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História 3º ano Resenha Benê fev/0


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Maldita Guerra, de Francisco Doratioto


(Cia. das Letras, 625 páginas)

Quem estudou a História do Brasil nos idos de 1960 aprendeu


que a Guerra do Paraguai foi um conflito heróico, em que os brasileiros combateram um
cruel e sanguinário tirano de nome Solano Lopes que atacou covardemente o território
nacional, motivando uma justa reação comandada pelo imperador Pedro II e pelo audaz
Duque de Caxias, muito justamente considerado “patrono do exército”.
Já a partir da década de 1970, como vivíamos os anos
sombrios da ditadura militar, muitos historiadores de esquerda procuraram demolir os mitos
nacionalistas, sobretudo aqueles valorizados pelas forças armadas, como o Duque de
Caxias e Tiradentes. Este revisionismo histórico iconoclasta acabou por cometer também os
seus equívocos: os antigos heróis viraram vilões desalmados e os antigos vilões, como
Solano Lopes, ditador paraguaio, foram elevados à categoria de heróis da luta
antiimperialista. O conflito latino-americano passou a ser interpretado como uma guerra
instigada pelos interesses britânicos, em que brasileiros, argentinos e uruguaios agiram
como testas de ferro dos capitalistas ingleses, interessados em demolir o desenvolvimento
“auto-suficiente” da brava nação guarani.
Publicado em 2002, o livro Maldita Guerra, do professor de
Relações Internacionais Francisco Doratioto, procura entender a Guerra do Paraguai no seu
contexto histórico, mostrando a importância do conflito para a consolidação dos estados do
Cone Sul e, fato importante, analisa a guerra (com farta documentação) como conflito
latino-americano por excelência, sem as fantasias conspiratórias inventadas no calor das
disputas ideológicas do período militar.
A importância do livro de Doratioto se deve ao fato de que a
partir do final dos anos 1960 passou a ser unanimidade uma determinada visão desse
conflito, o maior da América do Sul, segundo a qual teria sido motivado por interesses
externos estranhos ao continente (o imperialismo britânico), num óbvio paralelismo com a
situação política daquele momento, em que boa parte da América do Sul estava sob o
domínio de ditaduras militares atreladas aos interesses norte-americanos. Em 1965, o Brasil
vergonhosamente havia liderado forças militares da OEA que estabeleceram a “ordem” na
República Dominicana a serviço dos EUA. Em 1973, com as bênçãos da CIA e com
discreto mas eficiente apoio logístico dos órgãos de repressão brasileiro, o governo
socialista de Salvador Allende, democraticamente eleito, seria derrubado por meio de um
golpe militar sangrento engendrado pelo empresariado e pelas forças armadas chilenas.
Ditaduras sanguinárias estabeleciam-se no Chile, Uruguai, Argentina e Bolívia. A esquerda,
esfacelada pelo terrorismo dos estados policiais, daria o troco no mundo acadêmico.
Leon Pomer, historiador argentino, seria um dos primeiros a
denunciar a Guerra do Paraguai como um conflito motivado pelos interesses imperialistas
britânicos na obra La Guerra Del Paraguay: gran negocio (1968). A obra que marcaria,
entretanto, gerações de estudantes brasileiros (e ainda marca, pois a visão dada por ela
ainda aparece em inúmeros livros didáticos) seria Genocídio Americano: a Guerra do
Paraguai, de Júlio José Chiavennato, que, por assim dizer, “fez a cabeça” de muita gente.
Ali está a clássica retórica antiimperialista conspiratória: O Brasil, instigado pela Inglaterra,
destruiu e arrasou o Paraguai, país desenvolvido e industrializado, que era uma ameaça aos
ingleses e governado por um ditador progressista (Solano Lopes). Lendo a obra de
Chiavennato hoje, fica clara a identificação do Paraguai com Cuba dos dias atuais e de
Solano Lopes com Fidel Castro, o que diz muito sobre a situação política da década de
1970, mas explica muito pouco sobre a Guerra do Paraguai.
Já o livro Maldita Guerra destrói todos esses mitos
ideológicos; demonstra como o Paraguai era um país pobre (miserável, na verdade) que não
tinha nenhuma desavença com a Inglaterra (e o contrário também não existia), como Solano
Lopes era um típico ditador corrupto e autoritário, cuja estupidez se revelaria totalmente
numa guerra em que envolveu o seu país sem que este estivesse pronto para tal empreitada.
Mostra também, amparado por farta documentação, inclusive diplomática, os interesses
econômicos brasileiros e argentinos no Uruguai e os conflitos internos deste país, que
curiosamente acabaram sendo o estopim que desencadeou o conflito geral.
No livro fica claro que não existiam heróis e vilões e, se
houve heroísmo, foi de soldados esfarrapados e freqüentemente mal-armados de todos os
países envolvidos, em situações-limite, em que o heroísmo não é uma escolha pessoal, mas
uma estratégia desesperada de sobrevivência.
Outra informação importante reside na explicação de como
Solano Lopes, tido inicialmente com um tirano demente pelos próprios paraguaios, logrou
transformar-se em herói antiimperialista. Descobrimos que, ao contrário do que jamais
poderiam supor os historiadores de esquerda, o “lopismo” (culto em torno do ditador como
herói nacional do Paraguai) foi iniciado na época do fascismo e consagrado durante a
ditadura de Alfredo Stroessner (1954-1988), o que mostra claramente o seu caráter
reacionário, uma vez que o general Stroessner era, só para recordar, um daqueles ditadores
pró-americanos que todos nós da esquerda amávamos odiar.

Benedito Carlos (Benê) é historiador, colaboradores de


revistas de História e professor de História do Colégio
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