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A DITADURA MOSTRA A SUA CARA: IMAGENS E MEMÓRIAS DO PERÍODO

1964-19851

Carlos Fico2

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Bons tempos aqueles?

Algumas controvérsias têm caracterizado os eventos acadêmicos e políticos que

marcam o aniversário dos 40 anos do golpe de 1964. É o caso da discussão sobre a frágil

convicção democrática dos atores históricos da época, inclusive as esquerdas, ou sobre o

suposto caráter golpista de João Goulart – que estaria tentando perpetuar-se no poder

independentemente do Congresso Nacional. Se não há dúvida quanto à primeira questão,

sobre a segunda não há uma evidência empírica forte que a comprove.3 Além destas

delicadas questões, uma outra polêmica, mais antiga, também tem ressurgido neste ano

de 2004: para muitas pessoas comuns o Brasil “era melhor” durante a ditadura. Trata-se

de impressão usual entre diversos setores da sociedade brasileira e, como é fácil perceber,

decorre das dificuldades encontradas pelo regime democrático para resolver os problemas

básicos do país. Tal impressão, porém, também deriva da imagem que as pessoas
1
As pesquisas que fundamentam a presente comunicação vêm sendo desenvolvidas por mim e pelos
integrantes do Grupo de Estudos sobre a Ditadura Militar da UFRJ desde 1998 e encontram-se publicadas
nos livros e artigos de minha autoria mencionados ao longo do texto. Trechos destes livros e artigos são
aqui reproduzidos. A perspectiva analítica das imagens sobre a ditadura militar brasileira que impegnaram
as pessoas comuns está sendo apresentada, pela primeira vez, neste simpósio.
2
Agradeço ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) por beneficiar-me
com a bolsa de pesquisador e outras bolsas para meus orientandos e auxílios financeiros para equipamentos,
bem como à Fundação Carlos Chagas de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) por
premiar-me como a bolsa “Cientista do Nosso Estado” e recursos financeiros diversos. Os integrantes do
Grupo de Estudos sobre a Ditadura Militar da UFRJ, coordenado por mim, são responsáveis por pesquisas
que embasam a presente comunicação e vão citados nos lugares devidos.
3
Ver, a propósito, as comunicações de Jorge Ferreira, Daniel Aarão Reis, Marcelo Ridenti e Caio Navarro
de Toleno nos Anais do Seminário 40 Anos do Golpe de 1964. Rio de Janeiro: 7Letras, 2004.
2

construíram sobre a ditadura militar. Como é sabido, a tentativa de enunciar uma suposta

“verdade” sobre o passado não é uma prerrogativa exclusiva da História, sendo a

memória um campo de disputas que abrange muitos outros agentes sociais, notadamente,

no caso, os próprios militares, as esquerdas e outros atores envolvidos naquele processo

histórico. Tais conflitos de memória trazem à tona conjuntos antagônicos de simbologias,

impressões, evocações, representações etc., que, naturalmente, entrechocam-se. O

objetivo da presente comunicação é discutir as imagens que foram construídas sobre a

ditadura militar para melhor compreender a afirmação sobre a suposta superioridade do

perído em relação ao tempo presente.

Não foram os historiadores os primeiros a se debruçarem sobre o tema da ditadura

militar. As primeiras descrições detalhadas sobre o golpe de 64 e a ditadura militar

brasileira viriam de uma memorialística que se tornaria cada vez mais abundante e

variada. Havia a imprensa, por certo, que em alguns momentos produziu matérias

reveladoras, no arrebatamento de campanhas indignadas, como as de Carlos Heitor Cony,

Marcio Moreira Alves ou Edmundo Moniz.4 A atitude oposicionista de Cony era

ressaltada por sua posição não esquerdista e o lançamento da coletânea O ato e o fato

transformou-se numa das primeiras manifestações de protesto ainda em 1964. A

campanha na imprensa de Marcio Moreira Alves contra os abusos cometidos na fase

inicial do regime, alvo de inúmeras acusações de tortura, acabou por levar o governo de

Castelo Branco a mandar investigar as acusações, o que foi feito por seu chefe da Casa

Militar, o futuro presidente Ernesto Geisel. A missão foi cumprida sem que nenhum

responsável fosse punido. Ainda no que diz respeito à imprensa, notável era a técnica do

4
CONY, Carlos Heitor. O ato e o fato: crônicas políticas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964.
ALVES, Marcio Moreira. Torturas e torturados. Rio de Janeiro: [s.n.], 1964. MONIZ, Edmundo. O golpe
de abril. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965.
3

jornalista Carlos Castello Branco, capaz de levar aos leitores de seus artigos, através de

textos sinuosos, informações que, ditas com todas as letras, fatalmente seriam censuradas.

Com o passar do tempo, Castello Branco conseguiu construir para si uma espécie de

“imunidade jornalística”, fundada em sua objetividade serena mesmo quando crítica.5

Mas as primeiras revelações factuais mais precisas somente surgiriam no contexto

da chamada distensão política, já no governo do general Ernesto Geisel, quando a

descompressão política permitia – e talvez mesmo ensejasse – a revelação de episódios

que, então, já podiam ser considerados “históricos”. Os mais importantes depoimentos

vieram de dois colaboradores civis do primeiro governo militar. Luís Viana Filho, chefe

da Casa Civil de Castelo Branco, lançou seu testemunho em 1975, e Daniel Krieger, líder

do governo no Senado, publicou o seu no ano seguinte.6 Malgrado o oficialismo de

ambos e o previsível parcialismo da abordagem de diversos aspectos, eram, ao menos,

narrativas produzidas por homens que viviam os acontecimentos.

Esta “memória oficial” seria paulatinamente enriquecida. Os livros de Viana Filho

e Krieger faziam leitura positiva do governo de Castelo Branco, inserindo-se sem atritos

no contexto do governo de Geisel, tido como moderado e castelista (classificações

bastante aceitas, ainda que imprudentes). Já os lançamentos, em 1979, dos depoimentos

dos generais Jayme Portella de Mello e Hugo Abreu7 chamavam a atenção para as cisões

internas, para os diferentes grupos que conviviam no interior da tão proclamada quanto

5
A “Coluna do Castello” foi publicada no Jornal do Brasil entre 1962 e 1993. Para as colunas relativas ao
regime militar ver BRANCO, Carlos Castello. Os militares no poder: Castelo Branco. 3. ed. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1977. __________. Os militares no poder: o ato 5. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1978. __________. Os militares no poder: o baile das solteironas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1979.
6
VIANA FILHO, Luís. O governo Castelo Branco. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1975. KRIEGER, Daniel.
Desde as Missões... saudades, lutas, esperanças. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1976.
7
MELLO, Jayme Portella. A revolução e o governo Costa e Silva. Rio de Janeiro: Guavira, 1979. ABREU,
Hugo. O outro lado do poder. Rio de Janeiro: Nova Fronteira 1979.
4

falsa “unidade militar”. Tido pelos castelistas como um dos “intolerantes assessores”8 de

Costa e Silva, Portella de Mello foi chefe do Gabinete Militar do segundo general-

presidente e da Junta Militar que o sucedeu e, nesta função, ocupou o cargo de secretário-

geral do Conselho de Segurança Nacional, órgão que fortaleceu visando à implantação de

uma polícia política, que contaminaria extratos militares com a velha tradição de

truculência das polícias civis brasileiras. Seu livro, de estilo árduo, é uma espécie de

diário de mais de 1.000 páginas que enaltece Costa e Silva, primeiro líder da linha dura.

Hugo Abreu foi chefe do Gabinete Militar de Geisel, mas saiu do governo por

discordar da indicação do general João Figueiredo para a Presidência da República. No

texto, faz diversas acusações ao governo Geisel e ao próprio presidente e, por causa de

seu livro, Abreu ficou em prisão disciplinar por vinte dias. Saiu da prisão dizendo que

escreveria novo livro, também com acusações, mas este segundo somente seria publicado

postumamente, pois o general morreria poucos meses depois. Após o término da ditadura,

outros depoimentos militares significativos surgiriam, alguns tentando defender supostas

positividades do regime9 ou pretensas necessidades inexoráveis de repressão.10

De outro lado, também no final dos anos 1970 e início da década de 1980, no

contexto da abertura, foram publicados alguns dos mais impactantes depoimentos de ex-

militantes da chamada “luta armada”, principalmente aqueles que participaram da assim

chamada “guerrilha urbana”. Os livros de Fernando Gabeira e Alfredo Sirkis foram

8 Depoimento do general Gustavo Moraes Rego Reis publicado em D'ARAUJO, Maria Celina, SOARES,
Gláucio Ary Dillon, CASTRO, Celso (Int. e Org.). Os anos de chumbo: a memória militar sobre a
repressão. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994. p. 151.
9
CAMARGO, José Maria de Toledo. A espada virgem: os passos de um soldado. São Paulo: Ícone, 1995 e
PASSARINHO, Jarbas. Um híbrido fértil. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1996.
10
USTRA, Carlos Alberto Brilhante. Rompendo o silêncio: OBAN, DOI/CODI. 29 set. 70 - 23 jan. 74.
Brasília: Editerra, 1987.
5

grandes sucessos editoriais11 e prefiguraram um personagem que criaria grande polêmica

entre aqueles que optaram por “pegar em armas” contra a ditadura: o ex-militante de

esquerda crítico de sua atuação pretérita e que via como “romântica” e “ingênua” a opção

radical. Em paralelo, contrapondo-se a essas exposições leves que recuperavam uma

espécie de “rebeldia” relacionada ao ambiente cultural de contestação dos anos 1960,

paulatinamente surgiriam narrativas pungentes sobre a tortura, de outros militantes, que

enfatizavam o caráter cruento das fases mais duras do regime,12 aspecto que seria

amplamente documentado pelo projeto “Brasil: Nunca Mais”, que conseguiu coligir mais

de 700 processos envolvendo presos políticos.13

Do ponto de vista da memória da esquerda que optou pela luta armada, foi Daniel

Aarão Reis Filho quem melhor detectou o fato de o campo constituir-se num espaço de

lutas pelo estabelecimento da “verdade”, havendo um confronto entre algumas “versões

emblemáticas”: de uma lado, a visão dos “guerrilheiros” como irresponsáveis,

tresloucados, jovens ingênuos mas heróicos, cheios de ilusões, que seriam massacrados

pelo poderio da ditadura militar. De outro, o entendimento de que, não obstante tenham

optado pela “luta armada”, aquelas pessoas compuseram uma “resistência”, única

alternativa aos desmandos da ditadura. Se de fato não eram os ingênuos que parte da

literatura e da filmografia sobre o período pretende retratar,14 tampouco podem ser

caracterizados como membros de uma “resistência democrática”. Para Daniel Aarão Reis

11
GABEIRA, Fernando. O que é isso, companheiro. Rio de Janeiro: Codecri, 1979. SIRKIS, Alfredo. Os
carbonários. Memórias da guerrilha perdida. São Paulo: Global, 1980.
12
Ver, por exemplo, FREITAS, Alípio de. Resistir é preciso: memória do tempo da morte civil do Brasil.
Rio de Janeiro: Record, 1981. TAVARES, Flávio. Memórias do esquecimento. São Paulo: Globo, 1999.
COELHO, Marco Antônio Tavares. Herança de um sonho: as memórias de um comunista. Rio de Janeiro:
Record, 2000.
13
Brasil Nunca Mais. Petrópolis: Vozes, 1985.
14
Ver, sobre o tema, as críticas recebidas pelo filme O que é isso, companheiro?, de Bruno Barreto,
reunidas em REIS FILHO, Daniel Aarão e outros. Versões e ficções: o seqüestro da história. São Paulo:
Editora Fundação Perseu Abramo, 1997.
6

Filho – que defende o entendimento de que as organizações comunistas eram uma

“contra-elite, alternativa, que parte ao assalto do poder político”15 –, tal disputa de

memória ensejaria um “deslocamento de sentido”, sobretudo por ocasião da Campanha

da Anistia, que:

(...) apresentou as esquerdas revolucionárias como parte integrante da resistência


democrática, uma espécie de braço armado dessa resistência. Apagou-se, assim, a
perspectiva ofensiva, revolucionária, que havia moldado aquelas esquerdas. E o fato de que
elas não eram de modo nenhum apaixonadas pela democracia, francamente desprezada em
seus textos.16
A memorialística sobre a ditadura militar foi enriquecida com o passar dos anos, já

que políticos, artistas, jornalistas e outros atores também têm deixado seus

depoimentos,17 por iniciativa pessoal ou estimulados. Curiosamente, tal memorialística

constitui-se ao mesmo tempo em fonte e objeto históricos, pois se é certo que descreve a

época, também pode ser estudada como luta pelo estabelecimento da “versão correta”,

estando por ser feita uma análise intertextual desses fragmentos como se formassem um

texto único ou, pelo menos, um debate animado por “réplicas” e “tréplicas”.

Esta memória escrita, porém, afeta muito pouco as pessoas comuns, até porque

ainda temos uma sociedade bastante iletrada e distante do universo de questões

intelectuais. A afirmação que algumas pessoas fazem sobre a “vida melhor” na ditadura

não é uma ilação que se funda nos debates acadêmicos ou políticos, mas o resultado de

uma combinação caótica de impressões.18 Muito mais impressionante dos que os relatos

15
REIS FILHO, Daniel Aarão. Um passado imprevisível: a construção da memória da esquerda nos anos
60. In REIS FILHO, Daniel Aarão e outros. Op. cit. p. 40.
16
REIS FILHO, Daniel Aarão. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.
p. 70.
17
Ver, dentre outros, FRANCIS, Paulo. Trinta anos esta noite: 1964, o que vi e vivi. São Paulo: Companhia
das Letras, 1994, MOTA, Nelson. Noites tropicais: solos, improvisos e memórias musicais. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2000 e CORRÊA, Villas-Bôas. Conversa com a memória. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002.
18
Quando me refiro a “impressões” estou abrangendo aquilo que autores diversos têm tentado
conceptualizar como “representações”, “imaginário”, “mentalidade” etc. Obviamente não é o caso de
discutir, neste espaço, a fragilidade ou adequação de tais conceitos. Seja como for, talvez seja útil informar
7

dilacerados das vítimas da tortura, importam para essas pessoas as reminiscências da

época do chamado “milagre econômico”. As denúncias sobre o arbítrio e a truculência

dos militares se dissipam ante a memória esfumaçada de uma época de “ordem”. A

agitação contemporânea que envolve a rotina democrática dos debates parlamentares e

retarda qualquer deliberação é contraposta à capacidade de tomada de decisão dos

militares, que fechavam o Congresso se “necessário” fosse. Entre os assim chamados

“formadores de opinião” prevalece a leitura condenatória da ditadura militar como um

tempo de arbítrio, de tortura, de desmandos. Muitas pessoas comuns, entretanto,

conservam lembranças que associam imagens relacionadas à força, ao poder, à ordem, à

disciplina e ao patriotismo. Para Jarbas Passarinho, coronel que foi ministro em três

ocasiões, os militares teriam perdido a “batalha da comunicação”, isto é, a intepretação

que acabou por prevalecer na sociedade sobre a atuação dos militares seria

preponderantemente negativa.19 Isto, de fato, é verdadeiro quando se pensa nos meios

acadêmicos e políticos. Mas não é assim quando se pensa na impressão mais comum de

que a ditadura teve, pelo menos, alguns aspectos positivos.20

Se, para as pessoas comuns, as impressões e reminiscências do passado importam

mais do que as elaborações acadêmicas ou intelectuais que possamos fazer, urge

distinguirmos, com mais clareza, as diversas clivagens e antagonismos que

caracterizavam os próprios militares a fim de evitarmos o simplismo de compreendê-los

como um grupo homogêneo e coeso. Havia muitas diferenças entre os militares que

que, a mim, parece evidente que as dimensões ideológica e simbólica se interpenetram, não havendo
motivo para se afastar uma quando se considera a outra. Este e outros trabalhos de minha autoria tentam
mesclar as abordagens tradicionais da história política aos influxos do que se convencionou chamar de
história antropológica.
19
Em 2003, ele disse “vencemos a luta armada dos comunistas, mas perdemos a batalha da comunicação”.
20
Ver, por exemplo, CARVALHO, Mario Cesar. Aquele era um país que ia “pa frente”. Folha de S. Paulo.
27 mar. 1994. Caderno Especial 30 Anos Depois. p. 12.
8

ocupavam as diversas instâncias da ditadura, e estas diferenças não se esgotam na velha

dicotomia “duros” versus “moderados”. Esta questão é importante porque, para alguns

analistas, o período pode ser entendido segundo a metáfora dos “porões da ditadura”, isto

é, as instâncias repressivas da espionagem, da polícia política, da censura, da propaganda

política e do julgamento sumário de supostos corruptos agiriam de maneira homogênea e

coesa. Isto não é verdadeiro. Somente se compreendermos as diferenças existentes entre

tais instâncias repressivas poderemos atinar para o fato de que os militares aderiam de

maneira diferenciada ao projeto autoritário de transformar o Brasil numa grande potência.

Somente se entendermos a maneira diferenciada como eles classificavam algumas dessas

instâncias como “legais” e outras como “revolucionárias” poderemos compreender a

dinâmica que levou à elisão de certas imagens e à superexposição de outras. Segundo

meu ponto de vista, embora houvesse muitas distinções entre os militares e as diversas

instâncias repressivas do regime (o que desautoriza a idéia homogeneizadora dos “porões

da ditadura”), um poderoso amalgama ideológico unificava os diversos grupos: a adesão

à “utopia autoritária”21 segundo a qual seria possível transformar o Brasil em uma

potência mundial caso alguns “óbices” fossem eliminados. Porém, a maneira como os

diversos militares aderiram a esta utopia distinguiu-se, pelo menos, em dois tipos:

podemos chamar o primeiro de “saneador” e o segundo de “pedagógico”. Isto é, para

alguns militares mais radicalizados, era necessário eliminar, literalmente, os obstáculos

identificados ao comunismo, à “subversão”, à “demagogia dos políticos” etc; para outros,

os brasileiros eram “despreparados”, não sabiam votar, deixavam-se convencer pela

demagogia dos políticos, não tinham conhecimento da realidade nacional, não possuíam,

21
A expressão foi proposta por Maria Celina D’Araujo, Celso Castro e Gláucio Ary Dillon Soares. Ver
D'ARAUJO, Maria Celina et al. (Int. e Org.). Visões do golpe: a memória militar sobre 1964. Rio de
Janeiro: Relume-Dumará, 1994. p. 9.
9

nem ao menos, noções básicas de higiene ou de civilidade urbana e, portanto, era

necessário educá-los. Para os primeiros, a solução seria uma grande “operação limpeza”,

capaz de prender, exilar e até mesmo matar os inimigos daquela “utopia autoritária”. Para

os segundos, cabia aos militares desenvolver um projeto que suprisse as “deficiências de

formação” da sociedade e a protegesse de “ideologias exóticas” ou de outras formas de

corrupção do espírito (inclusive morais).

Como se vê, a dimensão “saneadora” da “utopia autoritária” previa ações efetivas

de repressão, sendo esta a razão que explica a utlização de instrumentos que os militares

classificavam de “revolucionários”, no sentido de serem excepcionais (a possibilidade de

prender sem mandado judicial, interrogar violentamente, torturar e até matar o

“inimigo”). Estes instrumentos eram ocultados da sociedade e a sua existência era

negada. A dimensão “pedagógica” da “utopia autoritária”, ao contrário, era

orgulhosamente assumida pela ditadura: ensinava os brasileiros a usar automóveis, a

serem limpos e cuidava para que eles não sofressem “atentados à moral e aos bons

costumes”. Esta dimensão era “legalizada” (não era “revolucionária”) e, portanto,

praticada sem pudores pela ditadura.

Para melhor esclarecer estas classificações e, afinal, mostrar algumas faces da

ditadura, tratarei, resumidamente, das diferenças existentes entre (a) a espionagem e a

polícia política; (b) a censura política e a censura moral e (c) a propaganda política e o

julgamento sumário de supostos corruptos.

Espionagem e polícia política

“ – Criei um monstro!” É conhecida a frase de Golbery do Couto e Silva, coronel


10

ativo na conspiração e que chefiaria o Serviço Nacional de Informações, criado através de

legislação ordinária aprovada pelo Congresso Nacional, em 13 de junho de 1964.22 Sobre

o criador e sua criatura pairam algumas imprecisões. Tido como sagaz articulador

político, na verdade são alguns insucessos de Golbery os fatores mais notáveis em sua

biografia: como chefe do SNI no primeiro governo militar, não logrou impedir a sucessão

de Castelo Branco por Costa e Silva, mesmo contando com o apoio do chefe do Gabinte

Militar, Ernesto Geisel; se conseguiu articular a candidatura vitoriosa de João Figueiredo

para a sucessão de Ernesto Geisel, teve de aceitar, já no governo Figueiredo, as

explicações fantasiosas sobre o episódio do Riocentro, atentado à bomba da linha dura

em 1981 que foi oficialmente encoberto sob a alegação de que os responsáveis seriam

vítimas. Para o que aqui interessa, destaque-se a transformação de sua criatura, o SNI,

pensado por Golbery como órgão de informações capaz de subsidiar a Presidência da

República com dados indispensáveis à tomada de decisões e que, paulatinamente, foi

sendo tomado pela linha dura.

A cronologia e a diplomática, neste caso, são auxiliares importantes: o SNI foi

criado ainda em 1964 e surgiu através da Lei no 4.341. Portanto, em primeiro lugar, é

preciso destacar sua antecedência em relação à futura estruturação e institucionalização

do sistema de segurança e informações e ao contexto de 1968, quando os militares seriam

surpreendidos pelo que se convencionaria chamar de “luta armada” ou de “guerrilha

urbana e rural”, isto é, a efetivação de antiga aspiração da esquerda pelo confronto direto

com o governo tendo em vista a tomada do poder pela força. Golbery, como é sabido, não

integrava a linha dura, sendo conhecido por sua prosápia com fumos de intelectual, perfil

que o identificava ao grupo da Escola Superior de Guerra, diferentemente dos militares


22
Brasil. Congresso Nacional. Lei no 4.341, de 13 jun. 1964.
11

exaltados, mais ligados às tropas e aos arroubos dos que preferiam decidir os problemas

pela força. Sua preocupação com a necessidade de um órgão de informações eficaz

existia havia muito tempo, remontando aos anos 1950.23 Para a constituição do SNI

lançou mão de experiências pré-existentes, como a do antigo Serviço Federal de

Informações e Contra-Informações (SFICI). Pôde contar com assessoria norte-

americana24 e aproveitou material que vinha acumulando no IPES (Instituto de Pesquisas

e Estudos Sociais).25

Portanto, o SNI foi criado às claras e, diga-se, o projeto de lei encaminhado por

Castelo Branco ao Congresso Nacional foi combatido por diversos parlamentares, que

viam no futuro órgão semelhanças indesejáveis com o antigo Departamento de Imprensa

e Propaganda (DIP) de Getúlio Vargas. Castelo foi obrigado a negociar e tentou

tranqüilizar os parlamentares sobre as boas intenções do novo Serviço, afirmando que a

Presidência da República apenas precisava municiar-se de informações, já que havia

episódios importantes que somente eram conhecidos pelo presidente tardiamente.26

Castelo, neste particular, reforçou a construção da mitologia sobre sua própria pessoa,

pois tornar-se-ia aceita a tese de que ele tinha “horror ao DIP”.27 De fato, porém, existe

significativa evidência de que ele impediu que o SNI fosse criado como um órgão de

23
FICO, Carlos. Como eles agiam. Os subterrâneos da Ditadura Militar: espionagem e polícia política Rio
de Janeiro: Record, 2001. p. 40.
24
HUGGINS, Martha K. Polícia e política: relações Estados Undidos/América Latina. São Paulo: Cortez,
1998. p. 147.
25
ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e oposição no Brasil (1964-1984). Petrópolis: Vozes, 1984. p.
25. Ver, também, DREIFUSS, René Armand. 1964: A conquista do Estado: ação política, poder e golpe de
classe. Rio de Janeiro: Vozes, 1981. p. 281 e segs.
26
BRANCO, Carlos Castello. Os militares no poder: Castelo Branco. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1977. p. 41.
27
Segundo José Maria de Toledo Camargo – chefe da Assessoria de Relações Públicas de Ernesto Geisel –
Castelo Branco “tinha muitos traços do extinto udenismo. E os udenistas, quando pensavam em propaganda
oficial, lembravam logo do DIP de Getúlio, o que lhes provocava até arrepios”. Ver entrevista de Toledo
Camargo a Gilnei Rampazzo citada em FICO, Carlos. Reinventando o otimismo: ditadura, propaganda e
imaginário social no Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1997. p. 89.
12

“mão dupla”, isto é, que fizesse, ao mesmo tempo, tanto a coleta de informações quanto a

propaganda política, tal como o velho DIP o fizera. Segundo o general Octávio Costa,

quando da criação do SNI, assessores de Golbery propuseram que o órgão tivesse tal

perfil, mas Castelo Branco teria eliminado do projeto tudo que dissesse respeito à

propaganda política,28 pois o presidente tinha “ojeriza visceral” à propaganda.29 Ademais,

todas as grandes potências e diversos outros países, inclusive os democráticos, possuíam

órgãos de informações do tipo do que então se propunha e, por isso, a criação do SNI não

seria uma dessemelhança.

Ao destacar a origem legal do SNI e a sua antecedência em relação ao AI-5 –

observações históricas afinal tão singelas – não quero, em absoluto, sugerir que o órgão

tivesse uma origem e atuação democráticas. Está claro que ele foi criado no contexto da

“ditadura envergonhada”, para usar a feliz expressão de Elio Gaspari, que, assim, bem

caracterizou esses momentos iniciais do regime militar. Porém, é preciso afastar as

imprecisões que se foram criando em torno do SNI. Além de sublinhar a feição do

Serviço como órgão de informações (que a distinguirá da dos setores que se engajarão

diretamente na tortura e assassinato político), penso que é preciso sublinhar as etapas que

marcaram sua existência, pois são evidentes as diferenças entre o período inicial, sob o

comando de Golbery, e a fase posterior, na qual o SNI viu-se sob o comando e/ou agiu

sob o influxo direto da linha dura.

Com a vitória de Costa e Silva (bem poderia dizer: com a derrota de Castelo, Geisel

e Golbery), o SNI passou a ser dirigido pelo futuro presidente da República, Emílio

28
Depoimento de Octávio Pereira da Costa publicado em D'ARAUJO, Maria Celina, SOARES, Gláucio
Ary Dillon, CASTRO, Celso (Int. e Org.). Os anos de chumbo: a memória militar sobre a repressão. Rio de
Janeiro: Relume-Dumará, 1994. p. 259. Ver também FALCÃO, Armando. Tudo a declarar. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1989. pp. 302-305.
29
Entrevista de Otávio Costa ao autor citada em FICO, Carlos. Op. cit. p. 89.
13

Garrastazu Médici, na época um general-de-divisão que privava da amizade de Costa e

Silva. Eles se aproximaram no final dos anos 1950, quando Médici, ainda coronel,

ocupou a chefia do Estado-Maior de Costa e Silva, então comandante da 3a Região

Militar em Porto Alegre (RS). Quando Costa e Silva conquistou o cargo de ministro da

Guerra, no governo de Castelo Branco, Médici foi nomeado adido militar da embaixada

brasileira em Washington. Com a posse de seu amigo na Presidência da República, foi

alçado à chefia do SNI, pois, embora tenha recusado o cargo de presidente da Petrobrás –

para o qual não se sentia preparado –, Costa e Silva fazia questão de tê-lo próximo a si.

Ora, Médici era muito diferente de Golbery e, na verdade, passaria à história como o

homem sob cuja presidência o Brasil assistiria ao auge da repressão desencadeada pela

ditadura militar. Certamente, sob seu mando, o SNI mudaria. Mais do que um órgão de

assessoria e de caráter informativo, o SNI transformou-se em instância consultiva,30

capaz de vetar nomes cogitados para cargos públicos. Em julho de 1968, logo após a

famosa “Passeata dos Cem Mil”, e diante da preocupação de Costa e Silva com a ordem

pública, Médici sugeriu um instrumento assemelhado ao AI-5, que somente viria no final

do ano, sugestão recusada, na ocasião, por Costa e Silva: o SNI havia “endurecido”.

Como se sabe, Médici chegaria à Presidência da República em outubro de 1969,

pouco mais de dois anos depois de ter assumido o SNI, após os episódios da doença e

impedimento de Costa e Silva e depois do interregno da Junta Militar.31 Na chefia do

SNI, Médici foi substituído pelo general Carlos Alberto Fontoura, em 1969, igualmente

um gaúcho que pertencia ao entourage de Costa e Silva (Fontoura foi subchefe de

30
ABREU, Alzira Alves de e outros (Coords.). Dicionário histórico-biográfico brasileiro pós-1930. Ed.
rev. e atual. Rio de Janeiro: FGV, 2001. p. 3679.
31
Sobre este período, consultar CHAGAS, Carlos. 113 dias de angústia: impedimento e morte de um
presidente. Porto Alegre: L&PM, 1979.
14

gabinete do então ministro da Guerra, entre 1965 e 1966). Fontoura chefiaria o SNI até

1974, comandando o órgão durante a fase em que se instalaria no país uma polícia

política, com a qual o SNI passou a conviver. Mais do que isso, foi em sua gestão que as

antigas “seções de segurança nacional”, existentes desde 1946, foram realmente

transformadas nas operantes “divisões de segurança e informações” que, implantadas nos

ministérios civis, passaram a compor uma abrangente rede de espionagem.32 Este amplo

sistema de espionagem é o “monstro” ao qual Golbery se referiu, mas, como se vê, não

foi ele propriamente quem o criou.

O SNI, portanto, assistiu e participou do surgimento da polícia política do regime

militar, já que ela seria criada no final dos anos 1960 a partir da estruturação do sistema

CODI-DOI (Centro de Operações de Defesa Interna - Destacamento de Operações de

Informações). Do mesmo modo, continuou existindo após a extinção deste sistema, no

final do governo de João Figueiredo, já que a remodelação do SNI ficou para a “Nova

República”. Aliás, ao contrário da polícia política (ou “comunidade de segurança”), o

SNI (ou “comunidade de informações”) continuou prestigiado no governo Figueiredo. De

fato, a partir da “distensão política” proposta por Ernesto Geisel, a polícia política entrou

em fase de decadência, até mesmo porque um dos aspectos centrais do projeto de

distensão era a desmobilização do sistema CODI-DOI. Mas, após a posse de João

Figueiredo, o SNI, ao contrário, alcançou seu auge, tanto do ponto de vista orçamentário

quanto de pessoal, chegando mesmo a desenvolver projetos tecnológicos avançados.

É esta longevidade que talvez explique a persistência da idéia de que o SNI era o

“órgão de segurança por excelência”33 que teria subordinado “todos os outros órgãos

32
Brasil. Congresso Nacional. Decreto no 60.940, de 4 jul. 1967.
33
OLIVEIRA, Eliézer Rizzo. As Forças Armadas: política e ideologia no Brasil (1964-1969). Petrópolis:
15

repressivos”.34 Ao contrário, foram constantes os conflitos entre o SNI e os órgãos

efetivamente de segurança, como o Centro de Informações do Exército (CIE), este, sim,

um órgão de informações que também “fazia operações”, o que, no linguajar dos

militares envolvidos, significava prender e interrogar (e, de resto, torturar e até matar).

Por certo, o que explica a longevidade do SNI é o seu caráter legal, aliado ao fato de

contar com congêneres em outros países, o que lhe conferia certa aceitabilidade.

A “comunidade de informações”, como já disse em outra ocasião,35 não prendia ou

torturava, sendo as “divisões de segurança e informações” repartições públicas que se

distinguiam das demais pela presença de militares, pelo seu éthos próprio (ânsia

persecutória de base anticomunista) e pelo cuidado com as normas de sigilo. Eram

divisões que contavam com funcionários que recolhiam e analisavam informações,

repassando-as a outros órgãos tanto da comunidade de informações quanto da de

segurança. Criavam problemas para os ministros, já que obedeciam, antes de tudo, ao

SNI. Mas não “executavam”, tarefa que cabia à polícia política, isto é, ao sistema CODI-

DOI, principalmente.

Não estou reafirmando esta distinção para resguardar a “comunidade de

informações”. Ao contrário, ela foi responsável pela própria legitimação do discurso

favorável à radicalização da repressão. Muitas vezes ridicularizados como “arapongas”,

na verdade os integrantes da comunidade de informações cumpriam o papel de

disseminar por toda a estrutura governamental (federal, estadual e municipal) as crenças

que justificavam a ação da polícia política. Suas “informações” e análises circulavam

Vozes, 1976. p. 100.


34
MAGALHÃES, Marionilde Dias Brephol de. A lógica da suspeição: sobre os aparelhos repressivos à
época da ditadura militar no Brasil. Revista Brasileira de História, v. 17, n. 34, p. 205, 1997.
35
FICO, Carlos. Como eles agiam. Os subterrâneos da Ditadura Militar: espionagem e polícia política. Rio
de Janeiro: Record, 2001.
16

entre todos os ministros, governadores e militares em cargos expressivos. Trata-se de

fenômeno importante para a compreensão de dois traços distintivos da ditadura militar: a

variedade de grupos militares (que não se dividiam, apenas, entre duros e moderados) e o

particular relacionamento entre tais grupos.

De fato, a clássica divisão entre linha dura e moderados não dá conta da diversidade

de clivagens que configuravam os diversos grupos militares. Basta lembrar, por exemplo,

que nem todo integrante da linha dura praticava tortura, como é óbvio. Havia militares

que aderiam genuinamente à “utopia autoritária” segundo a qual o Brasil deveria livrar-se

dos “subversivos”. Apoiavam, portanto, a perenização da “operação limpeza”, mas não

necessariamente aprovavam a tortura e o assassinato político. De outro lado, moderados,

como o castelista Ernesto Geisel, aceitavam a tortura.36

Foi exatamente a “comunidade de informações” que exerceu o papel de mediador

entre esses grupos diversos. Suas análises eram lidas por todos: alguns as recebiam como

confirmações de suas convicções e temores, capazes, portanto, de justificar a existência

da polícia política; outros, como um alarmismo que gerava inquietação e, por isso,

justificava a conivência – que também resultava na permanência da polícia política. É por

isso que considero os integrantes da “comunidade de informações” como “porta-vozes

especialistas”:37 sob o influxo da “comunidade de segurança” eles se tornaram uma

espécie de voz autorizada da “Revolução”.

É nesse sentido que se pode falar de um projeto repressivo centralizado e coerente.

A partir do final dos anos 1960, a “utopia autoritária”, que inspirava, de maneira diversa,

36
Para o ex-presidente, “(...) a tortura em certo casos torna-se necessária, para obter confissões. (...) Não
justifico a tortura, mas reconheço que há circunstâncias em que o indivíduo é impelido a praticar a tortura,
para obter determinadas confissões e, assim, evitar um mal maior!” D'ARAUJO, Maria Celina, CASTRO,
Celso. Ernesto Geisel. Rio de Janeiro: FGV, 1997. p. 225
37
FICO, Carlos. Op. cit. p. 218.
17

os diferentes grupos militares, passou a ser interpretada segundo a chave dos setores mais

extremados da linha dura, penetrando os diversos escalões governamentais e sendo aceita

por concordância ou medo.

Portanto, não se deve compreender a constituição do aparato repressivo,

possibilitada pelo AI-5 e representada pelo sistema CODI-DOI, como uma simples

reação à chamada “luta armada”. Assim como o AI-2 não foi somente uma reação ao

resultado das eleições de outubro de 1965, tampouco o AI-5 foi apenas uma resposta à

opção de parte da esquerda pela “luta armada”. Havia, desde o início do regime militar, a

vontade, por parte dos setores mencionados da linha dura, de constituição de um aparato

global de controle da sociedade, tanto quanto, aliás, a opção de parte da esquerda pela

“luta armada” antecedeu o próprio golpe de 1964.38 O projeto global de repressão e

controle supunha não apenas a espionagem e a polícia política, mas também a censura, a

propaganda política e o julgamento sumário de pretensos corruptos. É a análise conjunta

de todos estes setores que possibilita a percepção da complexidade da estrutura, pois ela

esteve longe de poder ser subsumida na noção de “porões da ditadura”, que tende a

homogeneizar o que, afinal, possuía diferenças significativas.

Desse modo, enquanto a “comunidade de informações” foi criada através de leis,

decretos e outros diplomas ostensivos, a polícia política era “revolucionária”, isto é, sua

origem deveu-se a diretrizes secretas do Conselho de Segurança Nacional e de

autoridades especialmente designadas pelo presidente da República.39 Esta dicotomia

38
Idem. pp. 59-64.
39
Sistema de Segurança Interna. SISSEGIN. Documento classificado como “secreto”. [1974?]. Capítulo 2,
fl. 6. Ver, também, diversos ofícios classificados como “confidencial”. 1960-1970. Série “Diversos”,
subsérie “Avulsos” do fundo “Divisão de Segurança e Informações”. Arquivo Nacional, Rio de Janeiro,
caixa 43-4118. Ver, igualmente, Ofício do secretário-geral do Conselho de Segurança Nacional aos
governadores estaduais. Documento classificado como “secreto”. 10 nov. 1970, gentilmente cedido ao
autor por Elio Gaspari.
18

legal/“revolucionário” (que remete, afinal, ao par de conceitos “Estado de

Direito”/“regime de exceção”) é essencial para a compreensão do período. É ela também

que explica a exuberância de leis e decretos durante o regime militar (não se esquecendo,

por certo, que o bacharelismo legiferante possui larga tradição no Brasil). Mas,

principalmente, era a existência de “poderes revolucionários” de alguma maneira

ocultados, ou vergonhosamente admitidos, que explicava as tentativas de

“institucionalização do regime”, sendo a mais conhecida a de Costa e Silva, que tentou

fazer uma nova constituição. Tais propostas de “institucionalização” em geral

significavam, apenas, a incorporação ao texto constitucional dos poderes excepcionais

contidos no atos institucionais e, apesar disso, somente com Ernesto Geisel algo nesse

sentido se consolidou, quando o AI-5 foi substituído pela possibilidade de decretação de

“medidas de emergência” ou do “Estado de Emergência”.

A organização em bases “revolucionárias” do aparato repressivo não redundou na

tortura – pois ela existiu desde sempre no Brasil, inclusive nos momentos iniciais do

novo regime –, mas certamente a instituiu como padrão regular de funcionamento, como

etapa rotineira do período do interrogatório, após a prisão dos “subversivos”. É esta

oficialização da prática da tortura (que vários observadores preferem chamar de

“institucionalização”) que desmente as hipóteses da “autonomia” e dos “excessos”. É

rigorosamente impossível que a atividade sistemática da tortura pudesse ser praticada

dentro de unidades militares sem o conhecimento de seus comandantes. Os martírios

demandavam equipamentos e instalações permanentes, sendo inviável a construção, por

exemplo, de celas climatizadas (para confinamento de prisioneiros sob temperaturas

muito baixas ou elevadas) ou sonorizadas (para a exposição das vítimas a barulhos, gritos
19

etc.) sem o conhecimento dos oficiais-generais. Aliás, a tortura também era amplamente

conhecida pela Justiça Militar.40 Os torturadores não agiam contra a vontade de seus

superiores, desobedecendo-os. Não houve, portanto, nenhum processo de autonomização

da comunidade de segurança.41 A independência com que trabalhavam, tomando a

iniciativa de investigar, prender e torturar este ou aquele indivíduo, pressupunha

exatamente estas etapas: investigação, prisão e tortura para obter revelações rapidamente.

Desse modo, não se deve confundir a independência operacional com que trabalhava a

polícia política com uma suposta autonomia em relação aos oficiais-generais. Alguns

céticos ainda poderiam exigir a apresentação de provas documentais sobre o tema, algo

como o ofício de um general-comandante determinando que este ou aquele prisioneiro

fosse torturado. Isso dificilmente haverá, mas existem depoimentos que não deixam

margem a dúvidas, como a lamentável declaração de Geisel sobre a tortura como uma

“necessidade”, acima mencionada, ou a chocante admissão do general Adyr Fiúza de

Castro: “eu acreditava que, para as informações imediatas, era preciso uma certa dose,

pelo menos, de tortura psicológica, como sugeriam: botar o sujeito numa cela com uma

cobra (...) Colocar o sujeito num lugar com gritos e isso e aquilo (...)”42

Assim, para a polícia política, a tortura era rotina praticada usualmente;43 para

oficiais-generais que comandavam linhas de frente da repressão (como Fiúza de Castro),

40
ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO. Brasil: nunca mais. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 1985. p. 203.
41
A tese da autonomização da comunidade de segurança também foi admitida pela historiografia, como se
pode verificar, por exemplo, em KLEIN, Lucia, FIGUEIREDO, Marcus F. Legitimidade e coação no
Brasil pós-64. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1978. pp. 46-47. OLIVEIRA, Eliézer Rizzo. Op. cit.
p. 105. STEPAN, Alfred. C. Os militares: da Abertura à Nova República. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1986. p. 21.
42
Depoimento de Adyr Fiúza de Castro publicado em D'ARAUJO, Maria Celina, SOARES, Gláucio Ary
Dillon, CASTRO, Celso (Int. e Org.). Os anos de chumbo: a memória militar sobre a repressão. Rio de
Janeiro: Relume-Dumará, 1994. pp. 68-69.
43
Sobre a tortura vista como rotina e sobre o perfil dos torturadores consultar LOBO, Amilcar. A hora do
lobo, a hora do carneiro. Petrópolis: Vozes, 1989. p. 71.
20

era prática consabida e assistida; curiosamente, tanto para os linhas-duras “ideológicos”

(militares radicalmente contrários à “subversão” mas que não atuavam diretamente na

repressão) quanto para os pragmáticos rigorosos (como Ernesto Geisel), a tortura tinha o

mesmo significado: era um “mal menor”. Note-se, portanto, mais uma vez, a fragilidade

das noções que contrapõem os “moderados” (como supostamente era Ernesto Geisel) aos

“linhas-duras”. Finalmente, nessa breve tipologia militar em relação à tortura, teríamos os

moderados que sabiam da prática e temiam ser envolvidos por ela: o general Octávio

Costa, por exemplo, tinha a decisão íntima de se afastar do Exército caso fosse instado a

ceder, para práticas escusas, uma pequena instalação retirada que havia no Forte Duque

de Caxias (RJ), onde comandava o Centro de Estudos de Pessoal do Exército.44

Infelizmente, foram poucos os militares que denunciaram a tortura, contrapondo-se

francamente ao que, afinal de contas, é um dos crimes usualmente considerados como

imprescritíveis e de lesa-humanidade. O capitão Sérgio Miranda de Carvalho denunciou o

brigadeiro João Paulo Burnier, que planejava atentados, mas foi uma exceção.45

Mas, diferentemente de outros “pilares básicos” da repressão, como a espionagem

ou a censura moral, a tortura envergonhava, comprometia a honra de todos os militares,

até mesmo porque era a primeira vez que a corporação envolvia-se, direta e

sistematicamente, com a violência policial. Era preciso negar a existência da tortura, já

que não era possível abrir mão de sua eficácia nem denunciá-la frontalmente. Esta foi

uma das principais tarefas da “comunidade de informações”: socorrer a “comunidade de

segurança” construindo uma retórica negadora da tortura que seria amplamente absorvida

pelos militares e autoridades civis comprometidos com a ditadura. A eficácia com que a

44
COSTA, Octávio Pereira da. Entrevista concedida ao autor em 18 jul. 1994.
45
GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. pp. 291 e segs.
21

“comunidade de informações” cumpriu essa tarefa pode ser facilmente percebida na

unidade do discurso de negação da tortura que, durante muitos anos, prevaleceu como

explicação: assim, não teria havido tortura, mas apenas alguns “excessos” de uns poucos

exaltados, subalternos que não estariam agindo sob o mando dos oficiais-generais, mas

que se “autonomizaram” indevidamente. Esta tese, como se vê, é a condição prévia

necessária para a glorificação da iniciativa de Geisel de “acabar com a tortura”, que, se

não é falsa, oculta o fato básico de que o general admitiu a existência da tortura até sua

posse na Presidência da República.

Em 1998, pesquisando o acervo da extinta Divisão de Segurança e Informações do

Ministério da Justiça, descobri o “livro branco”, ou “livro da verdade”, que o ministro da

Justiça de Médici, Alfredo Buzaid, mandara preparar em 1970 e prometera divulgar como

resposta às acusações de tortura que provinham do exterior.46 O principal problema do

governo era a solicitação de Gabino Fraga, presidente da Comissão Interamericana de

Direitos Humanos, organismo da Organização dos Estados Americanos (OEA), para

enviar personalidades estrangeiras para investigar, in loco, as denúncias.

A enérgica reação do ministro Alfredo Buzaid à notícia (...) antecipa a resposta que o
Itamarati dará a tal pedido (...) O governo brasileiro considera ameaça à sua soberania
qualquer tentativa de ingerência (...) nos assuntos internos do país. Tal atitude (...) traduz o
alto grau de sensibilização das autoridades nacionais provocado pela campanha externa (...)
O Ministério da Justiça elabora o seu livro de resposta às acusações, que já não se chamará
livro branco, mas livro da verdade ou outra expressão equivalente. Como prefácio ao livro, o
próprio ministro, prof. Alfredo Buzaid, catalogará as acusações, fazendo-lhes o histórico e
refutando documentadamente os casos objeto de denúncias específicas (...) O Ministério da
Justiça está certo de que dará respostas convincentes na base de pesquisas já realizadas em
torno de denúncias que com mais insistência circulam no exterior.47

46
Informações do governo brasileiro para esclarecer supostas violações de direitos humanos relatadas em
comunicações transmitidas pela “Comissão Interamericana de Direitos Humanos”, da Organização dos
Estados Americanos. Documento “confidencial” da série “Movimentos Contestatórios à Ordem Política e
Social”, subsérie “Avulsos” do fundo “Divisão de Segurança e Informações”. Arquivo Nacional, Rio de
Janeiro. Cx. 3582. [1970].
47
Colunas de Carlos Castello Branco no Jornal do Brasil dos dias 31 de outubro e 14 de novembro de 1970
reproduzidas em BRANCO, Carlos Castello. Os militares no poder: o baile das solteironas. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1979. pp. 703 e 717.
22

Os problemas com organismos internacionais tornar-se-iam recorrentes a partir de

1970, abrangendo não só o governo de Médici mas, também, o de Geisel. Este último

julgava que a Anistia Internacional era “um organismo tendencioso e infiltrado pela

esquerda”.48 Entre junho de 1972 e abril de 1973, o SNI recebeu cerca de 2.800 cartas da

Anistia Internacional vindas de diversos cidadãos europeus sensibilizados pelas

denúncias.49 Hoje sabemos, graças a pesquisas como a de James N. Green,50 o quanto a

pecha de tortura marcou a imagem do Brasil também nos Estados Unidos, gerando

reações que levariam a manifestações contra os atentados aos direitos humanos, que

acabariam capitalizadas politicamente por Jimmy Carter. Em julho de 1974, o general

Confúcio Danton de Paula Avelino, do Centro de Informações do Exército (CIE), tentou

implementar medidas de contrapropaganda: “representantes da ‘Amnesty International’

de alguns países da Europa Ocidental receberam, em caráter particular, esclarecimentos

sobre vários casos de terroristas brasileiros (...)”.51 Mas as denúncias continuariam.

O “livro branco” que Buzaid mandou preparar em 1970 nunca seria publicado. Mas

seus originais foram preservados. Trata-se de um relatório de 145 páginas datilografadas,

com uma breve introdução analítica seguida de 11 volumes com documentação reunida

para supostamente refutar a acusação de que havia tortura no Brasil. Os volumes tinham

os seguintes títulos: 1. Terroristas, pseudos presos políticos; 2. As prisões dos terroristas;

48
D'ARAUJO, Maria Celina, CASTRO, Celso (Orgs.) Ernesto Geisel. Rio de Janeiro: FGV, 1997. p. 232.
49
Informação no 30/73/P, de 19 de julho de 1973. Documento classificado como “secreto” da série
“Movimentos Contestatórios à Ordem Política e Social”, subsérie “Avulsos” do fundo “Divisão de
Segurança e Informações”. Arquivo Nacional, Rio de Janeiro. Caixa 4109, unidade documental 130.
50
GREEN, James N. Clerics, exiles, and academics: opposition to the Brazilian Military Dictatorship in the
United States, 1969-1974. Latin American Politics and Society, v. 45, n. 1, Spring 2003, pp. 87-117.
51
Relatório Especial de Informações, no 06/74, de 25 de julho de 1974, elaborado pelo general-de-brigada
Confúcio Danton de Paula Avelino. Documento “confidencial” da série “Movimentos Contestatórios à
Ordem Política e Social”, subsérie “Avulsos” do fundo “Divisão de Segurança e Informações”. Arquivo
Nacional, Rio de Janeiro. Caixa 4109-34, unidade documental 130. fls. 2, 11 e 12.
23

3. A campanha de difamações contra o Brasil; 4. O alimento da campanha de difamações

contra o Brasil - “Dossier das Torturas”; 5. Cinco exemplos de difamações; 6. As

difamações de Ângelo Pezzuti e presos da penitenciária de Linhares; 7. Calúnias

sórdidas: as alienadas e paralíticas; 8. Difamações de torturas - moças de Belo

Horizonte; 9. Difamações de torturas - Ilha das Flores; 10. A Operação Bandeirante -

vítimas do terrorismo, Olavo Hansen e os demais “torturados”; 11. Alguns exemplos da

legislação brasileira.

A simples enunciação dos títulos dos volumes indica porque o documento nunca

seria divulgado: eles chamam a atenção, precisamente, para alguns dos mais escabrosos

episódios de tortura da ditadura militar. Nada obstante, os argumentos falaciosos

desenvolvidos no documento (cuja autoria direta não é possível identificar) delineiam

uma verdadeira tópica, pois as justificativas ali mencionadas tornar-se-iam recorrentes no

discurso militar que buscava negar a tortura. Assim, o Brasil não teria “presos políticos”,

mas simples criminosos comuns, “comuns delinqüentes que, alegando pretensa

motivação política, assaltam bancos, seqüestram diplomatas, assassinam”.52 Contra eles

não se praticava tortura, embora o governo não negasse a existência de “excessos”.53

Como mote geral, a idéia de uma “tenebrosa campanha difamatória” feita no exterior para

macular a imagem do povo e do governo brasileiros,54 aspecto essencial do problema,

pois era grande a preocupação da ditadura militar com possíveis condenações de

organismos internacionais e, muito especialmente, de governos estrangeiros, sobretudo

aqueles com os quais o Brasil tivesse maior proximidade.

52
Informação no 30/73/P, de 19 de julho de 1973. Documento classificado como “secreto” da série
“Movimentos Contestatórios à Ordem Política e Social”, subsérie “Avulsos” do fundo “Divisão de
Segurança e Informações”. Arquivo Nacional, Rio de Janeiro. Caixa 4109. fl. 2
53
Idem. fl. 34.
54
Idem. 1.
24

A argumentação desenvolvida no relatório não era muito apurada. Além da

enumeração dos principais focos de tortura no Brasil, o primeiro redator do documento

confundiu-se mencionando a existência de presos políticos (expressão riscada

provavelmente por Buzaid)55 e denunciou-se aventando a hipótese de que os prisioneiros

entregues em resgate de diplomatas seqüestrados poderiam ter disfarçadas eventuais

marcas de tortura.56 Improdutivo e chamando demasiadamente a atenção para o tema, o

relatório não seria divulgado, mas suas justificativas perdurariam.57

Diante do constrangimento que solicitações como a da OEA traziam, a ditadura

militar decidir-se-ia pela forma mais dúbia de negação: o silêncio. Após estudos feitos no

Conselho de Segurança Nacional, no Serviço Nacional de Informações, na Assessoria

Especial de Relações Públicas, no Ministério das Relações Exteriores e no Estado-Maior

das Forças Armadas, gestou-se uma “Política Governamental de Comunicação Social no

Campo Externo” que prescrevia como estratégia principal o silêncio: nada deveria ser

respondido às acusações e solicitações dos organismos internacionais. Esta estratégia foi

consolidada pelo secretário-geral do Conselho de Segurança Nacional, que a comunicou,

em outubro de 1972, ao ministro Buzaid, com a aprovação do presidente Médici.58 O

secretário-geral era o futuro presidente João Figueiredo. Como se vê, Figueiredo, assim

como Geisel (que chefiou a já mencionada missão sobre tortura durante o governo de

Castelo Branco), sempre esteve muito bem informado da prática da tortura.

O silêncio também foi a forma pela qual a ditadura militar tentou ocultar, durante
55
Idem. Ibidem.
56
Idem. fl. 26.
57
Ver também CÔRTES, Giovana Xavier da Conceição. Argumento insustentável: as justificativas da
comunidade de informações para a tortura durante a ditadura militar. Monografia de Bacharelado
apresentada ao Departamento de História da UFRJ. Rio de Janeiro, 2003.
58
Processo no 61397, de 31 de outubro de 1972. Documento “confidencial” da Série “Movimentos
Contestatórios à Ordem Política e Social”, subsérie “Processos” do fundo “Divisão de Segurança e
Informações”. Arquivo Nacional, Rio de Janeiro. Caixa 592/05132.
25

algum tempo, a existência da censura da imprensa. De fato, é a dicotomia

legal/“revolucionário” que explica a existência não de uma, mas de duas censuras durante

o regime militar: uma legal e longeva – aquela que havia décadas controlava as diversões

públicas; outra, “revolucionária” e negada: a censura propriamente política da imprensa e

que era, para a ditadura, “um de seus instrumentos repressivos”.59

Censura moral e censura política

Não houve uma censura durante o regime militar, mas duas. A censura de diversões

públicas existia no Brasil, de maneira oficial, desde 1946.60 Integrava, por exemplo, a

rotina profissional do pessoal do teatro, nada havendo de novo (após 1964) na presença

de um censor durante o ensaio geral nem nos atritos entre a classe e a censura moral das

peças, com o tempo também praticada contra o rádio, o cinema, a TV e até mesmo os

circos e as churrascarias com música ao vivo. De fato, todo um éthos próprio animava a

Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP), desde muito antes do golpe de 1964.

A Divisão assumia orgulhosamente o seu papel na sociedade brasileira e supunha

realmente expressar a vontade da maioria da população ao cuidar para que os “atentados

à moral e aos bons costumes” fossem evitados. Tratava-se de uma atividade oficial,

regulamentada por legislação ostensiva, com funcionários de carreira e sustentada pelo

apoio efetivo de vastas parcelas da sociedade, para as quais as conseqüências da

descoberta da pílula anticoncepcional ou as práticas da cultura alternativa chocavam.

Assim, palavrões no teatro, sexo no cinema, mulheres seminuas em programas da TV ou

59
AQUINO, Maria Aparecida de. Censura, imprensa, estado autoritário (1968-1978). Bauru: Edusc, 1999.
p. 207.
60
Refiro-me à forma mais moderna da censura do teatro, do cinema etc., pois a censura de textos, por
exemplo, existiu no Brasil desde que Portugal autorizou a impressão de livros no país. Decreto n. 20.493 de
24 de janeiro de 1946.
26

letras de duplo sentido nas músicas eram execrados por boa parcela da sociedade e

combatidos pela DCDP em sua missão protetora. Nos anos 1960 e 1970, a sociedade

brasileira passaria por grande e conflituosa transformação nesse campo ético-moral,

destacando-se, como fato singular no Brasil, a grande inovação lançada pela TV Globo: a

novela urbana de cores realistas que mostrava comportamentos novos, ousados. O

fenômeno está a chamar a atenção dos pesquisadores para o fato de que a história do

Brasil, entre 1964 e 1985, não pode ser subsumida à história política tradicional da

ditadura militar. O impacto das telenovelas da Globo no campo da censura foi muito

grande e inseriu-se no contexto das transformações de costumes que então se vivia.61

Seja como for, fixe-se que a censura “moral” existia havia muito tempo, sendo um

equívoco historiográfico associá-la, estritamente, à ditadura militar. Ainda assim, seria

incongruente não identificar as especificidades de tal censura durante o período. A mais

flagrante já foi mencionada acima: quando a linha dura definitivamente assumiu o poder,

com o AI-5, a censura moral das diversões públicas também passou a se preocupar, de

maneira mais enfática, com a política. Doravante, não apenas os palavrões ou as cenas de

nudez estavariam sob a mira da DCDP, mas também os filmes políticos, as músicas de

protesto, as peças engajadas. Mas a especificidade da Divisão no trato com a moral e os

costumes pesava e tornava difícil, para os técnicos da censura de diversões públicas, a

prática da censura política. O diretor da DCDP manifestou explicitamente ao seu chefe, o

ministro da Justiça, a dificuldade que seus técnicos tinham de praticar a censura política –

eles que deveriam estar adstritos à censura moral.62

61
O tema vai sendo desenvolvido por Douglas Attila Marcelino em sua dissertação de mestrado junto ao
Programa de Pós-graduação em História Social da UFRJ.
62
FICO, Carlos. “Prezada Censura”: cartas ao regime militar. Topoi - Revista de História. Rio de Janeiro,
n. 5, set. 2002, p. 259.
27

Esta especificidade pode ser quantificada. Não foi durante o período admitido como

o de auge da repressão (governos da Junta Militar e de Emílio Médici) que houve mais

censura. A maior porcentagem de peças teatrais censuradas, por exemplo, dentre as

submetidas à análise da DCDP, foi registrada em 1978 (quase 3%). Quanto aos filmes, o

maior índice verificou-se em 1980 (quase 1,5%),63 após a posse do governo da “abertura

política” de Ernesto Geisel, adentrando o de João Figueiredo.

Foi a politização da censura de diversões públicas que deu a impressão de

unicidade às duas censuras, mas, na verdade, lógicas muito distintas presidiam as duas

instâncias. Além da diferenciação entre conteúdos morais e políticos, outra característica

já mencionada deve aqui ser retomada: a dicotonomia “legal” versus “revolucionário”. A

preocupação dos sucessivos governos militares com a elaboração de leis, normas e

regulamentos não expressava apenas a intenção de forjar um fachada de legalidade (para

consumo interno e, sobretudo, externo), mas também era sintoma da distinção que o

regime fazia entre atividades repressivas ou de controle social que podiam ser admitidas

no âmbito das garantias constitucionais de regimes democráticos e outras, excepcionais,

classificadas como “revolucionárias”, como já foi dito. A censura moral era legalizada e a

censura da imprensa era “revolucionária”.

De fato, até 1973, o regime negava a existência da censura política da imprensa,

embora a praticasse. Nenhum diploma legal regulamentava a atividade, que, como se

sabe, realizava-se através de telefonemas ou de “bilhetinhos” que chegavam às redações

com proibições para que determinado assunto fosse publicado. Depois do AI-5, a censura

política da imprensa foi praticada de maneira algo confusa: comandantes de unidades

63
Fundo “Divisão de Censura de Diversões Públicas”, Arquivo Nacional, Coordenação Regional do
Arquivo Nacional no Distrito Federal, série “Relatórios de Atividades”. 1969-1985.
28

militares ou agentes da polícia federal podiam determinar proibições. Após algum tempo,

a atividade foi centralizada no Ministério da Justiça, para onde eram encaminhados os

pedidos de censura enviados por autoridades diversas a fim de que, finalmente, fossem

repassados às redações. Em 1973, o jornal Opinião – através de uma ação junto ao

Supremo Tribunal Federal – obrigou o governo a admitir que praticava a censura política

“revolucionariamente”, isto é, com base no AI-5 (as decisões decorrentes do emprego do

Ato não podiam ser contestadas pela Justiça).64 Como é compreensível, a maior

quantidade de censura política da imprensa verificou-se durante o auge da repressão

política (1968-1974), diferentemente da censura das diversões públicas, como já foi

mencionado.

Propaganda política e corrupção

Já analisei, em trabalhos anteriores, a atuação de duas instâncias repressivas do

regime militar menos conhecidas do que a espionagem, a polícia política e as censuras: a

Comissão Geral de Investigações65 e a propaganda política.66 Não é o caso, portanto, de

se voltar ao assunto. Para os leitores que ainda não conhecem essas duas instâncias,

esboçarei, brevemente, o perfil de ambas. Mas o objetivo principal, aqui, é chamar a

atenção para dois aspectos que ainda não foram devidamente fixados pela historiografia

sobre a ditadura militar: o importante papel que certo discurso ético-moral teve para

muitos militares (no sentido de legitimar a ditadura) e, em decorrência, a variedade de

64
O episódio está detalhado em SMITH, Anne-Marie. Um acordo forçado: o consentimento da imprensa à
censura no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 2000. pp. 130-132.
65
FICO, Carlos. Como eles agiam. Os subterrâneos da Ditadura Militar: espionagem e polícia política Rio
de Janeiro: Record, 2001. pp. 149-160. Adriano de Macedo Garcia desenvolve uma monografia de
bacharelado, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, sobre o tema.
66
FICO, Carlos. Reinventando o otimismo: ditadura, propaganda e imaginário social no Brasil. Rio de
Janeiro: FGV, 1997.
29

perfis político-ideológicos dos diversos grupos militares (que, mais uma vez, indica a

insuficiência da tipologia clássica que contrapõe duros a moderados).

A Comissão Geral de Investigações (CGI) a que me refiro67 foi criada quatro dias

após a edição do AI-5 com a finalidade de propor o confisco de bens de funcionários

públicos corruptos,68 tal como estabelecia o oitavo artigo do Ato. A idéia era punir o

“enriquecimento ilícito”. A CGI era vinculada ao Ministério da Justiça, cujo titular a

presidia, mas, na prática, era conduzida por seu vice-presidente. Durante sua existência

(1968-1978) o cargo foi ocupado pelos generais Oscar Luiz da Silva, Obino Lacerda

Álvares e Luiz Serff Sellmann. Sediada na cidade do Rio de Janeiro, a Comissão

encabeçava uma rede nacional conhecida como “Sistema CGI”, integrado por sub-

comissões estaduais. O pessoal que trabalhava nas comissões era requisitado nos quadros

do funcionalismo público.

O “Sistema CGI” funcionou muito precariamente. A Comissão fazia investigações

sumárias que deveriam resultar em decretos de confisco, mas os processos eram mal

conduzidos e, mesmo sob o império do AI-5, contestações judiciais acabavam por ser

feitas. Tratava-se, na verdade, de um tribunal de exceção que serviu principalmente para

intimidar: a CGI podia convocar arbitrariamente uma pessoa para prestar

esclarecimentos, e muitas vezes o fazia com o propósito explícito de amedrontá-la,

supostamente no sentido de coibir a corrupção que estaria praticando. Essas iniciativas,

assumidas orgulhosamente pela CGI, eram chamadas de “ações catalíticas”, mas não

67
A ditadura militar contou com duas CGIs: uma, a Comissão Geral de Investigação, criada pelo Comando
Supremo da Revolução, em de 27 de abril de 1964, com a incumbência de conduzir os inquéritos policial-
militares; outra, criada após o AI-5, com a função de confiscar bens de quem houvesse “enriquecido
ilicitamente”, em 17 de dezembro de 1968. Além dessas duas, ainda existiu a Comissão Geral de Inquérito
Policial-Militar, criada pelo Decreto-lei no 459, logo após a imposição do AI-5, que foi incumbida de
conduzir os inquéritos que resultaram na aplicação do Ato. Mesmo os pesquisadores mais atentos
costumam confundir-se quanto a essas comissões.
68
Brasil. Congresso Nacional. Decreto-lei no 359, de 17 de dezembro de 1968.
30

passavam de perseguições políticas e abusos de poder. Com o tempo, os integrantes da

CGI começaram a investigar problemas estranhos à sua competência, como o jogo do

bicho. O “Sistema CGI” viu permanentemente frustrado o seu empenho punitivo:

raramente o presidente da República aceitava as conclusões das investigações sumárias.

Entre 1968 e 1973, dos 1.153 processos analisados, mais de 1.000 foram arquivados. De

58 propostas de confisco de bens, apenas 41 decretos foram efetivamente assinados pelo

presidente. Além da proposta de confisco de bens, a CGI também podia sugerir a

aplicação do AI-5 (suspensão de direitos políticos ou cassação de mandatos

parlamentares) e encaminhar suas investigações à Justiça para eventuais processos

criminais. Essas duas iniciativas também deram poucos resultados.

A propaganda política foi bem mais sofisticada. Ela foi feita no âmbito da

Presidência da República pela Assessoria Especial de Relações Públicas (AERP), criada

por Costa e Silva no começo de 1968. Inicialmente foi conduzida pelo coronel Hernani

D’Aguiar (1968-1969), mas somente tomou vulto na gestão do coronel Octávio Pereira

da Costa (1969-1974), nomeado pelo presidente Médici. D’Aguiar praticara uma

propaganda ufanista, baseada em supostos elementos da “grandiosidade brasileira”, que

não estabelecia empatia com o público. Octávio Costa reformulou toda a propaganda do

governo, produzindo filmes para a TV que não pareciam oficiais. Em plena ditadura, tais

“comerciais” falavam em participação e amor. Mostravam relações familiares idilizadas,

congraçamento racial e noções de educação, higiene e civilidade. Octávio Costa era um

militar intelectualizado, conhecedor de literatura brasileira e de fundamentos histórico-

sociológicos inspirados em Gilberto Freyre. Seus filmes faziam sucesso, pois mostravam

imagens belas, acompanhadas de música envolvente e quase não eram narrados, sendo,
31

em geral, finalizados apenas por um slogan: “Ninguém segura o Brasil”; “É tempo de

construir”; “Ontem, hoje e sempre: Brasil”; “Você constrói o Brasil”; “O Brasil merece o

nosso amor”. A AERP ficou parcialmente desativada no início do governo Geisel, mas,

após o insucesso eleitoral do partido oficial em 1974, o coronel José Maria de Toledo

Camargo foi convocado por Ernesto Geisel com a seguinte frase: “quero que você me

ajude a ganhar a eleição, a próxima eleição”.69 Ele passou a chefiar a nova Assessoria de

Relações Públicas (ARP) em 1976 e permaneceu nesta função até 1978. Não inovou,

mantendo o padrão criado por Octávio Costa, de quem fora assessor-adjunto na fase da

AERP.

Aos críticos do regime, a AERP dava a impressão de ser uma agência todo-

poderosa, integrada ao esquema repressivo, já que vendia a imagem de que a ditadura

conduzia correta e serenamente o “país do futuro”, habitado por um povo “singular” –

justamente quando a repressão atingia o seu auge. Ademais, a imprensa, a

intelectualidade e a esquerda estavam certas de que era da AERP a autoria de execrado

slogan que circulava em adesivos colados nos vidros dos carros: “Brasil: ame-o ou deixe-

o”. A frase, contudo, inspirada em similar inglês, foi divulgada no Brasil pela Operação

Bandeirantes (OBAN), a agência que inspirou a criação do Sistema CODI-DOI. Na

verdade, Octávio Costa era muito criticado pela comunidade de segurança, que via seu

trabalho como irrelevante, como “perfumaria”. Importantes assessores palacianos de

Médici julgavam que Costa fosse um “poetinha besta”.70 Antes de receber o convite de

Médici, Octávio Costa se tornara conhecido em função de crônicas que escrevera para o

Jornal do Brasil. Já no governo, ele chamaria a atenção como ghost-writer do discurso de

69
FICO, Carlos. Op. cit. p. 106.
70
Idem. p. 100.
32

posse de Médici, que causou grande impacto: poético e escapista, punha na boca do

desaprimorado ditador frases como “neste momento, sou oferta e aceitação!”. Médici

assumiu às pressas, depois da doença de Costa e Silva, e Octávio Costa não pôde

amparar-se em planos de governo que não existiam: apelou para a poesia.

Para a linha dura, a propaganda não deveria produzir comerciais edificantes, mas

manejar a arma da “guerra psicológica” e, em alguns momentos, isso realmente

aconteceu, quando, por exemplo, contra a vontade de Octávio Costa, ex-guerrilheiros

arrependidos foram levados à televisão para depoimentos compungidos.

A idéia de se criar uma agência de propaganda esteve presente já nos primeiros

meses após o golpe de 64. Como já foi visto, quando da criação do SNI, ainda em 1964,

pensou-se em criar um órgão de mão dupla, isto é, um serviço de informações que as

recolhesse e as propagasse. A memória militar atribui a Castelo Branco a obstinação de

evitar isso, pois ele acharia que a verdade se impõe por si só e que um órgão com tal

perfil lembraria demais o antigo DIP de Getúlio Vargas. Nesse sentido, a AERP somente

seria criada por Costa e Silva e plenamente ativada por Médici. Pelas mesmas razões,

Geisel tentou desativar a propaganda política, mas teve de mantê-la em função das

necessidades eleitorais.

Há, portanto, grandes diferenças entre a CGI e a AERP/ARP. A Comissão

propunha punições “revolucionárias” e amparava-se no AI-5. A AERP foi criada antes do

AI-5 e só punia a inteligência das pessoas que eram obrigadas a assistir seus “filmetes” (a

expressão era usada sem carga pejorativa pela própria AERP). Por que, então, estou

propondo a análise conjunta dessas duas instâncias?

Na verdade, através dos exemplos da CGI e da AERP, estou propondo a análise


33

conjunta de todos os “pilares básicos”71 da repressão durante a ditadura militar: a polícia

política, a espionagem, a censura da imprensa, a censura das diversões públicas, o

julgamento sumário de supostos corruptos e a propaganda política. Estas seis instâncias

características de regimes autoritários inspiraram-se, no caso brasileiro, na já mencionada

“utopia autoritária”, isto é, “a idéia de que os militares eram, naquele momento,

superiores aos civis em questões como patriotismo, conhecimento da realidade brasileira

e retidão moral”.72 Em minha opinião, tal utopia não se confunde com uma ideologia

sistematizada e unívoca, diferentemente do que sugeriram outras análises, que

valorizaram a “doutrina de segurança nacional”.73

Assim, enquanto a polícia política, a espionagem, a censura da imprensa e a CGI

estavam fortemente imbuídas da dimensão saneadora da “utopia autoritária”, a AERP e a

DCDP primavam pela tópica “civilizadora” ou pedagógica. Enquanto as primeiras

eliminavam, mesmo fisicamente, “comunistas”, “subversivos”, “corruptos” e

“doutrinação exótica”, as duas últimas buscavam “educar o povo brasileiro” ou defendê-

lo dos ataques à “moral e aos bons costumes”. Como é fácil perceber, as duas dimensões

podem aparecer combinadas numa mesma instância, sendo flagrante que a CGI tanto

atuava no saneamento (caçando e cassando supostos corruptos), quanto pretendia exercer

uma prática educativa (através das “ações catalíticas”).

Imagens que ficaram

71
Ver FICO, Carlos. Espionagem, polícia política, censura e propaganda: os pilares básicos da repressão.
In FERREIRA, Jorge, NEVES, Lucilia de Almeida (Orgs.). O Brasil republicano. Livro 4: O tempo da
ditadura – regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio de Janeiro: Record, 2003.
72
D'ARAUJO, Maria Celina et al. (Int. e Org.). Visões do golpe: a memória militar sobre 1964. Rio de
Janeiro: Relume-Dumará, 1994. p. 9.
73
Ver, por exemplo, OLIVEIRA, Eliézer Rizzo. Op. cit. e COMBLIN, Joseph. A ideologia da segurança
nacional: o poder militar na América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.
34

Para as pessoas comuns, as imagens que ficaram da ditadura militar não são as

mesmas que a intelectualidade associa ao período. Para nós, falar em ditadura militar

significa lembrar de um tempo de arbítrio, de cessação das liberdades de opinião, de voto,

de ir e vir e, sobretudo, de um período em que nossos amigos e conhecidos foram presos,

humilhados, torturados e, em alguns casos, mortos. O mesmo não se dá com as pessoas

comuns. Diga-se de passagem que esta noção (“pessoas comuns”) não é um conceito

rigoroso e está aqui sendo usada em sua acepção geral. A fragilidade de tal noção pode

ser exemplificada com as palavras do atual presidente da República, o qual, ao

rememorar o período de auge da repressão, expressou, de algum modo, a leitura sobre

tempos melhores. Embora integre uma elite política da esquerda normalmente bastante

mais crítica em relação à ditadura, para Lula a imagem que ficou do governo Médici é a

do pleno emprego: “Era um tempo em que a gente trocava de emprego na hora que a

gente queria. Tinha empresa que colocava perua pra roubar empregado de outra

empresa.”74

Gostemos ou não, as imagens que prevaleceram durante a ditadura militar e que

hoje são evocadas pelas pessoas comuns não são as da denúncia do arbítrio. Os

“manipuladores de bens simbólicos” do regime militar tinham ao seu lado a força da

dimensão saneadora da utopia autoritária (podiam censurar a imprensa e prender

oposicionistas), mas também foram competentes pedagogos, pois serviram-se de um

imenso repertório de imagens positivas associadas à suposta singularidade do Brasil.

Mencionemos algumas das principais linhas de força das imagens construídas pela

ditadura sobre si mesma.

74
COUTO, Ronaldo Costa. Memória viva do regime militar. Brasil: 1964-1985. Rio de Janeiro: Record,
1999. p. 251.
35

A associação com a doutrina católica foi importante no início do regime militar. As

famosas “Marchas da Família, com Deus pela Liberdade” foram provocadas por um

descuido de João Goulart em seu discurso durante o sempre lembrado Comício da

Central. Jango, tentando criticar a “Cruzada do Rosário”, movimento lançado nos Estados

Unidos em 1945 e que chegaria com sucesso ao Brasil contrapondo o rosário católico ao

comunismo, disse que os rosários não podiam ser erguidos “contra o povo”.75 Foi o

suficiente para que a freira Ana de Lurdes, neta de Rui Barbosa e intimamente

relacionada aos propagandistas do IPES, tivesse a idéia de promover as marchas,

inicialmente concebidas como um movimento de desagravo ao rosário “atacado” pelo

presidente. A estratégia vinha se delineando havia algum tempo: enquanto Goulart

discursava na Central, nas sacadas dos apartamentos dos bairros de elite da Zona Sul do

Rio de Janeiro velas foram acesas em protesto.

Fonte: “Mulher se ajoelha para rezar o terço na Marcha do Recie”. Manchete, 25 abr. 1964. p. 36.

75
Discurso de João Goulart no Comício da Central em 13 de março de 2004.
36

Esta associação do Brasil à “democracia ocidental e cristã” (enquanto oposição ao

comunismo) deixaria de ser usada com o tempo de maneira explícita, mas as imagens das

igrejinhas católicas das cidades interioranas como símbolo da autêntica comunidade

nacional jamais deixariam a propaganda da ditadura militar. As tentativas do regime de

manter ou restaurar um bom relacionamento com a Igreja também indicam a força, no

Brasil, do catolicismo.76 As marchas foram preponderantemente conduzidas por mulheres

católicas de classe média e sua defesa intransigente de valores morais rigorosos nunca

deixou de ser criticada pela imprensa e por diversos intelectuais que os entendiam

ultrapassados em função das transformações comportamentais causadas pela liberação

feminina e pela cultura alternativa. Porém, a atuação dessas mulheres não cessaria: elas

souberam migrar para outros campos de atuação, sobretudo o da cruzada contra os

“ataques à moral e aos bons costumes”, objeto preponderante da censura das diversões

públicas. Elas se tornariam, com o passar dos anos, espectadoras rigorosas dos

“excessos” sobretudo da televisão, mas também do cinema, do teatro e da fulgurante

música popular brasileira. Mandavam cartas à Divisão de Censura de Diversões Públicas,

usando um recurso que já dera certo nas vésperas do golpe.77 As “marchadeiras” de 1964

intitulavam-se, a partir de 1969, guardiãs da moral e dos bons costumes, e tinham em

mente salvar a sociedade brasileira dos abusos das novelas que mostravam, na TV, cenas

ousadas de casais apaixonados, tanto quanto dos “excessos” do cinema, do teatro ou da

76
Ver SERBIN, Kenneth P. Diálogos na sombra. Bispos e militares, tortura e justiça social na ditadura.
São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
77
Desde antes de 1964 estes grupos de mulheres faziam pressão junto ao Congresso Nacional enviando
milhares de cartas à instituição. Ver POLLANAH, Stella M Senra. Livro de cabeceira da mulher. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1967. Vol. 5, p. 161 e PRESOT, Aline. As “Marchas da Família, com Deus
pela liberdade”. Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em História Social da
UFRJ. Rio de Janeiro, 2004.
37

música popular. Suas cartas amparavam-se em valores morais realmente impregnados no

imaginário brasileiro, cuja matriz fundava-se centralmente nas vertentes mais

conservadoras da doutrina católica. Estas mulheres, que escreviam para uma instância da

esfera estatal do regime militar, tratavam a DCDP como uma “companheira” de

conversas no portão de casa, iniciando suas cartas, por exemplo, com o tratamento de

“Prezada Censura”:

Fonte: Fundo “Divisão de Censura de Diversões Públicas”, Arquivo Nacional, Coordenação Regional do
Arquivo Nacional no Distrito Federal, Série “Correspondência Oficial”, Subsérie “Manifestações da
Sociedade Civil”, Carta de 23 de setembro de 1974, Caixa 1.

Outro conjunto de imagens bastante significativo constituía-se na própria aparição

pública dos militares. Suas cataduras graves de “homens sérios” pareciam querer marcar

uma suposta superioridade em relação aos políticos civis, tidos por eles como

despreparados e corruptíveis. A solenidade típica da vida militar poderia parecer


38

assustadora ou sombria para a esquerda ou para os intelectuais, mas não se deve perder de

vista que o caráter cerimonioso ou formal da aparição pública dos generais-presidentes

também podia ser entendido como expressão das idéias de “ordem”, “respeitabilidade”,

“disciplina” e assim por diante.78

Fonte: Agência O Globo. Golpe de 64 - Humberto de Alencar Castelo Branco, Francisco


de Assis Correia de Melo e Arthur da Costa e Silva - 03.04.1964

As imagens associados ao ufanismo do crescimeno acelerado seriam extremamente

utilizadas, não só pela propaganda política do regime militar, mas, também, pela

imprensa de modo geral, que, assim, reproduzia a atmosfera política de otimismo em

relação ao “país do futuro” ou ao “Brasil, potência mundial”. Nesse sentido, todo um

repertório próprio de representações constituiu-se em revistas como, por exemplo, a

Manchete. À época de Médici, destacavam-se a arquitetura futurista de Brasília, o

desenvolvimento das metrópoles paulista e carioca, o peculiar do Nordeste (com o

patético da seca) e da Amazônia (especialmente aquilo que há de misterioso e

78
Consultar, a propósito, FICO, Carlos. Reiventando o otimismo. Ditadura, propaganda e imaginário
social no Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 1997. p. 59.
39

imponderável na floresta), tanto quanto o futebol, as telecomunicações, o ouro, etc.79 À

época de Geisel, a ênfase recaiu sobre a “constatação” do “novo patamar de

desenvolvimento econômico”, alcançado em função do “milagre”, ocasião em que foram

lembrados aspectos da produção de aço, petróleo, eletricidade, carros, tanto quanto a

construção de estradas, etc.80 Mas Geisel também repisaria as imagens do “sertão

nordestino”, da “hiléia amazônica” e da “vastidão do planalto central”,81 tópicos clássicos

da “grandeza brasileira”. Como é sabido, esta abordagem da pujança natural brasileira

inseria-se em tradição que remonta ao período colonial.82 Durante a ditadura, foi

trabalhada primeiramente pelo cineasta Jean Manzon e pela AERP da fase do coronel

Hernani D’Aguiar (1968-1969), sendo depois retomada pelo jornalista Amaral Netto em

suas reportagens épicas sobre o Brasil feitas para a TV Globo. Para a grande massa da

população que lia a Manchete e O Cruzeiro ou que assistia aos programas da TV Globo,

as imagens que ficaram daquela época são as da construção da Transamazônica (que,

segundo o regime, poderia ser observada por astronautas do espaço, tanto quanto outra

realização humana, a Muralha da China) ou da imensa estrada ligando o Norte à Brasília;

do colossal volume de água extravasado pelas comportas da maior hidrelétrica do mundo,

a Itaipu; da supreendente ponte ligando a cidade do Rio de Janeiro a Niterói, com seu vão

central, novamente o “maior do mundo”, e assim por diante. Enfim, todo o discurso sobre

a construção da décima maior economia mundial, a oitava entre as nações do “mundo

ocidental”.

79
MELO FILHO, Murilo. O Brasil para o Presidente Médici ver. Manchete, ano 17, n. 916, 8 nov. 1969. p.
92-105.
80
MELO FILHO, Murilo. Começa agora o Brasil de Geisel: mais rico, mais sólido, mais confiante.
Manchete, ano 21, n. 1144, 23 mar. 1974. p. 66-84.
81
GEISEL, Ernesto. Discursos. Volume I, 1974. Brasília: Assessoria de Imprensa e Relações Públicas da
Presidência da República, 1975. p. 128.
82
Ver FICO, Carlos. Op. cit.
40

Fonte: Agência O Globo.

Que dizer da propaganda política? Certamente o conjunto de imagens mobilizado

pelos comerciais da AERP tiveram um grande impacto na população. A AERP da fase do

coronel Octávio Pereira da Costa (1969-1974) foi capaz de expressar, através de

pequenos filmes televisivos, toda uma tradição de promessas seculares sobre um Brasil

grandioso, líder no mundo, beneficiado por uma natureza pujante. Um país poderoso

habitado por uma sociedade cordial. Uma democracia racial permeada pela benevolência

dos poderosos. Nacionalmente unificado e integrado lingüisticamente, o país que surgia

da propaganda politica da AERP mesclava, a um só tempo, as leituras de Affonso Celso

(Porque me ufano do meu país, de 1901), de Stefan Zweig (Brasil país do futuro, de

1941) e as teses sobre a escravidão benevolente de Gilberto Freyre (Casa grande &

senzala, de 1933) além de toda a tópica secular sobre a grandiosidade natural. Embaladas

por músicas sentimentais e envolvidas por uma atmosfera de patriotismo de escoteiros, as

imagens que ficaram da AERP são as de um tempo novo, de construção, iniciado pela

ditadura; de famílias felizes que cuidavam dos jovens e dos idosos; de trabalhadores bem

empregados, e assim por diante.


41

A positividade de todas essas imagens, como é fácil perceber, não estava adstrita ao

regime militar. Provindo de longas tradições, profundamente arraigadas no imaginário

social brasileiro, elas foram eficazes naquele momento e continuam a sê-lo, não

surpreendendo que os sucessivos governos civis posteriores ao fim do regime militar

tenham continuado a lançar mão das mesmas tópicas.

A partir de 1971, a ditadura militar concedeu-se um direito que a muitos pareceu

ridículo: ela poderia legislar através de “decretos reservados”, sobre cujo conteúdo a

população não tomava conhecimento.83 Isto dava a impressão de ser o auge do

formalismo e da compulsão legiferante dos militares, que, assim, estariam apenas

encobrindo, com uma capa legal, a sua completa ilegitimidade. Esta interpretação não é

de todo incorreta, mas a ela também podemos agregar o seguinte: ao estabelecer,

claramente, um campo de atuação legal para instâncias como a CGI, a censura de

diversões públicas ou a propaganda política (que sempre foi chamada pelo eufemismo de

83
Os treze “decretos reservados”, publicados entre 1971 e 1985, trataram, sobretudo, de assuntos
relacionados à comunidade de segurança e de informações e aos problemas de segurança nacional.
42

“relações públicas”), o regime militar conseguiu mobilizar a seu favor uma grande

variedade de imagens positivas. Combater a corrupção, controlar a imoralidade e

enaltecer os valores brasileiros foram opções que favoreceram bastante a construção de

uma imagem positiva do período para as pessoas comuns. De outro lado, ao ocultar a

dimensão propriamente repressiva da tortura ou da censura da imprensa, por exemplo,

negando-as enquanto pôde e normatizando-as através de diretrizes secretas e não através

de diplomas legais ostensivos, o regime poupou-se de transmitir uma imagem negativa

generalizadamente.

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