Quem estudou a História do Brasil nos idos de 1960 aprendeu
que a Guerra do Paraguai foi um conflito heróico, em que os brasileiros combateram um cruel e sanguinário tirano de nome Solano Lopes que atacou covardemente o território nacional, motivando uma justa reação comandada pelo imperador Pedro II e pelo audaz Duque de Caxias, muito justamente considerado “patrono do exército”. Já a partir da década de 1970, como vivíamos os anos sombrios da ditadura militar, muitos historiadores de esquerda procuraram demolir os mitos nacionalistas, sobretudo aqueles valorizados pelas forças armadas, como o Duque de Caxias e Tiradentes. Este revisionismo histórico iconoclasta acabou por cometer também os seus equívocos: os antigos heróis viraram vilões desalmados e os antigos vilões, como Solano Lopes, ditador paraguaio, foram elevados à categoria de heróis da luta antiimperialista. O conflito latino-americano passou a ser interpretado como uma guerra instigada pelos interesses britânicos, em que brasileiros, argentinos e uruguaios agiram como testas de ferro dos capitalistas ingleses, interessados em demolir o desenvolvimento “auto-suficiente” da brava nação guarani. Publicado em 2002, o livro Maldita Guerra, do professor de Relações Internacionais Francisco Doratioto, procura entender a Guerra do Paraguai no seu contexto histórico, mostrando a importância do conflito para a consolidação dos estados do Cone Sul e, fato importante, analisa a guerra (com farta documentação) como conflito latino-americano por excelência, sem as fantasias conspiratórias inventadas no calor das disputas ideológicas do período militar. A importância do livro de Doratioto se deve ao fato de que a partir do final dos anos 1960 passou a ser unanimidade uma determinada visão desse conflito, o maior da América do Sul, segundo a qual teria sido motivado por interesses externos estranhos ao continente (o imperialismo britânico), num óbvio paralelismo com a situação política daquele momento, em que boa parte da América do Sul estava sob o domínio de ditaduras militares atreladas aos interesses norte-americanos. Em 1965, o Brasil vergonhosamente havia liderado forças militares da OEA que estabeleceram a “ordem” na República Dominicana a serviço dos EUA. Em 1973, com as bênçãos da CIA e com discreto mas eficiente apoio logístico dos órgãos de repressão brasileiro, o governo socialista de Salvador Allende, democraticamente eleito, seria derrubado por meio de um golpe militar sangrento engendrado pelo empresariado e pelas forças armadas chilenas. Ditaduras sanguinárias estabeleciam-se no Chile, Uruguai, Argentina e Bolívia. A esquerda, esfacelada pelo terrorismo dos estados policiais, daria o troco no mundo acadêmico. Leon Pomer, historiador argentino, seria um dos primeiros a denunciar a Guerra do Paraguai como um conflito motivado pelos interesses imperialistas britânicos na obra La Guerra Del Paraguay: gran negocio (1968). A obra que marcaria, entretanto, gerações de estudantes brasileiros (e ainda marca, pois a visão dada por ela ainda aparece em inúmeros livros didáticos) seria Genocídio Americano: a Guerra do Paraguai, de Júlio José Chiavennato, que, por assim dizer, “fez a cabeça” de muita gente. Ali está a clássica retórica antiimperialista conspiratória: O Brasil, instigado pela Inglaterra, destruiu e arrasou o Paraguai, país desenvolvido e industrializado, que era uma ameaça aos ingleses e governado por um ditador progressista (Solano Lopes). Lendo a obra de Chiavennato hoje, fica clara a identificação do Paraguai com Cuba dos dias atuais e de Solano Lopes com Fidel Castro, o que diz muito sobre a situação política da década de 1970, mas explica muito pouco sobre a Guerra do Paraguai. Já o livro Maldita Guerra destrói todos esses mitos ideológicos; demonstra como o Paraguai era um país pobre (miserável, na verdade) que não tinha nenhuma desavença com a Inglaterra (e o contrário também não existia), como Solano Lopes era um típico ditador corrupto e autoritário, cuja estupidez se revelaria totalmente numa guerra em que envolveu o seu país sem que este estivesse pronto para tal empreitada. Mostra também, amparado por farta documentação, inclusive diplomática, os interesses econômicos brasileiros e argentinos no Uruguai e os conflitos internos deste país, que curiosamente acabaram sendo o estopim que desencadeou o conflito geral. No livro fica claro que não existiam heróis e vilões e, se houve heroísmo, foi de soldados esfarrapados e freqüentemente mal-armados de todos os países envolvidos, em situações-limite, em que o heroísmo não é uma escolha pessoal, mas uma estratégia desesperada de sobrevivência. Outra informação importante reside na explicação de como Solano Lopes, tido inicialmente com um tirano demente pelos próprios paraguaios, logrou transformar-se em herói antiimperialista. Descobrimos que, ao contrário do que jamais poderiam supor os historiadores de esquerda, o “lopismo” (culto em torno do ditador como herói nacional do Paraguai) foi iniciado na época do fascismo e consagrado durante a ditadura de Alfredo Stroessner (1954-1988), o que mostra claramente o seu caráter reacionário, uma vez que o general Stroessner era, só para recordar, um daqueles ditadores pró-americanos que todos nós da esquerda amávamos odiar.
Benedito Carlos (Benê) é historiador, colaboradores de
revistas de História e professor de História do Colégio Móbile