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1964-19851
Carlos Fico2
marcam o aniversário dos 40 anos do golpe de 1964. É o caso da discussão sobre a frágil
suposto caráter golpista de João Goulart – que estaria tentando perpetuar-se no poder
sobre a segunda não há uma evidência empírica forte que a comprove.3 Além destas
delicadas questões, uma outra polêmica, mais antiga, também tem ressurgido neste ano
de 2004: para muitas pessoas comuns o Brasil “era melhor” durante a ditadura. Trata-se
de impressão usual entre diversos setores da sociedade brasileira e, como é fácil perceber,
decorre das dificuldades encontradas pelo regime democrático para resolver os problemas
básicos do país. Tal impressão, porém, também deriva da imagem que as pessoas
1
As pesquisas que fundamentam a presente comunicação vêm sendo desenvolvidas por mim e pelos
integrantes do Grupo de Estudos sobre a Ditadura Militar da UFRJ desde 1998 e encontram-se publicadas
nos livros e artigos de minha autoria mencionados ao longo do texto. Trechos destes livros e artigos são
aqui reproduzidos. A perspectiva analítica das imagens sobre a ditadura militar brasileira que impegnaram
as pessoas comuns está sendo apresentada, pela primeira vez, neste simpósio.
2
Agradeço ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) por beneficiar-me
com a bolsa de pesquisador e outras bolsas para meus orientandos e auxílios financeiros para equipamentos,
bem como à Fundação Carlos Chagas de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) por
premiar-me como a bolsa “Cientista do Nosso Estado” e recursos financeiros diversos. Os integrantes do
Grupo de Estudos sobre a Ditadura Militar da UFRJ, coordenado por mim, são responsáveis por pesquisas
que embasam a presente comunicação e vão citados nos lugares devidos.
3
Ver, a propósito, as comunicações de Jorge Ferreira, Daniel Aarão Reis, Marcelo Ridenti e Caio Navarro
de Toleno nos Anais do Seminário 40 Anos do Golpe de 1964. Rio de Janeiro: 7Letras, 2004.
2
construíram sobre a ditadura militar. Como é sabido, a tentativa de enunciar uma suposta
memória um campo de disputas que abrange muitos outros agentes sociais, notadamente,
brasileira viriam de uma memorialística que se tornaria cada vez mais abundante e
variada. Havia a imprensa, por certo, que em alguns momentos produziu matérias
ressaltada por sua posição não esquerdista e o lançamento da coletânea O ato e o fato
inicial do regime, alvo de inúmeras acusações de tortura, acabou por levar o governo de
Castelo Branco a mandar investigar as acusações, o que foi feito por seu chefe da Casa
Militar, o futuro presidente Ernesto Geisel. A missão foi cumprida sem que nenhum
responsável fosse punido. Ainda no que diz respeito à imprensa, notável era a técnica do
4
CONY, Carlos Heitor. O ato e o fato: crônicas políticas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964.
ALVES, Marcio Moreira. Torturas e torturados. Rio de Janeiro: [s.n.], 1964. MONIZ, Edmundo. O golpe
de abril. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965.
3
jornalista Carlos Castello Branco, capaz de levar aos leitores de seus artigos, através de
textos sinuosos, informações que, ditas com todas as letras, fatalmente seriam censuradas.
Com o passar do tempo, Castello Branco conseguiu construir para si uma espécie de
vieram de dois colaboradores civis do primeiro governo militar. Luís Viana Filho, chefe
da Casa Civil de Castelo Branco, lançou seu testemunho em 1975, e Daniel Krieger, líder
e Krieger faziam leitura positiva do governo de Castelo Branco, inserindo-se sem atritos
dos generais Jayme Portella de Mello e Hugo Abreu7 chamavam a atenção para as cisões
internas, para os diferentes grupos que conviviam no interior da tão proclamada quanto
5
A “Coluna do Castello” foi publicada no Jornal do Brasil entre 1962 e 1993. Para as colunas relativas ao
regime militar ver BRANCO, Carlos Castello. Os militares no poder: Castelo Branco. 3. ed. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1977. __________. Os militares no poder: o ato 5. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1978. __________. Os militares no poder: o baile das solteironas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1979.
6
VIANA FILHO, Luís. O governo Castelo Branco. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1975. KRIEGER, Daniel.
Desde as Missões... saudades, lutas, esperanças. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1976.
7
MELLO, Jayme Portella. A revolução e o governo Costa e Silva. Rio de Janeiro: Guavira, 1979. ABREU,
Hugo. O outro lado do poder. Rio de Janeiro: Nova Fronteira 1979.
4
falsa “unidade militar”. Tido pelos castelistas como um dos “intolerantes assessores”8 de
Costa e Silva, Portella de Mello foi chefe do Gabinete Militar do segundo general-
presidente e da Junta Militar que o sucedeu e, nesta função, ocupou o cargo de secretário-
uma polícia política, que contaminaria extratos militares com a velha tradição de
truculência das polícias civis brasileiras. Seu livro, de estilo árduo, é uma espécie de
diário de mais de 1.000 páginas que enaltece Costa e Silva, primeiro líder da linha dura.
Hugo Abreu foi chefe do Gabinete Militar de Geisel, mas saiu do governo por
texto, faz diversas acusações ao governo Geisel e ao próprio presidente e, por causa de
seu livro, Abreu ficou em prisão disciplinar por vinte dias. Saiu da prisão dizendo que
escreveria novo livro, também com acusações, mas este segundo somente seria publicado
postumamente, pois o general morreria poucos meses depois. Após o término da ditadura,
De outro lado, também no final dos anos 1970 e início da década de 1980, no
contexto da abertura, foram publicados alguns dos mais impactantes depoimentos de ex-
8 Depoimento do general Gustavo Moraes Rego Reis publicado em D'ARAUJO, Maria Celina, SOARES,
Gláucio Ary Dillon, CASTRO, Celso (Int. e Org.). Os anos de chumbo: a memória militar sobre a
repressão. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994. p. 151.
9
CAMARGO, José Maria de Toledo. A espada virgem: os passos de um soldado. São Paulo: Ícone, 1995 e
PASSARINHO, Jarbas. Um híbrido fértil. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1996.
10
USTRA, Carlos Alberto Brilhante. Rompendo o silêncio: OBAN, DOI/CODI. 29 set. 70 - 23 jan. 74.
Brasília: Editerra, 1987.
5
entre aqueles que optaram por “pegar em armas” contra a ditadura: o ex-militante de
esquerda crítico de sua atuação pretérita e que via como “romântica” e “ingênua” a opção
enfatizavam o caráter cruento das fases mais duras do regime,12 aspecto que seria
amplamente documentado pelo projeto “Brasil: Nunca Mais”, que conseguiu coligir mais
Do ponto de vista da memória da esquerda que optou pela luta armada, foi Daniel
Aarão Reis Filho quem melhor detectou o fato de o campo constituir-se num espaço de
tresloucados, jovens ingênuos mas heróicos, cheios de ilusões, que seriam massacrados
pelo poderio da ditadura militar. De outro, o entendimento de que, não obstante tenham
optado pela “luta armada”, aquelas pessoas compuseram uma “resistência”, única
alternativa aos desmandos da ditadura. Se de fato não eram os ingênuos que parte da
caracterizados como membros de uma “resistência democrática”. Para Daniel Aarão Reis
11
GABEIRA, Fernando. O que é isso, companheiro. Rio de Janeiro: Codecri, 1979. SIRKIS, Alfredo. Os
carbonários. Memórias da guerrilha perdida. São Paulo: Global, 1980.
12
Ver, por exemplo, FREITAS, Alípio de. Resistir é preciso: memória do tempo da morte civil do Brasil.
Rio de Janeiro: Record, 1981. TAVARES, Flávio. Memórias do esquecimento. São Paulo: Globo, 1999.
COELHO, Marco Antônio Tavares. Herança de um sonho: as memórias de um comunista. Rio de Janeiro:
Record, 2000.
13
Brasil Nunca Mais. Petrópolis: Vozes, 1985.
14
Ver, sobre o tema, as críticas recebidas pelo filme O que é isso, companheiro?, de Bruno Barreto,
reunidas em REIS FILHO, Daniel Aarão e outros. Versões e ficções: o seqüestro da história. São Paulo:
Editora Fundação Perseu Abramo, 1997.
6
da Anistia, que:
que políticos, artistas, jornalistas e outros atores também têm deixado seus
constitui-se ao mesmo tempo em fonte e objeto históricos, pois se é certo que descreve a
época, também pode ser estudada como luta pelo estabelecimento da “versão correta”,
estando por ser feita uma análise intertextual desses fragmentos como se formassem um
texto único ou, pelo menos, um debate animado por “réplicas” e “tréplicas”.
Esta memória escrita, porém, afeta muito pouco as pessoas comuns, até porque
intelectuais. A afirmação que algumas pessoas fazem sobre a “vida melhor” na ditadura
não é uma ilação que se funda nos debates acadêmicos ou políticos, mas o resultado de
uma combinação caótica de impressões.18 Muito mais impressionante dos que os relatos
15
REIS FILHO, Daniel Aarão. Um passado imprevisível: a construção da memória da esquerda nos anos
60. In REIS FILHO, Daniel Aarão e outros. Op. cit. p. 40.
16
REIS FILHO, Daniel Aarão. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.
p. 70.
17
Ver, dentre outros, FRANCIS, Paulo. Trinta anos esta noite: 1964, o que vi e vivi. São Paulo: Companhia
das Letras, 1994, MOTA, Nelson. Noites tropicais: solos, improvisos e memórias musicais. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2000 e CORRÊA, Villas-Bôas. Conversa com a memória. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002.
18
Quando me refiro a “impressões” estou abrangendo aquilo que autores diversos têm tentado
conceptualizar como “representações”, “imaginário”, “mentalidade” etc. Obviamente não é o caso de
discutir, neste espaço, a fragilidade ou adequação de tais conceitos. Seja como for, talvez seja útil informar
7
disciplina e ao patriotismo. Para Jarbas Passarinho, coronel que foi ministro em três
que acabou por prevalecer na sociedade sobre a atuação dos militares seria
acadêmicos e políticos. Mas não é assim quando se pensa na impressão mais comum de
como um grupo homogêneo e coeso. Havia muitas diferenças entre os militares que
que, a mim, parece evidente que as dimensões ideológica e simbólica se interpenetram, não havendo
motivo para se afastar uma quando se considera a outra. Este e outros trabalhos de minha autoria tentam
mesclar as abordagens tradicionais da história política aos influxos do que se convencionou chamar de
história antropológica.
19
Em 2003, ele disse “vencemos a luta armada dos comunistas, mas perdemos a batalha da comunicação”.
20
Ver, por exemplo, CARVALHO, Mario Cesar. Aquele era um país que ia “pa frente”. Folha de S. Paulo.
27 mar. 1994. Caderno Especial 30 Anos Depois. p. 12.
8
dicotomia “duros” versus “moderados”. Esta questão é importante porque, para alguns
analistas, o período pode ser entendido segundo a metáfora dos “porões da ditadura”, isto
tais instâncias repressivas poderemos atinar para o fato de que os militares aderiam de
meu ponto de vista, embora houvesse muitas distinções entre os militares e as diversas
potência mundial caso alguns “óbices” fossem eliminados. Porém, a maneira como os
diversos militares aderiram a esta utopia distinguiu-se, pelo menos, em dois tipos:
demagogia dos políticos, não tinham conhecimento da realidade nacional, não possuíam,
21
A expressão foi proposta por Maria Celina D’Araujo, Celso Castro e Gláucio Ary Dillon Soares. Ver
D'ARAUJO, Maria Celina et al. (Int. e Org.). Visões do golpe: a memória militar sobre 1964. Rio de
Janeiro: Relume-Dumará, 1994. p. 9.
9
necessário educá-los. Para os primeiros, a solução seria uma grande “operação limpeza”,
capaz de prender, exilar e até mesmo matar os inimigos daquela “utopia autoritária”. Para
de repressão, sendo esta a razão que explica a utlização de instrumentos que os militares
serem limpos e cuidava para que eles não sofressem “atentados à moral e aos bons
polícia política; (b) a censura política e a censura moral e (c) a propaganda política e o
o criador e sua criatura pairam algumas imprecisões. Tido como sagaz articulador
político, na verdade são alguns insucessos de Golbery os fatores mais notáveis em sua
biografia: como chefe do SNI no primeiro governo militar, não logrou impedir a sucessão
de Castelo Branco por Costa e Silva, mesmo contando com o apoio do chefe do Gabinte
em 1981 que foi oficialmente encoberto sob a alegação de que os responsáveis seriam
vítimas. Para o que aqui interessa, destaque-se a transformação de sua criatura, o SNI,
criado ainda em 1964 e surgiu através da Lei no 4.341. Portanto, em primeiro lugar, é
urbana e rural”, isto é, a efetivação de antiga aspiração da esquerda pelo confronto direto
com o governo tendo em vista a tomada do poder pela força. Golbery, como é sabido, não
integrava a linha dura, sendo conhecido por sua prosápia com fumos de intelectual, perfil
exaltados, mais ligados às tropas e aos arroubos dos que preferiam decidir os problemas
existia havia muito tempo, remontando aos anos 1950.23 Para a constituição do SNI
e Estudos Sociais).25
Portanto, o SNI foi criado às claras e, diga-se, o projeto de lei encaminhado por
Castelo Branco ao Congresso Nacional foi combatido por diversos parlamentares, que
Castelo, neste particular, reforçou a construção da mitologia sobre sua própria pessoa,
pois tornar-se-ia aceita a tese de que ele tinha “horror ao DIP”.27 De fato, porém, existe
significativa evidência de que ele impediu que o SNI fosse criado como um órgão de
23
FICO, Carlos. Como eles agiam. Os subterrâneos da Ditadura Militar: espionagem e polícia política Rio
de Janeiro: Record, 2001. p. 40.
24
HUGGINS, Martha K. Polícia e política: relações Estados Undidos/América Latina. São Paulo: Cortez,
1998. p. 147.
25
ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e oposição no Brasil (1964-1984). Petrópolis: Vozes, 1984. p.
25. Ver, também, DREIFUSS, René Armand. 1964: A conquista do Estado: ação política, poder e golpe de
classe. Rio de Janeiro: Vozes, 1981. p. 281 e segs.
26
BRANCO, Carlos Castello. Os militares no poder: Castelo Branco. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1977. p. 41.
27
Segundo José Maria de Toledo Camargo – chefe da Assessoria de Relações Públicas de Ernesto Geisel –
Castelo Branco “tinha muitos traços do extinto udenismo. E os udenistas, quando pensavam em propaganda
oficial, lembravam logo do DIP de Getúlio, o que lhes provocava até arrepios”. Ver entrevista de Toledo
Camargo a Gilnei Rampazzo citada em FICO, Carlos. Reinventando o otimismo: ditadura, propaganda e
imaginário social no Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1997. p. 89.
12
“mão dupla”, isto é, que fizesse, ao mesmo tempo, tanto a coleta de informações quanto a
propaganda política, tal como o velho DIP o fizera. Segundo o general Octávio Costa,
quando da criação do SNI, assessores de Golbery propuseram que o órgão tivesse tal
perfil, mas Castelo Branco teria eliminado do projeto tudo que dissesse respeito à
órgãos de informações do tipo do que então se propunha e, por isso, a criação do SNI não
observações históricas afinal tão singelas – não quero, em absoluto, sugerir que o órgão
tivesse uma origem e atuação democráticas. Está claro que ele foi criado no contexto da
“ditadura envergonhada”, para usar a feliz expressão de Elio Gaspari, que, assim, bem
Serviço como órgão de informações (que a distinguirá da dos setores que se engajarão
diretamente na tortura e assassinato político), penso que é preciso sublinhar as etapas que
marcaram sua existência, pois são evidentes as diferenças entre o período inicial, sob o
comando de Golbery, e a fase posterior, na qual o SNI viu-se sob o comando e/ou agiu
Com a vitória de Costa e Silva (bem poderia dizer: com a derrota de Castelo, Geisel
e Golbery), o SNI passou a ser dirigido pelo futuro presidente da República, Emílio
28
Depoimento de Octávio Pereira da Costa publicado em D'ARAUJO, Maria Celina, SOARES, Gláucio
Ary Dillon, CASTRO, Celso (Int. e Org.). Os anos de chumbo: a memória militar sobre a repressão. Rio de
Janeiro: Relume-Dumará, 1994. p. 259. Ver também FALCÃO, Armando. Tudo a declarar. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1989. pp. 302-305.
29
Entrevista de Otávio Costa ao autor citada em FICO, Carlos. Op. cit. p. 89.
13
Silva. Eles se aproximaram no final dos anos 1950, quando Médici, ainda coronel,
Militar em Porto Alegre (RS). Quando Costa e Silva conquistou o cargo de ministro da
Guerra, no governo de Castelo Branco, Médici foi nomeado adido militar da embaixada
alçado à chefia do SNI, pois, embora tenha recusado o cargo de presidente da Petrobrás –
para o qual não se sentia preparado –, Costa e Silva fazia questão de tê-lo próximo a si.
Ora, Médici era muito diferente de Golbery e, na verdade, passaria à história como o
homem sob cuja presidência o Brasil assistiria ao auge da repressão desencadeada pela
ditadura militar. Certamente, sob seu mando, o SNI mudaria. Mais do que um órgão de
capaz de vetar nomes cogitados para cargos públicos. Em julho de 1968, logo após a
famosa “Passeata dos Cem Mil”, e diante da preocupação de Costa e Silva com a ordem
pública, Médici sugeriu um instrumento assemelhado ao AI-5, que somente viria no final
do ano, sugestão recusada, na ocasião, por Costa e Silva: o SNI havia “endurecido”.
pouco mais de dois anos depois de ter assumido o SNI, após os episódios da doença e
SNI, Médici foi substituído pelo general Carlos Alberto Fontoura, em 1969, igualmente
30
ABREU, Alzira Alves de e outros (Coords.). Dicionário histórico-biográfico brasileiro pós-1930. Ed.
rev. e atual. Rio de Janeiro: FGV, 2001. p. 3679.
31
Sobre este período, consultar CHAGAS, Carlos. 113 dias de angústia: impedimento e morte de um
presidente. Porto Alegre: L&PM, 1979.
14
gabinete do então ministro da Guerra, entre 1965 e 1966). Fontoura chefiaria o SNI até
1974, comandando o órgão durante a fase em que se instalaria no país uma polícia
política, com a qual o SNI passou a conviver. Mais do que isso, foi em sua gestão que as
ministérios civis, passaram a compor uma abrangente rede de espionagem.32 Este amplo
sistema de espionagem é o “monstro” ao qual Golbery se referiu, mas, como se vê, não
militar, já que ela seria criada no final dos anos 1960 a partir da estruturação do sistema
final do governo de João Figueiredo, já que a remodelação do SNI ficou para a “Nova
fato, a partir da “distensão política” proposta por Ernesto Geisel, a polícia política entrou
Figueiredo, o SNI, ao contrário, alcançou seu auge, tanto do ponto de vista orçamentário
É esta longevidade que talvez explique a persistência da idéia de que o SNI era o
“órgão de segurança por excelência”33 que teria subordinado “todos os outros órgãos
32
Brasil. Congresso Nacional. Decreto no 60.940, de 4 jul. 1967.
33
OLIVEIRA, Eliézer Rizzo. As Forças Armadas: política e ideologia no Brasil (1964-1969). Petrópolis:
15
militares envolvidos, significava prender e interrogar (e, de resto, torturar e até matar).
Por certo, o que explica a longevidade do SNI é o seu caráter legal, aliado ao fato de
contar com congêneres em outros países, o que lhe conferia certa aceitabilidade.
distinguiam das demais pela presença de militares, pelo seu éthos próprio (ânsia
SNI. Mas não “executavam”, tarefa que cabia à polícia política, isto é, ao sistema CODI-
DOI, principalmente.
variedade de grupos militares (que não se dividiam, apenas, entre duros e moderados) e o
De fato, a clássica divisão entre linha dura e moderados não dá conta da diversidade
de clivagens que configuravam os diversos grupos militares. Basta lembrar, por exemplo,
que nem todo integrante da linha dura praticava tortura, como é óbvio. Havia militares
que aderiam genuinamente à “utopia autoritária” segundo a qual o Brasil deveria livrar-se
entre esses grupos diversos. Suas análises eram lidas por todos: alguns as recebiam como
da polícia política; outros, como um alarmismo que gerava inquietação e, por isso,
A partir do final dos anos 1960, a “utopia autoritária”, que inspirava, de maneira diversa,
36
Para o ex-presidente, “(...) a tortura em certo casos torna-se necessária, para obter confissões. (...) Não
justifico a tortura, mas reconheço que há circunstâncias em que o indivíduo é impelido a praticar a tortura,
para obter determinadas confissões e, assim, evitar um mal maior!” D'ARAUJO, Maria Celina, CASTRO,
Celso. Ernesto Geisel. Rio de Janeiro: FGV, 1997. p. 225
37
FICO, Carlos. Op. cit. p. 218.
17
os diferentes grupos militares, passou a ser interpretada segundo a chave dos setores mais
possibilitada pelo AI-5 e representada pelo sistema CODI-DOI, como uma simples
reação à chamada “luta armada”. Assim como o AI-2 não foi somente uma reação ao
resultado das eleições de outubro de 1965, tampouco o AI-5 foi apenas uma resposta à
opção de parte da esquerda pela “luta armada”. Havia, desde o início do regime militar, a
vontade, por parte dos setores mencionados da linha dura, de constituição de um aparato
global de controle da sociedade, tanto quanto, aliás, a opção de parte da esquerda pela
controle supunha não apenas a espionagem e a polícia política, mas também a censura, a
de todos estes setores que possibilita a percepção da complexidade da estrutura, pois ela
esteve longe de poder ser subsumida na noção de “porões da ditadura”, que tende a
decretos e outros diplomas ostensivos, a polícia política era “revolucionária”, isto é, sua
38
Idem. pp. 59-64.
39
Sistema de Segurança Interna. SISSEGIN. Documento classificado como “secreto”. [1974?]. Capítulo 2,
fl. 6. Ver, também, diversos ofícios classificados como “confidencial”. 1960-1970. Série “Diversos”,
subsérie “Avulsos” do fundo “Divisão de Segurança e Informações”. Arquivo Nacional, Rio de Janeiro,
caixa 43-4118. Ver, igualmente, Ofício do secretário-geral do Conselho de Segurança Nacional aos
governadores estaduais. Documento classificado como “secreto”. 10 nov. 1970, gentilmente cedido ao
autor por Elio Gaspari.
18
que explica a exuberância de leis e decretos durante o regime militar (não se esquecendo,
por certo, que o bacharelismo legiferante possui larga tradição no Brasil). Mas,
contidos no atos institucionais e, apesar disso, somente com Ernesto Geisel algo nesse
tortura – pois ela existiu desde sempre no Brasil, inclusive nos momentos iniciais do
novo regime –, mas certamente a instituiu como padrão regular de funcionamento, como
muito baixas ou elevadas) ou sonorizadas (para a exposição das vítimas a barulhos, gritos
19
etc.) sem o conhecimento dos oficiais-generais. Aliás, a tortura também era amplamente
conhecida pela Justiça Militar.40 Os torturadores não agiam contra a vontade de seus
exatamente estas etapas: investigação, prisão e tortura para obter revelações rapidamente.
Desse modo, não se deve confundir a independência operacional com que trabalhava a
polícia política com uma suposta autonomia em relação aos oficiais-generais. Alguns
céticos ainda poderiam exigir a apresentação de provas documentais sobre o tema, algo
fosse torturado. Isso dificilmente haverá, mas existem depoimentos que não deixam
margem a dúvidas, como a lamentável declaração de Geisel sobre a tortura como uma
Castro: “eu acreditava que, para as informações imediatas, era preciso uma certa dose,
pelo menos, de tortura psicológica, como sugeriam: botar o sujeito numa cela com uma
cobra (...) Colocar o sujeito num lugar com gritos e isso e aquilo (...)”42
Assim, para a polícia política, a tortura era rotina praticada usualmente;43 para
40
ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO. Brasil: nunca mais. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 1985. p. 203.
41
A tese da autonomização da comunidade de segurança também foi admitida pela historiografia, como se
pode verificar, por exemplo, em KLEIN, Lucia, FIGUEIREDO, Marcus F. Legitimidade e coação no
Brasil pós-64. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1978. pp. 46-47. OLIVEIRA, Eliézer Rizzo. Op. cit.
p. 105. STEPAN, Alfred. C. Os militares: da Abertura à Nova República. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1986. p. 21.
42
Depoimento de Adyr Fiúza de Castro publicado em D'ARAUJO, Maria Celina, SOARES, Gláucio Ary
Dillon, CASTRO, Celso (Int. e Org.). Os anos de chumbo: a memória militar sobre a repressão. Rio de
Janeiro: Relume-Dumará, 1994. pp. 68-69.
43
Sobre a tortura vista como rotina e sobre o perfil dos torturadores consultar LOBO, Amilcar. A hora do
lobo, a hora do carneiro. Petrópolis: Vozes, 1989. p. 71.
20
repressão) quanto para os pragmáticos rigorosos (como Ernesto Geisel), a tortura tinha o
mesmo significado: era um “mal menor”. Note-se, portanto, mais uma vez, a fragilidade
das noções que contrapõem os “moderados” (como supostamente era Ernesto Geisel) aos
moderados que sabiam da prática e temiam ser envolvidos por ela: o general Octávio
Costa, por exemplo, tinha a decisão íntima de se afastar do Exército caso fosse instado a
ceder, para práticas escusas, uma pequena instalação retirada que havia no Forte Duque
brigadeiro João Paulo Burnier, que planejava atentados, mas foi uma exceção.45
até mesmo porque era a primeira vez que a corporação envolvia-se, direta e
que não era possível abrir mão de sua eficácia nem denunciá-la frontalmente. Esta foi
segurança” construindo uma retórica negadora da tortura que seria amplamente absorvida
pelos militares e autoridades civis comprometidos com a ditadura. A eficácia com que a
44
COSTA, Octávio Pereira da. Entrevista concedida ao autor em 18 jul. 1994.
45
GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. pp. 291 e segs.
21
unidade do discurso de negação da tortura que, durante muitos anos, prevaleceu como
explicação: assim, não teria havido tortura, mas apenas alguns “excessos” de uns poucos
exaltados, subalternos que não estariam agindo sob o mando dos oficiais-generais, mas
não é falsa, oculta o fato básico de que o general admitiu a existência da tortura até sua
Justiça de Médici, Alfredo Buzaid, mandara preparar em 1970 e prometera divulgar como
A enérgica reação do ministro Alfredo Buzaid à notícia (...) antecipa a resposta que o
Itamarati dará a tal pedido (...) O governo brasileiro considera ameaça à sua soberania
qualquer tentativa de ingerência (...) nos assuntos internos do país. Tal atitude (...) traduz o
alto grau de sensibilização das autoridades nacionais provocado pela campanha externa (...)
O Ministério da Justiça elabora o seu livro de resposta às acusações, que já não se chamará
livro branco, mas livro da verdade ou outra expressão equivalente. Como prefácio ao livro, o
próprio ministro, prof. Alfredo Buzaid, catalogará as acusações, fazendo-lhes o histórico e
refutando documentadamente os casos objeto de denúncias específicas (...) O Ministério da
Justiça está certo de que dará respostas convincentes na base de pesquisas já realizadas em
torno de denúncias que com mais insistência circulam no exterior.47
46
Informações do governo brasileiro para esclarecer supostas violações de direitos humanos relatadas em
comunicações transmitidas pela “Comissão Interamericana de Direitos Humanos”, da Organização dos
Estados Americanos. Documento “confidencial” da série “Movimentos Contestatórios à Ordem Política e
Social”, subsérie “Avulsos” do fundo “Divisão de Segurança e Informações”. Arquivo Nacional, Rio de
Janeiro. Cx. 3582. [1970].
47
Colunas de Carlos Castello Branco no Jornal do Brasil dos dias 31 de outubro e 14 de novembro de 1970
reproduzidas em BRANCO, Carlos Castello. Os militares no poder: o baile das solteironas. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1979. pp. 703 e 717.
22
1970, abrangendo não só o governo de Médici mas, também, o de Geisel. Este último
julgava que a Anistia Internacional era “um organismo tendencioso e infiltrado pela
esquerda”.48 Entre junho de 1972 e abril de 1973, o SNI recebeu cerca de 2.800 cartas da
pecha de tortura marcou a imagem do Brasil também nos Estados Unidos, gerando
reações que levariam a manifestações contra os atentados aos direitos humanos, que
O “livro branco” que Buzaid mandou preparar em 1970 nunca seria publicado. Mas
com uma breve introdução analítica seguida de 11 volumes com documentação reunida
para supostamente refutar a acusação de que havia tortura no Brasil. Os volumes tinham
48
D'ARAUJO, Maria Celina, CASTRO, Celso (Orgs.) Ernesto Geisel. Rio de Janeiro: FGV, 1997. p. 232.
49
Informação no 30/73/P, de 19 de julho de 1973. Documento classificado como “secreto” da série
“Movimentos Contestatórios à Ordem Política e Social”, subsérie “Avulsos” do fundo “Divisão de
Segurança e Informações”. Arquivo Nacional, Rio de Janeiro. Caixa 4109, unidade documental 130.
50
GREEN, James N. Clerics, exiles, and academics: opposition to the Brazilian Military Dictatorship in the
United States, 1969-1974. Latin American Politics and Society, v. 45, n. 1, Spring 2003, pp. 87-117.
51
Relatório Especial de Informações, no 06/74, de 25 de julho de 1974, elaborado pelo general-de-brigada
Confúcio Danton de Paula Avelino. Documento “confidencial” da série “Movimentos Contestatórios à
Ordem Política e Social”, subsérie “Avulsos” do fundo “Divisão de Segurança e Informações”. Arquivo
Nacional, Rio de Janeiro. Caixa 4109-34, unidade documental 130. fls. 2, 11 e 12.
23
legislação brasileira.
A simples enunciação dos títulos dos volumes indica porque o documento nunca
seria divulgado: eles chamam a atenção, precisamente, para alguns dos mais escabrosos
discurso militar que buscava negar a tortura. Assim, o Brasil não teria “presos políticos”,
Como mote geral, a idéia de uma “tenebrosa campanha difamatória” feita no exterior para
52
Informação no 30/73/P, de 19 de julho de 1973. Documento classificado como “secreto” da série
“Movimentos Contestatórios à Ordem Política e Social”, subsérie “Avulsos” do fundo “Divisão de
Segurança e Informações”. Arquivo Nacional, Rio de Janeiro. Caixa 4109. fl. 2
53
Idem. fl. 34.
54
Idem. 1.
24
militar decidir-se-ia pela forma mais dúbia de negação: o silêncio. Após estudos feitos no
Campo Externo” que prescrevia como estratégia principal o silêncio: nada deveria ser
secretário-geral era o futuro presidente João Figueiredo. Como se vê, Figueiredo, assim
como Geisel (que chefiou a já mencionada missão sobre tortura durante o governo de
O silêncio também foi a forma pela qual a ditadura militar tentou ocultar, durante
55
Idem. Ibidem.
56
Idem. fl. 26.
57
Ver também CÔRTES, Giovana Xavier da Conceição. Argumento insustentável: as justificativas da
comunidade de informações para a tortura durante a ditadura militar. Monografia de Bacharelado
apresentada ao Departamento de História da UFRJ. Rio de Janeiro, 2003.
58
Processo no 61397, de 31 de outubro de 1972. Documento “confidencial” da Série “Movimentos
Contestatórios à Ordem Política e Social”, subsérie “Processos” do fundo “Divisão de Segurança e
Informações”. Arquivo Nacional, Rio de Janeiro. Caixa 592/05132.
25
legal/“revolucionário” que explica a existência não de uma, mas de duas censuras durante
o regime militar: uma legal e longeva – aquela que havia décadas controlava as diversões
Não houve uma censura durante o regime militar, mas duas. A censura de diversões
públicas existia no Brasil, de maneira oficial, desde 1946.60 Integrava, por exemplo, a
rotina profissional do pessoal do teatro, nada havendo de novo (após 1964) na presença
de um censor durante o ensaio geral nem nos atritos entre a classe e a censura moral das
peças, com o tempo também praticada contra o rádio, o cinema, a TV e até mesmo os
circos e as churrascarias com música ao vivo. De fato, todo um éthos próprio animava a
Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP), desde muito antes do golpe de 1964.
à moral e aos bons costumes” fossem evitados. Tratava-se de uma atividade oficial,
59
AQUINO, Maria Aparecida de. Censura, imprensa, estado autoritário (1968-1978). Bauru: Edusc, 1999.
p. 207.
60
Refiro-me à forma mais moderna da censura do teatro, do cinema etc., pois a censura de textos, por
exemplo, existiu no Brasil desde que Portugal autorizou a impressão de livros no país. Decreto n. 20.493 de
24 de janeiro de 1946.
26
letras de duplo sentido nas músicas eram execrados por boa parcela da sociedade e
combatidos pela DCDP em sua missão protetora. Nos anos 1960 e 1970, a sociedade
destacando-se, como fato singular no Brasil, a grande inovação lançada pela TV Globo: a
fenômeno está a chamar a atenção dos pesquisadores para o fato de que a história do
Brasil, entre 1964 e 1985, não pode ser subsumida à história política tradicional da
ditadura militar. O impacto das telenovelas da Globo no campo da censura foi muito
Seja como for, fixe-se que a censura “moral” existia havia muito tempo, sendo um
flagrante já foi mencionada acima: quando a linha dura definitivamente assumiu o poder,
com o AI-5, a censura moral das diversões públicas também passou a se preocupar, de
maneira mais enfática, com a política. Doravante, não apenas os palavrões ou as cenas de
nudez estavariam sob a mira da DCDP, mas também os filmes políticos, as músicas de
ministro da Justiça, a dificuldade que seus técnicos tinham de praticar a censura política –
61
O tema vai sendo desenvolvido por Douglas Attila Marcelino em sua dissertação de mestrado junto ao
Programa de Pós-graduação em História Social da UFRJ.
62
FICO, Carlos. “Prezada Censura”: cartas ao regime militar. Topoi - Revista de História. Rio de Janeiro,
n. 5, set. 2002, p. 259.
27
Esta especificidade pode ser quantificada. Não foi durante o período admitido como
o de auge da repressão (governos da Junta Militar e de Emílio Médici) que houve mais
submetidas à análise da DCDP, foi registrada em 1978 (quase 3%). Quanto aos filmes, o
maior índice verificou-se em 1980 (quase 1,5%),63 após a posse do governo da “abertura
unicidade às duas censuras, mas, na verdade, lógicas muito distintas presidiam as duas
consumo interno e, sobretudo, externo), mas também era sintoma da distinção que o
regime fazia entre atividades repressivas ou de controle social que podiam ser admitidas
classificadas como “revolucionárias”, como já foi dito. A censura moral era legalizada e a
com proibições para que determinado assunto fosse publicado. Depois do AI-5, a censura
63
Fundo “Divisão de Censura de Diversões Públicas”, Arquivo Nacional, Coordenação Regional do
Arquivo Nacional no Distrito Federal, série “Relatórios de Atividades”. 1969-1985.
28
militares ou agentes da polícia federal podiam determinar proibições. Após algum tempo,
pedidos de censura enviados por autoridades diversas a fim de que, finalmente, fossem
Supremo Tribunal Federal – obrigou o governo a admitir que praticava a censura política
Ato não podiam ser contestadas pela Justiça).64 Como é compreensível, a maior
mencionado.
se voltar ao assunto. Para os leitores que ainda não conhecem essas duas instâncias,
atenção para dois aspectos que ainda não foram devidamente fixados pela historiografia
sobre a ditadura militar: o importante papel que certo discurso ético-moral teve para
64
O episódio está detalhado em SMITH, Anne-Marie. Um acordo forçado: o consentimento da imprensa à
censura no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 2000. pp. 130-132.
65
FICO, Carlos. Como eles agiam. Os subterrâneos da Ditadura Militar: espionagem e polícia política Rio
de Janeiro: Record, 2001. pp. 149-160. Adriano de Macedo Garcia desenvolve uma monografia de
bacharelado, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, sobre o tema.
66
FICO, Carlos. Reinventando o otimismo: ditadura, propaganda e imaginário social no Brasil. Rio de
Janeiro: FGV, 1997.
29
perfis político-ideológicos dos diversos grupos militares (que, mais uma vez, indica a
A Comissão Geral de Investigações (CGI) a que me refiro67 foi criada quatro dias
públicos corruptos,68 tal como estabelecia o oitavo artigo do Ato. A idéia era punir o
presidia, mas, na prática, era conduzida por seu vice-presidente. Durante sua existência
(1968-1978) o cargo foi ocupado pelos generais Oscar Luiz da Silva, Obino Lacerda
encabeçava uma rede nacional conhecida como “Sistema CGI”, integrado por sub-
comissões estaduais. O pessoal que trabalhava nas comissões era requisitado nos quadros
do funcionalismo público.
sumárias que deveriam resultar em decretos de confisco, mas os processos eram mal
conduzidos e, mesmo sob o império do AI-5, contestações judiciais acabavam por ser
assumidas orgulhosamente pela CGI, eram chamadas de “ações catalíticas”, mas não
67
A ditadura militar contou com duas CGIs: uma, a Comissão Geral de Investigação, criada pelo Comando
Supremo da Revolução, em de 27 de abril de 1964, com a incumbência de conduzir os inquéritos policial-
militares; outra, criada após o AI-5, com a função de confiscar bens de quem houvesse “enriquecido
ilicitamente”, em 17 de dezembro de 1968. Além dessas duas, ainda existiu a Comissão Geral de Inquérito
Policial-Militar, criada pelo Decreto-lei no 459, logo após a imposição do AI-5, que foi incumbida de
conduzir os inquéritos que resultaram na aplicação do Ato. Mesmo os pesquisadores mais atentos
costumam confundir-se quanto a essas comissões.
68
Brasil. Congresso Nacional. Decreto-lei no 359, de 17 de dezembro de 1968.
30
Entre 1968 e 1973, dos 1.153 processos analisados, mais de 1.000 foram arquivados. De
A propaganda política foi bem mais sofisticada. Ela foi feita no âmbito da
por Costa e Silva no começo de 1968. Inicialmente foi conduzida pelo coronel Hernani
D’Aguiar (1968-1969), mas somente tomou vulto na gestão do coronel Octávio Pereira
não estabelecia empatia com o público. Octávio Costa reformulou toda a propaganda do
governo, produzindo filmes para a TV que não pareciam oficiais. Em plena ditadura, tais
sociológicos inspirados em Gilberto Freyre. Seus filmes faziam sucesso, pois mostravam
imagens belas, acompanhadas de música envolvente e quase não eram narrados, sendo,
31
construir”; “Ontem, hoje e sempre: Brasil”; “Você constrói o Brasil”; “O Brasil merece o
nosso amor”. A AERP ficou parcialmente desativada no início do governo Geisel, mas,
após o insucesso eleitoral do partido oficial em 1974, o coronel José Maria de Toledo
Camargo foi convocado por Ernesto Geisel com a seguinte frase: “quero que você me
ajude a ganhar a eleição, a próxima eleição”.69 Ele passou a chefiar a nova Assessoria de
Relações Públicas (ARP) em 1976 e permaneceu nesta função até 1978. Não inovou,
mantendo o padrão criado por Octávio Costa, de quem fora assessor-adjunto na fase da
AERP.
Aos críticos do regime, a AERP dava a impressão de ser uma agência todo-
slogan que circulava em adesivos colados nos vidros dos carros: “Brasil: ame-o ou deixe-
o”. A frase, contudo, inspirada em similar inglês, foi divulgada no Brasil pela Operação
verdade, Octávio Costa era muito criticado pela comunidade de segurança, que via seu
Médici julgavam que Costa fosse um “poetinha besta”.70 Antes de receber o convite de
Médici, Octávio Costa se tornara conhecido em função de crônicas que escrevera para o
69
FICO, Carlos. Op. cit. p. 106.
70
Idem. p. 100.
32
posse de Médici, que causou grande impacto: poético e escapista, punha na boca do
desaprimorado ditador frases como “neste momento, sou oferta e aceitação!”. Médici
assumiu às pressas, depois da doença de Costa e Silva, e Octávio Costa não pôde
Para a linha dura, a propaganda não deveria produzir comerciais edificantes, mas
meses após o golpe de 64. Como já foi visto, quando da criação do SNI, ainda em 1964,
evitar isso, pois ele acharia que a verdade se impõe por si só e que um órgão com tal
perfil lembraria demais o antigo DIP de Getúlio Vargas. Nesse sentido, a AERP somente
seria criada por Costa e Silva e plenamente ativada por Médici. Pelas mesmas razões,
Geisel tentou desativar a propaganda política, mas teve de mantê-la em função das
necessidades eleitorais.
AI-5 e só punia a inteligência das pessoas que eram obrigadas a assistir seus “filmetes” (a
expressão era usada sem carga pejorativa pela própria AERP). Por que, então, estou
e retidão moral”.72 Em minha opinião, tal utopia não se confunde com uma ideologia
lo dos ataques à “moral e aos bons costumes”. Como é fácil perceber, as duas dimensões
podem aparecer combinadas numa mesma instância, sendo flagrante que a CGI tanto
71
Ver FICO, Carlos. Espionagem, polícia política, censura e propaganda: os pilares básicos da repressão.
In FERREIRA, Jorge, NEVES, Lucilia de Almeida (Orgs.). O Brasil republicano. Livro 4: O tempo da
ditadura – regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio de Janeiro: Record, 2003.
72
D'ARAUJO, Maria Celina et al. (Int. e Org.). Visões do golpe: a memória militar sobre 1964. Rio de
Janeiro: Relume-Dumará, 1994. p. 9.
73
Ver, por exemplo, OLIVEIRA, Eliézer Rizzo. Op. cit. e COMBLIN, Joseph. A ideologia da segurança
nacional: o poder militar na América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.
34
Para as pessoas comuns, as imagens que ficaram da ditadura militar não são as
mesmas que a intelectualidade associa ao período. Para nós, falar em ditadura militar
comuns. Diga-se de passagem que esta noção (“pessoas comuns”) não é um conceito
rigoroso e está aqui sendo usada em sua acepção geral. A fragilidade de tal noção pode
tempos melhores. Embora integre uma elite política da esquerda normalmente bastante
mais crítica em relação à ditadura, para Lula a imagem que ficou do governo Médici é a
do pleno emprego: “Era um tempo em que a gente trocava de emprego na hora que a
gente queria. Tinha empresa que colocava perua pra roubar empregado de outra
empresa.”74
hoje são evocadas pelas pessoas comuns não são as da denúncia do arbítrio. Os
Mencionemos algumas das principais linhas de força das imagens construídas pela
74
COUTO, Ronaldo Costa. Memória viva do regime militar. Brasil: 1964-1985. Rio de Janeiro: Record,
1999. p. 251.
35
famosas “Marchas da Família, com Deus pela Liberdade” foram provocadas por um
Central. Jango, tentando criticar a “Cruzada do Rosário”, movimento lançado nos Estados
Unidos em 1945 e que chegaria com sucesso ao Brasil contrapondo o rosário católico ao
comunismo, disse que os rosários não podiam ser erguidos “contra o povo”.75 Foi o
suficiente para que a freira Ana de Lurdes, neta de Rui Barbosa e intimamente
discursava na Central, nas sacadas dos apartamentos dos bairros de elite da Zona Sul do
Fonte: “Mulher se ajoelha para rezar o terço na Marcha do Recie”. Manchete, 25 abr. 1964. p. 36.
75
Discurso de João Goulart no Comício da Central em 13 de março de 2004.
36
comunismo) deixaria de ser usada com o tempo de maneira explícita, mas as imagens das
católicas de classe média e sua defesa intransigente de valores morais rigorosos nunca
deixou de ser criticada pela imprensa e por diversos intelectuais que os entendiam
feminina e pela cultura alternativa. Porém, a atuação dessas mulheres não cessaria: elas
“ataques à moral e aos bons costumes”, objeto preponderante da censura das diversões
públicas. Elas se tornariam, com o passar dos anos, espectadoras rigorosas dos
usando um recurso que já dera certo nas vésperas do golpe.77 As “marchadeiras” de 1964
mente salvar a sociedade brasileira dos abusos das novelas que mostravam, na TV, cenas
76
Ver SERBIN, Kenneth P. Diálogos na sombra. Bispos e militares, tortura e justiça social na ditadura.
São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
77
Desde antes de 1964 estes grupos de mulheres faziam pressão junto ao Congresso Nacional enviando
milhares de cartas à instituição. Ver POLLANAH, Stella M Senra. Livro de cabeceira da mulher. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1967. Vol. 5, p. 161 e PRESOT, Aline. As “Marchas da Família, com Deus
pela liberdade”. Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em História Social da
UFRJ. Rio de Janeiro, 2004.
37
conservadoras da doutrina católica. Estas mulheres, que escreviam para uma instância da
conversas no portão de casa, iniciando suas cartas, por exemplo, com o tratamento de
“Prezada Censura”:
Fonte: Fundo “Divisão de Censura de Diversões Públicas”, Arquivo Nacional, Coordenação Regional do
Arquivo Nacional no Distrito Federal, Série “Correspondência Oficial”, Subsérie “Manifestações da
Sociedade Civil”, Carta de 23 de setembro de 1974, Caixa 1.
pública dos militares. Suas cataduras graves de “homens sérios” pareciam querer marcar
uma suposta superioridade em relação aos políticos civis, tidos por eles como
assustadora ou sombria para a esquerda ou para os intelectuais, mas não se deve perder de
também podia ser entendido como expressão das idéias de “ordem”, “respeitabilidade”,
utilizadas, não só pela propaganda política do regime militar, mas, também, pela
78
Consultar, a propósito, FICO, Carlos. Reiventando o otimismo. Ditadura, propaganda e imaginário
social no Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 1997. p. 59.
39
trabalhada primeiramente pelo cineasta Jean Manzon e pela AERP da fase do coronel
Hernani D’Aguiar (1968-1969), sendo depois retomada pelo jornalista Amaral Netto em
suas reportagens épicas sobre o Brasil feitas para a TV Globo. Para a grande massa da
população que lia a Manchete e O Cruzeiro ou que assistia aos programas da TV Globo,
segundo o regime, poderia ser observada por astronautas do espaço, tanto quanto outra
a Itaipu; da supreendente ponte ligando a cidade do Rio de Janeiro a Niterói, com seu vão
central, novamente o “maior do mundo”, e assim por diante. Enfim, todo o discurso sobre
ocidental”.
79
MELO FILHO, Murilo. O Brasil para o Presidente Médici ver. Manchete, ano 17, n. 916, 8 nov. 1969. p.
92-105.
80
MELO FILHO, Murilo. Começa agora o Brasil de Geisel: mais rico, mais sólido, mais confiante.
Manchete, ano 21, n. 1144, 23 mar. 1974. p. 66-84.
81
GEISEL, Ernesto. Discursos. Volume I, 1974. Brasília: Assessoria de Imprensa e Relações Públicas da
Presidência da República, 1975. p. 128.
82
Ver FICO, Carlos. Op. cit.
40
pequenos filmes televisivos, toda uma tradição de promessas seculares sobre um Brasil
grandioso, líder no mundo, beneficiado por uma natureza pujante. Um país poderoso
habitado por uma sociedade cordial. Uma democracia racial permeada pela benevolência
(Porque me ufano do meu país, de 1901), de Stefan Zweig (Brasil país do futuro, de
1941) e as teses sobre a escravidão benevolente de Gilberto Freyre (Casa grande &
senzala, de 1933) além de toda a tópica secular sobre a grandiosidade natural. Embaladas
imagens que ficaram da AERP são as de um tempo novo, de construção, iniciado pela
ditadura; de famílias felizes que cuidavam dos jovens e dos idosos; de trabalhadores bem
A positividade de todas essas imagens, como é fácil perceber, não estava adstrita ao
social brasileiro, elas foram eficazes naquele momento e continuam a sê-lo, não
ridículo: ela poderia legislar através de “decretos reservados”, sobre cujo conteúdo a
encobrindo, com uma capa legal, a sua completa ilegitimidade. Esta interpretação não é
diversões públicas ou a propaganda política (que sempre foi chamada pelo eufemismo de
83
Os treze “decretos reservados”, publicados entre 1971 e 1985, trataram, sobretudo, de assuntos
relacionados à comunidade de segurança e de informações e aos problemas de segurança nacional.
42
“relações públicas”), o regime militar conseguiu mobilizar a seu favor uma grande
uma imagem positiva do período para as pessoas comuns. De outro lado, ao ocultar a
generalizadamente.