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Em seu livro, Castro Rocha busca se afastar das ideias mais conhecidas sobre as guerras
culturais, como aquelas que orbitam o trabalho do sociólogo americano James D.
Hunter, buscando a especificidade da guerra cultural empregada pela militância
bolsonarista no Brasil, da qual fazem parte alguns dos influenciadores alvos de
mandados de busca e apreensão da Polícia Federal no chamado inquérito das fake news.
Para ele, o tripé fundamental que alimenta a mentalidade desses grupos é
constituído pelo discurso revanchista e revisionista sobre o golpe de 1964, que formou o
projeto Orvil, o Livro Secreto do Exército; a Doutrina de Segurança Nacional, que traz a
ideia do inimigo interno que deve ser eliminado; e a popularização do que ele chama de
retórica do ódio, promovida pelo escritor Olavo de Carvalho.
Em entrevista à Agência Pública, Rocha relaciona esses elementos e alerta para a
possível radicalização da militância bolsonarista ante o colapso do governo. “Sem
guerra cultural, não há bolsonarismo. Mas com guerra cultural não pode haver governo
Bolsonaro”, afirma.
Reprodução
João Cezar Castro Rocha é professor titular de literatura comparada da UERJ e estuda a
guerra cultural bolsonarista
Mas nessa guerra cultural que o senhor descreve haveria também essa ideia de
eliminação? Ela se daria no plano físico ou num plano moral, de destruição de
reputações?
Eu me fiz essa pergunta também. Como você faz para traduzir essa Doutrina de
Segurança Nacional para tempos democráticos? Tenho duas hipóteses. Uma delas você
já anunciou: a militância virtual bolsonarista realiza massacres de reputação com uma
violência e virulência inéditas no Brasil. Destruir reputações não é uma novidade, é algo
que sempre acompanhou a política. Mas a maneira pela qual, de maneira sistemática, a
guerra cultural bolsonarista inventa inimigos em série e realiza rituais expiatórios é uma
coisa muito impressionante. Se você pensar no que foi feito com Gustavo Bebianno, o
general Santos Cruz, com o próprio Mourão, a Joice Hasselmann, agora com o Moro.
De uma hora para outra há uma inversão completa na caracterização do personagem, e a
destruição simbólica que eles sofrem é um equivalente de uma eliminação do ponto de
vista simbólico e individual. Agora, na narrativa do Orvil, a quarta tentativa de tomada
de poder ocorreu pela tentativa de infiltração nas instituições, sobretudo as de cultura:
imprensa, arte e universidade. Não é verdade que por trás, por exemplo, da reunião do
dia 22 de abril o ministro do Meio Ambiente disse com uma desfaçatez muito
impressionante: “Aproveitemos que os olhos da imprensa estão voltados para a Covid e
vamos passar de boiada dispositivos infralegais”? Em dado momento, a ministra
Damares se vira para o então ministro da Saúde Nelson Teich e diz: “Ministro, o senhor
chegou agora no time. No seu ministério há muitos abortistas e feministas, não vamos
permitir que as grávidas que contraíram Covid façam aborto”. Isso é inacreditável. O
ministro da Educação sugere prender os “vagabundos” do Supremo Tribunal Federal.
Todas as ações do governo são de destruição das instituições que correspondem às
instituições assinaladas pela narrativa do Orvil como as que pretendem impor o
comunismo no Brasil. Quando eles falam em extrema imprensa, a matriz narrativa está
no Orvil.
A tradução inesperada da Doutrina de Segurança Nacional tem como correlata a
destruição sistemática das instituições. O que acontece quando você entrega a Fundação
Zumbi dos Palmares a uma pessoa que nega a existência do racismo no Brasil e que
sugere que o Dia da Consciência Negra seja abolido para a criação do dia da
Consciência Humana? É ou não é uma destruição da Fundação Zumbi dos Palmares?
Quando você entrega o Iphan, um dos órgãos mais antigos e longevos da precária
estrutura de cultura no Brasil, para uma blogueira que se define como “turismóloga” é a
mesma coisa. A Fundação Casa de Rui Barbosa, que armazena manuscritos de Clarice
Lispector, de Manuel Bandeira, de Otto Maria Carpeaux, de João Cabral de Melo Neto,
da nata da literatura brasileira, para uma roteirista da TV Record, a Letícia Dornelles,
que não tem qualificação mínima legal para exercer o cargo, é ou não é uma destruição?
Quando a Capes [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior] corta
6 mil bolsas de pós-graduação na calada da noite, é ou não é uma destruição? O CNPq
agora lançou um edital de iniciação científica e retirou do edital a área de humanidades.
Isto nunca aconteceu em nenhum lugar do mundo. É chocante, mas segue a narrativa do
Orvil. Não foram essas as instituições que foram infiltradas por comunistas? Eles não
podem, por enquanto, eliminar inimigos fisicamente. Eu não posso ser eliminado
fisicamente, mas eles podem destruir a universidade para qual eu trabalho. Se o fizerem,
eles estão me eliminando do ponto de vista profissional.
Mas aí não poderia se argumentar que o governo possui uma matriz de valores e
que está nomeando pessoas que sigam esses valores para atuarem nas instituições?
Eu proponho que não. Chegou a hora de nós dizermos com todas as letras que é
um governo de extrema direita, unicamente interessado num projeto autoritário de poder
cuja finalidade última é eliminar todo aquele que pense de forma diversa. Todos os
indícios estão dados. É um projeto de poder muito próximo ao projeto em curso na
Hungria, que é um projeto de democracia na aparência e autoritarismo na prática. Por
exemplo, como compreender o esforço de Jair Messias Bolsonaro de controlar a Polícia
Federal? Porque, além de proteger os seus, ele persegue os adversários. Se um governo
consegue instrumentalizar todas as instituições de Estado a seu favor, não é preciso dar
um golpe, o golpe já está dado. Lançar um edital de iniciação científica e retirar as
humanidades é um gesto que nem a ditadura militar ousou fazer. E aqui não se trata nem
de instrumentalizar instituições, mas sim de destruí-las. A função precípua da guerra
cultural bolsonarista não é imposição de valores deles; não há valores, só há destruição
sistemática das instituições. Veja o que está acontecendo no Meio Ambiente. Há um
desmonte radical de todas as formas de controle e fiscalização. O mesmo acontece em
todas as áreas. A Doutrina de Segurança Nacional de eliminação do inimigo interno está
sendo levada com uma seriedade que nem a ditadura militar teve. Ou nós paramos essa
sanha de destruição, ou o mesmo vai acontecer em todas as áreas. Se em dois, três,
quatro anos nós não tivermos bolsas de iniciação científica para áreas de humanidades,
isso quer dizer que uma geração inteira de alunos não terá bolsas. É muito grave. Além
do que a violência, que parecia ser uma violência puramente digital, está nas ruas agora.
Você viu o que aconteceu ontem [dia 25/5], quando jornalistas da Folha, do Globo, do
Metrópoles simplesmente abandonaram o cercadinho? Você viu a imagem da Folha de
S.Paulo, o teor das agressões dos bolsonaristas? Há ali uma postura física de agressão,
quase de passar as barreiras e agredir os profissionais fisicamente. Semana passada um
cinegrafista de uma associada da rede Globo teve a mão quebrada por um sujeito que
passava na rua. Isso é inconcebível. Eu não questiono a eleição do Jair Messias
Bolsonaro, ela foi legítima, ele teve 57 milhões de votos, mas as políticas públicas não
são legítimas.