ao execrado Agustín do México, ‘tirano’ e ‘usurpador’. A
guerra, então, se fazia contra o Imperador, e não contra o Brasil ou contra os Povos
do Brasil que, em sendo americanos, teriam a mesma causa que os republicanos.
(PRADO, 2001)

Com o fim do Primeiro Reinado e o período regencial no Brasil, ocorreu um cenário


favorável para a eclosão de inúmeras revoltas separatistas e anti-monárquicas, a mais longa
delas, conhecida como Revolução Farroupilha ocorrida na província do Rio Grande do Sul,
contou com a participação de grupos uruguaios, o que intensificou o incômodo brasileiro
nessa situação. Desse modo, após o controle do movimento revolucionário do Sul e o início
do reinado de Dom Pedro II, o Brasil adotou uma política intervencionista no Cone Sul, o
que estremeceu ainda mais as relações sul-americanas, tendo sido o ápice desse período,
a Guerra da Tríplice Aliança ou Guerra do Paraguai, que demonstrou a violência militar
empregada pelo Império brasileiro.
O Visconde do Uruguai também resumia a política externa do Brasil no período
do Império. O país deveria ter um lugar hegemônico na América do Sul, man-
tendo distância de seus vizinhos, não considerados como “iguais”. A monarquia
brasileira havia demonstrado, na ótica desses políticos e publicistas, sua “natural”
superioridade. O Brasil continuava a olhar para a Europa, vale dizer. Grã-Bretanha
e França, fonte irradiadora da “cultura, do progresso e da civilização”. Tais valores
não poderiam ser encontrados nos vizinhos que nos rodeavam.
(PRADO, 2001)

Destarte, com o período republicano no Brasil há uma tímida tentativa de aproxima-


ção do País com os demais países latino-americanos. Porém, a república brasileira não
rompeu completamente com o ideário monárquico, esse período ainda era considerado de
grandeza e a imagem de Dom Pedro II foi preservada. Dentro desse contexto, o imperialismo
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norte-americano se fortalecia e o Brasil se aproximava dessa nova potência, o que repre-


sentou mais um afastamento entre os países latino-americanos. Todavia, isso não impediu
com que alguns intelectuais fossem críticos ao imperialismo exercido pelos Estados Unidos
e que defendessem uma união dos países da América Latina. Um dos principais intelectuais
que defendia a unidade latino-americana foi o diplomata Oliveira Lima. Contudo, Joaquim
Nabuco, outro diplomata consagrado da época, era um defensor do alinhamento brasileiro
em relação aos interesses norte-americanos, com isso, Lima foi derrotado politicamente em
seu ideal, e prevaleceu no Brasil um pan-americanismo capitaneado pelos Estados Unidos.
Desse modo, com a República, não se alteraram substancialmente as relações
diplomáticas com os demais países da América Latina. Esta posição se coadunava
com a manutenção de um sentimento anti-hispânico bastante acentuado, conforme
foi indicado nos textos analisados. A República não destruiu as distâncias entre o
Brasil e a América Hispânica, pois, as diferenças, muito mais que as semelhanças,
continuavam a ser destacadas. As visões da distância que nos separava contribuí-
ram para a construção de um imaginário que forjou uma memória transformada em
senso comum e que remetia ao passado histórico apresentado como legitimador
do presente.
(PRADO, 2001)

Dessa maneira, como aponta o doutor em Relações Internacionais Thiago Gehre,


esse cenário passa a ser contestado a partir da década de 1960 por conta do surgimento
do debate nacional-desenvolvimentista na América Latina e também com a contestação ao
imperialismo norte-americano representado pela Revolução Cubana. Entretanto, nesse pe-
ríodo, a maioria dos países latino-americanos esteve sob ditaduras militares, o que dificultou
a construção dessa unidade. Mas, com as décadas de 1980 e 1990 e as redemocratizações,
retorna ao centro do debate a possibilidade de colaboração política e econômica na América
Latina, mais especificamente nos países sul-americanos.
Nos anos 80 e 90, o processo de formação do Mercado Comum do Sul evidenciou
um corte específico da realidade para decisores e intelectuais. O Cone Sul trouxe
efervescência para a produção em Relações Internacionais, desde os aportes
político e histórico, até as vertentes teóricas e do processo negociador. Por um lado,
tal fenômeno foi positivo uma vez que trouxe luz a uma realidade até então pouco
estudada – a da integração e cooperação internacional do Brasil – ao mesmo
tempo em que abriu novos questionamentos acerca do futuro do regionalismo no
mundo.
(GEHRE, 2009)

Com isso, como afirmado por Gehre, houve uma construção da identidade sul-
americana, o que culminou na defesa de uma integração social, política, econômica, cultural
e militar entre esses países, a criação do Mercado Comum do Sul (Mercosul) foi uma das
grandes representações desse contexto. Essa política de aproximação entre os países da
América do Sul teve iniciou no governo de Fernando Henrique Cardoso, tendo se fortalecido
a partir do governo de Luís Inácio Lula da Silva. Todavia, essa tentativa diplomática foi
marcada por muitas dificuldades, sendo uma das principais delas, a posição hegemônica
do Brasil enquanto “líder” dessa união aduaneira, o que gerou alguns conflitos entre esses
países.
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Desse modo, ainda permaneceu na política brasileira a ideia de um afastamento


em relação aos demais países da América do Sul, o que possui relação com o percurso
conturbado de desenvolvimento dessa identidade em comum. Com isso, é necessário
que o Brasil supere o mito de ser distante da América Latina, e passe “a olhar os países
latino-americanos, dando às costas para a Europa e para os Estados Unidos”1 .

1
(PRADO, 2001)
5

Referências

GEHRE, T. América do Sul: construção pela reinvenção (2000-2008). Revista Brasileira


de Política Internacional, Roraima, v. 2, n. 52, p. 63 – 80, dezembro 2009.

PRADO, M. L. O Brasil e a distante América do Sul. Revista de História, São Paulo, v. 15,
n. 145, p. 127 – 149, Janeiro/Junho 2001.

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