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“Quanto maior o colapso do governo, maior a virulência da guerra

cultural”, diz pesquisador da Uerj.


Marcello Casal Jr/Agência Brasil
Para o professor João Cezar de Castro Rocha, uma visão revanchista e
revisionista da história brasileira moldou Bolsonaro e os bolsonaristas; é essa
narrativa que justifica a criação e eliminação de inimigos em série enquanto,
ao mesmo tempo, torna impossível governar
28 de maio de 2020
10:17
Ciro Barros

“A mentalidade bolsonarista não nega apenas a Covid-19, nega também as torturas da


ditadura militar”
“Democracia na aparência e autoritarismo na prática”caracteriza atual projeto de poder
“Não se trata de instrumentalizar as instituições, mas de destruí-las”

João Cezar Castro Rocha, professor titular de literatura comparada da Universidade


do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), vem se dedicando a entender o que ele chama de
guerra cultural bolsonarista. O resultado de sua pesquisa é o livro Guerra cultural e
retórica do ódio: crônicas do Brasil, que deve ser lançado no fim de junho deste ano
pela editora Caminhos. 

Em seu livro, Castro Rocha busca se afastar das ideias mais conhecidas sobre as guerras
culturais, como aquelas que orbitam o trabalho do sociólogo americano James D.
Hunter, buscando a especificidade da guerra cultural empregada pela militância
bolsonarista no Brasil, da qual fazem parte alguns dos influenciadores alvos de
mandados de busca e apreensão da Polícia Federal no chamado inquérito das fake news.
Para ele, o tripé fundamental que alimenta a mentalidade desses grupos é
constituído pelo discurso revanchista e revisionista sobre o golpe de 1964, que formou o
projeto Orvil, o Livro Secreto do Exército; a Doutrina de Segurança Nacional, que traz a
ideia do inimigo interno que deve ser eliminado; e a popularização do que ele chama de
retórica do ódio, promovida pelo escritor Olavo de Carvalho.
Em entrevista à Agência Pública, Rocha relaciona esses elementos e alerta para a
possível radicalização da militância bolsonarista ante o colapso do governo. “Sem
guerra cultural, não há bolsonarismo. Mas com guerra cultural não pode haver governo
Bolsonaro”, afirma.

Reprodução
João Cezar Castro Rocha é professor titular de literatura comparada da UERJ e estuda a
guerra cultural bolsonarista

O senhor entende que há uma guerra cultural especificamente bolsonarista


e que ela difere de um conceito mais amplo de guerras culturais. Quais são os
pilares dessa guerra cultural bolsonarista?
Eu não nego em nenhuma circunstância que há elementos dessa guerra cultural
bolsonarista que são elementos transnacionais, que você vai encontrar na chamada alt-
right americana, vai encontrar no Movement, do Steve Bannon; e há uma série de
técnicas, sobretudo aquelas associadas à utilização muito hábil das redes sociais, que
não são especificamente bolsonaristas ou particularmente brasileiras. Mas o que eu
estou sugerindo, desde março de 2019, é que a guerra cultural bolsonarista é o eixo do
governo. Isto, naquela época, parecia absurdo porque todos atribuíam às políticas
anticorrupção do Sergio Moro e à agenda liberal econômica do Paulo Guedes os pilares
fundamentais [do governo Bolsonaro], mas eu já afirmava que o eixo do governo como
um todo é a guerra cultural bolsonarista.
Qual é o esteio da guerra cultural bolsonarista? O que conformou a mentalidade
de Jair Messias Bolsonaro e seu clã? O Bolsonaro, mais do que um político, é uma
franquia; há uma franquia Bolsonaro de políticos. A mentalidade de Jair Messias
Bolsonaro foi formada pelo Exército brasileiro, mas moldada numa linha muito
particular do Exército, que é marcada pelo ressentimento a partir da repercussão de um
autêntico livro-monumento lançado em 1985 que é o livro Brasil: nunca mais. Esse é
um livro particularmente importante porque denunciou as torturas, as arbitrariedades e
desaparecimento de corpos da ditadura militar de uma forma incontestável. Sob o
patrocínio do cardeal dom Paulo Evaristo Arns, ele principiou em 1979, quando os
advogados de presos políticos tiveram acesso aos processos de seus clientes e ganharam
o direito de ficar com eles durante 24 horas. Eles xerocaram os processos do Superior
Tribunal Militar, reunindo aproximadamente 6 mil páginas, e eis a surpresa: em
processos instruídos pela própria Justiça Militar, isto é pela própria ditadura militar, os
presos denunciaram aos juízes militares as torturas que haviam sofrido. O Brasil: nunca
mais reúne um conjunto de depoimentos de jovens de 20 e poucos anos, extraídos dos
processos da Justiça Militar, em que todos fazem o mesmo relato, alguns dizem que
foram usados como cobaia em aulas de tortura. É impressionante, um livro negro da
ditadura militar.
O livro foi um sucesso absoluto quando lançado, vendeu mais de 100 mil
exemplares e teve enorme repercussão no exterior. Ele ajudou a consagrar, no período
da redemocratização, uma imagem das Forças Armadas associada à repressão, à tortura
e à morte. Isso marcou muito uma geração do Exército brasileiro que, por isso, sempre
teve um projeto revanchista, baseado num processo revisionista. É por isso que na
mentalidade bolsonarista nega-se a existência de tortura, nega-se que o coronel Carlos
Alberto Brilhante Ustra, um dos piores torturadores da história da humanidade, tenha
torturado. A mentalidade bolsonarista não nega apenas a Covid-19, nega também as
torturas da ditadura militar.
Então forma-se aí uma mentalidade revisionista e revanchista no Exército
porque considera que os militares venceram a batalha, no golpe de 1964, mas perderam
a guerra, a guerra pela opinião pública. O que o Exército fez? Resolveu devolver na
mesma moeda. De 1986 a 1989, sob a liderança do então ministro do Exército do José
Sarney, o Leônidas Pires Gonçalves, os militares compilaram documentação, sobretudo
de um órgão de repressão, o CIE [Centro de Informações do Exército], privilegiando o
que consideraram ser os crimes da luta armada no Brasil. E, de fato, a luta armada de
esquerda no Brasil matou inocentes. O primeiro grande atentado da luta armada no
Brasil foi cometido no aeroporto de Guararapes, no Recife, em 1966, onde o general
Costa e Silva chegaria de avião. Colocou-se uma bomba de grande letalidade, a bomba
explodiu no aeroporto, matou um jornalista, um militar, deixou muitos feridos, e o
general Costa e Silva acabou indo de carro para o Recife porque o avião dele teve uma
pane. Isso tem nome: é terrorismo. Eu sou de esquerda, mas é preciso ser
intelectualmente honesto. Os militares formaram então o projeto Orvil, que é livro ao
contrário, coisa bem de militar. É literalmente o Brasil: nunca mais de cabeça pra baixo,
não são mais os crimes da ditadura, mas sim os da luta armada. É uma lista longa de
grupos armados, dos desmontes desses grupos e dos crimes que os militares consideram
que eles cometeram.
Mas o mais importante está no subtítulo do livro, onde está dito: “tentativas de
tomada do poder”. No plural: tentativas. Quem tentou tomar o poder? A esquerda. Mas,
se está no plural, quantas tentativas ocorreram? Segundo o Orvil, quatro vezes. Eles
estabelecem uma cronologia para a história republicana que é puro delírio, mas justifica
plenamente a mentalidade bolsonarista. Nessa reunião agora, do dia 22 de abril, em um
momento inesperado, o Bolsonaro diz a seguinte frase: “Se eles tivessem vencido em
1964, vocês hoje teriam sorte de cortar cana e ganhar US$ 20 por mês”. Parece uma
frase absolutamente lunática: estamos em 2020, passamos 56 anos desde 1964. Àquela
altura, o Brasil já contava com praticamente 50 mil casos e 3 mil mortes de Covid-19
notificadas. Como assim, do nada, numa reunião para tratar da retomada econômica
após a pandemia, como é possível que ele tenha dito essa frase?
Mas isso está tudo no Orvil. É a retórica do Orvil, uma retórica que prepara um
golpe. É preciso levar a sério. Na introdução do Orvil, eles dizem que a história
republicana brasileira, desde 1922, é uma tentativa constante de tomadas de poder pelos
comunistas para criar no Brasil uma ditadura do proletariado que, dadas as dimensões
continentais, tornariam o Brasil uma China tropical. A cronologia é assim: a primeira
tentativa de tomada do poder, segundo eles, foi de 1922, com a criação do Partido
Comunista no Brasil, a 1954, com a ebulição política após o suicídio de Getúlio Vargas;
a segunda tentativa foi a radicalização política que houve entre 1954 e 1964, com as
Ligas Camponesas do Francisco Julião, a retórica radical do Brizola, o discurso de Luís
Carlos Prestes no Pacaembu às vésperas do golpe de 1964; a terceira foi entre 1964 e
1974, com a luta armada no Brasil, a guerrilha do Araguaia. E aí vem a quarta tentativa,
que eles dizem ser a mais perigosa de todas. Eles citam Herbert Marcuse [filósofo
alemão] e, embora não citem [o filósofo italiano] Gramsci, descrevem como a quarta
tentativa de tomada de poder a infiltração das instituições, sobretudo de cultura, para
moldar uma mentalidade diversa que seria propícia ao advento do comunismo que viria,
não pela luta armada, mas pelas eleições. Isto é ou não é o discurso integral do governo?
Quando eles dizem que o Brasil está virando comunista, como é possível imaginar isso?
Como imaginar que os governos petistas eram comunistas? Não é um delírio, é essa
matriz narrativa do Orvil. Se você aceita essa narrativa, o que decorre é um segundo
ponto: a Doutrina de Segurança Nacional.
O senhor se refere àquela ideia, adotada pela ditadura, de transpor para o
ambiente interno do país a lógica de guerra de eliminação do inimigo?
Exatamente. Na narrativa do Orvil, não houve um único dia em que o
movimento comunista internacional não tenha tentado impor uma ditadura do
proletariado visando transformar o Brasil numa China tropical. Se, de 1922 até hoje, há
a tentativa de tomada do poder, é preciso que haja uma contrapartida de defesa, a
Doutrina de Segurança Nacional. Que não é uma invenção da ditadura militar brasileira:
foi desenvolvida no âmbito da Guerra Fria e existe em outros países. Ela prevê
condições específicas para a defesa da integridade da nação quando atacada por um
inimigo externo. O direito público internacional criou o chamado direito de
conservação, que estabelece que, se uma nação é atacada por outra com a finalidade de
ser subjugada, a nação atacada tem todo o direito de usar os meios necessários para
repelir a agressão, ainda que para fazê-lo seja necessária a eliminação do inimigo
externo. É uma ideia justa, de legítima defesa. A Doutrina de Segurança Nacional
adaptou essa ideia ao ambiente interno, de que o inimigo externo deve ser eliminado
para a eliminação do inimigo interno, que é o subversivo comunista. Como o subversivo
comunista na narrativa do Orvil está a serviço do movimento comunista internacional,
ele é em alguma medida externo e, portanto, uma vez identificado, o que fazer com ele?
Eliminar. Ponto. Eliminar.

“Sem guerra cultural, não há bolsonarismo”,


afirma Rocha. Ele é autor do livro Guerra
cultural e retórica do ódio: crônicas do Brasil,
que será lançado em junho

Mas nessa guerra cultural que o senhor descreve haveria também essa ideia de
eliminação? Ela se daria no plano físico ou num plano moral, de destruição de
reputações?
Eu me fiz essa pergunta também. Como você faz para traduzir essa Doutrina de
Segurança Nacional para tempos democráticos? Tenho duas hipóteses. Uma delas você
já anunciou: a militância virtual bolsonarista realiza massacres de reputação com uma
violência e virulência inéditas no Brasil. Destruir reputações não é uma novidade, é algo
que sempre acompanhou a política. Mas a maneira pela qual, de maneira sistemática, a
guerra cultural bolsonarista inventa inimigos em série e realiza rituais expiatórios é uma
coisa muito impressionante. Se você pensar no que foi feito com Gustavo Bebianno, o
general Santos Cruz, com o próprio Mourão, a Joice Hasselmann, agora com o Moro.
De uma hora para outra há uma inversão completa na caracterização do personagem, e a
destruição simbólica que eles sofrem é um equivalente de uma eliminação do ponto de
vista simbólico e individual. Agora, na narrativa do Orvil, a quarta tentativa de tomada
de poder ocorreu pela tentativa de infiltração nas instituições, sobretudo as de cultura:
imprensa, arte e universidade. Não é verdade que por trás, por exemplo, da reunião do
dia 22 de abril o ministro do Meio Ambiente disse com uma desfaçatez muito
impressionante: “Aproveitemos que os olhos da imprensa estão voltados para a Covid e
vamos passar de boiada dispositivos infralegais”? Em dado momento, a ministra
Damares se vira para o então ministro da Saúde Nelson Teich e diz: “Ministro, o senhor
chegou agora no time. No seu ministério há muitos abortistas e feministas, não vamos
permitir que as grávidas que contraíram Covid façam aborto”. Isso é inacreditável. O
ministro da Educação sugere prender os “vagabundos” do Supremo Tribunal Federal.
Todas as ações do governo são de destruição das instituições que correspondem às
instituições assinaladas pela narrativa do Orvil como as que pretendem impor o
comunismo no Brasil. Quando eles falam em extrema imprensa, a matriz narrativa está
no Orvil.
A tradução inesperada da Doutrina de Segurança Nacional tem como correlata a
destruição sistemática das instituições. O que acontece quando você entrega a Fundação
Zumbi dos Palmares a uma pessoa que nega a existência do racismo no Brasil e que
sugere que o Dia da Consciência Negra seja abolido para a criação do dia da
Consciência Humana? É ou não é uma destruição da Fundação Zumbi dos Palmares?
Quando você entrega o Iphan, um dos órgãos mais antigos e longevos da precária
estrutura de cultura no Brasil, para uma blogueira que se define como “turismóloga” é a
mesma coisa. A Fundação Casa de Rui Barbosa, que armazena manuscritos de Clarice
Lispector, de Manuel Bandeira, de Otto Maria Carpeaux, de João Cabral de Melo Neto,
da nata da literatura brasileira, para uma roteirista da TV Record, a Letícia Dornelles,
que não tem qualificação mínima legal para exercer o cargo, é ou não é uma destruição?
Quando a Capes [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior] corta
6 mil bolsas de pós-graduação na calada da noite, é ou não é uma destruição? O CNPq
agora lançou um edital de iniciação científica e retirou do edital a área de humanidades.
Isto nunca aconteceu em nenhum lugar do mundo. É chocante, mas segue a narrativa do
Orvil. Não foram essas as instituições que foram infiltradas por comunistas? Eles não
podem, por enquanto, eliminar inimigos fisicamente. Eu não posso ser eliminado
fisicamente, mas eles podem destruir a universidade para qual eu trabalho. Se o fizerem,
eles estão me eliminando do ponto de vista profissional.

Mas aí não poderia se argumentar que o governo possui uma matriz de valores e
que está nomeando pessoas que sigam esses valores para atuarem nas instituições?
Eu proponho que não. Chegou a hora de nós dizermos com todas as letras que é
um governo de extrema direita, unicamente interessado num projeto autoritário de poder
cuja finalidade última é eliminar todo aquele que pense de forma diversa. Todos os
indícios estão dados. É um projeto de poder muito próximo ao projeto em curso na
Hungria, que é um projeto de democracia na aparência e autoritarismo na prática. Por
exemplo, como compreender o esforço de Jair Messias Bolsonaro de controlar a Polícia
Federal? Porque, além de proteger os seus, ele persegue os adversários. Se um governo
consegue instrumentalizar todas as instituições de Estado a seu favor, não é preciso dar
um golpe, o golpe já está dado. Lançar um edital de iniciação científica e retirar as
humanidades é um gesto que nem a ditadura militar ousou fazer. E aqui não se trata nem
de instrumentalizar instituições, mas sim de destruí-las. A função precípua da guerra
cultural bolsonarista não é imposição de valores deles; não há valores, só há destruição
sistemática das instituições. Veja o que está acontecendo no Meio Ambiente. Há um
desmonte radical de todas as formas de controle e fiscalização. O mesmo acontece em
todas as áreas. A Doutrina de Segurança Nacional de eliminação do inimigo interno está
sendo levada com uma seriedade que nem a ditadura militar teve. Ou nós paramos essa
sanha de destruição, ou o mesmo vai acontecer em todas as áreas. Se em dois, três,
quatro anos nós não tivermos bolsas de iniciação científica para áreas de humanidades,
isso quer dizer que uma geração inteira de alunos não terá bolsas. É muito grave. Além
do que a violência, que parecia ser uma violência puramente digital, está nas ruas agora.
Você viu o que aconteceu ontem [dia 25/5], quando jornalistas da Folha, do Globo, do
Metrópoles simplesmente abandonaram o cercadinho? Você viu a imagem da Folha de
S.Paulo, o teor das agressões dos bolsonaristas? Há ali uma postura física de agressão,
quase de passar as barreiras e agredir os profissionais fisicamente. Semana passada um
cinegrafista de uma associada da rede Globo teve a mão quebrada por um sujeito que
passava na rua. Isso é inconcebível. Eu não questiono a eleição do Jair Messias
Bolsonaro, ela foi legítima, ele teve 57 milhões de votos, mas as políticas públicas não
são legítimas.

O senhor defende que há três pilares: além da narrativa do Orvil e da Doutrina de


Segurança Nacional, há a popularização de uma retórica de ódio que partiu em
boa medida do escritor Olavo de Carvalho. Como esse terceiro elemento se soma a
esse quadro que o senhor está defendendo?
Esse é o tripé que eu estou montando, mas uma armadilha na qual eu não vou
cair é discutir a filosofia do Olavo de Carvalho. Para mim, ele não tem filosofia alguma.
O que me interessa assinalar é que, ao longo de uma pregação de quase duas décadas,
ele criou o que eu chamo de sistema de crenças Olavo de Carvalho. Esse sistema de
crenças é uma espécie de ponto de fuga que potencializa ao máximo os elementos do
Orvil e da Doutrina de Segurança Nacional. Ele desenvolveu com muita habilidade uma
retórica do ódio.
Qual a finalidade do Olavo de Carvalho, um senhor de mais de 70 anos, se dar o
trabalho de, quando ele tem um desafeto, mudar o nome da pessoa? Eu, por exemplo,
que sou João Cezar de Castro Rocha, virei João Cezar Castrado ou Brocha, Chato de
Galocha. É tão infantil que eu acho graça. Ele tem reduzido a língua portuguesa a dois
verbos: o verbo tomar, sabemos onde, e o verbo ir, sabemos aonde, não é mesmo? Que
finalidade há nisso?
O Olavo de Carvalho é uma pessoa de cultura superior, uma pessoa que leu
muito. Não faz sentido não levar a sério o que ele está fazendo. O que eu estou
propondo é que a retórica do ódio traduz a Doutrina de Segurança Nacional para a
linguagem midiática das redes sociais. Veja, quando eu modifico o nome de uma pessoa
de forma a ridicularizá-la, o que eu estou fazendo senão uma desqualificação que
nulifica a pessoa? Não se trata de uma desqualificação cuja finalidade é eliminar o
outro?
Além disso, há uma outra base nessa retórica do ódio do Olavo de Carvalho, que
eu chamo de hipérbole descaracterizadora. Funciona assim: o Olavo diz: “Nunca antes
na história da humanidade houve um ataque contra um filósofo como o que acontece
comigo. Contra mim já se escreveram 100 mil páginas em 15 línguas”. É uma hipérbole
tão descaracterizadora porque é óbvio que não há nenhuma possibilidade de que haja na
face da terra 100 mil páginas contra o Olavo de Carvalho, muito menos em 15 idiomas.
Mas qual o efeito produzido por essa hipérbole? Você nulifica o pensamento. Porque ou
você adere, ou você recusa, não tem pensamento possível. Só há pensamento quando há
mediação. A estratégia do Olavo, na retórica do ódio, é, de um lado, uma
desqualificação que torna o outro um nada, e do outro, um conjunto de hipérboles que
inviabiliza o pensamento, porque suprime as mediações. Agora, tem uma armadilha
maluca no Olavo de Carvalho: ele usa outro estratagema para inviabilizar o pensamento.
Diz assim: “Não é possível fazer uma análise da minha obra lendo apenas um texto, é
preciso ler toda a obra, assim como todos os tweets, os posts do Facebook e ter escutado
todas as aulas do meu curso de filosofia”. Mas nem se fosse Deus na face da terra
mereceria tanto esforço. Então, para analisá-lo, você tem que ter lido toda a obra dele e
se, ainda assim, você não concordar é porque você foi educado pelo método Paulo
Freire, então você é um analfabeto funcional. Você assistiu um vídeo pavoroso em que
há enfermeiras e enfermeiros na praça dos Três Poderes protestando pacificamente para
chamar atenção das autoridades para a vulnerabilidade dos profissionais de saúde na
pandemia? Ali há um senhor absolutamente alucinado que entra no quadro e grita para
uma enfermeira: “Você é uma analfabeta funcional!”. Ele repete isso quatro vezes em
mais ou menos 90 segundos. Ora, é o vocabulário inventado pelo Olavo de Carvalho, é
o sistema de crenças dele, que parte de uma teoria conspiratória que casa perfeitamente
com o Orvil. E o esteio da preocupação do Olavo de Carvalho, que já foi membro do
Partido Comunista Brasileiro, já foi astrólogo, já foi membro de uma tariqa [espécie de
seita esotérica muçulmana], se reinventou como professor de filosofia e agora como
ativista político, são técnicas mentais de manipulação psíquica. Esse é o eixo
permanente de preocupações de Olavo de Carvalho, e isso não é uma interpretação
minha. No meu livro eu faço uma colagem de passagens dos livros dele em que isso
aparece. O sistema de crenças Olavo de Carvalho explodiu na cultura brasileira com
data marcada: 2015. Nas manifestações de 2015, surgiu uma frase e gritada por
manifestantes: “Olavo tem razão!”. Você acha que essas pessoas todas leram Olavo de
Carvalho? Claro que não. Mas um sistema de crenças não é contestável pela realidade, é
um sistema lógico autocentrado que, quanto mais atacado, mais se fortalece. As pessoas
se convencem de que Olavo está sendo atacado porque tem razão. Há uma convergência
dos três elementos: a Doutrina de Segurança Nacional, o Orvil e essa retórica do Olavo
de Carvalho. Esta popularizou as outras duas. Você nunca viu um cartaz escrito “Orvil
tem razão”, mas você já viu “Olavo tem razão”. E parte considerável do que Olavo
propõe em sua obra, de uma infiltração gramsciana para a tomada do poder, está no
Orvil.
Aí há um tripé muito poderoso. Os dois primeiros [Orvil e Doutrina de
Segurança Nacional] alimentam a mentalidade bolsonarista e o próprio Exército. O
general Mourão homenageou Ustra em sua despedida do Exército. Muitas das atitudes
do general Heleno só são compreensíveis a partir da mentalidade Orvil, de revanchismo
e revisionismo. Olavo foi importante para a direita brasileira nos anos 1990, para criar
uma estrutura de pensamento e difundir uma nova bibliografia, mas, ao se mudar para
os Estados Unidos e entrar nas redes sociais, ele assumiu uma nova persona que criou
esse sistema de crenças. É curioso, porque no livro O imbecil coletivo, de 1996, ele diz
que “o imbecil coletivo” é o surgimento de uma imbecilização de pessoas que eram
muito inteligentes, mas que, como formaram uma hegemonia de pensamento e essas
pessoas não foram contestadas, acabou ocorrendo um processo de imbecilização
coletiva à esquerda. Mas o que ele conseguiu fazer nesse sistema de crenças dele é uma
imbecilização coletiva à extrema direita.
Mas há um problema que decorre de toda essa caracterização que eu fiz até
agora. A guerra cultural bolsonarista é, do ponto de vista de mobilização das massas,
sobretudo as digitais, um fenômeno sem paralelo na história política brasileira recente.
Essa guerra cultural se vale dos sentimentos mais arcaicos da cultura humana; o mais
arcaico de todos, que é a violência, está na superfície da guerra cultural bolsonarista –
não há guerra cultural bolsonarista sem retórica do ódio e sem violência explícita. Nada
é mais primitivo que a invenção constante de inimigos e a promoção de linchamentos, e
a guerra cultural bolsonarista é inteiramente baseada nessa criação sistemática de
inimigos para sua transformação em bodes expiatórios. A massa se une no ódio àquela
figura, mesmo que num momento anterior ela tenha sido idolatrada. O que ocorreu com
o Sergio Moro, para os bolsonaristas, mais radicais é um fenômeno antropológico de
grande alcance, um ritual dos mais arcaicos, que é o de formação de um bode
expiatório. Essa guerra cultural bolsonarista tem uma enorme capacidade de produção
de sentimentos de violência desse sacrifício expiatório, a capacidade que isso tem de
produzir mobilização nós estamos vendo, essa força aglutinadora da violência e do ódio.
Agora, há um paradoxo aqui. Sem guerra cultural, não há bolsonarismo. Mas
com guerra cultural não pode haver governo Bolsonaro. Voltemos à reunião do dia 22
de abril. Destaca-se, num primeiro momento, que há um plano em curso: o plano da
destruição das instituições e supressão de direitos. O ministro Paulo Guedes, por
exemplo, usa um vocabulário que em outras circunstâncias seria impossível imaginar.
Ele diz, se referindo aos funcionários públicos: “Eles acham que nós estamos distraídos,
mas nós vamos lá e colocamos a granada no bolso do inimigo”. E ele completa: “Não
terá aumento salarial até dezembro de 2021”. O inimigo são os funcionários públicos. É
o inimigo a ser explodido, o servidor público. O Ricardo Salles se refere a passar as
boiadas das regulações infralegais. O responsável pela Caixa Econômica se refere ao
não apoio às pequenas empresas. E assim segue. Tem um plano ali. Ao mesmo tempo
que surgem todas essas ideias mirabolantes que correspondem perfeitamente ao plano
da guerra cultural, não há nada decidido do ponto de vista concreto. Não há nenhum
dado objetivo para formalizar políticas. Se há essa capacidade incomum e inédita de
manter massas sob constante excitação, porque o bolsonarismo não governa sem
inimigos criados em série, ele é vazio do ponto de vista do conteúdo. Não se pode criar
inimigos constantemente levando em consideração dados objetivos, mas sem considerar
dados objetivos não há governo. E a situação que nós vivemos [da pandemia] acelerou
muito o processo porque você pode passar quatro anos em disputa narrativa se houver
estabilidade dos indicadores econômicos; agora a morte, a finitude, não supõe
narrativas. Podemos passar anos discutindo se foi golpe ou impeachment, décadas se foi
ditadura ou não, mas não posso passar um minuto discutindo se meu pai morreu. Não
posso passar 30 segundos argumentando que é uma gripezinha, se eu estou entubado. O
caos a que seremos levados pela atual situação e a proximidade da finitude tornarão a
disputa de narrativas ociosa.
Se isso faz sentido, todo cuidado é pouco. Nós nos aproximamos do momento
mais grave da vida brasileira desde a redemocratização. Teremos uma recessão
econômica cuja recuperação não se encontra ainda no horizonte, e o colapso do governo
Bolsonaro é inevitável, porque não se pode governar sem dados objetivos. A armadilha
da guerra cultural é essa: você se mantém numa aparência de êxito permanente, mas
você não consegue fazer nada. Você está totalmente preso na armadilha do seu próprio
êxito aparente, que é virtual e em boa medida alimentado por robôs. Quanto maior o
colapso do governo, maior a virulência da guerra cultural e maior a tendência dessa
guerra virtual transbordar para as ruas. Não dá para governar um país criando inimigos
o tempo todo. Nós estamos enfrentando uma pandemia e o Bolsonaro gasta energia
brigando com Witzel e Doria, aparelhando a Polícia Federal. Se nós temos um
adversário hoje, é a Covid-19, e que o governo Bolsonaro não consiga entendê-lo é uma
prova do que estou dizendo. Esse colapso vai acelerar o processo da violência, as redes
sociais estarão cada vez mais violentas, os bolsonaristas, cada vez mais aguerridos, o
número deles tenderá a diminuir porque só sobrarão os fanatizados, mas estes tenderão a
violências inesperadas e fora de controle. Ao bolsonarismo só restarão duas alternativas:
aceitar o melancólico fracasso de um governo que não chegou sequer a existir, ou partir
para a aventura do golpe autoritário. Eu creio que eles partirão para essa aventura. Há
tentativas de armar cidadãos em todo o país, a instrumentalização de polícias militares
em alguns estados brasileiros, há a literal “quartelização” do governo – há mais
militares no governo Bolsonaro do que em todos os governos da ditadura militar em 20
anos. Nós vivemos hoje a iminência, um risco sério de um golpe autoritário, que será
mais violento que a ditadura militar porque esse desejo de eliminação das instituições
não fazia parte da ditadura militar. A ditadura militar queria criar instituições à sua
imagem e semelhança. O bolsonarismo pretende destruir instituições. Nós só poderemos
deter esse processo se compreendermos a lógica perversa que domina esse governo.
Precisamos reagir para a preservação da democracia e, para isso, não será suficiente a
proliferação insensata de notas de repúdio. Se as Forças Armadas embarcarem na
aventura golpista do Bolsonaro, a situação será tenebrosa. As instituições estão
demorando a reagir.

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