Você está na página 1de 4

FALSUM COMMITTIT, QUI VERUM TACET

http://dartagnanzanela.tk

O imbecil juvenil
Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, São Paulo, 3 a br. 1998

Já acreditei em muitas mentiras, mas há uma à qual


sempre fui imune: aquela que celebra a juventude como uma
época de rebeldia, de independência, de amor à liberdade.
Não dei crédito a essa patacoada nem mesmo quando, jovem
eu próprio, ela me lisonjeava. Bem ao contrário, desde cedo
me impressionaram muito fundo, na conduta de meus
companheiros de geração, o espírito de rebanho, o temor do
isolamento, a subserviência à voz corrente, a ânsia de sentir-
se iguais e aceitos pela maioria cínica e autoritária, a
disposição de tudo ceder, de tudo prostituir em troca de uma
vaguinha de neófito no grupo dos sujeitos bacanas.

O jovem, é verdade, rebela-se muitas vezes contra pais e


professores, mas é porque sabe que no fundo estão do seu
lado e jamais revidarão suas agressões com força total. A luta
contra os pais é um teatrinho, um jogo de cartas marcadas
no qual um dos contendores luta para vencer e o outro para
ajudá-lo a vencer.

Muito diferente é a situação do jovem ante os da sua


geração, que não têm para com ele as complacências do
paternalismo. Longe de protegê-lo, essa massa barulhenta e
cínica recebe o novato com desprezo e hostilidade que lhe
mostram, desde logo, a necessidade de obedecer para não
sucumbir. É dos companheiros de geração que ele obtém a
primeira experiência de um confronto com o poder, sem a
mediação daquela diferença de idade que dá direito a
descontos e atenuações. É o reino dos mais fortes, dos mais

_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
e-mail: dartagnanzanela@gmail.com
FALSUM COMMITTIT, QUI VERUM TACET
http://dartagnanzanela.tk

descarados, que se afirma com toda a sua crueza sobre a


fragilidade do recém-chegado, impondo-lhe provações e
exigências antes de aceitá-lo como membro da horda. A
quantos ritos, a quantos protocolos, a quantas humilhações
não se submete o postulante, para escapar à perspectiva
aterrorizante da rejeição, do isolamento. Para não ser
devolvido, impotente e humilhado, aos braços da mãe, ele
tem de ser aprovado num exame que lhe exige menos
coragem do que flexibilidade, capacidade de amoldar-se aos
caprichos da maioria - a supressão, em suma, da
personalidade.

É verdade que ele se submete a isso com prazer, com


ânsia de apaixonado que tudo fará em troca de um sorriso
condescendente. A massa de companheiros de geração
representa, afinal, o mundo, o mundo grande no qual o
adolescente, emergindo do pequeno mundo doméstico, pede
ingresso. E o ingresso custa caro. O candidato deve, desde
logo, aprender todo um vocabulário de palavras, de gestos, de
olhares, todo um código de senhas e símbolos: a mínima
falha expõe ao ridículo, e a regra do jogo é em geral implícita,
devendo ser adivinhada antes de conhecida, macaqueada
antes de adivinhada. O modo de aprendizado é sempre a
imitação - literal, servil e sem questionamentos. O ingresso
no mundo juvenil dispara a toda velocidade o motor de todos
os desvarios humanos: o desejo mimético de que fala René
Girard, onde o objeto não atrai por suas qualidades
intrínsecas, mas por ser simultaneamente desejado por um
outro, que Girard denomina omediador.

Não é de espantar que o rito de ingresso no grupo,


custando tão alto investimento psicológico, termine por levar
o jovem à completa exasperação impedindo-o,
simultaneamente, de despejar seu ressentimento de volta

_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
e-mail: dartagnanzanela@gmail.com
FALSUM COMMITTIT, QUI VERUM TACET
http://dartagnanzanela.tk

sobre o grupo mesmo, objeto de amor que se sonega e por


isto tem o dom de transfigurar cada impulso de rancor em
novo investimento amoroso. Para onde, então, se voltará o
rancor, senão para a direção menos perigosa? A família surge
como o bode expiatório providencial de todos os fracassos do
jovem no seu rito de passagem. Se ele não logra ser aceito no
grupo, a última coisa que lhe há de ocorrer será atribuir a
culpa de sua situação à fatuidade e ao cinismo dos que
o rejeitam. Numa cruel inversão, a culpa de suas
humilhações não será atribuída àqueles que se recusam a
aceitá-lo como homem, mas àqueles que o aceitam como
criança. A família, que tudo lhe deu, pagará pelas maldades
da horda que tudo lhe exige.

Eis a que se resume a famosa rebeldia do adolescente:


amor ao mais forte que o despreza, desprezo pelo mais fraco
que o ama.

Todas as mutações se dão na penumbra, na zona


indistinta entre o ser e o não-ser: o jovem, em trânsito entre o
que já não é e o que não é ainda, é, por fatalidade,
inconsciente de si, de sua situação, das autorias e das culpas
de quanto se passa dentro e em torno dele. Seus julgamentos
são quase sempre a inversão completa da realidade. Eis o
motivo pelo qual a juventude, desde que a covardia dos
adultos lhe deu autoridade para mandar e desmandar, esteve
sempre na vanguarda de todos os erros e perversidade do
século: nazismo, fascismo, comunismo, seitas pseudo-
religiosas, consumo de drogas. São sempre os jovens que
estão um passo à frente na direção do pior.

Um mundo que confia seu futuro ao discernimento dos

_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
e-mail: dartagnanzanela@gmail.com
FALSUM COMMITTIT, QUI VERUM TACET
http://dartagnanzanela.tk

jovens é um mundo velho e cansado, que já não tem futuro


algum.

Fonte: http://www.olavodecarvalho.org/textos/juvenil.htm

_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
e-mail: dartagnanzanela@gmail.com

Você também pode gostar