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Trabalho de Antropologia II

Fichamento parcial do livro Homo Hierarchicus, de Louis Dumont

(Entregue originalmente em 07/10/2018)

DUMONT, Louis. Homo Hierarchicus: o sistema das castas e suas implicações. São
Paulo: Edusp, 2008.

Trata-se de uma das mais importantes obras do antropólogo francês Louis


Dumont, na qual ele desenvolve uma inovadora teoria sobre o sistema de castas
existente na Índia.
A presente resenha parcial da obra contempla sua Introdução, o primeiro
capítulo e parte do décimo primeiro.
O autor inicia a obra, em sua Introdução, tratando de preparar o espírito do leitor
ocidental típico, caracterizando esse como desinteressado em um estudo mais
aprofundado sobre a temática, e até mesmo opositor ferrenho do sistema, no caso de
militantes de causas “politicamente corretas”. A essas pessoas, informa que todo
indivíduo ocidental que tenha vivido na Índia, caso tivesse essas ideias preconceituosas
anteriormente, e propugnasse a destruição das castas, muda de ideia ao final da
experiência de lá ter vivido, por passar a entender as funções positivas desempenhadas
pelo sistema, e também por perceber como irrealizável sua erradicação.
A seguir Dumont trata de justificar “os trabalhos dos quais a presente obra faz
parte”, com vistas a “fixar e esclarecer esse ponto para situar e caracterizar a
empreitada” (p. 50) a que ele se dedica:

A etnologia, digamos mais precisamente a antropologia social, só apresentaria


um interesse especial se as sociedades “primitivas” ou “arcaicas” e as grandes
civilizações estrangeiras que ela estuda proviessem de uma humanidade
diferente da nossa. A antropologia dá essa prova, pela compreensão que oferece
pouco a pouco das sociedades e culturas as mais diferentes, da unidade da
humanidade. Ao fazê-lo, ela aclara, evidentemente, de algum modo, nossa
própria espécie de sociedade. Mas é-lhe inerente, e ela às vezes a exprime, a
ambição de chegar a fazê-lo do modo mais racional e sistemático, de realizar
uma “perspectivação” da sociedade moderna com relação àquelas que a
precederam e que com ela coexistem, trazendo assim uma contribuição direta e
central para nossa cultura geral e para nossa educação. Sem dúvida não
paramos aí, mas nessa relação o estudo de uma sociedade complexa, portadora
de uma grande civilização, é mais favorável que o estudo de sociedades mais
simples, social e culturalmente menos diferenciadas. A sociedade indiana pode
ser, desse ponto de vista, tão mais fecunda quanto seja mais diferente da nossa:
pode-se esperar o inicio, bem sinalizado nesse caso, de uma comparação que
será mais delicada em outros casos. (p. 50)

Em seguida, Dumont explica que o sistema de castas é operacionalizado por um


principio social fundamental, para os indianos, que é a hierarquia, à qual nós, ocidentais,
opomos seu principio oposto, a igualdade (ou o igualitarismo). Ele pondera que, numa
dimensão mais ampla, o intuito seria “compreender a natureza, os limites e as condições
de realização do igualitarismo moral e político ao qual estamos vinculados”, mas alerta
que isso não será empreendido na presente obra, a qual se limitará ao estudo da
hierarquia, e mais uma vez tenta prevenir o leitor contra um espírito fechado, que lhe
impeça de apreender intelectualmente outros valores:

Há um ponto que deve ficar bem claro. Entende-se que o leitor pode recusar-se
a sair de seus próprios valores, pode afirmar que para ele o homem começa
com a Declaração dos Direitos do Homem e condenar pura e simplesmente o
que se afasta dela. Ao fazê-lo, ele com certeza marca estreitos limites para si, e
sua pretensão de ser “moderno” fica sujeita a discussão, por razões não apenas
de fato mas também de direito. Na realidade, não se trata aqui, digamo-lo de
maneira clara, de atacar os valores modernos direta nem sinuosamente. Eles
nos parecem, aliás, suficientemente garantidos para que tenham algo a temer
em nossas pesquisas. Trata-se apenas de uma tentativa de apreender
intelectualmente outros valores. Se houver uma recusa a isso, então será inútil
tentar compreender o sistema de castas, e será impossível, no fim das contas,
ter de nossos próprios valores uma visão antropológica. (p. 50)

O autor alude, então, ao erro metodológico que ele buscou evitar, que seria
utilizar, no estudo do sistema de castas, uma categoria teórica da sociologia ocidental, a
saber, “estratificação social”, o que impediria o enriquecimento de nossas próprias
concepções fundamentais sobre a hierarquia naquele sistema, e chama atenção para a
relevância crucial da ideologia na estruturação daquele intrincado sistema social.

Para o momento, propõe-se aqui, em primeiríssimo lugar, tentar compreender a


ideologia do sistema das castas. Ora, ela é diretamente contradita pela teoria
igualitária de que participamos. E é impossível compreender uma, enquanto a
outra - a ideologia moderna - for tomada como verdade universal, não só
enquanto ideal moral e político - o que constitui uma profissão de fé
indiscutível - , mas também como expressão adequada da vida social, o que é
um julgamento ingênuo. (p. 52)

Na segunda seção, intitulada “O individuo e a sociedade”, o antropólogo


introduz a categoria apercepção sociológica, e adverte que o leitor que não conseguir
desenvolvê-la não poderá tirar proveito da leitura da obra ora resenhada.
Ele elucida que a chave dos valores da civilização ocidental é encontrada nas
idéias cardinais de igualdade e liberdade, as quais supõem como princípio único e
representação hegemônica, a idéia do individuo humano: a humanidade é constituída de
homens, e cada um desses é concebido como se encarnasse, a despeito de sua
particularidade e fora dela, a essência da humanidade.
Pontuando que, na modernidade, esse indivíduo é quase sagrado, absoluto, e que
suas exigências são legítimas e supremas, e seus direitos só são limitados pelos direitos
idênticos dos outros indivíduos, Dumont aborda uma dicotomia bastante explorada na
sociologia clássica, a saber, a que existiria entre o indivíduo e a sociedade.

[...] Fala-se amiúde de um pretenso antagonismo entre “o indivíduo” e “a


sociedade”, no qual a “sociedade” tende a surgir como um resíduo não
humano: a tirania do número, um mal físico inevitável oposto à realidade
psicológica e moral, que está contida no indivíduo.
Esse tipo de visão, que é a parte integrante da ideologia corrente da igualdade e
da liberdade, é evidentemente muito pouco satisfatório para o observador da
sociedade. Ele se insinua, entretanto, mesmo nas ciências sociais. Ora, a
verdadeira função da sociologia é bem outra: ela deve precisamente
preencher a lacuna que a mentalidade individualista introduz quando
confunde o ideal e o real. (p. 53, grifos nossos)

O êxito do desempenho dessa função é obtido, segundo o autor, por meio do


salutar e indispensável desenvolvimento de uma apercepção sociológica, que seria um
nível de percepção social no qual o observador (geralmente, mas não exclusivamente,
um cientista social) opõe ao indivíduo auto-suficiente o homem social, e considera cada
homem não mais como uma encarnação particular da humanidade abstrata, mas como
um ponto de emergência razoavelmente autônomo de uma humanidade coletiva
particular, de uma sociedade.
Pontua o antropólogo que essa peculiar apercepção pode aflorar
espontaneamente na sociedade moderna em certas experiências do cotidiano, citando os
exemplos do exército, do partido político e da viagem, que nos ensejam perceber nos
outros os traços modelados pela sociedade, sendo que esses mesmos traços nos são
também socialmente induzidos, mas não percebemos, achando que são apenas
características pessoais, nossas.
Um exemplo utilizado por Dumont pode ilustrar e ajudar a elucidar
satisfatoriamente a profundidade do conceito em questão.

Permitam-me aqui um caso que apresenta um exemplo surpreendente de


apercepção sociológica. Mais ou menos no final da preparação para o
Certificado de etnologia, um condiscípulo que não se destinava à etnologia
contou-me que lhe sucedera uma coisa estranha. Ele me disse mais ou menos o
seguinte:
“Outro dia, num ônibus, percebi de repente que não olhava para os meus
companheiros de viagem como de costume; alguma coisa havia mudado em
minha relação com eles, em minha maneira de me situar em relação a eles. Não
havia mais ‘eu e os outros’; eu era um deles. Durante um longo momento me
perguntei pela razão dessa transformação curiosa e repentina. De súbito ela me
surgiu: era o ensinamento de Mauss.”
O indivíduo de ontem sentia-se social, percebera sua personalidade como
ligada à linguagem, às atitudes, aos gestos, cuja imagem era devolvida pelos
vizinhos. Eis o aspecto humanista essencial de um ensino de etnologia. (p.55)

O autor conclui a seção argumentando que a partir da apercepção sociológica


podemos compreender que a percepção de nós mesmos como indivíduos não é inata,
mas aprendida, imposta pela sociedade em que vivemos. Como bom durkheimiano,
Dumont pontua que nossa sociedade nos prescreve a obrigação de sermos livres, o que
não ocorre com as sociedades tradicionais, que ignoram a igualdade e a liberdade como
valores, que ignoram, em suma, o indivíduo, e que possuem, no fundo, uma ideia
coletiva do homem.
O antropólogo então chama atenção de que essa nossa apercepção (residual) do
homem social, a apercepção sociológica, é a única ligação que nos une a essas
sociedades tradicionais, o único viés pelo qual podemos compreendê-las, e é a ela que
ele vai recorrer para tornar inteligível, para seus leitores, as características e os
princípios fundamentais do sistema de castas na Índia.
Nessa introdução, o autor ainda faz um apanhado das concepções de Rousseau e
Tocqueville sobre os conceitos de igualdade e individualismo (este abordado apenas
pelo último pensador).
No primeiro capítulo, o autor, após abordar a trajetória histórica da definição da
palavra casta, trata, basicamente, das explicações que a sociologia e outras ciências
sociais têm dado sobre o sistema de castas na Índia.
Na conclusão da obra, localizada na última seção do último capitulo, Dumont,
comentando sobre as mudanças recentes na Índia, fruto da influência de ideias
ocidentais, salienta que elas se concentraram mais no domínio político-econômico da
vida social, domínio considerado secundário no sistema, por isso essas mudanças foram
toleradas, e que, portanto, mudanças fundamentais no sistema de castas não ocorreram.

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