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semestree de 2012

Ideação Revista do Centro de Educação e Letras ENSAIO


p.178-188 2º semestr

SOBRE O ANTI-HUMANISMO E O ANTI-ILUMINISMO


CONTEMPORÂNEO

Tiago Leite Costa1

Resumo: Este texto pretende resumir alguns dos principais argumentos


da crítica contemporânea ao pensamento de tradição humanista-iluminista
nº 2

para, em seguida, comentá-los. Palavras-chave: iluminismo;


humanismo; crítica contemporânea.
v. 14

Abstract: This paper aims to summarize some of the main arguments


of contemporary criticism of the Enlightenment-humanistic thought and
DO IGUAÇU

review them. Keywords: enlightenment, humanism, contemporary


criticism
FOZ

1. Introdução
DE
UNIOESTE - CAMPUS

No meio do século passado, Sartre publicou uma famosa


conferência na qual se defendia das acusações de ser um anti-
humanista. Na ocasião, buscou diferenciar duas acepções de
humanismo. A primeira, oriunda do iluminismo, embora
abdicasse da noção de Deus, não abria mão da ideia de que a
DA

essência humana precedia sua existência e, dessa forma, tomava


LETRAS

o homem como um fim. Sartre zombava dos defensores dessa


ideia que se sentiam honrados como homens, devido aos atos
E
EDUCAÇÃO

particulares de alguns homens. “Este humanismo é absurdo,


dizia ele, porque só um cão ou um cavalo poderia emitir um
juízo de conjunto sobre o homem e declarar que o homem é
DE

espantoso” (SARTRE, 1970, p.266-67). Para ele, o único


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humanismo possível era aquele que afirmava que não há outro


universo que não o da subjetividade humana. O homem,
DO

portanto, longe de ser um fim, é sempre um início, isto é, sua


REVISTA

UNIOESTE
aaaCampusaaa
178 1
Mestre em Comunicação Social pela PUC-RJ e atualmente é FOZ DO IGUAÇU
doutorando em Literatura, Cultura e Contemporaneidade, pelo V. 14 - nº2 - p. 178-188
departamento de Letras da PUC-RJ. Endereço Eletrônico: 2º sem. 2012
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tiagoleite79@gmail.com
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existência precede a idéia que constrói sobre sua essência. Nesse
sentido, ele se considerava um existencialista-humanista.

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Sartre não foi o primeiro a rejeitar o conceito iluminista
de Humanidade. O humanismo do esclarecimento, apesar de
todo o prestígio que gozou do século XVIII em diante, sempre
contou com ilustres adversários, teístas ou ateístas. Porém, esse
discurso pronunciado em 1946, logo após o fim da Segunda
Guerra Mundial, parece revelar aos olhos contemporâneos o
prenúncio (ou diagnóstico) do declínio de uma visão de mundo
que por alguns séculos teve enorme ascendência sobre o

nº 2
ocidente.
Hoje em dia, o discurso anti-humanista tem

v. 14
experimentado uma difusa onda de popularidade que se origina
de fontes variadas e aponta para diferentes destinos. Apesar de
não haver um consenso positivo sobre qual seria a melhor

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alternativa teórica e prática ao ideário iluminista, é notória a
falência de sua autoridade diante dos sucessivos ataques a seus
preceitos filosóficos e políticos.

FOZ
No meio das ciências humanas, em particular, a

DE
conversão maciça a essas críticas se verifica pela proliferação

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da condenação enfática a todo e qualquer vestígio de
racionalismo, assim como pela derrocada da crença iluminista
na construção de um mundo justo e igualitário. A convicção
na aliança entre razão e justiça social, preponderante até pouco
tempo, adquiriu status de lenda ingênua e alienante.
DA
Em função disso, investe-se contra as obsoletas noções LETRAS
de sujeito cartesiano e de tempo linear; contra as ultrapassadas
teorias políticas modernas diante da hegemonia inconteste do
E
EDUCAÇÃO

capitalismo de mercado; contra seu entendimento superficial


das relações entre linguagem, conhecimento e poder; seu atraso
estético etc. Embora, na maior parte das vezes, as reivindicações
DE

e argumentos não sejam propriamente contemporâneos, o que


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se constata é a estabilização de um novo vocabulário para a


abordagem de velhos temas filosóficos.
DO

Para alguns anti-iluministas e anti-humanistas atuais,


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deveríamos pensar em identidades fluidas, em tempos


fragmentados, nos movimentos micro-políticos e nas
intensidades afetivas para evitar as avaliações estreitamente
ideológicas da vida moral e da realidade social. No que concerne 179
ao campo estético, propõe-se que abandonemos as
interpretações logocêntricas, excessivamente presas a conteúdos
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estáveis e a propósitos autorais, em favor da apreensão/expressão
de uma arte nas fronteiras do irrepresentável, situada em
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terrenos proto-intencionais e proto-semânticos, que possibilite


a experimentação de novos modos de afecção-cognição.
Sem dúvida, é impossível ignorar as evidentes
transformações nos costumes, na política, nas tecnológicas e
nas relações com o tempo e espaço, que ocorreram da época
de Sartre para cá. Consequentemente, não há porque negar
valor às conquistas teóricas que nas últimas décadas
desconstruíram as noções de conhecimento como
nº 2

representação, de sujeito cognoscente e de história progressiva.


O que proponho, no entanto, é questionar as reais
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medidas dessas mudanças práticas e teóricas, e em quais


aspectos devem ser comemoradas ou lamentadas. Para começar,
então, esboço uma breve síntese do raciocínio que vem
DO IGUAÇU

descartando a viabilidade do projeto humanista-iluminista, para


depois refletir sobre o mesmo.
FOZ

2. Argumentação
DE
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Pode-se especular que o anti-iluminismo teórico ganhou


força após os desastres políticos do século XX, quando se
popularizou a negação das categorias modernas do pensamento
ocidental. A partir daí, certas convicções que serviram de
justificativa às inúmeras reformas que marcaram a modernidade
DA

têm sido constantemente abaladas, quando não, inteiramente


LETRAS

renegadas.
Podemos destacar, de início, a importância adquirida
E
EDUCAÇÃO

pelos discursos anti-representacionistas. O conjunto de


questionamentos à premissa da relação de representação entre
pensamento e realidade ficou, retroativamente, conhecido nas
DE

artes, filosofia e literatura modernas como “crise da


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representação”. As raízes dessa “crise” são antigas e controversas.


Logo, importa-nos destacar aqui apenas as repercussões
DO

contemporâneas do dilema. Estas, de uma forma geral,


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convergiram para a desconfiança radical de tudo aquilo que,


até então, os ocidentais modernos definiram como verdades
racionais. Assim, as últimas décadas têm convivido com um
180 onipresente desejo de desarticulação da idéia de que nosso
conhecimento do mundo se faz pela representação especular
da realidade, ou seja, de que existem referências cognitivas
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suficientemente seguras para que possamos afirmar o
alinhamento entre a realidade e aquilo que tomamos como

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verdade.
É desnecessário dizer que, nesse caminho, o pensamento
iluminista teve suas intenções legislativas, fundadas sobre termos
racionais e universalistas, colocadas sob graves suspeitas. Da
mesma forma, o projeto humanista de justiça e liberdade foi
questionado em suas bases, por ter sido arquitetado sobre
determinações (lingüísticas, culturais, políticas) puramente
contingenciais, que, segundo constatou-se, não passavam de

nº 2
sentidos hegemônicos, resultantes de momentâneas
estabilizações dentro de um confronto de poderes e desejos

v. 14
incessantes, e não do sólido progresso das descobertas racionais
acerca da realidade do mundo e da verdade dos homens, como
os “esclarecedores” desejaram crer um dia.

DO IGUAÇU
Racionalidade e verdade, com efeito, foram dois termos
que passaram a figurar em muitas teorias pós-modernas como
sinônimos de seus sentidos opostos, isto é, como mentira

FOZ
arbitrária. Tornou-se comum pensar que a verdade (quando se

DE
assume a existência de alguma) não pode ser medida pela razão,

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e que esta, longe de ser um critério extra-histórico, provou ser
apenas mais um véu por trás do qual se escondem as complexas
teias das instituições, dos afetos e da linguagem.
Para os adeptos desse ponto de vista, devemos abandonar
os critérios racionais delineadores de nossa identidade, em favor
DA
dos processos múltiplos e dispersos de nossas potências vitais, a LETRAS
fim de nos tornarmos independentes das configurações
cristalizadas e totalizantes da mentalidade dualista platônica.
E
EDUCAÇÃO

Os anti-iluministas menos radicais até admitem o contato


com algo próximo da “verdade”, da “realidade”, ou ainda com
alguma referência que nos permita diferenciar o “bem” do “mal”.
DE

Entretanto, como bem observou Terry Eagleton (EAGLETON,


CENTRO

2009), isto só parece ser concebível em solos irrepresentáveis e


fugidios. Em geral, as experiências acessíveis e cambiáveis
DO

passaram a ser vistas com relutância, e como sinônimo de algo


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empobrecido e sem valor ético e estético significativo. Apenas


nos paroxismos, aporias e paradoxos é que o sujeito atual parece
ter permissão para acessar qualquer coisa de autêntico no ser
humano. 181
Aqui podemos começar a levantar algumas questões.
Podemos lembrar, por exemplo, que o sujeito moderno, linear,
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racional e transparente a si próprio (ou o “sujeito unificado”),
contra o qual advogam as chamadas teorias da diferença, jamais
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existiu plenamente, mesmo no auge do iluminismo e do


cientificismo modernos. Nesse sentido, se por um lado Kant
demonstrava que todo conhecimento possível (incluindo a auto-
compreensão desse sujeito) é resultado de aproximações
limitadas e que, portanto, todo discurso, sem exceção, deveria
ser submetido à crítica para ser digno de credibilidade; por
outro, se pensarmos na ciência moderna como uma das
principais adeptas do racionalismo, é importante lembrar que
nº 2

ela sempre se definiu como experimental ou aplicada, ficando


explícito nestes dois termos a incompletude de seu escopo.
v. 14

Na filosofia ou na ciência, o esforço racionalista foi o de


ampliar o conhecimento do mundo e do homem (independente
das boas ou más intenções de seus realizadores) partindo do
DO IGUAÇU

pressuposto da falibilidade de qualquer forma de conhecimento


ou crença humana e, consequentemente, da negação de
qualquer autoridade imposta, fechada ao debate, a revisão ou
FOZ

à refutação.
DE

Além disso, mesmo os mais decididos racionalistas


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estiveram sempre sob a vigilância crítica do pensamento


empirista2, religioso, tradicionalista e, mais tarde, do romantismo
e do modernismo, para citar alguns exemplos. Essas tensões
comprovam que, diferente do que muitas teorias pós-modernas
costumam difundir, a modernidade nunca aceitou a razão como
DA

o único argumento para formar suas convicções sobre o que


LETRAS

era o sujeito e o mundo, e o que era melhor para a sociedade e


para os indivíduos em particular. Ao contrário, a própria razão
E
EDUCAÇÃO

se colocou sob suspeita por diversas vezes em nome de


convenções culturais, crenças religiosas e liberdades individuais
inexplicáveis racionalmente, mas que pareciam ser
DE

consensualmente desejáveis ou aceitáveis. Note-se, entretanto,


CENTRO

que a razão, ao se criticar como juíza absoluta, paradoxalmente,


se afirma como mediadora do debate, uma vez que dogmas
DO

não têm, por definição, a possibilidade de serem refutados.


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Diante disso, é interessante lembrar o comentário de


Humberto Eco, ao afirmar que o problema não é negar a
racionalidade, mas pôr as más razões em condições de não
182 prejudicar. Esse discernimento, afirma ele, assim como a
2
Não custa lembrar que Kant acordou de seu “sonho dogmático” após ler a obra de
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Hume
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distinção entre as noções de razão e de verdade, não se chama
crise das referências, mas simplesmente, crítica. Segue abaixo

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uma síntese de seu argumento:
Tomemos como exemplo uma coisa agradável como a crise de
representação; mesmo admitindo-se que quem fala dela tenha uma
definição de representação (coisa que frequentemente não ocorre),
se é que entendo bem o que eles querem dizer – e, isto é, que não
conseguimos construir e trocar entre nós imagens do mundo que
tenham certeza de adequar a própria forma, admitindo-se que ela
exista, deste mundo -, pelo que sei a definição dessa crise iniciou-se

nº 2
com Parmênides, continuou com Górgias, deu não pouca dor de
cabeça a Descartes, constrangeu a todos com Berkeley e Hume e
assim por diante, até a fenomenologia (...). Mesmo que se admita,

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contudo, a antiguidade da crise, continuo não entendendo o papel
que se quer que ela desempenhe. Eu cruzo uma avenida com sinal

DO IGUAÇU
vermelho, o guarda apita e depois me multa (a mim e não a outrem).
Como pode acontecer tudo aquilo se o que está em crise é a ideia
do sujeito, a de signo e a de representação recíproca? (ECO, 1984,
p.149)

FOZ
Como se pode ver, não é de hoje a suspeita de que nosso

DE
pensamento não reflete a realidade especularmente. Igualmente,

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a exatidão de nossas representações não só foi tomada com
parcimônia e ironia por vários iluministas, como foi alvo do
romantismo, do marxismo, da psicanálise, do modernismo etc.
Assim, quando pensamos criticamente sobre a realidade
social e subjetiva por meio de certas representações, está claro
DA
de que se trata da manipulação de uma abstração que não deve LETRAS
ser (e obviamente não é nunca) substancializada. É óbvio que
não existem entidades materiais perfeitamente delimitadas tais
E
EDUCAÇÃO

como a “sociedade” ou a “história”. Da mesma forma, ninguém


espera encontrar o “inconsciente” freudiano vendo tv no sofá
de casa, ou a “ideologia” de Marx bebendo cerveja num show
DE

de rock. Entretanto, podemos ter certeza de que ambos estão


CENTRO

presentes nas duas situações.


Algumas representações, portanto, poderiam ser tomadas
DO

como conceitos que unificam várias operações feitas com signos


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em um conjunto coerente, e que parecem agir de modo regular


sobre nossas vidas. Como explica Frederic Jameson (JAMESON,
1994), por um lado, essas abstrações possibilitam um certo
distanciamento da vivência imediata dos fenômenos, por outro, 183
servem como uma espécie de caracterização geral de
mecanismos aparentemente autônomos, mas que guardam
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afinidades entre seus domínios. É curioso perceber que, para
alguns críticos contemporâneos, certos conceitos abstratos,
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supostamente anti-identitários, como o “devir”, a “potência”


ou a “diferença” sejam bastante inteligíveis, ao passo que uma
vaga menção às mazelas do capitalismo seja recebida
sardonicamente, como uma opinião caduca, reducionista e
irreal. Em muitos casos, definir o que são representações
totalizadoras parece ser uma questão de gosto.
Quem sabe, então, pudéssemos pensar na razão não como
a velha entidade metafísica platônica que garante acesso ao
nº 2

mundo real, e sim como um instrumento das conversações


caracterizadas pelo debate e pela dialética, mais do que pela
v. 14

imposição e pelo dogma. Desse prisma, a crítica ao racionalismo


estreito é um grande avanço, assim como é fundamental que
estejamos atentos ao caráter construído da imagem do sujeito
DO IGUAÇU

absolutamente delineado em sua identidade, emitindo frases


com significados completamente estáveis e descontextualizados,
sobre uma história linear e progressiva.
FOZ

Não obstante, temos que reconhecer que, em parte, essa


DE

“ficção” logocêntrica fornece uma eficácia comunicativa da


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qual nem sempre podemos abrir mão3. Para dar apenas um


exemplo: como poderíamos ler traduções se não aceitássemos
uma certa estabilidade dos significados emitidos
intencionalmente pelo autor do original?
De modo análogo, podemos entender o humanismo
DA

como uma idéia que, apesar da estratégia equivocada de querer


LETRAS

dar dignidade aos seres humanos a partir de uma igualação


perigosa (essencialista ou biológica), tem garantido, na prática,
E
EDUCAÇÃO

a defesa das diferenças entre os indivíduos e comunidades,


muitas vezes, inclusive, contra o que entendemos ser a frieza
da lógica estritamente racional.
DE

Camus, nos anos 50, chamava a atenção para o fato de


CENTRO

que sua “época via renascer esses sistemas paradoxais que se


empenham em fazer a razão tropeçar, como se na verdade ela
DO

sempre tivesse andado com passos firmes.” (CAMUS, 2001, p.


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36). Com isso, não custa lembrar mais uma vez que as questões
tratadas aqui, de certa forma, extravasam as polêmicas
contemporâneas e remetem a história da cultura ocidental
184 (moderna ou não), e a ideia da razão como instrumento de
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3
Sobre esse assunto ver. (BRITTO, 1996) “Desconstruir para quê?”.
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questionamento à obediência cega à tradição e às crenças
religiosas de cada época.

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Antes de concluir, é fundamental ressaltar que existem
inúmeras abordagens coevas sobre os temas do iluminismo,
humanismo, razão, sujeito, representação etc., nos mais variados
campos de conhecimento (estética, filosofia da linguagem,
antropologia), que nem de longe foram contempladas aqui nesse
artigo. Não pretendo criticar o pensamento pós-moderno como
uma totalidade homogênea, fazendo tábula rasa das inúmeras
diferenças internas às suas teorias. Meu objetivo é, antes de

nº 2
qualquer coisa, realçar um certo descaso comum à boa parte
dessas correntes em relação ao ethos iluminista-humanista de

v. 14
rejeição a todo discurso fechado ao debate e de afirmação da
liberdade de expressão e criação sem restrições, a não ser que
limitem a liberdade do outro.

DO IGUAÇU
Não pretendo, portanto, negar que algumas teorias atuais
como as que afirmam a contingência radical da linguagem,
relativizando o verdadeiro alcance da razão humana, têm

FOZ
forçado nossa imaginação a atuar para além da tradição

DE
representacionista do “sujeito cognoscente / objeto do

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conhecimento”. Não se pode ignorar, igualmente, que as várias
denúncias ao totalitarismo do discurso humanista têm mostrado
o quanto suas causas nobres encobriram e encobrem as mais
vis modalidades de exercício de poder nos níveis institucional
e moral.
DA
O que ressalto é apenas a forma banal pela qual o LETRAS
iluminismo e a modernidade têm sido reduzidos a apenas mais
um ato de fé (nos poderes da razão), com a desvantagem de
E
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crer ingenuamente no progresso. Contra tal argumento, é preciso


levantar uma série de questões adormecidas tais como: a
expansão das liberdades privadas e dos direitos civis decorrentes
DE

da modernidade é ilusório? O crescimento das democracias


CENTRO

(apesar de todos os vícios desse sistema) no lugar das monarquias


absolutistas, teocracias, despotismos militares etc, é uma
DO

mudança para pior? A abolição da escravidão é irrelevante?


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Apesar de toda a destruição oriunda do conhecimento científico,


pensada em larga escala, nossa qualidade de vida, de fato,
piorou?
Segundo Bruno Latour: 185
A dúvida sobre o bom fundamento das boas intenções fez com que
alguns de nós tenham se tornado reacionários de duas formas
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diferentes: é preciso não mais querer acabar com a dominação do
homem pelo homem, dizem alguns; é preciso não mais tentar dominar
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a natureza, dizem outros. Sejamos definitivamente anti-modernos,


dizem todos (LATOUR, 1994, p. 14).

3. Conclusão

Em vista do que foi dito, concluo o artigo questionando


duas tendências políticas ligadas ao atual vocabulário anti-
iluminista. A primeira é a concepção que supõe que os
nº 2

intelectuais têm a missão de andar na vanguarda, de escapar


do senso comum e das regras culturais a qualquer custo. Essa
v. 14

ideia se baseia na formula radical, usualmente de esquerda, de


que se livrar do instituído culturalmente é uma coisa boa por si
só, pois impediria esses intelectuais de serem cooptados pelo
DO IGUAÇU

“sistema” ou qualquer noção relativa. Ora, uma regra a priori


como essa descarta de cara a comunicação, o debate e qualquer
tipo consenso. Além do que, ignora um dado óbvio: nem toda
FOZ

a mudança é positiva e certas permanências podem ser


DE

altamente desejáveis.
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A segunda tendência está ligada ao potencial puritanismo


subjacente aos descentramentos do individualismo declarado.
Por trás de alguns discursos afirmativos, não raro soa o elitismo
ético de uma saída para eleitos, à grosseira versão da divisão
entre senhores e escravos. Ao lado da crítica à hipocrisia dos
DA

lemas sociais humanistas, pode-se ouvir cada vez mais alto um


LETRAS

moralismo intolerante, um cinismo disfarçado de realismo.


Nesse caso, as ferramentas iluministas ainda parecem ter
E
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a utilidade de frear uma antiga e arrogante tradição elitista,


segundo a qual só um seleto grupo de intelectuais, que
geralmente olham o resto da humanidade com desprezo, estão
DE

à altura do verdadeiro “gesto” ético e do “pensamento” complexo


CENTRO

do “Real”, de “Deus” ou da “Arte”.


Apesar de todo o protesto contra o “sujeito”, a “verdade”
DO

e a “razão”, esses intelectuais contemporâneos podem se mostrar


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tão generalistas quanto o pensamento ultrapassado que criticam.


Isto porque preferem a intransigência de suas convicções ao
dialogo. Assim, a frase “o humanismo iluminista é um
186 totalitarismo disfarçado, baseado numa hipocrisia sem limites”
pode surgir acompanhada, facilmente, de uma denúncia feroz
a todo o tipo de julgamento absoluto, totalizante e superficial.
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A duras penas o meio intelectual brasileiro tentou se livrar
dos vícios da submissão colonialista, para depois cair numa

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certa sonolência intelectual da vitimização esquerdista, bastante
influente no meio artístico e acadêmico. Contudo, assim que o
problema se mostrou infinitamente maior e mais complexo do
que ser capitalista ou socialista, parece que se abriram as portas
para um grupo de teóricos intolerantes, esses geralmente de
direita, proclamar seu individualismo como a pura fonte da
sabedoria, enfim livre das trocas ideologizadas.
Por conta disso, ao menos no que diz respeito ao terreno

nº 2
teórico e abstrato, é interessante lembrar que a critica ao
humanismo e à razão como ferramentas de ação social, não faz

v. 14
desaparecer o motivo de seu surgimento: o abuso de autoridade
elitista e a violência desenfreada. Bertrand Russel dizia que:

DO IGUAÇU
se olharmos a história, verificamos com facilidade que os maiores
males que os homens já infligiram a si próprios, foram resultado da
ação de algumas pessoas que estavam absolutamente certas de algo
que na verdade era falso. Agir de forma dogmática na crença de que

FOZ
a verdade é monopólio do seu partido, pode ser a causa de grandes

DE
monstruosidades. (RUSSEL, 1954, p. 31).

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Um pouco de prudência antes de negar ou afirmar de
forma implacável qualquer visão de mundo é, na grande maioria
das vezes, algo desejável. Quanto ao argumento comum à Sartre
e aos intelectuais contemporâneos de que as concepções
humanistas pintam o ser humano como possuidor de uma
DA
bondade e dignidade que, já se verificou, a maioria não tem, LETRAS
diria, lembrando Milan Kundera, que “enquanto os angelicais
destacam-se por seu discurso peculiarmente desprovido de
E
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merda, todo feito de retórica insípida e sentimentos edificantes,


os demoníacos não veem nada a seu redor senão merda”
(KUNDERA, 2010, p36).
DE
CENTRO

Bibliografia
DO

CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Rio de Janeiro. Record, 2005.


REVISTA

CÍCERO, Antônio. Finalidades sem Fim. São Paulo. Cia das Letras,
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EAGLETON, Terry. O problema dos desconhecidos – um estudo da 187
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ECO, Umberto. Viagem na irrealidade cotidiana. Rio de Janeiro: Nova
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JAMESON, Fredric. Espaço e imagem. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1994.


KUNDERA, Milan. A arte do romance. São Paulo: Cia das Letras, 2010.
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RUSSEL, Bertrand. Ensaios impopulares. São Paulo: Comp. Ed.


Nacional, 1954.
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SARTRE, Jean Paul. O existencialismo é um humanismo. Lisboa:


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BRITTO, Paulo Henriques. Desconstruir para quê? . Cadernos de


tradução. Santa Catarina. (UFSC) V.2, N.8, 2001. Disponível em:
FOZ

http://www.journal.ufsc.br/index.php/traducao/article/viewArticle/5883
DE
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Recebido em: 21/06/2012 - Aceito em: 08/11/2012


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