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O herói negro no ensino de história do

Brasil: representações e usos das figuras


de Zumbi e Henrique Dias nos
compêndios didáticos brasileiros
Hebe Mattos*

Hebe Mattos é professora titular de história do Brasil na Universidade Federal Fluminense.


Este é um pequeno ensaio de história social da memória que busca anali­
sar, a partir de algumas imagens e compêndios didáticos escolhidos, as
representações dos dois mais antigos e emblemáticos heróis negros da his­
tória do Brasil: Zumbi dos Palmares e Henrique Dias.1
Mesmo sem serem contemporâneos em sentido estrito, os dois perso­
nagens são fruto de um mesmo contexto histórico — o da longa conjun­
tura de guerras que marcou o Nordeste brasileiro durante o século XVII.
Narrativas memorialísticas sobre eles, celebrando-os como heróis e ne­
gros, surgiram ainda no período colonial. Sua presença nos compêndios
de história do Brasil é precoce. Remonta aos primeiros manuais redigidos
no século X IX e se estende, mesmo que com usos e significações muito
diferenciados, por todo o século X X .
Nesse sentido, o presente texto é também uma tentativa de pensar
historicamente os significados pedagógicos atribuídos à identidade negra
ao longo do tempo. N os manuais didáticos estão presentes tanto as pres­
sões sociais e conflitos políticos que informam as reconfigurações da me­
mória dos dois personagens quanto a influência da historiografia erudita
de cada época analisada. Desse ponto de vista, o manual didático se apre­
senta como lugar privilegiado para pensar as interseções entre história e
memória.

Na primeira metade do século XVII, com o título de governador-geral


dos crioulos, negros e mulatos do Brasil, Henrique Dias foi mestre de
campo de um regimento de homens negros nas lutas de resistência à ocu-

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CULTURA POLÍTICA E LEITURAS DO PA SS A D O

pação holandesa em Pernambuco (1630-8) e depois na guerra que resul­


tou na restauração do domínio português na região (1640-54).
A conjuntura de guerra fez crescer os mocambos de escravos fugidos
no interior, dando origem ao famoso quilombo dos Palmares, localizado
na serra da Barriga, em Alagoas, e que resistiu às investidas holandesas e
portuguesas por todo o século XVII. Com títulos e instituições de poder
de origem africana, como Zumbi (líder militar) e Ganga Zumba (líder
religioso), segundo tradição ambundo-imbangala, Palmares teve seu últi­
mo Zumbi morto em batalha em 1695.
Uma memória sobre Henrique Dias começa a se formar ainda no sé­
culo XVII. Sua coragem e bravura estão referidas em todas as crônicas e
memórias das guerras contra os holandeses. É também em tais cronistas e
memorialistas que se encontram os primeiros registros sobre os mocambos
dos Palmares.2 É seguindo tais autores que Henrique Dias e Zumbi se fa­
zem presentes na H istória da América portuguesa, escrita por Sebastião
da Rocha Pitta no século seguinte.3
O livro de Rocha Pitta será também o grande responsável pela primei­
ra narrativa histórica que transformava em herói a figura do último Zum­
bi. Ele dedica uma parte significativa de sua narrativa à resistência de
Palmares às investidas portuguesas. Mesmo que sob o ponto de vista por­
tuguês, o texto ressalta a coragem dos palmarinos. Segundo o relato, no
assalto final a Palmares, quando Zumbi se viu cercado, teria preferido a
morte ao cativeiro, jogando-se de um penhasco junto com seus guerrei­
ros. Narrativa que depois seria desmentida pela descoberta de fontes de
época ligadas à campanha militar que destruiu o quilombo. A narrativa
de Rocha Pitta se manteria, entretanto, como a principal versão sobre a
morte de Zumbi e a derrota de Palmares até princípios do século X X .
Os dois heróis estão surpreendentemente bem representados no pri­
meiro manual de história do Brasil, escrito por José Inácio de Abreu e Lima,
publicado em três diferentes edições, em 1843.4
Quem era Abreu e Lima? Do ponto de vista das influências historio-
gráficas, um representante do nativismo pernambucano no século XIX.
Seu compêndio dialogava com a historiografia erudita disponível sobre o
Brasil, então quase toda estrangeira: Robert Southey, recompilado por

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IDENTIDADES EM CONSTRUÇÃO: INDÍGENAS, NEGROS E MESTIÇOS

Beauchamps; Ferdinand Denis, recompilado por Bellegard. N o caso, ele


informava na introdução que reproduzira muitas vezes literalmente o texto
desses autores.
Do ponto de vista político, era um representante do liberalismo radi­
cal da primeira metade do Oitocentos — campo privilegiado do nativismo
pernambucano do período. Era filho do legendário Padre Roma, revolu­
cionário de 1817, de quem presenciou a execução. Exilou-se nos Estados
Unidos e depois participou das lutas de independência da América espa­
nhola, especialmente na Venezuela, como general do exército de Simón
Bolívar. Desapontado com a fragmentação política da América espanho­
la, tornou-se monarquista e admirador de D. Pedro I, a quem dedicou o
seu Compêndio de história do Brasil. Sem voltar a envolver-se diretamen­
te em rebeliões políticas, manteve-se, entretanto, num campo que pode­
mos definir como liberal-democrático.5
É a importância da faceta antiescravista e antirracista (mas não aboli­
cionista) do pensamento liberal do período que vai produzir uma signifi­
cação específica para as figuras de Henrique Dias e Zumbi no primeiro
compêndio de história do Brasil.
Rocha Pitta e os cronistas seiscentistas estariam na base da narrativa
sobre a ocupação holandesa no Nordeste no livro H istória do Brasil, de
Robert Southey, escrito em princípios do século X IX , ainda antes da in­
dependência do país.6 Seria principalmente, mas não só, com base nesse
livro que José Inácio de Abreu e Lima recuperaria, de forma surpreen­
dente, ambos os heróis no seu manual.
O Compêndio... tem trechos inteiros copiados do História do Brasil de
Southey, procedimento ao qual o autor se refere na introdução do volume.
Varnhagen o acusou de plágio em função disso, e a polêmica entre ambos
se tornou famosa. Talvez tenha sido responsável pela carreira modesta do
livro do ponto de vista editorial. Conhecemos três edições da obra, uma
delas ilustrada com sete retratos: Cristóvão Colombo e Pedro Alvares Cabral,
os dois imperadores (Pedro I e Pedro II), José Bonifácio e os líderes indíge­
na e negro da luta contra os holandeses, Filipe Camarão e Henrique Dias,
devidamente condecorados com a cruz da Ordem de Cristo, recebida por
seus serviços à Coroa portuguesa (vide imagem 1 no caderno de fotos).

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CULTURA POL iTI CA E LEI TURAS DO P A S S A D O

O texto do compêndio destaca a bravura e o heroísmo de Henrique


Dias e considera tais qualidades provas diretas de que o “acidente da cor”
não define qualquer diferença essencial entre as pessoas. É como ícone
antirracista e formador do povo brasileiro que Abreu e Lima o retrata.
Assim o manual narra o episódio da perda da mão do herói na Batalha de
Porto Calvo:

Henrique Dias, de origem africana e natural de Pernambuco, patenteou


durante essa ação uma intrepidez digna de ser posta em paralelo com o
que a história refere de mais assombroso. Uma bala lhe atravessa o pu­
nho; manda sem demora que lhe façam a amputação da mão [...]; e voan­
do de novo ao combate: Basta-me uma mão, disse ele, para servir a meu
Deus e ao meu Rei; cada um dos dedos d’esta, que me fica, me fornecerá
os meios de me vingar. Ainda que negro por nascimento não deixou de
obter pela fama eterna memória; porque esta não atende ao acidente da
cor, senão às qualidades do coração.7

Claros estão, no trecho citado, os significados da condição de negro, di­


retamente associada à origem escrava. Mas, de fato, e esta era a lição a ser
ensinada, a cor era apenas um “acidente” , como a glória e a coragem do
herói bem comprovavam.
Segundo o Compêndio..., ainda que ingressos como escravos na socie­
dade colonial, havia um lugar para os descendentes de africanos na na­
ção que se formava, uma vez superada a condição de escravidão. Nas
primeiras décadas após a independência, a plena incorporação dos des­
cendentes de africanos libertos e livres como cidadãos brasileiros — as­
sociada ao combate ao comércio transatlântico de escravos — constituía
o horizonte mais democrático que o pensamento político do tempo con­
seguia alcançar.
A nova constituição legitimava a continuidade da escravidão em nome
do direito de propriedade, mas também tornava ilegal a maioria das anti­
gas restrições civis à população livre dita “de cor” . Como muitos dos libe­
rais exaltados do tempo, Abreu e Lima alargava ao máximo os sentidos
democráticos e antirracistas dessa perspectiva. Em sua narrativa, Palmares

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IDENTIDADES EM CONSTRUÇÃO: INDÍGENAS, NEGROS E MESTIÇOS

destaca-se pela grandeza, civilização e pelos milhares de habitantes que


conseguiu reunir.

Então viu-se um d’aqueles rasgos, que atestam ser o verdadeiro valor o mes­
mo em todas as espécies do gênero humano. Tendo que optar entre o horror
do cativeiro e a morte, Zumbe [síc] e seus companheiros preferiram o último
partido, despenhando-se do pico de um rochedo alcantilado. Os velhos, me­
ninos e mulheres foram vendidos; extinguiram-se as mesmas ruínas da cida­
de; e só resta hoje dos Palmares a memória dos seus célebres habitantes.8

Seguindo Rocha Pitta, o texto do Compêndio destaca que Zumbi e seus


companheiros teriam preferido a morte ao “horror do cativeiro” . Como
já assinalado, para Henrique Dias nada apagaria, porém, a memória dos
seus “célebres habitantes” , prova de que o verdadeiro valor era o mesmo
em todas “as espécies do gênero humano”.
Abreu e Lima integra-se, assim, não apenas ao campo historiográfico que
Evaldo Cabral de Mello chamou de nativismo pernambucano oitocentista,
mas também à tradição liberal que se inscrevia num campo antirracista bem
definido e bastante atuante nas décadas que antecederam a publicação do
volume. Tal tradição rejeitava justificativas racializadas para a manutenção
da escravidão, acatando apenas as de bases histórica e jurídica, bem como
qualquer restrição de direitos civis e políticos com base em características inatas.
Não há mais que “escravos ou cidadãos”, diziam os jornais radicais do
período. Ao destacar a figura de Henrique Dias, o Compêndio de história
do Brasil de Abreu e Lima recusava as antigas hierarquias de cor entre os
homens livres, bem como uma racialização da justificativa da escravidão.
Formulava, ao mesmo tempo, um discurso positivo e otimista sobre as
possibilidades de cidadania dos libertos no futuro do novo país.
Nem sempre, porém, a associação entre liberalismo e antiescravismo
redundou em perspectivas democratizantes. Um pensamento liberal elitista,
ainda que francamente abolicionista, estaria na base do livro Lições de his­
tória do Brasil, de Joaquim Manuel de Macedo, publicado em 1865.9 Tal
manual teve a História do Brasil de Varnhagen como base historiográfica, e
mais de um autor já destacou a centralidade do elemento indígena na nar-

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CULTURA POLÍTICA E LEITURAS DO PA SS A D O

rativa. Esta centralidade se contrapõe de maneira contundente à dificulda­


de de abordar da mesma forma a influência africana. Tal mudança de pos­
tura, em relação ao liberalismo de Abreu e Lima, fica bastante evidente na
forma como os dois heróis aqui abordados aparecem no livro.
Lições de história do Brasil, de Joaquim Manuel de Macedo, organiza-
se a partir de uma metodologia específica. As lições se organizam como
capítulos, cada um com um quadro sinóptico e uma lista de questões, com
suas respectivas respostas a serem memorizadas. O manual foi adotado no
Colégio Pedro II, onde Macedo lecionava, e permaneceu sendo adotado e
atualizado até, pelo menos, 1916. Nele, a “ Guerra Holandesa” mereceria
seis lições, nas quais Henrique Dias era rapidamente citado em apenas duas.
De forma ainda mais restrita, o herói só aparece uma vez no quadro
sinóptico, com a seguinte definição: “Henrique Dias — chefe dos negros” .
Nas questões, apenas uma lhe dizia respeito:

Que prêmio teve Henrique Dias? O bravo Henrique Dias, esquecido em


Portugal, foi no Brasil nomeado mestre de campo de um regimento de
negros da Bahia [...] denominação gloriosa que se estendeu aos regimen­
tos de negros de outras capitanias.10

N a narrativa de Macedo, Henrique Dias define-se como negro, mestre de


campo de um regimento de negros. Tal designação o aproximava decidi­
damente da condição escrava. As condecorações em Portugal são aqui
esquecidas e, principalmente, o protagonismo do personagem aparece
substituído por um sentido coadjuvante radical.
A abordagem sobre Zumbi acentua ainda mais esta tendência (negro
= escravo e pouco importante do ponto de vista histórico). N a lição XXV,
sobre “A destruição dos Palmares, as guerras civis dos mascates em
Pernambuco e dos emboabas em Minas”, o quilombo dos Palmares é cita­
do uma única vez:

Aproveitando-se da desordem, das emigrações e do abandono das fazen­


das, durante a guerra holandesa, muitos escravos fugiram [...] procurando
assim livrar-se da opressão do cativeiro, e sem dúvida também a eles se
juntaram desertores e criminosos.

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IDENTIDADES EM CONSTRUÇÃO: INDÍGENAS, NEGROS E MESTIÇOS

Nessa versão, se o cativeiro é uma opressão que explica e impõe a fuga,


este é mais um dos seus muitos males, pois nos quilombos se reúnem
desertores e criminosos. Nem sinais da grandeza e civilização que neles
enxergou Abreu e Lima. De forma coerente, no quadro sinóptico, o herói
é Domingos Jorge Velho, responsável pela destruição de Palmares, e não
Zumbi, ainda que este seja citado:

Domingos Jorge Velho — paulista notável. Depois de muitos combates


conquista enfim os Palmares, tendo o Zumbi e alguns de seus principais
companheiros preferido a morte à escravidão, despenhando-se do alto de
um rochedo.11

A versão de Macedo dos dois heróis ainda é claramente pautada pelos


parâmetros do liberalismo oitocentista, agora redefinido. A cor não signi­
ficava muita coisa em si mesma, mas a experiência da escravidão, sim.
Macedo temia os escravizados e seu potencial desagregador para a socie­
dade brasileira. Como ele próprio escreveria na introdução de seu romance
Vítimas e algozes, “ [...] aqueles que a natureza fez homem mas que a es­
cravidão tornou besta ou fera” . A abordagem conjunta dos autores marca
a amplitude e os limites do pensamento liberal oitocentista em relação à
inserção dos libertos e de seus descendentes na cidadania e na civilização
brasileira em construção. Em dois tempos, estrutura um discurso demo­
crático (Abreu e Lima) ou elitista (Macedo) sobre o lugar do negro livre
na sociedade brasileira, que tem como referência o rompimento com os
princípios hierárquicos que até então organizavam a sociedade colonial.
A chamada geração de 1870 vai modificar essa relação, pensando a for­
mação do Brasil antes em termos raciais e culturais do que sociais e políticos.
E a construção de uma raça brasileira, que incorporava negros e indígenas
sob liderança portuguesa, que, desde cedo, se afirma como base das novas
abordagens. Nesse novo quadro, Zumbi perde lugar nos manuais didáti­
cos — pois é o negro inserido na sociedade colonial que interessa resgatar
—, mas Henrique Dias conhece sua forma mais célebre de rememoração.
Sem dúvida, a interpretação de Capistrano de Abreu para a Guerra Ho­
landesa, transformada em Insurreição Pernambucana e vista como espaço de

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CULT UR A POL ÍTI CA E LEI TURA S DO P A S S A D O

congraçamento das raças formadoras da nacionalidade brasileira, apresenta­


da em seus Capítulos de história colonial, está na matriz dessa perspectiva.12
Ela já aparecia, entretanto, com todo o seu potencial didático de cele­
bração de uma nova raça brasileira em formação, em um pequeno livro
de Sílvio Romero, escrito em 1890, voltado para a formação de jovens, e
que em 1908 já conhecia sua oitava edição.
Com o título A história do Brasil ensinada pela biografia de seus heróis,
com prefácio de João Ribeiro, o texto não tinha Zumbi entre seus persona­
gens. Porém, estruturalmente associado aos outros chefes militares da luta
contra os holandeses, Henrique Dias era um dos heróis escolhidos.

Deixemos as preferências injustificadas, o que não devemos esquecer é


a circunstância de se acharem representadas nessa luta sagrada pela in­
dependência da pátria todas as classes da população, tendo à sua frente
os respectivos chefes: os brancos filhos da metrópole representados por
Vieira; os brancos filhos do país representados por Vidal de Negreiros;
os índios tendo à frente Filipe Camarão; os negros capitaneados por
Henrique Dias.13

Esses heróis estavam diretamente ligados à verdadeira missão do povo


brasileiro:

Todo povo tem uma missão [...] queremos formar aqui a mansão demo­
crática do congraçamento não dos deserdados da Europa somente, mas
dos deserdados de todo o mundo e, pela união, pela igualdade de todos,
formar o povo do porvir, o tipo novo, que não é oriundo do exclusivismo
europeu, ou africano, ou asiático, ou americano, o tipo novo que há de
ser a mais perfeita encarnação do cosmopolitismo do futuro [...]14

Apesar da predominância do mito das três raças e da figura de Henrique


Dias, a figura de Zumbi como herói negro não desaparece durante os pri­
meiros anos do período republicano, como pode ser visto em quadro pin­
tado por Antônio Parreiras e na reportagem sobre os documentos que
comprovavam sua morte em batalha, comentados por Mário Behring na
revista ilustrada Kosmos, em 1906.

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IDENTIDADES EM CONSTRUÇÃO: INDÍGENAS, NEGROS E MESTIÇOS

Desse documento (consulta ao Conselho Ultramarino de 18.08.1896


assinada pelo conde Sepúlveda) se depreende não passar de lenda o suicí­
dio de Zumbi. Entretanto, a morte em combate assim verificada não lhe
diminuiu em nada a grandeza do valor. E os próprios documentos oficiais
se encarregam de dar grande proporção ao vulto do herói negro que re­
sistiu impávido a um exército de 7 mil soldados aguerridos, digno sem
dúvida de figurar na gloriosa galeria dos mártires da liberdade.15
N ão há dúvidas, entretanto, de que foi Henrique Dias, e não Zumbi,
o herói negro, por excelência, dos livros didáticos a partir da era Vargas.
Não apenas a interpretação de Capistrano de Abreu informaria sua pre­
sença neles. Com a leitura de alguns dos manuais mais vendidos do perío­
do, pode-se afirmar que a interpretação de Capistrano se associava a, pelo
menos, três diferentes versões do chamado mito das três raças.
A primeira citava estatísticas e premissas racistas, bastante comuns na
primeira metade do século X X , afirmando ser o brasileiro um povo “de san­
gue predominantemente branco”, mas fruto da mistura de três raças. Nessa
versão, Henrique Dias desempenhava o papel do negro de origem africana,
desaparecido em algum lugar do passado, como os antepassados indígenas.
Nas palavras de Joaquim Silva, professor do Colégio Andrews e autor
dos manuais de história do Brasil mais vendidos dos anos 1930 aos anos 1950,

a maior vantagem, porém [da Insurreição Pernambucana], foi melhor apro­


ximar, pelas necessidades da campanha em que se irmanavam, as três ra­
ças que deviam contribuir para a formação do povo brasileiro: os brancos
reinóis e seus descendentes, como Vieira e Antônio Vidal; os índios como
D. Antônio Camarão; e os pretos, como Henrique Dias [...] pode-se dizer
com segurança que o negro não africanizou o brasileiro. Deu-se ao con­
trário. O português, tronco da raça, abrasileirou o africano que, dia a dia,
foi abandonando os costumes, envolvendo, melhorando, progredindo. [...]
As estatísticas mostram que, pela situação estacionária da raça negra e
redução do fator indígena, cresce cada vez mais, nos grupos mestiços, a
porcentagem de sangue branco.16

Uma segunda versão valorizava a alma mestiça, como no manual de Vicente


Tapajós, onde se pode ler, bem ao lado de ilustração com a figura de

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CULT UR A POL ÍTI CA E LEI TURA S DO P A S S A D O

Henrique Dias, a seguinte definição do povo brasileiro: “Um povo de cor


branca, em plena maioria, mas povo que não esquece os outros que tam­
bém o constituíram [...] Flor amorosa de 3 raças tristes.” 17
Com inspiração em Gilberto Freyre, algumas vezes se colocava ênfase
não apenas na alma mas também na predominância do sangue mestiço,
como podemos acompanhar nos trechos a seguir, extraídos da H istória
do Brasil para o colegial (de acordo com os novos programas), em 1953,
de Alfredo d’Escragnolle Taunay:

Reinóis como Francisco Barreto, ilhéus como Vieira, mazombos como


André Vidal, índios como Camarão, mestiços de todos os matizes, com­
bateram unânimes pela liberdade pátria. [...]
Todo brasileiro, mesmo alvo, de cabelos louros, traz na alma, quando
não na alma e no corpo [...] a sombra ou, pelo menos, a pinta do negro
[segue citação de Gilberto Freyre].18

Em 1959, desenvolveu-se o primeiro esforço sistemático de eliminação


de estereótipos racistas nos livros didáticos brasileiros.19 A partir de en­
tão, os movimentos antirracistas e a crítica ao mito da democracia racial
no país acabaram por relegar Henrique Dias praticamente ao ostracismo.
A historiografia, desde os anos 1960, colocava em relevo a luta dos escra­
vos e abandonava a antiga escrita da história assentada na figura do herói.
Hoje, pouquíssimos livros didáticos o citam. Os estudantes formados nos
últimos trinta anos praticamente não o conhecem.
Por outro lado, Zumbi ressurgiu e consolidou-se como herói, como
produto direto das pressões políticas dos movimentos negros. Instituiu-se
um feriado em sua homenagem, ergueram-se estátuas em sua honra. Nas
complexas relações entre memória e história, na praça Onze, no Rio de
Janeiro, uma escultura nigeriana do século XIII transformou-se no herói
negro do século XVII (vide imagem 2 no caderno de fotos).20
A lei n° 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que instituiu a obrigatoriedade
do ensino da história da África e da cultura afro-brasileira, e as Diretrizes
Curriculares Nacionais para a educação das relações étnico-raciais e para
o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana, aprovadas pelo

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IDENTIDADES EM CONSTRUÇÃO: INDÍGENAS, NEGROS E MESTIÇOS

Conselho Nacional de Educação em 10 de março de 2004, são resultado


direto desse novo contexto. Nele, as Diretrizes Curriculares Nacionais
propõem explicitamente o trabalho com heróis ou personagens negros para
incentivar a autoestima das populações afro-descendentes, elencando um
certo número deles. Nessa lista, que começa com Zumbi, a ausência de
Henrique Dias é simplesmente notável. A fidelidade de Henrique Dias à
Coroa portuguesa parece tê-lo levado de herói a proscrito.
Mas, se as abordagens pedagógicas dialogam com os contextos histó­
ricos e com a historiografia de cada tempo, a ampliação da história social
do Brasil, com a incorporação dos contextos africanos, pode modificar
esse quadro.
Zumbi pode ser mais bem entendido quando se levam em conta as
guerras angolanas que produziram os escravos enviados ao Brasil no sé­
culo XVII, onde guerreiros imbangalas, que chamavam “zumbi” seus lí­
deres militares e “quilombo” seus acampamentos e cidades, eram elementos
essenciais.21
Também Henrique Dias e seu exército de soldados escravos e libertos,
muitos deles africanos, pode ser mais bem compreendido quando se sabe
que grupos semelhantes, muitos deles de origem imbangala, eram aliados
dos portugueses na África Central, nas chamadas “guerras pretas” . O uso
militar do escravo era uma prática tipicamente africana.22
Da mesma forma, o acordo de paz, depois descumprido, entre Ganga
Zumba e o governador de Pernambuco Fernão Carrilho seguiu muitas das
etiquetas diplomáticas próprias dos acordos políticos entre portugueses e
grupos africanos na África Central.23
Zumbi, Ganga Zumba e Henrique Dias devem ser analisados não como
símbolos ou arquétipos, mas como partes de um mesmo quebra-cabeça
histórico ainda a ser mais bem desvendado, com matriz comum nas cultu­
ras políticas centro-africanas e do Antigo Regime português, no contexto
atlântico dos Seiscentos.
Frutos de um mesmo contexto histórico, com ramificações dos dois
lados do Atlântico, a renovação historiográfica produzida pela expansão
da pesquisa em história da África talvez faça Zumbi e Henrique Dias vol­
tarem, em breve, a compartilhar as páginas dos manuais didáticos, sem

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CULT UR A POL ÍTI CA E L E ITU RA S D O P A S S A D O

que seja preciso heroicizá-los ou relegá-los ao ostracismo — simplesmen­


te como agentes históricos do seu tempo.

Notas

1. Este texto originou-se de conferência proferida como prova de aula do concurso


público para professor titular de História do Brasil da Universidade Federal
Fluminense, realizado em novembro de 2004.
2. Cf., entre outros, Gaspar Barléu, O Brasil holandês sob o conde João Maurício de
Nassau:... (1647), trad. e notas Cláudio Brandão, Brasília, Senado Federal, Conse­
lho Editorial, 2005; Manuel Callado, O valeroso Lucideno e triunfo da liberdade
[Lisboa, 1648], São Paulo, Cultura, 1943; Diogo Lopes Santiago [s.d.], História da
Guerra de Pernambuco e feitos memoráveis do mestre-de-campo João Fernandes Vieira,
herói digno de eterna memória, primeiro aclamador da guerra..., Recife, Secretaria
do Interior, 1943; Biblioteca Nacional de Lisboa, Opúsculo de la guerra de Pernam­
buco, Fundo 2343, Seção de Reservados, microfilme, s.d.
3. Cf. Sebastião da Rocha Pitta, História da América portuguesa (1730), Belo Horizon-
te/São Paulo, Itatiaia/Edusp, 1976.
4. Sobre Abreu e Lima e sua obra historiográfica, cf. Evaldo Cabral de Mello, Rubro
veio, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1986. Ver também Vamireh Chacon, Abreu e
Lima. General de Bolívar, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1989. Agradeço a Selma de
Mattos a sugestão para trabalhar a figura de Henrique Dias no Compêndio.
5. Abreu e Lima é frequentemente citado pelo ensaio O socialismo, baseado nas ideias
de Fourier, que publicou no Recife, em 1848.
6. O livro de Southey foi publicado na Inglaterra entre 1810 e 1822. Só foi traduzido
para o português e publicado no Brasil em 1862, após a publicação da História geral
do Brasil, de Adolfo de Varnhagen, publicada entre 1854e 1857.
7. Cf. J. I. Abreu e Lima, Compêndio de história do Brasil, Rio de Janeiro, Eduardo e
Henrique Laemmert, 1843, cap. III — 7, p. 141
8. Ibidem, cap. V — 7, p. 217-9.
9. Cf. Joaquim Manuel de Macedo, Lições de história do Brasil, Rio de Janeiro, Typ.
Imparcial de J. M. N. Cunha, 1865. Sobre o livro, ver também Selma Rinaldi de
Mattos, O Brasil em lições, a história como disciplina escolar em Joaquim Manuel de
Macedo, Rio de Janeiro, Access, 2000.
10. Cf. Macedo, op. cit., lição XXIII.
11. Ibidem, lição XXV.

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ID EN TI D A D ES EM CONSTR UÇÃ O: INDÍ GE NA S, NEGROS E M ES TIÇ OS

12. Cf. Capistrano de Abreu, Capítulos de história colonial (1500-1800), edição revista,
anotada e prefaciada por José Honório Rodrigues, Rio de Janeiro, Sociedade
Capistrano de Abreu/Livraria Briguiet, 1954 [Ia ed. 1907],
13. Cf. Sílvio Romero, A história do Brasil. Ensinada pela biografia de seus heróis, Rio
de Janeiro, Livraria Francisco Alves, 1908, p. 68.
14. Ibidem, p. 13.
15. Cf. texto de Mario Behring na revista Kosmos, 1906, gentilmente cedido por Caro-
lina Vianna, doutoranda em História do PPGH/UFF.
16. Cf. Joaquim Silva, História do Brasil para o terceiro e quarto ano ginasial de acordo
com o programa oficial, s.L, Editora Nacional, 1950.
17. Cf. Vicente Tapajós, História do Brasil, 7a ed., s.L, Editora Nacional, 1956.
18. Cf. Alfredo d’Escragnoíle Taunay, História do Brasil para o colegial (de acordo com
os novos programas), s.L, s.e., 1953.
19. Cf. Guy de Hollanda, Um quarto de século de programas e compêndio de história
para o ensino secundário brasileiro, 1931-1956, Rio de Janeiro, s.e., 1958.
20. Sobre os conflitos para a elevação do Monumento a Zumbi, cf. Marisa Soares, “Nos
atalhos da memória — Monumento a Zumbi”, em Paulo Knauss (org.), Cidade vai­
dosa. Imagens urbanas do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Sette Letras, 1999.
21. Cf. S. Schwartz, “Repensando Palmares” , em Escravos, roceiros e rebeldes, Bauru,
Edusc, 1999.
22. Cf. Hebe Mattos, Marcas da escravidão. Biografia, racialização e memória do cati­
veiro na história do Brasil, tese apresentada ao concurso de professor titular de his­
tória do Brasil da Universidade Federal Fluminense, parte III, Niterói, nov. 2004.
23. Cf. Sílvia Hunold Lara, “Palmares, Cucaú e as perspectivas da liberdade”, em D. Libby
e J. Furtado (orgs.), Trabalho livre trabalho escravo, São Paulo, Annablume, 2006.

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