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movemos, o mar em que navegamos.

Em que não sabemos aonde nos leva, ou MANICÔMIO E LOUCURA NO FINAL DO SÉCULO E DO
mesmo aonde deve levar-nos, nossa viagem" (Hobsbawn, 1998, p.25). MILÊNIO
Nossa constelação ideológico-cultural de fim de século exige uma nova
PAULO AMARANTEI
luta: o reconhecimento dos lugares em que as tecnologias dissimulam os se-
nhores perversos aos quais elas servem. Em nome do progresso e do cresci-
mento social, essas tecnologias referendam valores que se contradizem. As- Neste final de século, e de milênio, qualquer reflexão sobre a perma-
sim, aquilo que serve aos interesses é incorporado ao discurso e à prática. A nência do manicômio em nossas sociedades, assim corno sobre as relações
"importação" entre os modelos não respeita fronteiras. Ela define os "raptos entre loucura e sociedade, deveriam partir de uma referência quase obrigató-
ideológicos" (Patto, 1987, p.92), que introduzem uma falsa história no lugar ria, ou mesmo obrigatória em nosso país. Trata-se de uma obra que, certamen-
da verdadeira e instalam assim obstáculos ao conhecimento do campo teóri- te, é uma das mais importantes contribuições existentes sobre a questão
co-prático e ao reconhecimento dos sujeitos nas suas relações cotidianas. A antimanicomial e que poderia ser classificada como uma das bases do pensa-
luta é portanto contra um modelo de desenvolvimento que transformou a sub- mento crítico no campo da desinstitucionalização em saúde mental. Estou me
jetividade num processo de individuação ... burocrática e subordinou a vida às referindo a O alienista, de Machado de Assis.
exigências de uma razão tecnológica que converte na realidade o sujeito em
De fato, Machado de Assis, com este conto de menos de 70 páginas,
objeto de si próprio.
antecipou, há um pouco mais de 100 anos, ou seja, no final do século passado,
"O que está em jogo é o futuro da humanidade e este futuro não pode todo o tipo de reflexão crítica que hoje podemos elaborar acerca da psiquia-
depender de mentes utilitaristas e interesses mesquinhos que confundem seus tria, da modernidade, da doença mental enquanto objeto construído pela psi-
êxitos de exploração com a predestinação divina e a lei do valor com a essên- quiatria, da ciência moderna em seu projeto positivista, da pretensão de nor-
cia humana" (Dieterich, 1997, p.179).
malização da sociedade pela ciência e, muito particularmente, pela psiquiatria.

Em O alienista encontramos tudo, todas as possibilidades. Simão


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Bacamarte nos instigou a pensar, desde então, no processo epistêmico que um
campo de saber, a psiquiatria, constituiu para falar dos sujeitos, da sociedade,
BEZERRA JR., B. A subjetividade moderna e o campo da psicanálise. In: BIRMAN, J. Freud
50 anos depois. Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1989. da ação da ciência. O alienista é uma crítica, a um só tempo, epistemológica,
BOSI, E. A dialética da colonização. São Paulo, Companhia das Letras, 1992. filosófica e social ao saber e às práticas psiquiátricas, ao saber e às práticas das
DlETERICH, H.; CHOMSKY, N. La sociedad global. Ciudad de Ia Habana, Casa Editora ciências em seu ideal normativo. Nela, encontramos profundas e vigorosas
Abril,1997. questões relacionadas à suposta neutralidade das ciências, o que permite, a si
ENRIQUEZ, E. Prefácio. In: DAVEL, E.; VASCONCELOS, T. (org.) "Recursos" humanos
própria, colocar-se ideologicamente acima dos homens e da sociedade.2
e subjetividade. Rio de Janeiro, Vozes, 1995.
FERNANDES, M.l.A. A população diante da implantação de prpgramas políticos: efeitos da Atualmente, e em grande parte a partir da démarches de Michel
violências. In: CAMINO, L.; MENANDRO, P.R. A sociedade na perspectiva da Psicologia:
Foucault, de Franco Basaglia, Gilles Deleuze, Boaventura de Souza Santos,
questões teóricas e metapsicológicas, vol.l, n.l3, setembro, 1996.
FREUD, S. O mal-estar na civilização, vol. 21., Estandard Brasil Obras Completas. Rio de
Professor e Pesquisador Titular do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental
Janeiro, Imago, 1977. da Escola Nacional de Saúde Pública - FIOCRUZ.
HOBSBA WN, E. Era dos extremos. São Paulo, Companhia das Letras, 1998. Algumas vezes ~aço a fa~tasia de que Foucault e Basaglia puderam ler e se inspirar em
LASCH, C. A rebelião das elites e a traição da democracia. Rio de Janeiro, Ediouro, 1995. ~ac~ado de ASSISe em Lima Barreto. Fazendo justiça, a obra de Lima Barreto poderia ser
PATTO, M.H.S. Psicologia e ideologia. São Paulo, T.A. Queiroz, 1987. incluída neste mesmo patamar machadiano de estilo e tradição. Lima Barreto contribui
com O . , . d .
. cemuerin os VIVOS, O Diário do Hospício, Como o homem chegou, dentre outros
escntos, para esta nossa consciência crítica sobre a psiquiatria e o manicômio.
Isabelle Stengers, Edgar Morin, Ilya Prigogine, Henry Atlan, para ficar apenas
em alguns dos grandes pensadores contemporâneos, podemos recolocar a ques- uma ação prática de desmantelamento das incrustações institucionais
tão da verdade das ciências, isto é, podemos constatar que as ciências não que cobriam a doença; era, assim, necessário tentar colocar entre pa-
desvendam a realidade, mas sim, que constroem formas próprias de lidar com rênteses a doença como definição e codificação dos comportamentos
ela. Neste sentido, os saberes científicos não são nem neutros, nem produtores incompreensíveis, para buscar extrair as superestruturas dadas pela vida
de verdade: de certo modo constroem uma cultura específica, especialística, institucional, para poder individuar quais partes haveriam contribuído
de pensar e intervir na realidade e, de certo modo, podem até mesmo servir de para a doença, e quais as instituições, no processo de destruição do
obstáculos epistemológicos, como propôs Gaston Bachelard, para uma outra doente.
modalidade de conhecimento da realidade.

Em continuidade, a natureza de um conceito ou teoria científica signi- Colocar um fenômeno entre parênteses representa uma importante
fica uma determinada forma pela qual o homem se relaciona com a natureza. demarcação epistemológica no âmbito da tradição do pensamento filosófico
A ciência moderna, de base predominantemente positivista, vem exercitando existencial: consiste na idéia de que o fenômeno não existe em si, mas é
um processo de objetivação da natureza, em que a relação que se estabelece é construído pelo observador, é um constructo da ciência, e só existe enquanto
entre sujeitos epistêmicos, de um lado, e de coisas e objetos de outro. inter-relação com o observador. E, portanto, se o observador, sujeito do co-
nhecimento, constrói o fenômeno, este é parte do primeiro, é parte de sua cul-
Neste sentido, o que vimos denominando como Luta Antimanicomial,
tura e de sua subjetividade.
ou como Reforma Psiquiátrica (pois o que importa são os conteúdos que apli-
camos às coisas e não apenas as palavras que usamos para denominá-Ias), tem Desta feita, a Luta Antimanicomial ou a Reforma Psiquiátrica da qual
como princípio básico uma ruptura com essa tradição científica. Em primeiro falamos tem como objetivo não somente a humanização das relações entre os
lugar, por romper com o processo de objetivação da loucura e do louco (ins- sujeitos, a sociedade e as instituições. Nem mesmo a modernização ou aper-
crevendo a questão homem-natureza ou a questão do normal-patológico em feiçoamento tecnológico ou científico das técnicas e instituições psiquiátricas:
termos éticos, isto é, de relação e não de objetivação). Em segundo lugar, por o objetivo que pretendemos é o de construir um outro lugar social para a
romper com o processo de patologização dos comportamentos humanos, com loucura, para a diferença, a diversidade, a divergência, como muito bem apon-
base em um pressuposto teleológico ou ontológico de normalidade. Daí advém ta Birman (1992). Nossos princípios, radicalizando aqueles da reforma sanitá-
o princípio de colocar a doença mental entre parênteses, como forma de inver- ria descritos por Nelson Rodrigues dos Santos, vêm a ser: inclusão, solidarie-
ter a tradição psiquiátrica, que é a de colocar o homem entre parênteses para se dade, cidadania.
ocupar da doença, como ressaltou Basaglia (1968, p.498):
Um lugar social que não seja o da doença, anormalidade, periculosi-
dade, irresponsabilidade, insensatez, incompetência, incapacidade, defeito, erro,
o doente foi isolado e colocado entre parênteses pela psiquiatria para
enfim, ausência de obra. Por isso mesmo temos insistido no termo manicômio
que se pudesse ocupar de definições abstratas de uma doença, da
como sinônimo não somente daquela instituição destinada "aos loucos perigo-
codificação das formas, da classificação dos sintomas ...
sos" (o manicômio judiciário), e nem tão-somente aos hospícios de todo o
Para Franca Basaglia (1998, p.Xãll), esta inversã~ no trabalho efetivo gênero (aqui incluídos os hospitais psiquiátricos, as clínicas psiquiátricas pri-
de desinstitucionalização significa: vadas, os ambulatórios e demais serviços que lidam com a lógica manicomial).
Manicômio é sinônimo de um certo olhar, de um certo conceito, de um certo
gesto que classifica desclassificando, que inclui excluindo, que nomeia des-
merecendo, que vê sem olhar.""'

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Enfim, o processo que estamos procurando construir é complexo, no transformação do imaginário social relacionado com a loucura, a doença men-
sentido de que é composto por muitos fatores inter-relacionados, complementa- tal, a anormalidade e assim por diante. Refere-se ao conjunto de práticas sociais
res e em movimento, em que poderíamos destacar quatro campos fundamentais: que constroem a solidariedade, a inclusão dos sujeitos em desvantagem social,
1. Campo teórico-conceitual: desconstrução, reconstrução de con- dos diferentes, e assim por diante.
ceitos fundantes da psiquiatria (doença mental, alienação, isolamento, tera- O processo de Reforma Psiquiátrica e a Luta Antimanicomial tem,
pêutica, cura, saúde mental, normalidade, anormalidade). Diz respeito às in- entretanto, muitos obstáculos políticos, sociais e ideológicos. Por um lado,
cursões no âmbito da produção epistêmica do campo psiquiátrico-psicológico, temos aquelas velhas resistências oriundas dos setores que têm os seus interes-
isto é, sobre quais bases teóricas e conceituais este campo definiu seus objetos ses ameaçados, tais como os proprietários de clínicas privadas, tão bem deno-
de conhecimento e, por conseguinte, suas ferramentas para conhecer e com- minados por Carlos Gentile de Melo como a indústria da loucura.
preender a realidade;
Temos os segmentos universitários da clínica psiquiátrica que com-
2. Campo técnico-assistencial: a partir de e simultaneamente à re- partilham de uma visão mecanicista (pobremente biologicista, como particu-
construção dos conceitos acima (como, por exemplo, da transformação do con- larmente atentou-me Fernando Ramos), na medida em que a própria biologia
ceito de doença na noção de existência-sofrimento do sujeito em sua relação aponta para as teorias em busca da complexidade e da inter e transdisciplina-
com o corpo social, acolhimento, cuidados, emancipação, autonomia, possibi- ridade. Não se trata de negar a contribuição possível e real da farmacologia, da
lidade de exercitar a diferença etc.), a construção de uma rede de novos servi- fisiologia cerebral e de toda a tecnologia da pesquisa moderna, mas de evitar o
ços, mas não apenas serviços, espaços de sociabilidade, de trocas e produção reducionismo derivado de suas aplicações práticas, que procuram comprovar
de subjetividades, substitutivos (e não apenas alternativos) ao modelo que ~s emoções humanas são apenas trocas de neurotransmissores, são "ape-
terapêutico tradicional. Na medida em que deixamos de nos ocupar da doença nas" reações bioquímicas. Maturana (1990) já atentava para o fato de que não
e nos ocupamos dos sujeitos, o tratamento e as instituições de cuidado deixam há nada na neurofisiologia que justifique, concretamente, o pensamento hu-
de significar apenas a prescrição de medicamentos, a aplicação de terapias, mano, o mundo imaginário do qual sejamos, talvez, os únicos a usufruir.
para tornar-se um ocupar-se cotidianamente do tempo, do espaço, do trabalho,
Desta forma, torna-se muito preocupante o processo de radical
do lazer, do ócio, do prazer, do sair, fazer alguma coisa, construir um projeto,
banalização do sofrimento ou da natureza humana, com a crescente
uma atividade, organizar uma atividade conjunta etc. Em outras palavras, tra-
patologização operada pela indústria farmacêutica, com o dócil e prestimoso
ta-se de construir possibilidades materiais para os sujeitos;
apoio do saber psiquiátrico-psicológico. Doença do pânico, fobia social, estresse
3. Campo jurídico-político: revisão das legislações sanitária, civil e do executivo, fadiga crônica, dentre tantas outras, são categorias que
penal no que diz respeito aos conceitos de "doença mental", "psicopatia" e patologizam o cotidiano em suas bases fundamentais: não apenas inscrevendo
"loucos de todo o gênero", e construção de novas possibilidades de cidadania, na ordem da patologia o que é próprio do cotidiano da natureza humana, mas
trabalho e ingresso social. Refere-se, por extensão, à cidadania real dos sujei- também produzindo/induzindo neste cotidiano formas de mal-estar, isto é,
tos na vida social: o direito ao trabalho, à farru1ia, aos amigos, ao cotidiano da patologizando a cultura. Os problemas deixam de ser humanos, em seu senti-
vida social e coletiva; • do mais amplo, para tornarem-se orgânicos, numa distinção radical entre mente-
4. Campo sócio-cultural: como conseqüência, e também simultanea- corpo-socius. Neste entendimento, qualquer investimento de cuidado
mente, de todas as demais ações listadas anteriormente, através de investi- "terapêutico" torna-se um investimento tão-somente farmacológico, nas
enzimas ou sinapses, e não nos sujeitos da experiência.
mentos nos campos epistemológico-conceitual, técnico-assistencial, jurídico-
3
político, e a partir de ações específicas no campo sócio-cultural, busca-se uma Pois tais reações não são tão "simples" e "mecânicas" como os representantes da indús-
tna farmacêutica fazem parecer aos incautos e mal formados psiquiatras.

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Mas temos um obstáculo bem maior: o futuro das políticas de ajuste REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
nos tempos de globalização, de neoliberalismo, ou de neo-desenvolvimentismo.
Estas políticas, voltadas para a radicalização do individualismo, acarretam de- AMARANTE, P. O homem e a serpente: outras histórias para a loucura e a psiquiatria. Rio
semprego, desassistência e diminuição de solidariedade; aumentam as formas de Janeiro, Editora Fiocruz, 1996.

de violência social, de intolerância e de segregação/Observa-se que as pessoas, BASAGLIA, F. L'instituiione negata: relato di un ospedalle psichiatrico. Torino, Einaudi,
1968.
cada vez menos, buscam a participação em sindicatos, associações, partidos,
BIRMAN, J. A cidadania tresloucada. In: AMARANTE, P. & BEZERRA, P. (org.) Psiquiatria
ou em outras formas de atuação coletiva. Há um nítido processo de desarticula- sem hospício: contribuições ao estudo da reforma psiquiátrica. Rio de Janeiro, Relume-
ção comunitária, que torna os sujeitos cada vez mais solitários e desprotegidos. Dumará, 1992.
DELEUZE, G. Conversações, Post-scriptum: sobre as sociedades de controle. Rio de Janeiro,
Mesmo que, como previa Deleuze (1992), a nova sociedade (após as Editora 34, 1992.
sociedades absolutista e disciplinar) caminhe para uma natureza de controle, FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro, Graal,1979.
em que a segregação e a violência poderão abrir mão dos espaços institucionais FOUCAULT, M. História da loucura na Idade Clássica. São Paulo, Editora Perspectiva,
1978.
de controle (pois o controle será totalitário na própria sociedade), na qual não
GOFFMAN, E. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo, Editora Perspectiva, 1974.
serão precisos manicômios, prisões e conventos, dentre tantas outras institui-
MACHADO DE ASSIS. O alienista. In: Papéis avulsos. Rio de JaneirolBelo Horizonte, Livraria
ções disciplinares (Foucault) ou totais (Goffrnan), este cenário não será me- Gamier.
lhor para os segmentos marginalizados. Em outras palavras, Deleuze nos cha- MATURANA, H. O que se observa depende do observador. In: THOMPSON, W.1. (org.)
ma a atenção para o fato de que a luta antimanicomial, significando a crise do Gaia: uma teoria do conhecimento. São Paulo, Editora Gaia, 1990.
hospital e de outras instituições totalitárias de confinamento, pode representar
o nascimento de outras tecnologias de controle (hospitais-dia, centros e núcle-
os de atenção psicossocial - em nosso caso particular), com o início de novas
liberdades, mas, também, de novos mecanismos de controle que venham a
ocupar o lugar dos antigos modelos de confinamento. Guardadas as devidas
proporções, isto significa atentar para o modelo da "gestão dos riscos" que
Castel verificou ao analisar o modelo psiquiátrico caplaniano, quando a psi-
quiatria preventiva parecia opor-se, mesmo para muitos segmentos progres-
sistas, ao modelo manicomial e, no entanto, representou uma ampliação do
território pasiquiátrico, isto é, aumentou a legitimidade da psiquiatria em ad-
ministrar os conflitos sociais, éticos, políticos e ideológicos.

É, assim, que retomo Machado de Assis:

.
"Quanto à idéia de ampliar o território da loucura, achou-a o boticário
extravagante ... "

Estas são importantes dimensões da Luta Antimanicomial e da Refor-


ma Psiquiátrica para a qual devemos estar atentos e para as quais devemos
estabelecer estratégias de enfrentamento.

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