Você está na página 1de 17

Associação Brasileira de Relações Internacionais

3º Seminário de Graduação e Pós-graduação em Relações Internacionais:

“Repensando interesses e desafios para a inserção

internacional do Brasil no século XXI”

HAITIANISMO: MEDO E AÇÃO DAS ELITES NA PRODUÇÃO DO BRASIL

Área Temática:

Teoria das Relações Internacionais

Autor: Miguel Borba de Sá

Instituição: Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Florianópolis, 29-30 de Setembro de 2016


Resumo

O processo de construção do Estado no Brasil, ao longo do século XIX, revela que a elite
política do jovem país tinha por prática enunciar seus interesses particulares como se
fossem de toda a nação. Chama atenção a mobilização do medo do “Haitianismo”, que
servia como dispositivo recorrente de comunicação intra-elites e como fator de reforço de
pactos, alianças e identidade racial (branca) entre seus diferentes setores, quando situações
de crise e instabilidade poderiam ameaçar o sistema de poder recém formado. A repetida
alusão ao “grande perigo” de ver repetidos no Brasil os atos violentos da Revolução Haitiana
traz à tona as antinomias de uma elite política cuja aspiração modernizante de construir um
Estado liberal se chocava com o racismo que lhe era constitutivo e a necessidade prática de
manter a economia de exportação baseada no trabalho escravo. Argumenta-se que o nó
górdio de práticas repressivas, sensação de medo, políticas públicas e exploração do
trabalho arrastou-se ao longo de todo o primeiro século de nossa existência como país
independente, fazendo com que o “Haitianismo” tenha sido evocado desde antes da
chegada da Família Real Portuguesa em 1808 até a abolição formal da escravidão em 1888.
A hipótese sugerida é que o Haiti e sua revolução negra serviram como referentes negativos
em oposição aos quais a nascente elite política brasileira forjou sua representação
privilegiada de identidade nacional: se o Brasil e os brasileiros não nasceram prontos e,
portanto, precisavam ser produzidos historicamente, essa produção acabou servindo-se
fartamente do temor haitianista como dispositivo delimitador dos conflitos entre os diferente
projetos políticos em disputa na elite imperial. As consequências sociais, domésticas e
exteriores, desta complexa operação histórica, conclui-se, fazem-se sentir até os dias atuais.

Palavras-chave: elites; Estado; Haitianismo; racismo; poder.

  1  
1. Introdução

O Brasil não nasceu pronto, nem sua elite. É partindo desta premissa básica que o
presente trabalho busca indagar a respeito de alguns processos históricos, em particular os
de caráter político, que estiveram presentes durante o primeiro século de independência
formal do país. Dentre os processos que contribuíram para a formação nacional ao longo do
século XIX, destaca-se aqui um elemento recorrentemente encontrado nas narrativas e
debates que concorreram para a produção discursiva de sua jovem elite política: o
Haitianismo. Como veremos a seguir, ele foi um dispositivo de poder político-retórico
intensamente mobilizado pelos diferentes setores, partidos e variações regionais da elite
oitocentista brasileira. Trata-se de uma palavra, Haitianismo, e de um alerta nela embutido,
que pareciam conferir aos que deles se utilizavam de um maior poder de argumentação e
convencimento, uma vez que apelava para um fenômeno a ser evitado a qualquer custo
pela elite brasileira, relegando suas eventuais desavenças internas para um segundo plano
de preocupações e disputas.
Como é sabido, o Haitianismo denota o medo dos proprietários e da população branca
em geral com relação a uma possível repetição em solo nacional de uma revolução bem-
sucedida da população negra e escravizada, como ocorrera entre 1791 e 1804, na ex-
colônia francesa de São Domingos, rebatizada como “Haiti” no momento de sua
emancipação colonial (GEGGUS, 1997; JAMES, 1989). Tanto a historiografia tradicional
quanto os estudos históricos mais recentes fazem repetidas menções ao Haitianismo da
elite brasileira, como veremos. Também é possível encontrar com relativa facilidade
exemplos diretos de mobilização política deste medo em jornais de época e
pronunciamentos disponíveis nos arquivos históricos sobre a Era Imperial brasileira (1822-
1889). No entanto, nenhum estudo ou fonte primária informa sobre o fim desta prática
retórica, deixando-nos com um silêncio que propicia indagações sobre sua permanência na
atualidade ou desdobramentos futuros.
Nas páginas que se seguem, destacaremos exemplos historiográficos e primários
relevantes deste dispositivo discursivo a fim de compreender como e para que agendas
políticas ele foi efetivamente mobilizado. Em seguida, sugere-se uma hipótese acerca dos
efeitos de poder que tal prática política pode ter inscrito nas instituições de segurança do
Estado brasileiro e no modo de agir e tomar decisões de suas elites políticas, interna e
externamente. Ao fim, indica-se caminhos para a continuidade de pesquisas sobre o tema e
a relevância que podem ter para o estudo crítico das relações internacionais
contemporâneas, em especial para a inserção internacional do Brasil no século XXI.

  2  
2. Haitianismo e elite política brasileira: enunciações e ações.

No Brasil escravista, as revoltas de cativos eram frequentes, assim como eram em


outras formações sociais com plantations de tipo colonial, como Jamaica ou Guiana
(GENOVESE, 1983; GILROY, 2001; GOMES & SOARES, 2002; MOURA, 1981; VIOTTI DA
COSTA, 2010). Mas, conforme demonstrado, dentre outros, pelos estudos seminais de C. L.
R. James (1989), Black Jacobins, e Laurent Dubois (2004), Avengers of the New World, o
desfecho inédito da rebelião no Haiti, somado à violência que caracterizou o processo por lá,
tornaram o “Haitianismo” um ícone no imaginário oitocentista, tanto no Brasil, como na
Europa e em todo continente americano: inspiração de liberdade para uns; pânico para
outros (BLACKBURN, 2006; BUCK-MORSS, 2011; HALLWARD, 2004; SCHWARCZ &
STERLING, 2015). A elite brasileira, portanto, nasce e se desenvolve em meio a essa
atmosfera de temor haitianista, que se somaria a outros desafios enfrentados durante o
processo de construção do Estado e da nação, no Brasil, no desenrolar daquele século
(CARVALHO, 2014).
Um exemplo de fonte primária onde se encontra uma mobilização desta narrativa de
temor pode ser visto nas páginas do jornal O CRUZEIRO, de Pernambuco que, no ano 1829,
lançou seguidos editoriais em que aludia aos eventos ocorridos na ilha caribenha (já
adaptados por nós à grafia atual) e deles procurava tirar lições para o governo - e a
governamentalidade - no Brasil:

Vejam pois estes senhores [...], que estamos cercados de escravos, e temam por sua própria
segurança e vida, que eles não tomem ao pé da letra tanto Cativo, tanta igualdade e desaforo
com que estão continuadamente berrando de todos os cantos deste Império; lembrem-se da
Ilha de S. Domingos, e não queiram fazer do Brasil um novo Haiti - Quod Deus Avertat
[Deus nos livre]. Amém! (O Cruzeiro: Jornal Político, Literário e Mercantil, Pernambuco, n.
40, 25 jun. 1829, p.4);

***

Confessemos que o abuso da liberdade é um mal contagioso. Fazer o que a lei não proíbe é
o círculo em que gira somente a liberdade. Dar um passo fora desta raia de cair na licença, o
oposto da liberdade, a maior de todas as pestes. O homem tocado deste mal (o liberal) é
semelhante ao fogoso cavalo, que desenfreado corre furioso e cegamente pisando,
atropelando, quebrando, matando, e finalmente vai ele mesmo precipitar-se no abismo, a que
o arrasta a cegueira e o furor. Lancemos espaçosas vistas sobre o teatro do mundo e
vejamos quanto, e quão lamentáveis males tem causado a inculcada liberdade (ou
verdadeira licença). A França ainda hoje se horroriza da lembrança dos cadafalsos, das
mortes, dos assassinatos, da guerra civil. Os navegantes a passarem pelas Antilhas
apontam ainda para o Haiti e dizem: ‘Eis ali a sepultura de tantos mil homens brancos,
que foram imolados pela licença dos negros’. Pernambuco ainda goteja sangue, ainda
treme de susto, ainda se lembra dos partidos, das mortes, dos horrores. Os honrados
pernambucanos ainda afastam as vistas das Cinco Portas para não verem um bando de
licenciosos, que, como as fétidas hapias, fartando-se nos manjares mesmos sujos pelo
sangue de uma vítima européia, a conduzem ao leito da morte, e de uma morte lenta, para
serem muitas mortes: essa cáfila de bárbaros não satisfeita com o assassinato, que é fraca

  3  
satisfação para corações inchados de infernal peçonha, não respeita ao exangue cadáver,
que vem a ser objeto de escárnio (O Cruzeiro, Pernambuco, n. 35, 17 jun. 1829, p.1-2).

***

Uma perfeita igualdade não existe nas sociedades mais democráticas, nem mesmo
(atrevemo-lo afirmar com bons autores, e grandes fundamentos) no imaginário estado
natural: a razão social e política prescreve distinções, sem as quais não subsistiria a
sociedade: convém mantê-las sob pena de nos aniquilarmos. Há verdades de íntimo senso
na ordem moral, que se obscurecem, querendo demonstrá-las. Qual é o homem branco, que
à primeira vista não quer distinguir-se dos de cor? Qual o que voluntariamente quereria que
sua filha se ligasse com um preto? Creio que nenhum. A natureza criou no solo da África
homens negros, mas não os destinou para a América; convém seguir esta indicação da
natureza, e não procurar fazer um enxerto, que acabaria por transplantar a África para o
Brasil. É esta uma consequência necessária dos princípios adotados pelos Inimigos das
Diferenças de Cor. Os homens de casta no nosso território são em um número muitas vezes
superior ao dos brancos: isto é; eles têm toda a força física; entregar-lhe-emos também a
pequena moral, que nos cabe em sorte, já tão enfraquecida? Se os homens de cor tivessem
a boa-fé de adotarem para conosco este desinteresse, que alguns insensatos inculcam,
poderia ser, que o perigo não fosse iminente; mas todos conhecemos bem o caráter dessa
gente, assim como a tendência para elevar-se sobre nós e suplantar-nos. Ora, eles se
expressam para igualar os brancos; mas apenas tiverem conseguido essa vantagem, a luta
mudará de natureza; todos os seus esforços serão para nos dominarem, e pagar assim
dependência com dependência. Lancemos um golpe de vista sobre a Guiné Americana (o
Haiti) poucas pretensões ao princípio, protestos de adesão à causa do Estado, mas
estes protestos se desvaneceram à proporção que a força negra se aumentava, e a
desgraçada Colônia Francesa acabou por ser um Estado de negros. Poderíamos
desejar outro tanto no Brasil? Ou teríamos a simplicidade de crer, que os negros ali fossem
mais hábeis que os daqui, ou nós mais instruídos que os Franceses? (O Cruzeiro, n. 138, 29
out. 1829, p.1-2 – grifos nossos).

Os excertos explicitamente conservadores e racistas d’O CRUZEIRO fazem parte,


como visto, de uma disputa pública com outros jornais da época, de caráter liberal, a quem o
autor acusa de “inimigo das diferenças de cor”. Uma atitude considerada irresponsável,
como provaria a “sepultura de tantos mil homens brancos no Haiti”. Por um lado, o
argumento remete à Revolução Pernambucana de 1817 e à Confederação do Equador de
1824 mas, por outro, também realiza uma discussão filosófica a respeito da noção de
liberdade. Para dar força às duas tarefas argumentativas, a empírica e a abstrata, o autor
recorre ao Haitianismo, como se vê.

Por outro lado, há exemplos de fontes primárias que realizam a operação semântica
oposta, isto é, invocavam o Haitianismo como forma de avançar agendas políticas
“reformistas” ou “progressistas” para sua época, ainda que apelando para o mesmo medo
sócio-racial compartilhado por seus oponentes. Assim, no intuito de fazer um argumento
contrário, vozes críticas ao comércio de escravos também se utilizavam da política de medo
baseada no mau exemplo haitiano. O jornal O CORREIO MERCANTIL, do Rio de Janeiro,
apresentava em 1853 um complexo argumento no qual defendia o fim de ambas as práticas,
a escravidão e o tráfico, mas não da forma “imprudente” como o gabinete conservador a
estaria empregando desde a aprovação da Lei Eusébio de Queiroz em 1850:

  4  
Um grande perigo
“Estamos assentados sobre a cratera de um vulcão”: eis aqui um pensamento que tem sido já
cem vezes repetido e que entretanto nunca teve mais justa aplicação do que hoje. O estudo
da sanguinolenta revolução do Haiti tem despertado no Brasil as mais graves considerações
no animo de todos; desde muito tempo que se reflete e se fala nisso: jamais houve época que
desafiasse tanto as reflexões e os discursos sobre tal ponto. É um perigo real: convém
envidar todos os esforços para removê-lo: falemos pois sobre ele, mas falemos muito
rapidamente, como o aconselha a prudência. No Haiti os escravos se revoltaram em 1722;
foram porém com facilidade reprimidos. No Brasil têm aparecido tentativas parciais que de
pronto se há conseguido sufocar: sintomas de insurreição por mais de uma vez tem
despertado a autoridade adormecida. Pouco mais ou menos como no Haiti. Em 1790 as
imprudências do governo francês lançam no Haiti as sementes da revolução, que rebenta um
ano depois, e transborda e arrebata diante de si tudo que encontra: duas palavras resumem
toda essa revolução: “horror!... carnificina!...” E o primeiro culpado desse horror e dessa
carnificina foi o governo francês. Deus salve o Brasil de tão medonho cataclisma! Reflitamos
porém: aproveitar-se-á o nosso governo das lições da experiência para livrar o país de tão
tremenda provação, e escapar ele mesmo do castigo que por sua imprudência recebera da
própria consciência o governo francês? [...] Repetimos o que já dissemos em outro artigo
sobre este mesmo objeto: ninguém nos acuse de defensores do tráfico: o que atacamos é a
política desvairada do atual ministério. No nosso primeiro artigo demonstramos que ele
perseguia o tráfico, mas sacrificava ao mesmo tempo a nossa agricultura [...] E sobretudo
notai: há membros do atual ministério que a opinião pública com razão aponta como antigos
negociantes de escravos, e outros como coniventes e protetores do tráfico; e portanto são
eles os menos próprios para perseguir os seus antigos companheiros de profissão (Correio
Mercantil, Rio de Janeiro, n. 45, 12 fev. 1853, p. 2 – itálicos no original).

Percebe-se por esta breve amostragem que o Haitianismo era um dispositivo retórico
utilizado tanto por liberais quanto por conservadores; tanto por defensores como por
detratores da escravidão e do tráfico de africanos escravizados1. Também é possível captar
sua amplitude geográfica, sendo encontrável de Norte a Sul do país, assim como sua
extensão temporal em distintos períodos em que crises e disputadas no seio da elite
brasileira ensejaram debates sobre os quais o consenso era difícil de ser alcançado.
Esta pequena amostra de fontes primárias é corroborada por vasta produção
historiográfica que encontra no Haitianismo uma forma de promover tanto agendas políticas
reacionárias como progressistas. José Murilo de Carvalho (op. cit.), por exemplo, identifica
no medo do Haitianismo uma explicação “plausível” para nada menos que a manutenção da
escravidão e da unidade territorial e política do país, em aberto “dentre outras alternativas”
durante a crise do sistema colonial (CARVALHO, op. cit.:19). Mais à frente, no entanto, o
mesmo historiador também provê exemplos de utilização da retórica haitianista como
instrumento de políticas opostas, ou seja, reformistas e anti-tráfico:

Um fator importante deve ser mencionado, a escravidão. [...] Pode-se expandir o argumento e
propor que a unidade da ex-colônia também favorecia a manutenção da escravidão por evitar
uma possível justaposição de países escravistas e não-escravistas, provocada por eventual
                                                                                                               
1
Esta utilização binária também foi percebida por Alejandro Gómez (2014) em relação ao que denominou de
“Síndrome de São Domingos” no grande Caribe, em especial nas colônias escravistas do sul dos Estados
Unidos. Na França, os eventos também foram utilizados por agendas políticas opostas durante a Revolução
iniciada em 1789. Ver, a este respeito, David Geggus (1989).

  5  
fragmentação. De fato, testemunhos da época deixam claro que havia entre a elite receio de
revolta escrava, tendo-se cunhado a expressão haitianismo, referência à violenta revolta dos
escravos da colônia francesa de Santo Domingo (Ibidem: 18).

***

Esse grande influxo [de africanos escravizados], aliado às turbulências regenciais, causou as
primeiras preocupações com o equilíbrio racial da população e com o perigo de uma guerra
de raças ou, como se dizia, com o haitianismo. A revolta escrava de 1835 na Bahia gerou
grandes receios de uma réplica no Rio de Janeiro, e tornou-se forte argumento dos
partidários do fim do tráfico. Evaristo da Veiga, o mais respeitado liberal da época, disse em
1835 que o tráfico acumulava escravos como se acumulam “barris de pólvora todos os dias
ajuntados à mina, e pediu seu fim e a expulsão do país dos libertos perigosos” (Ibidem: 295).

A historiadora Célia Azevedo (2004), por sua vez, também apresenta ricos exemplos
de utilização do Haitianismo como instrumento de políticas pró e contra a escravidão. Seu
fartamente documentado estudo Onda Negra, Medo Branco: o negro no imaginário das
elites – século XIX nos brinda com uma série de passagens nas quais o temor quanto à
repetição de uma revolução como a haitiana no Brasil é enunciado por agendas opostas, em
regiões distantes e em épocas afastadas uma das outras, permitindo-nos captar a
permeabilidade, difusão e durabilidade que o dispositivo retórico haitianista teve no Brasil
imperial:

Na mesma linha de racismo aberto, científico, de Pereira Barreto, o crítico literário, promotor,
juiz e deputado Sylvio Romero não hesitava em afirmar seu profundo desapreço pela “raça
negra”. [...] Em ‘Joaquim Nabuco e a Emancipação dos Escravos’ [1883], Romero defende a
continuidade da escravidão sem apoiar-se em nenhum subterfúgio, como por exemplo, a
opinião de teor liberal-humanitário de que o negro deveria ser emancipado apenas
lentamente para não se perder na miséria de uma liberdade súbita e mal compreendida. Ao
contrário, ele afirmava enfaticamente que ‘o negro é um ponto de vista vencido na escala
etnográfica’, e por isso, por ser ele incapaz, não civilizado, sem noção de liberdade, a
escravidão deveria continuar até que tivesse sucumbido no terreno econômico pela
concorrência do trabalho livre europeu.
Sua grande preocupação era que ‘o Brasil não é, não deve ser, o Haiti’. Tendo isto em
mente, era preciso acabar com ‘projetos absurdos’ que pediam ao governo a decretação de
leis contra a escravidão e, em lugar disso, compreender que a libertação deveria ser ‘o
resultado de uma transformação orgânica da sociedade’ (Ibidem: 60).

***
Dedicada ‘aos Brasileiros e seus Compatriotas’ [1821], a obra deste mineiro [João Severiano
Maciel da Costa, marquês de Queluz] que governou a Guiana Francesa de 1808 a 1819
questiona não só o tráfico como o próprio sistema escravista, responsável pela ‘multiplicação
indefinida de uma população heterogênea, inimiga da classe livre’. Além da heterogeneidade
decorrente de sua condição social de escravos, o autor lembrava também a sua natureza
bárbara, africana, de gente que vive ‘sem moral, sem leis, em contínua guerra’ [...] Para ele,
apenas ‘felizes circunstâncias’ tinham impedido até aquele momento insurreições do
tipo de São Domingos. Por isso mesmo era urgente a necessidade de trabalhadores livres
para substituir gradualmente os escravos (Ibidem: 32-33 – grifos nossos).

  6  
Outros estudos, sejam de autores “clássicos” ou de trabalhos recentes, também nos
levam a reconhecer a capilaridade do Haitianismo durante o processo de fundação do Brasil
enquanto Estado soberano. Caio Prado Jr., por exemplo, compara Brasil e Haiti ao comentar
sobre o que considerava uma exagerada sensação de medo da “população branca” diante
das poucas chances de sucesso de insurreições escravas no país no século XIX (PRADO
JR.,1979:142-143). Gilberto Freyre menciona o Haitianismo para ilustrar sua conhecida tese
acerca da suposta docilidade dos colonizadores portugueses em comparação com os
franceses ou ingleses (FREYRE, 2004:132-141). Décio Freitas argumenta que a estratégia
recalcitrante e relativamente pacífica adotada pela elite brasileira ao se separar de Portugal
explica-se porque “não se podia descartar a hipótese de que a guerra desse de si um novo
Haiti” (FREITAS, 1978: 46).
Por sua vez, Peter Eisenberg defende que para “tranquilizar as pessoas
amedrontadas com o espectro de um novo Haiti”, líderes abolicionistas como Joaquim
Nabuco e até mesmo Antônio Bento e seus caifazes “dirigiam sua propaganda
exclusivamente aos escravocratas e aos brancos” (EISENBERG, 1987:13). Marco Morel
enriquece o debate ao resgatar a trajetória do abade Grégoire e sua relação com o Haiti e o
Brasil, confirmando que o medo ao “modelo haitiano” poderia ser, como de fato foi, usado
por figuras políticas importantes também para promover agendas emancipacionistas e
mesmo libertárias, em latitudes diversas, na Europa e nas Américas (MOREL, 2005: 79).
Estudos de história diplomática seguem pelo mesmo caminho. O embaixador
Gonçalo de Barros Mello Mourão, em estudo sobre a Revolução Pernambucana de 1817,
dedica um capítulo inteiro para mostrar que “[a] influência e repercussão da revolução
haitiana no Brasil foi muito maior do que a geralmente propalada” (MELLO MOURÃO,
2009:169-172). Para o diplomata, os dois principais efeitos seriam (i) a capacidade de
reunificar as elites em conflito, inclusive internacional, em momentos de crise, e (ii) no caso
brasileiro, especificamente, fazer pender o espectro político como um todo para uma direção
mais conservadora, fortalecendo as “hostes monarquistas”:

Apenas liquidada a Revolução [Pernambucana de 1817], começou a ser posta em prática


aquela constante ameaça dos horrores do Haiti como arma contra o republicanismo, da qual
já falara magistralmente Alfredo Varela. Assim é que no próprio Manifesto de D. Pedro às
2
nações amigas, de 6 de agosto de 1822, já se usa daquela ameaça . Nas discussões
acaloradas sobre a conveniência da manutenção da unidade da Monarquia portuguesa,
defendida desesperadamente às portas do 7 de Setembro, e até mesmo depois dele, aquele
fantasma seria também constantemente lembrado pelos que defendiam a Monarquia e a
dinastia de Bragança [...] O republicanismo haitiano, de resto, seria temido até mesmo como
                                                                                                               
2
A referência do embaixador a d. Pedro I está correta. O parágrafo do Manifesto em que o monarca contribui
para o acervo de invocações do Haitianismo é o seguinte (com grafia já atualizada por nós): “À vista de tudo isto,
já não é mais possível que o Brasil lance um véu de eterno esquecimento sobre tantos insultos e atrocidades;
nem é igualmente possível que ele possa jamais ter confiança nas Cortes de Lisboa, vendo-se a cada passo
ludibriado, já dilacerado por uma guerra civil começada por essa iníqua gente, e até ameaçado com as cenas
horrorosas de Haiti, que nossos furiosos inimigos muito desejam reviver.” (Brasil, 1822).

  7  
produto de exportação [...] Deste modo, a revolta haitiana, filtrada pelos acontecimentos de
1817, interferiria profundamente na história do Brasil, contribuindo para o fortalecimento das
hostes monarquistas e para a caracterização do espírito republicano como extremista e
condutor à desestruturação social, política e econômica (Ibidem: 171-172).

Recentemente, trabalhos historiográficos dedicados especificamente ao tema do


Haitianismo tem sido publicados por autores que, embora apresentem diversidade entre
seus resgates, coincidem na certeza de que seu impacto na sociedade brasileira foi
significativo. Muitos relembram que o termo Haitianismo também podia ser utilizado, com
frequência, para designar não apenas o medo das elites proprietárias brancas, mas também
um modo específico (sedicioso, insurrecional) de se fazer política por parte dos negros.
Neste sentido, Flávio Gomes e Carlos Soares resgatam casos de repressão estatal, como
aquela sofrida por “um tal Emiliano suspeito de Haitianismo”, perseguido pela polícia da
Corte em 1836 (GOMES & SOARES, 2002: 63 – grifo nosso). Na mesma linha, Washington
Nascimento escreve sobre as múltiplas “repercussões e representações da Revolução
Haitiana no Brasil escravista”, ratificando as impressões de trabalhos anteriores
(NASCIMENTO, 2008: 125). Seu estudo é precioso, pois percebe como poucos a
complexidade do tema, as diferentes agendas a que se dispunha ser mobilizado e, inclusive,
devido ao bom trabalho arquivístico realizado, o autor encontra o primeiro texto produzido no
Brasil que trazia argumentos haitianistas (escrito pelo bispo Azeredo Coutinho, já em 1791,
ano do início das massivas revoltas populares em São Domingos). Ele sintetiza sua visão da
seguinte forma:

De maneira geral, a Revolução Haitiana mostrou às classes de senhores brancos da América


que guerras civis internas ou mesmo guerras de independência contra o poder metropolitano
levariam à destruição dos regimes coloniais que tanto buscavam proteger. “Haitianismo” foi o
termo que circulou pelos quatro cantos da América e que era usado para definir a influência
da Revolução Haitiana sobre a ação política dos negros, mulatos, escravos e livres em todo o
mundo atlântico. A Revolução Haitiana também trouxe um endurecimento das leis escravistas
e dos mecanismos coercitivos, além de uma atitude menos tolerante para com os homens
livres de cor (NASCIMENTO, op. cit., p. 127).

É de se notar que esta leva recente de trabalhos sobre o tema seja feita mais por
historiadores interessados em destacar o papel desempenhado por negros e negras na
formação da sociedade brasileira3, como Moreira et al. (2006), do que pelos estudiosos da
                                                                                                               
3
Uma obra de referência desta historiografia é o estudo pioneiro de Clóvis Moura, Rebeliões da Senzala (1981),
publicado originalmente em 1959. Nele o autor resgata o caso da rebelião liderada por Emiliano Mundurucu, que
formou um “batalhão de pardos” em 1824 para “tomar a cidade de Recife de assalto”, quando lançou “aos
pardos, pretos e ao povo em geral” um manifesto em forma de poesia no qual “reconhece a inspiração haitiana
de seu movimento” (MOURA, 1981:106). Gilberto Freyre (2004) no livro Nordeste também faz alusão ao fato,
citando o mesmo poema-manifesto insurrecional, assim como João José Reis em Quilombos e revoltas escravas
no Brasil (1995:28).

  8  
elite, como Carvalho (op. cit.). Nesta leva, é salutar a inspiração fornecida por concepções
como o “Atlântico Negro”, de Paul Gilroy, autor que apesar de esquivar-se de fazer
interpretações mais extensas acerca do legado do Haitiaismo para o caso do Brasil em
particular, não hesita em afirmar no prefácio da edição brasileira de sua obra que “[o] Haiti é
aqui, como diz a canção, e devemos lembrar que isto marcou o edifício da euro-
modernidade de forma muito mais profunda do que se tem reconhecido” (GILROY, 2001:11).

3. Hipóteses: Haitianismo à brasileira, para dentro e para fora.

Diante da facilidade em encontrar fontes primárias e secundárias que tratem do


Haitianismo, torna-se curioso – senão suspeito – notar que o tema simplesmente
desaparece das narrativas historiográficas sem que seja fornecida uma explicação sobre
seu fim. As múltiplas mobilizações, que supostamente explicariam traços relevantes da
formação histórica do Brasil (durabilidade da escravidão; independência ordeira; unidade
territorial; fim do tráfico negreiro; manutenção/fim da escravidão) não se preocupam em
seguir o fenômeno mais detidamente por um espaço temporal mais longo, nem conferir-lhe
uma nota de encerramento. Da mesma forma como surge nas narrativas históricas com
força, o Haitianismo some aparentemente sem deixar vestígios.
Um olhar mais atento, no entanto, pode revelar outro destino que não o simples
desaparecimento. Se os historiadores enclausuraram o fenômeno no século XIX, o mesmo
não pode ser dito dos geógrafos e sociólogos contemporâneos. Em sua “Reinvenção dos
Territórios: a experiência latino-americana e caribenha”, Carlos Walter Porto-Gonçalves se
inscreve no movimento descolonial do pensamento social crítico latino-americano (PORTO-
GONÇALVES, 2006: 151-197; CASTRO-GÓMEZ & GROSFOGUEL, 2007). E, para tanto, o
geógrafo faz um resgate do Haitianismo oitocentista para em seguida continuar utilizando-o
como ferramenta interpretativa que dê sentido a fenômenos dos séculos XX e XXI,
cunhando, assim, a expressão “novo Haitianismo”:

Observados desde um olhar subalterno da América Latina e do Caribe a nova configuração


geopolítica da segunda modernidade se conforma sobre os pilares da primeira [...]. Além
disso, a América para os americanos era mais do que um slogan estadunidense, posto que
envolvia toda a elite branca e crioula da América Central, do Sul e do Caribe. Nesse contexto,
o Haiti era um mau exemplo a ser confinado à ilha e se tornaria, na leitura dos brancos, uma
ideologia perigosa, o Haitianismo (PORTO-GONÇALVES, Op. cit,: 157).
No Brasil, o medo do haitianismo será o mesmo das demais elites crioulas da América,
acrescido do medo da República (Ibidem: 162);
A exacerbação dos nacionalismos coloniais nos anos 50 e 60 na Ásia, na África nos daria, na
América, Domingo Perón, Getúlio Vargas, Jacobo Arbenz, a Revolução boliviana de 52 e, em
Cuba, em 1959, uma nova ‘revolução impossível’. A partir daí o espectro do haitianismo de
novo passa a nos rondar, agora sob o nome de comunismo [...] As ditaduras militares de
direita, em grande parte apoiadas pelos EUA, que já vinham se ensaiando contra o novo

  9  
haitianismo cubano pelo menos desde 1964, no Brasil, iniciarão em 1973, a primeira
experiência neoliberal de que se tem notícia sob o massacre da experiência democrática e
socialista do Chile por Augusto Pinochet ” (Ibidem: 159 – grifo nosso).
O primeiro momento do processo de crescimento das aglomerações sub-urbanas da região,
nos anos 1950/60, foi experimentado pela população em meio a governos populistas, muitos
de corte nacionalista, que, desde a revolução cubana e o medo do novo haitianismo que se
seguiu, serão objetos de enormes pressões com a instauração de ditaduras que abriram
espaço às políticas neoliberais. Há um passivo macabro, de torturas e de mortes, que
antecedeu a onda neoliberalizante entre nós (Ibidem: 181).

Por sua vez, o sociólogo Adalberto Cardoso (2008), insiste que a escravidão deixou
marcas profundas e, mais importante, ainda perceptíveis em análises da sociedade
brasileira atual. Em sua crítica aos mitos fundacionais da sociologia nacional, como os da
cordialidade e da democracia racial, ele invoca em duas passagens a repercussão da
revolução haitiana. Primeiro para explicar a negação de direitos de cidadanias para negros e
negras no Brasil diante do “medo superlativo” contra uma possível rebelião dos “inimigos
internos”; depois, para mostrar como foi construído o senso de superioridade civilizacional
da elite branca brasileira em contraposição ao seus referentes negativos, tidos como
“bárbaros, perdidos para a civilização”:

Por um lado – e este aspecto é decisivo –, a virtual inexistência de conflitos externos que
requeressem a profissionalização da força nacional voltada à proteção de nossas fronteiras
fez que o embrião de exército constituído no século XIX e as milícias locais se dedicassem à
construção e à repressão de inimigos internos [...] No Brasil, a visão do escravo como
potencial inimigo coletivo recrudesceu no imaginário das elites em seguida à revolução
haitiana de 1804, que libertou o país do colonizador francês massacrando-o cruelmente. O
medo de catastrófica rebelião escrava que pusesse fim à “civilização” de corte europeizante
acentuou-se a partir de 1835 com a Revolta dos Malês na Bahia, ponto culminante de uma
série de atritos e levantes que contribuíram para criar no país a idéia da agressividade dos
escravos, que mantinha seus senhores em tensão permanente. Parte da ferocidade dos
castigos infligidos aos cativos por aqui terá decorrido desse medo superlativo, com
motivações mais imaginárias do que reais. No caso de São Paulo, com o fim do tráfico
atlântico em 1850 e a importação de escravos de outras províncias brasileiras, em especial
do Nordeste, a percepção do inimigo interno foi ainda mais decisiva para a construção do
padrão de repressão aos negros revoltosos, combinando forças privadas e estatais em
reações de violência extremada à menor manifestação de resistência escrava (Ibidem: 82);
Essa imagem foi contestada desde o berço por abolicionistas de vária estirpe como uma
propaganda antiabolicionista do Império voltada a “difundir um quadro róseo da situação dos
escravos” e com isso justificar o cativeiro. Ademais, a ideologia da “benignidade” teve de se
haver com o temor de uma rebelião escrava nos moldes da ocorrida no Haiti e com a
crescente rebeldia dos escravos na segunda metade do século. Ou seja, nem a escravidão
era benigna, nem os escravos eram pacíficos ou submissos, mas na ideologia dominante a
passividade era o qualificativo mais comum. Na verdade, a elite dominante do Império,
sobretudo nas grandes cidades, via na violência cotidiana um desvio de conduta por parte de
indivíduos degenerados, bárbaros, perdidos para a civilização (Ibidem: 84-85).

Este legado do Haitianismo referente à forma específica como se articulou a


escravidão no discurso da elite brasileira desponta como um dos “efeitos de poder”

  10  
(FOUCAULT, 1981:171) mais perceptíveis para o estudioso do Haitianismo hoje: a criação
discursiva de “inimigos internos” e a exaltação de um senso de superioridade civilizacional
que dá suporte a uma versão racista da identidade nacional brasileira. O primeiro diz
respeito a efeitos de poder domésticos, uma vez que ajuda a explicar como se articula a
conhecida negação de direitos de cidadania para largos segmentos da população brasileira
(negros, pobres, moradores de periferias), tratados cotidianamente como “inimigos
domésticos” pelos discursos e ações militarizantes das instituições de segurança estatais.
O segundo ajuda a explicar a exportação desta prática para o exterior, na forma de
uma ocupação militar indefinida do Haiti por tropas brasileiras desde 2004, além de lançar
luz sobre a invasão militar do Brasil à São Domingos, capital da República Dominicana, que
divide a ilha de Hispaniola com o Haiti, realizada em 1965. Pode-se então, sugerir a
hipótese que o Haitianismo à brasileira apresenta essa dupla faceta, “para dentro” e “para
fora” que, ao se articularem, produzem relações de poder cujos efeitos são capturáveis pelo
olhar do pesquisador crítico das Relações Internacionais, como sugerido pelo trabalho
seminal de R.B.J. Walker (1993).
Um breve retorno às fontes primárias do século XIX parece conferir força a esta
hipótese. Em sua Representação à Assembléia Geral Constituinte e Legislativa do Império
do Brasil sobre a Escravatura, José Bonifácio de Andrada e Silva buscava, em 1823, ativar o
medo de seus colegas contra os “inimigos domésticos” a fim de fazer avançar sua proposta
de por um fim gradual ao regime escravista. O ‘patriarca da independência’ brasileira
utilizava, para esta atividade persuasiva, motifs diretamente haitianistas:

Se o mal está feito, não o aumentemos, senhores, multiplicando cada vez mais o número de
nossos inimigos domésticos, desses vis escravos, que nada têm a perder, antes tudo que
esperar de alguma revolução como a de São Domingos. Ouvi pois, torno a dizer, os gemidos
da cara pátria, que implora socorro e patrocínio: pelejemos denodadamente a favor da razão
e humanidade, e a favor de nossos próprios interesses (ANDRADA E SILVA, 2011: 181-182).

Além da “estrangeirização” da ameaça (escravo insubordinado = haitiano), que


justifica de antemão um tratamento repressivo-belicoso e a negação de direitos de cidadania
aos “inimigos domésticos”, o Haitianismo também ajuda a explicar a curiosa repetição das
ações militares brasileiras no exterior, uma vez que jamais as tropas brasileiras ocuparam à
força o território de outra nação sem ter sido o Brasil atacado antes: as únicas vezes que
excepcionalmente o fizemos foram contra, justamente, São Domingos e Haiti. Sem querer
sugerir nexos causais diretos, tampouco parece adequado negar a correlação entre a
existência do Haitianismo no Brasil (como fenômeno e como palavra) - tão presente no
momento de fundação do Estado e da elite brasileiras - e as aventuras militares no exterior
para conter “ameaças” que certamente não colocavam em risco nenhum aspecto da

  11  
soberania nacional do Brasil, antes servindo como exemplo de afirmação da superioridade
civilizacional (racial) do país frente ao seu Outro constitutivo. Neste sentido, o Haitianismo
brasileiro, em seus efeitos exteriores, se assemelha bastante ao Orientalismo descrito por
Edward Said (2003).
Em 2015 foi lançado o livro Brasil: uma biografia, de Lilia Schwarcz e Heloísa Starling
que, mesmo não rompendo com a tendência historiográfica de conter o Haitianismo no
século XIX, apresentam indícios promissores de como seu estudo pode ser profícuo para o
entendimento das ações cerceadoras de liberdade internamente e das ações bélico-
civilizacionais interiores e exteriores do Brasil, uma vez que afirmam categoricamente que
“O Brasil se fundou, assim, como um anti-Haiti”:

O governo também lidaria com especificidades geradas pela presença e cultura dos africanos
e dos diversos grupos indígenas espalhados pela colônia. Por exemplo, em 13 de maio de
1808 o príncipe regente, por meio de carta régia, ordenava ao governador de Minas Gerais
que iniciasse uma guerra ofensiva contra os índios antropófagos Botocudo. Chamando os
nativos de bárbaros, canibais e praticantes de atos atrozes – ‘ora assassinando os
Portugueses e os Índios mansos por meio de feridas, de que sorvem depois o sangue, ora
dilacerando os corpos e comendo os seus tristes restos’ -, d. João pedia a eliminação
sumária do grupo; em nome da “civilização” e da proteção de “uma sociedade pacífica
e doce”. Havia ainda o medo de rebeliões negras, fenômeno que ficou conhecido como
“haitismo”, em alusão à tomada da colônia francesa do Haiti pelos negros. Esse
movimento teve a capacidade de exportar o medo (por parte das elites) e a esperança
(para os escravizados) (Ibidem: 187);
Quanto aos dirigentes brasileiros, passaram a temer o Haiti como ao diabo. O movimento de
1804 repercutiu no país como um todo, e seria pretexto para várias medidas restritivas, entre
elas um modelo centralizador de poder após a independência. O Brasil se inventou, assim,
como um anti-Haiti: por oposição, éramos todos brancos, cristãos e civilizados (Ibidem:
228-229 – grifos nossos).

“Por oposição” identidades são construídas, assim como ações de exercício do poder
são tornadas possíveis diante do Outro (SAID, 2003). No caso brasileiro, parece difícil negar
a conexão entre tais construções narrativas desse abominável Outro, produzido
discursivamente mediante o emprego ostensivo do Haitianismo, e o próprio Brasil que,
segundo a visão de suas elites fundadoras, poderia ser tudo, menos um novo Haiti. Se é
verdade, como afirmou-se no início deste artigo, que o Brasil não nasceu pronto, nem suas
elites, é mister seguir investigando como sua produção recorreu à contraposição haitianista
para dar sentido a si mesmos; para que fossem continuamente (re)produizidos – o Estado e
seus tomadores de decisão – como superiores a algum outro povo, raça ou classe social.
Mediante linhas que separam o “dentro” e o “fora” do Estado soberano, assim como o
inside/outside da própria humanidade ou civilização moderna, acarretando em demarcações
e exclusões cujos efeitos de poder são encontrados na medida em que produzem posições
de sujeito (e objeto) que podem (e não podem), respectivamente, aspirar a ter acesso aos

  12  
direitos e prerrogativas que o pertencimento a um estado nacional ou ao que é considerado
“universal” promete oferecer aos que se encontram do lado privilegiado das linhas
demarcatórias, isto é, do lado “de dentro” nas antinomias fundadoras da modernidade
(WALKER, 2006; 2010).

4. Conclusão

Este trabalho inscreve-se em uma pesquisa de doutorado mais ampla sobre o tema
do Haitianismo, desenvolvida no âmbito do programa de pós-graduação em Relações
Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. O objetivo geral da
pesquisa é investigar a trajetória destas narrativas de medo, os sentidos políticos para os
quais ela serve e as práticas bélico-racistas que a constituem, desde o século XIX,
indagando sobre seus desdobramentos futuros a partir das marcas que deixou inscritas no
Estado e nas elites políticas brasileiras. Por falta de espaço nesta oportunidade, foi possível
apresentar apenas uma pequena amostra dos exemplos de mobilização do Haitianismo,
além de não ter sido possível cotejá-los com as construções discursivas atuais que tentam
justificar o papel destacado exercido pelas tropas brasileiras na Força das Nações Unidas
para a Estabilização do Haiti (MINUSTAH); nem com as repetidas narrativas de medo
difundidas pela imprensa e outros meios contemporâneos acerca da “invasão”4 de haitianos
ao Brasil em função do fluxo migratório decorrente das péssimas condições de vida no país
caribenho, pioradas após mais de uma década de ocupação militar estrangeira.
Tampouco foi possível discutir mais a fundo as referências teóricas que embasam a
presente investigação. No entanto, vale ressaltar que um dos objetivos específicos que
busca-se atingir é exatamente alargar o escopo temático e disciplinar das abordagens
“descoloniais” (CASTRO-GÓMEZ & GROSFOGUEL, 2007) e pós-coloniais, ainda
incipientes no pensamento social brasileiro. Por outro lado, também é nosso fito oferecer
uma modesta contribuição às teorias críticas de Relações Internacionais, que não trataram
do tema do Haitianismo até agora, algo que é surpreendente. Além disso, a crítica do
“imperialismo humanitário” (CHOMSKY, 2008) com foco na MINUSTAH tem sido diminuta
até o presente, sendo pouco comum que se produzam trabalhos genealógicos ou
comparativos que apresentem as similaridades das ferramentas discursivas utilizadas para
justificar as intervenções militares hoje em dia com as mobilizações de narrativas racistas e
civilizacionais encontráveis nos discursos políticos e intelectuais ilustrados, fundadores da
                                                                                                               
4
Ver, por exemplo, O GLOBO, 01/01/2012, disponível online em: http://oglobo.globo.com/brasil/acre-sofre-com-
invasao-de-imigrantes-do-haiti-3549381 (Acesso em Agosto de 2016). Ver também o portal R7, em 24/01/2012,
disponível em: http://noticias.r7.com/blogs/andre-forastieri/2012/01/24/o-brasil-nao-precisa-de-imigrantes-
haitianos-e-o-haiti-nao-precisa-do-brasil/ (Acesso em Agosto de 2016).

 
  13  
nação, do nacionalismo e do Estado no Brasil no alvorecer do século XIX em diante. O
resultado final da pesquisa, programado para 2018, almeja dar conta de tais lacunas.
Por ora, espera-se ter demonstrado a pertinência e, sobretudo, a atualidade do tema
para uma agenda de pesquisas críticas cujas abordagens certamente são de interesse
interdisciplinar. No caso da teorização crítica em Relações Internacionais, a difusão de
trabalhos que busquem problematizar as fundações discursivas e de conhecimento, portanto
de poder, da modernidade/colonialidade (MIGNOLO, 2003) seguem como tarefa a ser
continuamente perseguida. E, dentre tais fundações, as que levaram, e levam, à
(re)produção do Estado soberano através das práticas de suas elites, não podem deixar de
ser investigadas criticamente (WALKER, 1993). Afinal, se o racismo, social e institucional,
não é um fenômeno exclusivamente brasileiro, nem de suas elites políticas, também é
verdade que ambos não existiriam da forma como são por aqui na falta de uma larga
trajetória própria de opressão, exploração e violência sócio-racial particularmente articuladas
em sua colonialidade específica (QUIJANO, 2005). E, indubitavelmente, no caso do Brasil, o
Haitianismo faz parte dessa articulação.
O Haitianismo é, portanto, uma forma concreta de articular o racismo e a violência
das elites e do Estado, no Brasil. Esta pesquisa parte da premissa de que o racismo é uma
característica central da formação social brasileira, não sendo possível tratá-lo como mero
epifenômeno (MESQUITA, 2004). Vale repetir: não se trata de uma característica a mais da
nossa classe dominante; mas do fato de que ela logrou ser dominante também por ser
racista. Neste sentido, pretende-se aqui seguir o esforço de gerações de militantes e
intelectuais que, a exemplo de Clóvis Moura (1981) e outros/as, denunciam sua centralidade
e esforçam-se cotidianamente para fazer girar as preocupações, agendas de pesquisa e
financiamento para investigações sociais no Brasil em uma direção pós-colonial e
antirracista, ou seja, que aceite-se o desafio de encarar essa lamentável realidade de frente,
sem escamotear seus efeitos, origens e implicações.

5. Bibliografia

ANDRADA E SILVA, J. B. A defesa da soberania nacional e popular. In: SILVA, E.; NEVES,
G. R.; MARTINS, L. B. (Org.). Coleção O Pensamento Político Brasileiro, 6. Brasília:
Fundação Ulysses Guimarães, 2011.

AZEVEDO, C. M. Onda Negra, Medo Branco: O Negro no Imaginário das Elites – Século
XIX. 3. ed. São Paulo: Annablume, 2004.

BLACKBURN, R. Haiti, Slavery, and the Age of the Democratic Revolution. William and Mary
Quarterly, 3d series, volume LXIII, no 4, October, 2006.

  14  
BRASIL. Poder Executivo. Manifesto, de 6 de Agosto de 1822. Sobre as relações políticas e
comerciais com governos e nações amigas. Legislação informatizada/Coleção de Leis do
Império do Brasil, v. 1, p. 132.

BUCK-MORSS, S. Hegel e Haiti. Novos Estudos, no 90, Julho de 2011.

CARDOSO, A. Escravidão e Sociabilidade Capitalista: Um ensaio sobre inércia social.


Novos Estudos, no 80, Março de 2008.

CARVALHO, J. M. A construção da ordem: a elite política imperial. Teatro de sombras: a


política imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.

CASTRO-GÓMEZ, S. Michel Foucault y la colonialidad del poder. Tábula Rasa, n. 6, p. 153-


172, 2007.
______; GROSFOGUEL, R. El giro decolonial: reflexiones para una diversidad epistémica
más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre Editores, 2007.

CHOMSKY, N. Humanitarian imperialism: The New Doctrine of Imperial Right.


Monthly Review, v. 60, n. 4, 2008.

DUBOIS, L. Avengers of the new world: the story of the Haitian Revolution.
Cambridge: The Belknap Press of Harvard University Press, 2004.

EISENBERG, P. Prefácio. In: AZEVEDO, C. M. Onda Negra, Medo Branco: O Negro no


Imaginário das Elites – Século XIX. 3. ed. São Paulo: Annablume, 2004 (prefácio de 1987).

FOUCAULT, M. A microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1981.


______. The archeology of knowledge. London: Routledge, 2002.

FREITAS, D. A revolução dos Malês. Porto Alegre: Ed. Movimento, 1985.


______. Os guerrilheiros do imperador. Rio de Janeiro: Graal, 1978.

FREYRE, G. Nordeste: aspectos da influência da cana sobre a vida e a paisagem do


Nordeste do Brasil. São Paulo: Global, 2004.

GEGGUS, D. The Naming of Haiti. New West Indian Guide/Nieuwe West-Indische Gids vol.
71 no. 1 & 2 (1997): 43-68

_______ . Racial Equality, Slavery, and Colonial Secession during the Constituent
Assembly.The American Historical Review, Vol. 94, No. 5 (Dec., 1989), pp. 1290-1308

GENOVESE, E. Da Rebelião à Revolução. São Paulo: Global editora, 1983.

GILROY, P. O Atlântico Negro: modernidade e dupla-consciência. São Paulo: Editora 34;


Rio de Janeiro: UCAM - Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001

GOMES, F.; SOARES, C. Sedições, Haitianismo e Conexões no Brasil Escravista: outras


margens do Atlântico Negro. Novos Estudos, n. 63, 2002.

GÓMEZ, A. El síndrome de Saint-Domingue. Percepciones y sensibilidades de la


Revolución Haitiana en el Gran Caribe (1791-1814). Caravelle, n. 86, 2006.
__________ . From the Haitian fear to the Syndrome of Saint-Domingue. Conference at
Brown University, February 2014.

  15  
HALLWARD, P. Haitian Inspiration: On the bicentenary of Haiti’s independece. Radical
Philosophy, vol. 123, January/February, 2004.

JAMES, C. L. R. The Black Jacobins: Toussant L’ouverture and the San Domingo Revolution.
New York: Vintage Books, 1989.

MESQUITA, E. Clóvis Moura (1925-2003). Afro-Ásia, n. 31, p. 337-356, 2004.

MIGNOLO, W. Histórias locais, projetos globais: Colonialidade, saberes


subalternos e pensamento liminar. Belo Horizonte: Humanitas, 2003.

MOREIRA, C. et al. Cidades Negras: africanos, crioulos e espaços urbanos no Brasil


escravista do século XIX. São Paulo: Alameda, 2006.

MOREL, M. O abade Grégoire, o Haiti e o Brasil: repercussões no raiar do século XIX.


Almanak Brasiliense, n. 2, p. 76-90, 2005.

MOURA, C. Rebeliões da Senzala. 3. ed. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas,
1981.

MOURÃO MELLO, G. A Revolução de 1817 e a História do Brasil: um estudo de história


diplomática. Brasília: FUNAG e Ed. UnB, 2009.

NASCIMENTO, W.‘São Domingos, o grande São Domingos’: repercussões e


representações da Revolução Haitiana no Brasil escravista(1791-1840).Dimensões,n. 21,
2008.

PORTO-GONÇALVES, C. A reinvenção dos territórios: a experiência latino-americana e


caribenha. In: CECENA, A. Los desafios de las emancipaciones en un context militarizado.
Buenos AIRES: CLACSO, 2006.

PRADO JR., C. História Econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1979.

QUIJANO, A. Colonialidade do Poder, Eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, E.


(Org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais – perspectivas latino-
americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005.

REIS, J. Quilombos e revoltas escravas no Brasil. Revista USP, nº28, dezembro de 1995.

SAID, E. Orientalism. London: Penguin Classics, 2003.

SCHWARCZ, L.; STARLING, H. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras,
2015.

VIOTTI DA COSTA, E. A dialética invertida e outros ensaios. São Paulo, Editora UNESP,
2014.
______. Da Senzala à Colônia. São Paulo: Editora UNESP, 2010.

WALKER, R. Inside/Outside: international relations as political theory. Cambridge:


Cambridge University Press, 1993.
______. Lines of insecurity: international, imperial, exceptional. Security Dialogue, v. 37,
2006.
______. After the Globe, Before the World. London: Routledge, 2010.
 

  16  

Você também pode gostar