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DJACIR MENEZES

IDÉIAS
contra
IDEOLOGIAS

A REVOLUÇÃO SILENCIOSA NAS


UNIVERSIDADES E A RAMIFICAÇÃO DE
SUAS TESES
RIO DE JANEIRO, GB — 1971
Eis algumas reflexões comentadas nas páginas deste livro.

A violência do esquerdismo nasce do conúbio entre o materialismo histórico


e o analfabetismo histérico.

A política científica consistiria na vinculação da idéia do poder ao poder


das idéias.

Técnico é o que sabe utilizar as idéias; intelectual, o que tem a vivência das
idéias.

Os militantes sabem que um pequeno grupo de alunos pode destruir grandes


Universidades.
*

A cobiça comercial anima a propaganda, mas envenena a fonte do futuro —


a adolescência.

A propaganda, dilatada pela ação dos órgãos eletrônicos, corrompe a


percepção da realidade, insensibilizando para os aspectos éticos. Ela não
cria as aberrações morais, mas estimula-as.

Quando uma ortodoxia política assume o poder, arma a guilhotina: não há


salvação para o pensador.

A violência é pregada nas rádios, nas tevês, nas historietas infantis, como
único método para solucionar dificuldades.
PREFÁCIO

A guerra das idéias contra as ideologias nas Universidades é silenciosa. O


lado barulhento, que provoca a atenção de todo mundo e cujo tumulto enche
de simpatia alguns órgãos de propaganda pelo seu caráter sensacionalístico,
é apenas síndrome de causas mais profundas, que nem sempre estão ao
alcance do olhar desarmado. Digo desarmado das lentes, que a análise
social e a psicologia porventura ofereçam. Porque só essa análise pode
descer às raízes submersas dos acontecimentos.

Não se trata de um escafandrismo pretencioso de exegetas. Como insisto em


alguns pontos destas páginas, a atitude fundamental, que dá isenção à mente
para melhor compreender objetivamente os fatos, reside na resistência às
pressões emocionais que tendem a transformar em convicções intelectuais o
que brota das afetividades primárias, que animam as mitologias. Cobrindo
estes ensaios com o rótulo da beligerância entre “idéias” e “ideologias”,
suscito, sem aviso prévio, o debate propedêutico. Uma análise puramente
léxica ensinaria que “ideologia” é o estudo das idéias e o título seria um
tanto anfibológico.

Entretanto, o que desejo significar é o litígio que há entre as “idéias”, que


são instrumentos de interpretação do Real, e a “ideologia”, que seria a forma
de enrijecimento das idéias em sistemas doutrinários, que se atrasam,
impregnando-se por vezes de radioatividade emocional, que é precisamente
a energia contaminadora dos espíritos. Destarte, as teorias científicas,
filosóficas ou religiosas podem assumir formas místicas.

Há muito tempo que se enunciou a teoria das “idéias-reflexo”. O curioso é


que tal teoria, de natureza mecanicista, fosse perfilhada por Lenin, que aliás,
não obstante seu materialismo dialético, não conseguiu desembaraçá-la do
mecanicismo. Os que tentam desentranhar geneticamente a idéia da imagem,
cometem o erro de reduzir o conhecimento intelectual ao conhecimento
sensível. Reparem que digo reduzir, o que é diferente de buscar as origens
do conhecimento intelectual nas atividades sensoriais. A sensação, resultante
da ação exterior sobre os órgãos dos sentidos e efeito de correntes aferentes,
que despertam determinado estado de consciência nas áreas corticais, é
seletiva de “aspectos” da coisa. A idéia, porém, é uma “construção”
dialética de penetração ativa do Real. Como omitir o seu valor vitalmente
pragmático e operatório? Pois esse caráter de “instrumentalidade” denunciou
sua função anti-esclerosante: permite interpretar o Real no tecido
heraclitiano de suas relações íntimas — e assim não ficamos boiando nas
aparências da fades sensível. Se a idéia fosse “reflexo”, teríamos de admiti-
lo como negação de si mesmo, como “outro”, que radiografa as superfícies
fenomenais “refletidas”.

Quando as idéias se cristalizam em ideologias, começam a gastar sua


potência interpretativa de “mergulho”: tornam-se “cadáveres” de idéias.
Porque a ideologia se caracteriza por certo embalsamamento ritualístico, que
elimina a flexura e a força de permeabilidade. Esse, o drama que pretendo
apontar aqui. Drama e trama entre o psiquismo e os fatos na urdidura da
experiência vital. Na trama subjetivo-objetiva, a ideologia, convergindo no
esforço de ajustar e de ajustar-se aos fatos, ganha certo dinamismo
normativo. Revitalizam-se as idéias, que o sistema tende, no seu efeito
contrário, a enrijecer. Há uma contradição interna entre a estruturação em
sistema e a plasticidade inerente ao processo ideativo.

A ritualização crescente da doutrina, a medida em que penetra as massas,


ajuda esse processo de cristalização ideológica. Define-se socialmente o
critério que separa os indivíduos em fiéis e infiéis, partidários e
adversários. Quem não está a favor, é traidor. Crítica é agressão. E para
mostrar que não são fascistas, os administradores da ideologia concedem
liberdade a uma crítica frouxa, reticente, babosa, que só resmunga coisas
insignificantes. E se por acaso fere o essencial — o raio da excomunhão
baixa na cabeça do incauto.

Nas Universidades, esse processo de sectarisação ideológica vai,


simultaneamente, ao compasso da pregação da violência como método para
solução dos problemas juvenis. Estes são apresentados pelos “ativistas” e
“politisantes” do esquerdismo à base de conflitos estruturais da sociedade,
de modo a que o estudante resvale para o campo de lutas sociais de classe,
com todas suas consequências. O “campus” universitário transforma-se no
campo de batalha, onde se engalfinham ideologias inconciliáveis. Não se
cogita mais de reformar a Universidade, mas de transformar a sociedade.
“Utopistas são os que creem mudar os espíritos, mudando as estruturas” —
prega um utopista de outra utopia. Mudam os estilos de protesto com a
crescente participação de elementos extra-universitários. Com a
manipulação da ignorância das massas se difunde a convicção de que a
juventude deve agir sob controle de líderes marxistas. Professores
esquerdizantes, cavilosamente, a pretexto de analisar o problema com
objetividade, camuflam os propósitos e são meros tributários do
acanalhamento dos valores éticos.

Uma propaganda insidiosa compôs uma imagem falsa do mundo estudantil


com retalhos de Castro, Padre Camilo, Guevara, Debray, Marcuse,
cozinhados nos refugos marxistas, com sexualismo e drogas. O resultado da
triaga de tantos ingredientes, que vão do aliciamento ideológico aos festivais
de entorpecentes, é o desencanto diante do velho mundo burguês e de seus
códigos morais, do qual retiram, como seiva para o protesto, o que há de
mais podre e degenerado. Tudo concorre para a pedagogia da violência —
desde as histórias em quadrinhos aos filmes de bang-bang. Há uma sugestão
permanente para o uso da violência. “A polarização instrumental mediante a
violência — escrevem Paul Rock e Frands Heidelsohn — tem importante
função para solidariedade do grupo, talvez um exemplo raro de modelo
marxista clássico no crescimento da consciência revolucionária do
estudante”. Opinam alguns sociólogos voltados para esses tipos de
insurreição, que se trata de violência espontânea, sem planejamento, mas
cuja institucionalização depende do clima pré-revolucionário que se
pretende criar. Esse pensamento se enquadra mais na concepção trotskista do
movimento proletário — e é sintonizado com a estratégia latino-americana
das guerrilhas urbanas, dos sequestros e dos assaltos de bancos.

A necessidade de fabricar ideologias leva a coisas que, vistas de relance,


parecem estapafúrdias. Até já se confecciona uma “teologia da violência”,
que se vem formulando nos escritos de alguns padres aflitos, com os olhos
postos na bravura de guerrilheiros e sequestradores. Misturam as
recordações das aulas de teologia com impaciências sexuais e literatura
profética, — e está lançada a ponte para o marxismo. Os mais ilustrados
sabem que o profetismo é um veio túrgido de revolta, com difíceis passagens
exegéticas. Desde as rebeliões medievais que os protestos lá se foram
municiar de argumentos e inchar sua raiva contra os poderosos. Séculos
adiante, já na patrística, fuzilam apóstrofes contra a riqueza e suas delícias.
O pobre sempre foi acarinhado pela igreja. Mas não seria por essas veredas
que poderiam transitar ao território do marxismo. Nem sei mesmo onde se
abririam as picadas ideológicas, apesar de conhecer os eruditos trabalhos da
Sociedade de Estudos Evangélicos, editados por Iring Fischer, onde se
reúnem teólogos de alto coturno bíblico (1).

Stephen Hatch, outro estudioso dos mesmos temas, observa que o


esquerdista universitário se distingue por uma visão em que,
paradoxalmente, se misturam extrema extroversão, ligadas por apelos
sentimentais sobre “liberdade” e “opressão.” É um esquerdismo sem raízes
sociais, feito de frustrações oriundas de desajustamentos familiais e vagos
protestos humanitários, que as instituições educativas não sabem orientar.
Daí a precariedade de alianças entre a massa estudantil e a classe
trabalhadora completamente indiferente às suas aflições. O mesmo que se
passou na década de 1870, com os narodnikis, na Rússia. E que se repetiu,
com mais energia, na insurreição capitaneada em Paris por Cohn-Bendit, no
chamado movimento de Nanterre, cujos diversos trotskismos e bakuninismos
eram sectes vibrionnantes et rabâcheuses. Compreende-se, diante desse
emmerdement do ensino superior francês, o dito de Monnerot, de que le
marxisme peut cretiniser en France, onde se promoveu une accéléràtion
spectaculaire dans le rithme de la crétinisation des adolescents et des
enfants.

De fato, esses cretinos messiânicos, que assomam no cenário, dão mostras


de um grande vácuo de espírito. São, porém, minúsculos grupos que se
arrogam a representar a grande massa de estudiosos — e podem contagiá-los
nessas horas de crises. Mas desde que haja uma ação contrária, que os
desmascare e revele a sua posição parasitária, fútil e mediocrisante, logo
perdem toda liderança, feita de fraseologia mistificante e besta. Houve
jornais que se babaram, maravilhados com o líder Palmeira, que, numa
passeata carioca, gritou a ordem de sentar no meio da praça — e toda a
massa, passivamente arrebanhada, sentou as nádegas no asfalto. Que líder
carismático! Editoriais e noticiários, revistos pelos copydesks, suspiraram
de admiração. Tão jovens e tão dóceis! — exclamou, ante espetáculo
idêntico, em Paris, o professor Jacques Monnerot “si les journées de mâi
1968 demeurent dans Thistoire, ce sera sans doute sous le nom de journées
des perroquets. ”

A legião de papagaios ouvia, nas pregações das jornadas de Nanterre, o


mesmo que se apregoava noutras Universidades: “não se trata de reconstruir
a Universidade, mas de destruí-la e ao menos impedir de funcionar conforme
os fins que a burguesia lhe consigna”. O líder Mark Rudd, em carta ao
presidente Grayson Kirk, da Universidade de Columbia, advertia que se
tratava de tomar de assalto o poder, a maneira dos gangsters e numa
linguagem de gangster. É o que historia Schlesinger. Não encontrando
obediência entusiástica a seus incitamentos, blateraram contra a massa
amorfa e acarneirada, “condicionada por anos de escola primária e
secundária, amolecida nos moldes de obediência servil, embrutecida pelos
métodos ineptos do ensino superior, massa estudantil cujo único recurso é a
inércia coletiva ou escapismo individual”.

O desígnio de arrastar os estudantes para a refrega se manifesta através das


facções militantes ao compasso do grau de ebulição existente. E onde não há
ebulição, a palavra de ordem é despertá-la. O primeiro passo consiste na
propositura do diálogo feita sob invocação democrática. Por que manter em
silêncio o estudante? Por que não acelerar a organização da representação
discente nos órgãos diretivos? Por que não ampliar a sua participação na
vida administrativa?

Ninguém recusa a legitimidade da participação. O problema fundamental,


porém, é definir os métodos porque efetuar a participação, de modo que seja
assegurada a representação real daquela “massa amorfa”, sem que os
grupelhos extremistas galguem os postos representativos valendo-se da
astúcia política em que são adestrados.

Lemos, no documentário há pouco citado, estas palavras de Raymond Aron:


“As revoltas estudantis rebentam nos países capitalistas como nos países
socialistas, nos regimes liberais como nos regimes autoritários. A maioria
dos comentadores deduz que o fenômeno tem raízes profundas; choque de
gerações, natureza da ordem social, que continua anônima e repressiva,
mesmo na democracia. Cada um escolhe a explicação que melhor lhe
satisfaça o espírito: exaustão das ideologias, fracasso do capitalismo e do
socialismo, mediocridade de uma sociedade de consumo, penúria no seio da
abundância, guetos negros no país mais rico do mundo, contrassenso da
Universidade separada da sociedade ou vinculada a uma sociedade privada
de significação, etc."

O estudante em Paris se revolta pelo socialismo. O estudante em Praga, sob


as botas soviéticas, amaldiçoa o socialismo. O estudante espanhol inveja a
liberdade do estudante americano. Este inventa Orgias de entorpecentes — e
protesta contra as matanças do Vietnam.

Herbert Marcuse emplumou-se em cacique ideológico desses “enragés”.


Vem laboriosamente construindo uma interpretação sistemática desse
confuso anseio de rebelião, de afirmação e de libertação. Contudo ainda não
se sabe que valores novos afirmam ou de que valores velhos se libertam. Os
hippies, que na Alemanha e noutras paragens se chamam beatniks, exprimem
tendências anárquicas, no processo de desorganização espontânea da
sociedade. Essas facções não representam qualquer força revolucionária. A
faceta que parece fascinar o espírito de Marcuse é a rebelião erótica dos
jovens, o protesto sexual contra os tabus. Sua análise não aprofunda qualquer
terapêutica, mas se enreda nas explorações psicanalíticas.

Para explicar o sentimento de rebelião juvenil, pressupõe Marcuse que as


causas de natureza econômico-políticas, modelando profundamente os
instintos e necessidades, criam estruturas que resistem à experiência e
alimentam o contexto geral de repressão. Quando a imaginação criadora
ameaça contrariar os tabus da moralidade social, a censura oficial capitula-a
de subversiva e perversora. A Lebenswelt dos jovens é comprimida por
normatividades superadas — e, à luz dessa exegese, todo o protesto juvenil
toma a amplitude de um protesto histórico! Afim de escapar dessa
compulsividade espiritual apelam os oprimidos da subcultura hippie para a
viagem (trip) aos paraísos do fumo a custa do “ácido” (L.S.D.), do “vaso”
(pot), da erva (grass), que se procura introduzir nos meios estudantis
nacionais. A decomposição do processo perceptivo normal na arte
psicodélica traduz o efeito, direto ou indireto, da ação dos estupefacientes
nas formas de sensibilidade. E como é encarada? Não como manifestação
mórbida, mas como libertação dos estilos clássicos. Eis que proclama o
filósofo dos hippies; “Uma tal revolução na percepção e no universo
sensível é absolutamente necessária e a consciência desta necessidade
constitui talvez o núcleo de verdade que encerra a pesquisa psicodélica.”

Mesmo reconhecendo-lhe o caráter narcótico e viciado, Marcuse valoriza


esse apagamento anormal da “razão e da racionalidade do sistema
estabelecido” — pois, mediante tais métodos patológicos, se estão
afirmando outras formas de racionalidade! Por esse caminho mirabolante,
ajuntando reflexões sobre delírios de estética, ele vai aparafusando num
sistema a interpretação das extravagâncias onde os lampejos de liberdade
aparecem como negação da cultura tradicional, Mas é uma negação
elementar, recusa instintiva de regressão, de essência obscurantista.

Em conferência na Escola Superior de Guerra, apontei, entre as causas da


intensificação da crise no terreno universitário, os órgãos de comunicação
de massa, o processo de massificação e a dissolução dos vínculos familiais.
Vai daí, cresceu a grita contra um Reitor de vistas curtas, que vinha, naquela
alta cátedra, repetir lições de uma sociologia obsoleta em linguagem
arrepiada de moralista. Não faltaram amigos prudentes, que me
aconselhassem a podar as declarações feitas, amenizando-lhes a
contundência polêmica. Não o faço. Publico-as, no fecho deste livro: e se
não apuro mais o gume de certas teses é porque há escassez de tempo para
aprofundá-las — e os ataques se limitaram a resmungos ineptos e vagos.
Nenhum argumento válido. Um deles, aborrecido, disse que eu repetia coisas
do século XVIII e que a nota em que se informara que iria repronunciar a
conferência fora redigida em “português claudicante”.

Em torno de que se fez o alvoroço? Pensando bem — por causa da acusação


de que os órgãos eletrônicos de propaganda intoxicam os moços com
novelas idiotas, música inferior, propagandas de sexo, de alcoolismo, de
tabagismo, de violência. É ou não é verdade? Aqui e além, uma voz isolada
discorda na barafunda. Querem os “pra frente” dizer que minha quadratura
mental não favorece a compreensão do fenômeno — porque os órgãos de
comunicação não fazem senão refletir a superfície do pântano e não são
responsáveis pelo pântano nem por suas exalações. A desagregação moral é
fruto da Sociedade — e a jovem, que fuma maconha ou expõe o púbis na
risca do biquíni, é apenas seu efeito. Despem-se da responsabilidade,
transferindo-a às estruturas sociais. Quantos pais e mestres não insistem que
é o meio social que lhes furta a autoridade, encorajando a arrogância
ostensiva dos filhos! E não reparam que a arrogância varia na razão direta
de sua abdicação na liderança do lar Capitulam miseravelmente — mas, na
hora de reconhecer a covardia ou a fuga ao dever de pai, invocam a
decomposição da sociedade capitalista. Deste modo, apaziguam a
consciência. Redimem-se, eximem-se da responsabilidade — e descartam-se
das obrigações de esforço e luta.

Pode-se dizer que a juventude é a grande vítima dos pais, que, por sua vez,
são cúmplices, por hipocrisia ou fraqueza, do ritmo desse processo de
esfacelamento dos lares, onde a autoridade deles, a pretexto de
camaradagem e compreensão, acabou deliquescendo num ajuntamento
amorfo, que conserva abusivamente o nome de família.

Essa crise reflete-se — ou melhor, concentra-se — nos afluentes que


convergem para a Universidade. Seu idealismo combativo não é expressão
histórica de uma classe ou setor da sociedade nem caracterizaria aspectos da
consciência social. Dai o erro dos que estudam, os movimentos estudantis
com a idéia de que é um choque oriundo de diferenças etárias, entre
gerações velhas e conservadoras e gerações novas e renovadoras, erigindo o
pseudoantagonismo em motor marxista das transformações. No final de
contas, o tal conflito entre gerações se resumiria na atitude dos jovens diante
da herança cultural. Atitude receptiva ou recalcitrante ditada pelas
condições da personalidade adolescente, que trás o sinete das estruturas
onde adolesceu e que a marca indelevelmente.

Outro erro grave na consideração da vida universitária (do qual, nos meus
tempos acadêmicos, partilhei fervorosamente com Oscar Tenório e outros
ingênuos) — é o de que a convivência democrática da Universidade
formula-se em termos políticos de direito público: o poder emergiria
também do “demos” universitário pelo mecanismo do sufrágio. Liamos as
pregações do movimento de Córdoba, que simplificavam o problema num
radicalismo pueril, que entrava no coração adolescente — e o inundava.
Todos em 1927 fomos reformistas desse tipo. Jamais houve quem viesse nos
explicar que não se transplanta tout court para o meio universitário
princípios políticos do direito público, com outras implicações e outros
contexto. E que, sobretudo, o “demos” imaturo, em diferentes graus de
capitis diminutio intelectual, não tinha qualificação para integrar o “povo”
soberano daquela democracia — porque ali se achava, precisamente, para
adquirir, através da educação, a maturidade cultural e política.

Volto a este livro para dizer que os capítulos que o compõem foram escritos
nos dois últimos anos, atropeladamente, atendendo a solicitações de
palestras ou de artigos. Giram todos em torno de temas que afloram da vida
estudantil.

Algumas notinhas críticas rosnaram, dos refolhos de certas gazetas muito


zelosas das virtudes democráticas, contra o reacionarismo que amargura, o
autor. Houve até quem deplorasse a linguagem, que não tinha a magnificência
requerida pelo cargo.

É que apenas lembro dos dias desordeiros do governo deposto, quando os


professores, escorraçados da extinta Faculdade Nacional de Filosofia,
aguardavam que os cabeças do motim decidissem cessar as hostilidades em
nome da grande, generosa e confiante classe estudantil à mercê daquela
estratégia sediciosa.

Rio, 1971.

D.M.

(1) Marxismusstudien. Schriften der Evangelischen Studiengemeinschaft,


J.C.B. Mehr (Pauk Siebeck) Tubingen, 1954-1969, publicado 7 volumes. A
respeito da literatura violenta acima mencionada, leia-se Giuseppe Vaccari
Teologia delia Rivoluzione, peltrinelli Editores, 1969, traduzido como
Theologie et Revolution para o francês, 1971, Union Générale d’Editons,
Paris. É uma antologia de textos quentes de padres e guerrilheiros em
comandita no mesmo profetismo escatológico.
I. AS IDÉIAS DEBATIDAS NA
GÊNESE DA UNIVERSIDADE

Quando se lança o olhar para o passado de nossas instituições docentes


através dos documentos legislativos, dos comentários que os acompanham e
dos debates parlamentares que despertaram, ressalta uma primeira verdade,
elementar e insistente. E vem a ser que sempre houve cassandras
profetizando, com amargura patriótica, a calamitosa situação do ensino em
decadência. Surpreende tão estrepitoso fracasso e suspeita-se mesmo do
certo masoquismo no apregoar dos vaticínios. Nessa aragem de desgraça, em
que se prevê a cada passo o soçobro final, desata-se o itinerário desde as
primeiras Faculdades criadas. Ao cogitar-se de integrar esses organismos
em uma Universidade, ainda nos primeiros anos da República, os projetos
legislativos sucederam-se: Pedro Américo, Eduardo Ramos, Francisco
Glicério, Azevedo Sodré, Sátiro Dias — até que, em 1915, a reforma Carlos
Maximiliano autoriza o governo, quando bem lhe aprouver, a congregar as
Faculdades existentes numa Universidade. É o que fará, em 7 de setembro de
1920, o Presidente Epitácio Pessoa.

Não me cabe revisionar nestas páginas exposições magistralmente feitas,


sancionadas por competências indiscutíveis. Cingir-me-ei apenas à tentativa
de definir o papel da Universidade como foco de idéias no movimento
cultural do país. O tema exigiria, de fato, tempo para uma pesquisa
especializada e, sobretudo, a meditação paciente das interrogações,
suscitadas nos três planos mais evidentes de qualquer cultura: o plano das
ciências físico-naturais, o das ciências histórico-sociais, e, integrativo por
excelência, a atmosfera abrangente do pensamento filosófico. É deste que
tomarei o ângulo perspectivístico para o relanço que segue.
Não se poderia discutir no Parlamento os projetos de reforma do ensino
superior, senão debatendo as idéias gerais em que se abeberavam. De modo
que, folheando o documentário onde se acumulam os pareceres, ouve-se o
entrechoque das opiniões, dos preconceitos e das idéias, que circulavam na
atmosfera espiritual do começo do século.

O professor Isaías Alves perguntava onde buscaríamos o modelo para as


nossas Universidades e optava que reuníssemos “as Faculdades isoladas de
hoje sob a orientação uniforme de uma reitoria prestigiosa e esclarecida,
capaz de dar a todos os institutos componentes do Corpo Universitário a
devida eficiência cultural e nacionalizadora”. É vezo invocar-se, no século
XVI e na América espanhola, a existência de Universidades remotas. As
instituições assim batizadas não ministravam senão conhecimentos jurídicos
e teológicos, como se sabe, e escassas ramificações de outras matérias
incipientes. Se nos atrasamos no batismo e emprego do título, o nosso regime
docente, porém, nada ficou a dever. E talvez melhor situação tivéssemos em
nosso clima de frouxa ortodoxia.

Buscamos o caminho da integração numa lentidão secular. Já no Império,


discutia-se paralelamente, outra questão: um tipo único de Universidade para
todo o país? Calógeras optou por uma compilação legislativa de princípios
gerais, uma espécie de “lei de diretrizes e bases” que conferisse plenitude
de autonomia às diversas áreas do Brasil.

A censura mais comum, que corre de boca em boca, estereotipada e sovada,


é a de que temos olhos pregados na Europa e dela copiamos tudo. Nas sete
ou oito mil páginas que já escrevi, não é difícil encontrar também essas
afirmações eriçadas do habitual tom polêmico, (cacoete que a idade não
curou e a prudência apenas disfarçou com as estúcias da experiência).
Imitamos tudo. Mas a transmissão das instituições políticas, da religião, da
língua, dos costumes, todo esse processo que representa a colonização e a
formação de uma pátria, se realiza à base das condições do novo meio, onde
se caldeia o que vem de fora, que é cultura, isto é, criação humana de outras
paragens. De modo que, ao se cogitar de construir uma Universidade, — que
fez, por exemplo, Azevedo Sodré? Correu a vista pela Europa e fixou-se no
paradigma alemão. Lê-se no parecer, resumido nas atas (1903), que,
paradoxalmente, a cada reforma, o ensino superior mais afunda. Então é para
concluir-se, em boa lógica, que nesse declive a república nos conduziria às
profundezas do centro da terra. Ainda hoje, os vaticínios que chovem sobre a
Ilha são estarrecedores. Basta que um motor pife e um elevador pare — que
logo um professor profetisa sobre a estupidez do Reitor atual, dos passados
e dos futuros. Diante de uma folha de pagamento que se extravia, o
funcionário, tomado de um civismo inconsolável, afirma, sombrio, engolindo
o cafezinho burocrático, o esfacelamento da pátria. Se não fosse, porém,
esse prudente prognóstico, que outros estímulos poderiam ter os verdadeiros
lutadores para prosseguir com alegria a caminhada para a Cidade da
Promissão estudantil?

Mas volto às idéias do deputado Azevedo Sodré e ao seu paradigma


germânico.

A Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro manifestou simpatia pelo


projeto, insinuando essa reflexão que não envelheceu e vale recordar: “A
idéia de universidade entre nós vinha da há muito consorciada com estoutra,
de instalação luxuosa, dispendiosa e quiçá inútil. Fora ela por diversas
vezes sugerida aos nossos governantes que, quando não a repeliam in-limine,
adiavam para melhores tempos o seu estudo e consequente tentativa de
realização”. A alusão a instalações luxuosas parece até malícia preventiva,
visando, no tempo em que foi pronunciada, a um futuro que para nós já
passou. Esqueçamos a vaidade dos pioneiros que nos trouxeram para a Ilha
— e fundaram os nossos mais difíceis problemas. No parecer que comento,
porém, já transpira uma idéia fundamental: a distinção entre o diploma
puramente científico e o diploma que confere exercício profissional. Já se
definia o papel do pesquisador dedicado ao conhecimento in-fieri. Desse
pioneirismo da zona da cultura in statu nascendi emergirão interrogações
cada vez mais fortes para o destino das comunidades humanas.

É curioso delinear a embriogenia dos problemas que vão se anunciando nas


inteligências dos homens preocupados com a organização das instituições
docentes. Ao mesmo tempo que se positivam aquelas indagações, logo outras
correlatas se debuxam na movediça tela política, qual seja, por exemplo:
deve o governo tutelar o ensino superior — ou deixá-lo livremente buscar
seus rumos, sob os imperativos morais, impulsionados pelas necessidades
coletivas?
A discussão teve animado impulso dos positivistas, que defenderam
denodadamente a tese da liberdade integral do ensino superior e o livre
exercício profissional. Essa ausência do Estado do campo de atividades
fundamentais é típica da ideologia liberal levada aos seus limites radicais. A
designação de “Faculdades Livres” era significativa; mas tropeçava na
dificuldade dos recursos materiais. Viviam pobremente, albergadas nos
conventos, como aconteceu com as de Direito, fraternizando com as de
Teologia. No desenvolvimento industrial se gestavam novas ciências, filhas
do conhecimento empírico, que revolucionava os quadros tradicionais do
ensino. Novas cátedras eram exigidas. Nesse tempo ainda se hesitava pôr a
matemática e a mecânica, ciências plebeias, ao lado das nobres ciências de
Deus e da Moral.

Lemos noutro lanço estas palavras do deputado Azevedo Sodré: “O ensino


superior carece, antes de tudo, de dinheiro para viver, prosperar e dar os
desejados frutos; dinheiro que lhe permita aquisição de todo material
indispensável, o qual de dia em dia se vai tomando mais numerosos e
variado; dinheiro que lhe permita retribuir os auxiliares do ensino e
transformar a carreira do magistério em profissão rendosa e exclusiva”.

Não posso esquivar a continuação dessa jeremiada, que se repete quase nas
mesmas palavras: “Enquanto o professor considerar, como entre nós
acontece, o magistério como achega (hoje diríamos “um biscate”) e procurar
fora dele os meios de subsistência; enquanto for rodeado de auxiliares
vitalícios sem aspirações nem entusiasmos: enquanto dispuser de material
escasso e defeituoso, o ensino superior será uma burla, uma farsa, uma
ilusão”.

Atravessamos toda essa penúria — e se fosse, durante tão longo prazo,


simples burla, farsa ou ilusão, já estaríamos falidos como nação. Sem se
impressionarem com os vaticinios, que alargam assustadoramente nossas
mazelas, núcleos de lutadores foram a resistência cívica responsável pela
sobrevivência. É tão fácil compilar páginas de crítica! Alguns desses
aristarcos assumem atitude curiosa de suficiência, do tal que tudo podia
fazer — mas ficou injustamente preterido. Tem-se a impressão de que esses
homens excepcionais querem dizer: “Não me ouviram, aí está o resultado.
Eu previa, eu denunciei, eu, eu...” No fundo, são apenas os urubus da carniça
— aparecem nos destroços para galgarem posições. A qualquer estremeção
da administração, apressam-se a pular do barco ameaçado,
desincompatibilizar-se para a situação nascente, alijando responsabilidades
pela invocação de discordâncias já passadas, inesperadamente
embandeirados em arcos. E são inimigos fogosos das situações onde
pareciam oprimidos e desouvidos. Inimigos perigosos — porque vem das
entranhas das administrações que de chofre passam a combater
patrioticamente. Adesistas da hora undécima, navegam de binóculo à
tiracolo, pronto a devassar o horizonte a cata dos sinais das tempestades.
Como todos, desempenham também a sua tarefa, e, vencida a repugnância,
assim devem ser compreendidos e utilizados.

A idéia da tutela que o Estado exerce no ensino superior, para usar a


expressão que corria na Câmara Federal de 1903, traduzia a ingerência
administrativa, econômica e financeira; defendia-se a independência
pedagógica e cultural, citando-se Comte, que combatia a organização
universitária francesa como reduto da metafísica e da teologia, impedindo o
progresso do espírito científico. No projeto a que me refiro, logo no art. 19,
se determina que “o Estado exercerá vigilância sobre a Universidade por
intermédio do Reitor nomeado pelo Presidente da República”. E no art. 29, §
19 que o “Reitor poderá ser um professor em atividade, um professor
jubilado ou pessoa estranha ao ensino, porém dispondo de alto valor moral e
científico”

Sucedem-se anualmente os projetos, que por vezes falam na “Universidade


incompleta”, isto é, com o mínimo de quatro unidades. O eminente Diretor
da Faculdade de Direito de São Paulo, processualista conhecido em todos os
foros do país, professor João Monteiro, depois de declarar que não é
“avesso às Universidades nem poderia ser”, julga inoportuna a sua criação.
Já andamos pelas alturas de 1904. A escola Politécnica, no debate daquele
parecer, pronuncia-se “completa e formalmente contrária a adoção do
projeto por não ser consentâneo com nossa organização política”.
Resenhando os debates, o deputado Sátiro Dias ainda menciona alguém cujo
nome não deu, que classificou a idéia da Universidade como “formidável e
audacioso atentado às aspirações nacionais em matéria de ensino”.
Aliás, vinha de mais longe a crítica. Vinha do positivismo, que invocava
nobres e superiores razões filosóficas para recusar apoio às instituições
universitárias inspiradas na experiência francesa dos meados do século
passado. A série de artigos de Miguel Lemos, publicados na “Gazeta de
Notícias”, em 1882 e reunidos em opúsculos, (A Universidade, Apostolado
Positivista do Brasil, n 6, Rio 1903), focaliza o debate à luz dos princípios
positivistas, com a elevação doutrinária que punham sempre em todas as
questões. A análise discernia claramente o papel de chocadeira que o
parlamentarismo, favorecendo a confusão, desempenhava na eclosão dos
movimentos revolucionários. Declarava corajosamente que o
‘‘parlamentarismo só tem sido até hoje a ditadura das mediocridades
intrigantes: instrumento de todas as vilezas nas mãos de ministros sem
escrúpulos, obstáculos aos interesses públicos quando o país tem, para
chefes visionários honestos, que tomam a sério as ficções revolucionárias.”

O idealismo cientificista de Comte reagiu contra a ideologia que punha o


centro das decisões sociais sob a influência numérica das assembleias
políticas agenciadas pela técnica do sufrágio universal. Tentava abrir
caminho entre dois perigos, o da demagogia e o da oligarquia. Comte
encontraria, na propaganda de suas idéias, a resistência das Universidades:
depois de sua ação renovadora, elas tomam-se centro de conservação e
estabilidade espiritual, “compostas especialmente de metafísicos e legistas;
e o poder temporal, concedendo-lhes privilégios, servia espontaneamente ao
progresso, preparando a arma de guerra contra o papado e contra o
feudalismo”.

Entre outras arguições, assinala ainda que as Universidades, “depois de


terem sido os focos de liberdade espiritual, quando o catolicismo tomou-se
opressor, tornaram-se hoje, por sua vez, instituições decadentes e um dos
maiores obstáculos a toda livre tentativa de reorganização espiritual”. Se já
havia — reflete Miguel Lemos — escolas superiores suficientes para prover
as necessidades profissionais do país, a criação da Universidade só viria
“dar maior intensidade às deploráveis pretensões pedantocráticas da nossa
burguesia, cujos filhos abandonam as demais profissões, igualmente úteis e
honrosas, para só preocupar-se com a aquisição de um diploma qualquer.
Para que inverter capitais “contra os interesses do país e em proveito dos
parasitas científicos?” Em vez disso, libertar e tratar da educação dos
libertos — aconselha o apóstolo positivista. E diante da simpatia do
Imperador pela idéia — escreve, desconfiado: “estamos ameaçados de ver
surgir em nossa Pátria semelhante instituição”.

Tomadas essas afirmações desligadas dó seu contexto, como tanto se tem


feito, desvirtuando-se a citação, calunia-se a pregação positivista. Cumpre
inseri-la nas premissas daquele nobre pensamento para que se possa
aquilatar-lhe o alcance filosófico e social.

Vale a pena ouvir, nas próprias palavras de Miguel Lemos, a crítica contra a
Universidade de seu tempo, segundo a imaginava; até parece de um
esquerdista de escada abaixo, quando profliga o nepotismo das classes
superiores:

“O nível do ensino secundário e superior tende, portanto, a baixar para


afazer-se à incapacidade do parasitismo burguês, que tudo invade, lugares de
aluno e professorado; inventam-se cadeiras novas para os recém-diplomados
e pretextam-se progresso e as necessidades do ensino para justificá-las”. É
nessa toada que denuncia a cavilação do “Parlamentarismo, que só tem sido
até hoje a ditadura das mediocridades intrigantes; instrumento de todas as
vilezas na mão de ministros sem escrúpulos; obstáculos aos interesses
públicos quando o país tem, para chefes, visionários honestos, que tomavam
a sério as ficções revolucionárias”.

Naquele tempo, arguiam os positivistas, sempre obedientes ao ensino de


Comte, que os privilégios dos diplomados multiplicavam o “funcionalismo
pedantrocrático.” Para que acelerar sua proliferação? Então Miguel Lemos
concluiu, dirigindo-se à Monarquia, nestes termos veementes sobre a
fundação da Universidade, que cria ser um risco iminente:

“Só lucrarão os pedantocratas, que vão receber os vencimentos e as honras;


mas esses mesmos lucrarão menos do que supõem. Porque o seu domínio não
há de ser eterno e seus filhos terão de sofrer com as dificuldades sociais que
eles tiveram acumulado e com o desprezo que há de selar-lhes as
memórias”. Tais ponderações nos mostram como falham as previsões sociais
de um homem ilustre, ao trancar-se nas paredes de um credo, que
inevitavelmente, lhe alteram as possibilidades de julgar com exatidão. Que
predisse aquele grande espírito? que a Universidade imperial se reduziria a
“um viveiro de parasitas imundos mantidos criminosamente pelos cofres
públicos”.

Evidentemente, o apóstolo encerrava o folheto já furibundo com a


Monarquia: estávamos a um lustro da República e toda a juventude militar
ouvia, aquecida, as prédicas de Benjamim Constant, que o monarca recusara
nomear professor após sete concursos em que fora honrosamente
classificado.

Para se compreender melhor o clima espiritual em que afloravam algumas


das idéias que presidem a embriogênese da Universidade, seria ilustrativo
uma revisão das atitudes e preconceitos correntes no começo do século á
respeito do intelectualismo e do humanismo em geral. Começara a reação
contra o exagero dos estudos clássicos, do beletrismo pimpão que reluzia, de
cauda em leque, nos salões e jornais. A civilização industrial hostilizava-o.
A tendência para as ciências biológicas e físicas se avigorava cada vez
mais. Na sociedade norte-americana, essas características tornavam-se
marcantes, com a exaltação do homem empreendedor, o businessman
Admiravam-se as qualidades de comando, de decisão, de visão prática, que
vencia as perplexidades especulativas, as hesitação estudiosas, do homem
de gabinete cheio de idéias, raisonneur sempre pronto a duvidar, a debater
teoricamente os problemas abstratos. As raízes desse anti-intelectualismo
foram bem examinadas por Hofstadter, que discerniu, no protestantismo e no
primitivismo, os elementos primordiais da consciência americana. O
mercantilismo fortaleceu-se nesse lastro, que favorecia uma psicologia
pragmática, onde ação e decisão eram as molas mais reconhecidamente
proclamadas. De par com essa atitude, desenvolvia-se nas massas a
convicção crescente de que nisso residia o caráter democrático da educação,
estimulando-se hábitos mentais estereotipados, que bem se harmonizavam
com o desporte, o culto do vigor físico, em primeiro plano na educação
superior.

Entre nós, latinos e retardatários, essas atitudes chegariam bem tarde.


Ficamos nos velhos moldes conimbricenses, com as Faculdades de Direito,
Medicina e Engenharia marcando outro ritmo histórico. Se Direito,
vinculado ao totem das tribos teológicas, tinha razões de sangue para
enfurnar a tradição humanística no velho estilo, não no tinham Medicina e,
sobretudo, Engenharia. Esta representava o avanço técnico, a perene
revolução nos processos de vida comunitária por sua ação transformadora
dos métodos de produção, que afetam as relações humanas. E é tal o
imperativo que pesa sobre essa área, que ainda hoje teve de assumir, na
mudança para a Ilha Universitária, o alto e nobre papel do pioneirismo.
Imperativo que venceu as resistência da velha guarda docente e será amanhã
o orgulho de sua Congregação.

Mas não desviemos a alça de mira da argumentação. O que quero dizer é que
estamos encetando a revisão dos velhos hábitos mentais. Aceita-se,
docilmente, a tese vitoriosa do industrialismo, que é a medula de toda a
Reforma. Mas quando se estudam as origens da Universidade, lá se deparam
as idéias embrionárias do tecnicismo, da correção do humanismo
excessivamente beletrista e greco-latinizante, da autonomia das instituições
docentes, em suma, a viragem do rumo em direção à praticidade.
Compreende-se a frase de Tocqueville, cujos olhos europeus contemplaram
o progresso norte- americano: “Nas democracias, nada é mais importante ou
mais brilhante que o Comércio”.

As formas competitivas do capitalismo industrial da época encontravam


apologias científicas a todo transe naquele darwinismo sociológico que
transladava para o plano humano a luta zoológica da sobrevivência do mais
apto. O nivelamento ao tipo do homem comum tornava-se o ideal, em
protesto contra as elites aristocráticas da inteligência do ancien régime, que
cá não existiram: reagia-se contra fantasmas importados. Ou mal
ressuscitados pelo enxerto colonial e peninsular. A mentalidade igualitarista
se incumbia da razoeira, em função dos novos ideais democráticos — pois a
Democracia, como Proteu, muda de forma a cada época histórica. (1)

A função mais ativa do igualitarismo é na Política e na Educação. Ainda


mais forte na Política da Educação, onde da razoira, em função dos novos
ideais democráticos — pois pretendemos rastrear algumas idéias.

Por uma dessas voltas da dialética histórica, nos meados do nosso século, os
governos esbarraram com a verdade que política da pesquisa teórica, o
deslocamento da tônica para a especulação científica pura, a súbita
transformação do pensamento abstrato como essência da Ação humana. E
então o espírito humanístico da Universidade passou a ser namorado com
insistência pelo espírito lucrativo das empresas. Já não se via o professor
universitário como o ocioso das charadas intelectuais, parasitas de luxo que
eles, os criadores de riquezas, sustentavam com seu labor fecundo.

O espírito prático do mercantilismo custou a deixar de sorrir ironicamente


diante das equações da geometria não-euclidiana. A teoria passou a ser uma
necessidade prática. E a prática de tal maneira depende da especulação
teórica, que já podemos praticar a pura experiência teórica. O
intelectualismo, malsinado há um século como ameaça ao igualitarismo
democrático, ganhou novas conotações, redimiu-se tanto, que é o enfant gaté
cortejado e adulado do sistema educacional. (2)

Não quero terminar o bosquejo sem examinar alguns aspectos atuais de um


grande problema: as relações entre o tecnicismo e o humanismo, cuja
discussão já se vai tomando exaustiva. Exaustiva — mas sempre
provocativa. Porque, no fundo, implica certa atitude filosófica que a maioria,
fascinada pela superfície social do problema, não lhe percebe as causas
mais profundas. Emergindo de uma pedagogia que refletia uma sociedade
onde o trabalho físico e rudimentarmente técnico era considerado inferior,
caiu-se no lirismo opostos que foi a exaltação à batons rompus do valor
pedagógico das atividades manuais, que concentrou a preocupação dos
educadores a partir de Kerschensteiner. Até aí tudo bem psicologisado —
porque todos sabemos que, lembrando um pouco — Rousseau, a criança
pensa com as mãos. A digitação, exercitada no contato com os objetos,
exprime o processo de áreas ideo-motoras da cortiça cerebral, antecipando
processos mentais mais complexos. Não é isso, porém, o que nos interessa
aqui no momento. Deixemos o lado psicológico e individual do problema —
para examinar a expansão do tecnicismo moderno, onde às formas de
trabalho físico progressivamente se reduzem, enquanto cresce a ação das
formas intelectuais, quero dizer, científicas. O caráter pragmático do
pensamento evidenciou-se tanto no industrialismo moderno, que motivou
todo um sistema especulativo, pretendendo erigir o utilitarismo primário em
lei suprema, considerando a necessidade biológica como determinante
fundamental, enquanto esquecia outras formas superiores de “necessidade”,
também expressões essenciais da natureza humana, que tem sua componente
histórica.
Enquanto, pelo lado individual, o desenvolvimento se exprime, através das
formas de condutas, de fases instintivo-afetivas para fases racionais, com o
progresso da inibição da espontaneidade que caracteriza as reações infra-
corticais, frenadas pela racionalidade crescente, — pelo lado social
assistimos o poder da inteligência, que resulta na instituição da Ciência
como instrumento de organização da convivência humana. É nesse sentido
que a espécie ascende. Estamos no limiar. O progresso científico é
instrumento de governo. Pouco importa que os regimes autocráticos
transformem-no em instrumento de dominação. É tentativa de irracionalizar a
racionalidade, fadada ao fracasso.

Praxes históricas não é a expressão restrita das necessidades a que a


produção material dos bens acode com abundância crescente através da
tecnologia. É uma ampliação de todos interesses humanos no processo ativo
da convivência — e, portanto, cobre toda a “espiritualidade” por assim
dizer. Neste sentido, o humanismo moderno difere fundamentalmente do
antigo humanismo. Em face desse novo humanismo, a atual concepção das
reformas universitárias padece de uma grave distorção. Porque, ao exagerar
o tecnicismo e a pesquisa, cedeu ao movimento pendular de colocar-se no
ponto oposto, escasseando-lhe o conteúdo histórico e social, que daria
sentido político ao conhecimento científico. Não sei se me faço compreender
claramente. Mas quero insistir nesse lado do problema, que me parece
vexata quaestio do momento pedagógico nos quadros universitários não só
do Brasil, mas dos países culturalmente liderantes. Quero dizer, em resumo
que o novo humanismo não é um révenant, ressurreto das tumbas das letras
clássicas e das pesquisas históricas. É novo, porque refaz aqueles estudos,
sofre o impacto do desenvolvimento da Ciência, que é outra em seus
métodos, concepções e bases, dentro de uma cosmovisão filosófica, com
outra forma de antropocentrismo.

Há tantos aspectos contraditórios, que a tese sustentada outrora muda de


significação nos dias atuais. Dou exemplo. Sabe-se que a Universidade foi
por excelência o centro onde se realizava o estudo desinteressado, um
“santuário de idéias”; para usar a expressão de IRVING HOWE, onde se
debatiam problemas esotéricos, de altos cunho filosófico, enquanto em torno
dela giravam os interesses materiais. A Universidade quebrou esse claustro
de Cultura para ser o centro da própria vida social, econômica e política. Do
período especulativo, passou ao período pragmático, conservando,
inevitavelmente, o seu humanístico arcaico. Ameaçam-na de reduzi-la, com o
tecnicismo integral, a fábrica do conhecimento prático. O lado desse
movimento já começa a acentuar-se, porque é tempo de descobrir, na
dialética imanente do processo, que a tese subsume o seu contrário: e então
surge a necessidade de defender o humanismo contra á pressão tecnicista,
que se está exagerando nessas pulsões sociais em crescendo. O movimento
pendular traduz esse jogo íntimo, que é o devenir do conhecimento.

Não se trata de regressão ao classicismo. A tarefa é muito mais profunda,


porque urge criar, no seio do nosso processo histórico, o tecnicismo
humanista, isto é, o humanismo que bebe sua inspiração nos veios genésicos
da ciência. É o momento de nova cosmovisão oriunda das conquistas da
relatividade, da física quântica e nuclear do cálculo diferencial absoluto, da
geometria riemaniana, dos voos siderais, das máquinas eletrônicas e
mnemônicas. Disso tudo sairá uma nova gnosiologia, uma nova
epistemologia, uma nova metafísica, uma nova especulação dos problemas
da vida, do homem e do Cosmos, num sistema de hiperhipóteses em variação
contínua, pautada pelo ritmo do conhecimento humano.

Esse humanismo terá novos estilos de pensamento e estará para o humanismo


clássico na mesma distância do céu ptolomaico para o copernicano, e deste
para o contínuum espaço-tempo einsteiniano — três etapas colossais na
visão do Universo. A terceira etapa, cujo centro é a Universidade, será a
digestão prodigiosa de toda essa enorme herança do Pensamento filosófico,
que é um diálogo através das idades, sucessão de teses que se tornaram
antíteses configurativas de novas contradições cujo sentido ressalta da
identidade onde se exprime. (3)

Não se cogita, porém, de fundir a Universidade no mundo dos negócios, que


lhes ditaria os rumos. O professor não é um pelego do industrialismo. Seria
nefasto essa abdicação da cultura nas competições dos mercados, que
comandariam os laboratórios e o pensamento universitário. Isso seria
distorção asfixiante. Os valores da Universidade não se confundirão jamais
com os valores comerciais, industriais ou políticos. A representação dos
interesses externos nos Conselhos Universitários não deve conduzir à
esclerose do núcleo hegemônico da instituição docente. A idade média deu
lições sobre a luta das Universidades por sua autonomia contra a pretensão
de príncipes e clérigos, que procuravam dominá-la. No sanos que correm
empregam-se novas estratégias políticas e econômicas de dominação. Não
simplifiquemos, porém, num dilema fácil, porque cairemos no erro oposto,
que é sucumbir às mãos das minorias audaciosas arvorando programas onde
se inscrevem lemas de autodireção democrática, mas cuja meta verdadeira é
transformar a Universidade no instrumento de agitação política a serviço do
banditismo da guerrilhas e sequestros. Entre todas essas ameaças braceja
hoje a liderança das Universidades. Para evitar a perda da sua
independência às mãos dos organismos econômicos, que as reduzirão a mero
apêndices do mundo industrial, não abriremos às portas à insurreição que
trabalha urgentemente o generoso espírito das gerações moças.

E como estamos distante do tempo em que um filósofo do porte de Charles


Pierce não conseguia transpor às portas de Harvard — porque sustentava a
idéia subversiva de que a Universidade era primordialmente um centro de
pesquisa! Dizia ele que o professor era um investigador que ensinava a
investigar — e mais nada. Radicalização que o Reitor da John Hopkins
também não teve coragem de apoiar — e o seu ingresso foi sustado nela e
em outras Universidades. É verdade que as derrotas de Pierce tinham
componentes ideológicas: a pituitaria de certo farisaísmo puritano não
suportava o odor haerecticus de Pierce. Seria uma ameaça à tradição o seu
ensino? Não, ele não seduzia a juventude universitária — porque seu ensino
exigiria elites preparadas. Preferia os temas das pesquisas lógicas e dos
problemas de epistemologia científica. Pouco se lhe dava a imortalidade da
alma ou as provas ontológicas da existência divina, temas perigosos para os
que não se enquadravam nos ensinamentos consagrados. Se não reforçava a
crença nos deuses antigos, também não pretendia atrair a juventude para
novos altares. Corriam os dias do “pragmatismo”, nome que ele próprio dera
às teorias de James — e que depois renegara.

Alastrava-se então um utilitarismo desquitado da práxis, enfeudado num


subjetivismo privado, que jamais soube colocar o problema do tecnicismo
humanístico — e acabou mutilando o ensino superior, conduzindo à
convicção rasteiramente industrialista de que o papel das Universidades
seria o preparo de cientistas qualificados para o trabalho empresarial. As
deficiências do beletrismo humanístico e gecolatinizante foram postas em
notas garrafais — e tudo pendeu, ideologicamente, para o lado contrário,
Entre nós, teve o problema o caráter de dernier crí, alumbrando os nossos
teóricos da educação. Houve aqui, com quase um século de atraso, o que
ocorreu em França, ao tempo de Le Bon, de Ribot, de Langlois, de Lanson,
de Seignobos, de Caro, de Ad. Franck, de outros mais. Revendo um velho
livro de Fouillée, La Concepcion morale et civique de Venseignement,
datado dos começos do século, deparo o protesto contra esse utilitarismo
medíocre, que se desprendia da cultura geral e do movimento das idéias
filosóficas para fechar-se no círculo de pirú do especialismo científico,
esquecido de que são as grandes aspirações morais e políticas que
constituem as forças estimulantes do progresso espiritual. É nessas alturas
que respiram os verdadeiros criadores das novas concepções filosóficas e
descobertas científicas. Nenhum dos gênios da humanidade, desde
Arquimedes até Einstein, teve em mira interesse utilitário quando se
dedicaram ao estudo dos problemas universais. Á história da ciência dá o
mais puro, o mais luminoso exemplo do desprendimento pelo utilitarismo
paroquial. Depõe Fouillée no limiar do problema que discutimos: “Rien
n’est plus scientifique, au fond, que notre actuel enseignement scientifique: il
tuerait la Science si la Science n’était immortelle. Le jour oü pour augmenter
encore ce gavage mecanique, les humanités et la philosophie seront
abandonnées, ce sera le triomphe des passifs aux dépens des actifs, des
stèriles aux depens des créateurs.”

Fouillée não defendia ingenuamente aquele humanismo que se caricatura


besuntado de latim e grego apascentado pela teologia, mas o que conceitua
aqui como humanismo tecnicista. Escreveu nos idos de 1890: “ni les
humanités scientifiques ellesmêmes n’offrent d’ utilité immediate, visible,
materielle, professionnelle”. Claro que alude a utilidade subjetiva,
individual — porque, na práxis, ganhando dimensão histórica, essa utilidade
rompe o casulo do privatismo, amplia-se no social e muda qualitativamente,
cobrando sentido humano, universalizando-se. Esse sentido encarna-se numa
elite criadora, que deve ser formada na Universidade. Esta, a função mais
alta da Universidade. (4)

Quando Lobatschewski e Riemann pesquisavam as geometrias não-


euclidianas, os espíritos práticos sorriram cheios desse pragmatismo
rentável: “nosso espaço tridimensional, com as prerrogativas newtonianas,
recusa qualquer aplicação a tais divagações ou delírios lógicos. Essa perda
de tempo fica para os matemáticos a caminho do manicômio”. Para esses
homens práticos, noutro lance, Gauss dissera que temia o berreiro dos
beócios — Geschrei des Böoten. Nem todos afrontam a estupidez compacta
das opiniões; e quando essa opinião é feita pelos representantes da “ciência
oficial e acadêmica”, que se arma nos redutos universitários, — então o
espetáculo é digno de registro: porque os próprios órgãos destinados a criar
idéias novas e a promover novas Cosmovidências tomam-se o nascedouro
da hostilidade paradoxal ao processo científico. Não lembrarei o quadro
clássico da Faculdade de Medicina versus Pasteur. Todo mundo conhece. É
muito mais moderno a resistência à teoria da Relatividade restrita, que
subverteu nossos arquétipos mentais do Espaço, do Tempo e da Matéria. Até
no meio soviético, velhos marxistas arrepelaram-se com a idéia do
continuum espaço-tempo tetra-dimensional, que não se adequava ao
catecismo oficial. Declararam, indignados, que era mais uma tentativa da
burguesia, desesperada e acuada, a busca de caminhos para restaurar o
idealismo, no qual enxergavam a técnica da política religiosa. Seria longo
espiolhar exemplos desse espírito reacionário trabalhando sub-reptícia ou
ostensivamente no domínio do Pensamento. Por isso é que dizemos que o
espírito de pesquisa e de iniciativa requer um mínimo de heterodoxia às
verdades vigentes, um secreto duvidar das evidências e do consagrado. De
modo que a Universidade tem no seu íntimo uma contradição vital: ao
mesmo tempo que é um órgão de transmissão do conhecimento e forma os
profissionais reclamados pelo industrialismo, é também um órgão criador de
conhecimento e forma os inventores, os sábios, os filósofos, os que dilatam a
herança cultural. Muitos os chamados, poucos os efeitos. Aqui os eleitos são
os primeiros, os que labutam nas fronteiras do conhecimento in fieri — e que
sabem duvidar das verdades consagradas. Nesse vértice do saber
universitário a confluência de ciência e técnica, de especulação e ação, de
lei e norma, é uma síntese dialética onde as interrogações anteriores
desaparecem no processo da história humana.

A preservação das instituições universitárias não se faz com essas


vacilações covardes que denunciam apenas o oportunismo senil, que não
rende aos jovens a única homenagem digna deles — a da verdade. Em vez de
sussurrar-lhes ao ouvido: “sois as vítimas de duas guerras, que se passaram
longe de vossos lares, sois a geração sacrificada, que os pais não
compreendem porque adotam critérios morais caducos, sois
incompreendidos e escorraçados pelos mais velhos, vossos verdugos” —
digamo-lhes honestamente: “A rebeldia juvenil é admirável se tem aquele
cerne moral que é a resistência às solicitações do instinto e não cede ao
apelo das satisfações imediatas dos apetites. Não creiais no paternalismo
hipócrita dos que vos acenam facilidades e temem dizer-vos a verdade,
adulando-os com louvores à força e generosidade juvenis. As gerações
passadas não são representadas por esses pusilânimes investidos no papel
de amigos. As gerações passadas criaram, lutaram, construíram tudo que ai
está e merecem respeito pelo que fizeram. Se não devereis quedar
obedientes e passivos ante aquelas gerações, que deverão ser ultrapassadas,
não significa vossa rebeldia a seus cânones o sistemático acanalhamento de
todos valores. Porque os valores só viram tabus depois de esvaziados,
substituídos pelos valores de nova seiva social e política. Os conselhos que
lhes dão fazem abúlicos, tomadores de maconha, delinquentes, preguiçosos,
pederastas, mas não fazem homens. Os que lhes prometem a liberação dos
preconceitos abrem caminho para a desordem, cuja etapa final é a supressão
da anarquia pela autocracia dos expurgos e das ideologias implacáveis”.
Enfrentamos o dilema: de um lado temos a agravação dos males do sistema
em que vivemos; de outro, aniquilação das liberdades primárias e das
condições de vida de todo humanismo universitário.

Este dilema começa a enfraquecer — porque os centros da resistência,


diante dessas duas tendências externas, estão crescendo na consciência dos
povos democráticos. Não quero terminar esta palestra sem uma afirmação de
crença no revigoramento progressivo das instituições cuja consistência
política se aperfeiçoará no trabalho das Universidades, com o preparo de
elites profundamente sintonizadas com os destinos superiores de uma grande
pátria. No processo universitário, realiza-se o contato de cada geração com
a herança cultural. Contato de camadas etárias, não de classes; e como a
adolescência não se prolonga vida afora, a mobilidade dessa fronteira
dilata-se a cada pulsar das gerações. No mundo atual, o extraordinário
desenvolvimento da herança científica, no tremendo impacto cultural, fez
trepidar os quadros universitários, que se atrasaram na forma de operar a
transmissibilidade do acervo crescente do conhecimento. Trotsky falou do
“idealismo militante da juventude”, que se manifesta especialmente nas
mudanças históricas. Acontece, porém, que em vez de procurar esclarecê-la,
definindo-lhe seu papel, despertando-lhe a consciência de sua posição nessa
mudança, abdicamos do papel de educadores, não a convencemos do valor
da experiência dos seus maiores, e passamos a exaltar- lhe criminosamente
os sentimentos egoísticos e sexuais, nessa mixórdia de debilidade,
ingenuidade e obscenidade. (5) A juventude é um reservatório admirável de
energias morais: não a julguemos por parcelas insignificantes, que nada
representam no largo estuário de ideais juvenis. Sem crer nos jovens não
haveria mestres dignos desse nome. Nem órgãos que preservassem o
pensamento criador e crítico, que é a medula do humanismo. E aqui reside,
precisamente, a função suprema da Universidade como órgão que elabora os
estilos de Pensamento e de Ação das sociedades humanas. Que aspiração
mais alta e mais nobre poderia caber às elites científicas e filosóficas dentro
de uma democracia?

(1) “Sem dúvida deve-se prescrever qualquer distorção verdadeiramente


aristocrática e artificial; mas uma democracia que desconhece as
aristocracias naturais e que tudo nivela, é uma falsa democracia, trazendo em
si um germe de morte” — Alfred Fouillée, La conception morale et civique
de L'Enseignemeni, Edition de la Revue Bleue Paris, p 5.

(2) “ ... abandonam-se obras primas literárias, morais ou não, para ensinar
aos alunos um inglês útil ou um alemão útil. Com efeito, não é com Goethe
ou Shakespeare que se escrevem cartas comerciais” — Idem, p. 22. Comte
escarneceu desse “espírito de especialização utilitária” no Couxs de
Philosophie Positive. Essa “conspiração contra as humanidades” foi objeto
de uma comissão parlamentar de inquérito que ouviu Ravaisson, Boutroux,
Lachelier, Seailles, Dorlu e Fouillée.

(3) “Os professores de filosofia, que devem constituir uma elite na elite
universitária, possuem decerto seus defeitos, mas tiveram pelo menos
consciência de uma obrigação pedagógica: a de despertar idéias, sugerir
fortes concepções morais e sociais, ensinar a pensar livremente, exercitar o
sentido crítico dos alunos” — Idem pgs. 149, 150 — Cabe-lhes a função de
dessectarização nesse processo de aliciamento ideológico que transforma
algumas cátedras em focos de proselitismo marxista. Nesse sentido
renovador, o estudo da filosofia deveria desempenhar papel de grande
importância pedagógica na formação do espírito democrático da
Universidade. A Fouillèe, Les estudes classiques et l’a Democratie, Armand
Colin, Colin, Paris, 1898.

(4) “A liberdade acadêmica não assegura nem imunidade nem impunidade


perante a lei ... Precisamente porque o direito da comunidade Universitária
se funde em sua relação com a verdade e num direito da humanidade, não é
anarquia nem oligárquico, nem comparativo. A recusa à censura política é
mesmo o seu lado negativo, o seu inverso. A liberdade acadêmica é
definida, positivamente, pela responsabilidade em face do saber”. J. Dvèze
et J. Debelle, Concepiion de L'Universiié, Editions Universitáires, Paris,
1968, p. 13.

(5) “Como sábio e mestre, o professor deve sentir-se em primeiro lugar,


membro da Universidade e não funcionário do Estado — Idem f. 59” A
Universidade não é um Estado no Estado, A sociedade democrática reclama
com razão que exista no meio da Universidade relações sociais-humanas que
são ajustadas à democracia. A comunidade dos homens ativos na
Universidade não constitui, entretanto, um “povo” no sentido da Doutrina
democrática de Direito Público. Jacobsen und Dollinger, Die deuischen
Studenten — DTV — report, Munschen, 1968, p. 184.
II. UNIVERSIDADE,
MASSIFICAÇÃO E ELITE

Seria cedo para discutir essas interrogações, com apenas dois meses na
honrosa e alta investidura de Reitor, se não tivesse, no meu itinerário de
professor mais de três longas décadas, olhos teoricamente postos nos
problemas fundamentais do ensino superior. Apesar disso relembro o famoso
provérbio de que só se sabe o gosto do gerimum, (aqui degradado em
abóbora) — comendo-o.

Em diferentes momentos, às vezes bem desencontrados, já tive ocasião de


abordar o tema que agora, de maneira mais direta e concentrada pretendo
discutir nestas páginas. Tema velho, que se acha reposto no centro de
debates universitários e renovado em função das paisagens sociais
incessantemente mudadas. Há mesmo certa carga emocional, que dita os
estilos de apresentar o tema. Assim acontece quando se parte de um pseudo-
antagonismo entre gerações, cavando hiato entre duas consciências
inconciliáveis — uma anquilosada e encruada no passado, outra plástica e
esfomeada de futuro. Então aparece o velho vaidoso, que, ante a
irremediável distância etária, começa a jactar-se de conservar a plasticidade
mental, de ter a juventude no espirito, de calidamente amar o progresso,
sinais que invoca para provar que ainda não envelheceu, nem se esclerosou
no preconceito do conservadorismo. Não percebe o macróbio que a maior
prova de sensibilidade é essa mesma — pôr-se a aplaudir bobocamente tudo
que vem do moço, nessa cavilação desonesta, que, no fundo, é a deserção
covarde de seu verdadeiro papel de educador, de pai e de mais velho. É
natural que essa juventude perca inteiramente o respeito por uma geração
que se despede da vida em curvaturas tão abjetas. Porém já prevejo a
facilidade de caricaturar essa reflexão, pintando-se o quadro oposto — uma
velhice entrincheirada nos seus preconceitos, querendo impor autoritarismo
mais ranzinza, em nome de uma velha moral teológica dos sete pecados
mortais, palmatória em punho invocando o Diabo como o melhor
subdelegado para a repressão espiritual. Uma vela a Deus e outra ao
subdelegado. Tentemos apagar uma delas. Quero dizer que tenho alguma
vantagem sobre muita gente de proa: sempre suponho que sabem mais
embora saiba escutar as tolices dos sabidos com perseverança inaudita num
sujeito mal evangelizado, vagamente cristão. Isso me permite aprender
sempre mais um pouquinho. Daí repetir teses que são claras. Por exemplo a
tese de que a Universidade é um órgão seletivo de valores. Admira ainda
seja necessário proclamá-lo. Mas como um democratismo peralta desanda
numa argumentação um tanto sofistica, na apologética de uma idolatria de
massas, confundindo as coisas, não é chover no molhado retomar alguns fios
do debate. Todos ouvimos, principalmente no limiar dos anos letivos, a grita
da imprensa, veiculando as reivindicações juvenis, pedindo mais vagas nas
Universidades — e não há pedido mais justo, apresso-me a reconhecer. Que
pretende a Reforma? Precisamente criar novos quadros que atendam a uma
população que está explodindo, para empregar a metáfora belígera. Nesses
simples enunciado do problema, vemos seus pseudopodos alargarem-se por
diferentes setores extrapolando do âmbito puramente universitário. Porque
suas causas são estranhas a seus mecanismos de controle. A simples menção
da “natalidade explosiva” mostra vários aspectos sociais, nos países que se
esforçam por superar o subdesenvolvimento. Ao lado de uma estrutura
econômica atrasada, onde se instalam novos organismos empresariais,
encontra-se um aparelhamento educacional que funciona adequadamente,
ajustando-se às exigências de um mercado de trabalho, que está reclamando
mão de obra qualificada.

Simultânea e contraditoriamente cresce uma população operária e


camponesa que constitui força de trabalho inferior e de baixo nível salarial.

De repente, começou o espanto pedagógico. Arregalados para as estatísticas,


os educadores, num entusiasmo pioneiro, alertaram os espíritos: em 1940,
tínhamos apenas 21.235 universitários numa população de 60 milhões. A
Universidade era uma reunião de autarquias docentes, nominalmente
confederadas e desentendidas entre si. A agregação de Faculdades e Escolas
mostrou o método de composição mecânica, mas não um processo de
crescimento orgânico: a cissiparidade do desenvolvimento solidário não
existe. Foi mesmo desestimulado pelo decreto chamado “Lei das
Universidades brasileiras”, n 19.851, de 1931, que determinava a
configuração de uma Universidade a partir de núcleo de três unidades de
ensino superior, escolhidas entre as cinco seguintes: Direito, Medicina,
Engenharia, Educação, Ciências e Letras, — aspecto que sempre
impressionou o Reitor Moniz de Aragão no esforço inicial de implantar a
Reforma, delineada na legislação e que nos cumpre levar avante. Em 1960,
em 70 milhões, mal atingia a 100 mil os estudantes de ensino de nível
superior. Com a mesma população, sete décadas atrás, os E.U. contavam
240.000. Em 1966, em 90 milhões contamos 185.000. Fala-se
constantemente na necessidade de ampliar matrículas. Logo discutiremos os
aspectos psicológicos e sociais do problema. Preliminarmente, sugiro que
distingamos, apenas para efeito de análise, os dois conceitos de excedentes
— o pedagógico, em que a oferta de vagas é inferior à procura dos
candidatos; o social, em que a oferta de vagas é superior às necessidades do
mercado de trabalho. Se o equilíbrio expresso no conceito pedagógico de
excedente não corresponde ao equilíbrio expresso no aspecto social, a
produção de profissionais desocupados aumenta, acarretando as
consequências de desperdício. Se inversamente, acentua-se a demanda
industrial pelo profissional, que se valoriza, abrem-se em grau de recurso,
oportunidades ao incompetente, projetando maus efeitos no processo
produtivo. A integração do ensino superior nas estruturas sociais requer os
dois equilíbrios aqui considerados. Agora repetirei o velho chavão de que,
por mais alto que sejam as frondes do problema, quando o tentamos resolver,
regredimos às raízes econômicas, às voltas com a exiguidade de verbas.
Ora, grande parte da má aplicação resulta de uma técnica orçamentária que
burocratiza demasiado a mobilização dos recursos, obrigando o
administrador à legalização de manobras para conseguir alguma
flexibilidade no atendimento as solicitações urgentes, que partem do
funcionamento institucional. Em nossa pequena experiência de dois fugazes
meses de Reitoria, já começamos a perceber o enjambramento e o artritismo,
dos “canais competentes”, no dizer da clássica frase. Acho mesmo que
deviam ser em maior número os casos de “buropatas”, que são os que
padecem de moléstias oriundas da engrenagem dos serviços públicos. É um
termo já corrente na literatura administrativa, para designar a nova
modalidade psicótica. A diagnose se pode ler nalguns autores de atualidade,
que versam acerca dos fenômenos da patologia burocrática.
O entrosamento da instituição universitária com o industrialismo interessou
particularmente as áreas das ciências tecnológicas, como salta aos olhos
mais desprevenidos. Os laços se multiplicam — contratos e convênios entre
as empresas e a pesquisa universitária, habituais nos países adiantados,
marcham lentamente entre nós. Tropeçamos no burocratismo das velhas
praxes administrativas, que se procura vencer um tanto indisciplinadamente,
com o risco de resvalar numa dispersão que escaparia ao controle financeiro
da centralização universitária. Como fugir dos dois perigos? Eis um dos
problemas. Conseguir recursos externos através de convênios com firmas
industriais interessadas no trabalho cientifico, executado por órgãos sob
responsabilidades de pesquisadores e cientistas de alto apreço cultural, e,
simultaneamente, não impedir a flexibilidade das aplicações necessárias ao
atendimento das obrigações assumidas. Isso exige a transformação dos
nossos mecanismos internos.

É o exemplo americano que magnetiza os responsáveis pelo ensino público


— e nem sempre se atenta nas sérias diferenças que nos distanciam do
modelo inspirador. A dependência dos grants das fundações privadas e do
governo federal, nos E.U., torna a Universidade, em grau crescente, a
colaboradora ativa da indústria, através da pesquisa científica nos planos
atômicos e nas navegações espaciais. Nosso sistema, provem, ainda guarda
seu parentesco social e político com a Universidade de serviço público, sua
natureza de órgão estatal, como assinala François Bourreaud no sistema
francês.

Nem é a Corporation americana, nem a Verband alemã. Só agora nos é


possível começar a mudança que pressupõe duas convicções essenciais: “a
cátedra (instituição-mãe em torno da qual gira a organização alemã) é
substituída pela instituição corporativa tipicamente americana, o department;
e o instituto de pesquisa, junto do professor alemão, é associada à atividade
docente e de formação, ao menos na que concerne aos graduate students”.

Continua Bourreau: “A Universidade americana, porém, não é um "Verband


de professores à alemã, nem um serviço público à francesa, é uma
corporação não lucrativa, e como tal um self perpetuing body, cujos
soberanos — se admitem a expressão — são os trustees” (Universités à la
derive, Paris, 1971).
A subvenção de pesquisas e outras atividades por meio do auxílio externo,
trazidos por grandes empresas, se, por um lado, promovem a inserção da
instituição docente no processo produtivo, por outro lado ameaça
transformá-la ancilarmente em órgãos apendiculados a organizações
financeiras, que representam interesses internacionais nem sempre
condizentes com os interesses da economia nacional. Seria ingenuidade, se
não fosse hipocrisia, querer olvidar esses aspectos do problema, temendo
cair nos braços dessa xenofobia que, vendo só perigos no ocidente, silencia
a infiltração totalitária, vinda do outro hemisfério, nessa caminhada entre
rivalidades, que é a marcha tristonha dos subdesenvolvidos.

A exiguidade dos recursos agrava todos os nossos problemas educativos. A


frase é acaciana, mas se põe como a premissa maior do silogismo
reformista. Tempo integral, dedicação exclusiva, obrigatoriedade de
frequência, gratuidade de ensino superior, autonomia administrativa, cursos
paralelos, restaurantes estudantis, melhores laboratórios, implantação de
unidades na Ilha, e os inumeráveis problemas das obras da Cidade
Universitária — tudo esbarra na escassez fundamental de recursos,
enganchados nas medidas governamentais de contenção e desinflação. E, de
pernas amarradas nos orçamentos, pergunta-se porque a Universidade não
corre. Foi essa a primeira imagem que me ocorreu, na minha primeira
semana de experiência no alto cargo de Reitor da U.F.R.J. — e a repetir
várias vezes à luzida equipe de Sub-Reitores, que denodadamente me assiste
e resiste a meu lado. Daí o grande desafogo de horizonte quando o
Presidente Médici decidiu dar o definitivo impulso na implantação do
“campus” universitário — e, consequentemente, assegurar o êxito da reforma
por que tantos batalham a tanto tempo.

Vamos levar o raciocínio para outras bandas, resvalando ao plano da


indagação doutrinária: será mais aconselhável, na sugestão do exemplo
americano, não depender do Estado como órgão financiador? Em países
subdesenvolvidos, a interrogação comporta visivelmente respostas
inteiramente diferentes et pour cause. Nem vale a pena demorar neste
aspecto de uma alternativa esquemática entre a subordinação ao poder
estatal ou às organizações empresariais e confessionais. Quando o Japão
deparou o dilema — soube discernir o rumo que o desviaria de um
colonialismo regressivo. Portanto, há vários caminhos abertos à iniciativa
dos estadistas que ouvem os estudiosos atentos às inspirações profundas de
seus próprios países.

Muitas vezes estamos a ver a árvore sem ver a floresta. Houve quem
dissesse que não é problema de mais verbas, mas de melhor distribuição de
recursos. Comparou-se a fraca competição de candidatos em Direito e
Ciências Sociais com o forte afluxo à Engenharia, Medicina e Tecnologia.
Querem excluir um aspecto para valorizar outro, e buscar, numa
complexidade de independências, uma função única e privilegiada —
simplificando termos da interrogação. Evidentemente, uma distribuição
racional de recursos minoraria a intensidade da aflição que lavra no campo
dos responsáveis pelos destinos da Universidade. Apenas atenuaria; não
resolveria os problemas fundamentais. O ajustamento da oferta de vagas à
procura da mão de obra intelectual, que a Universidade pretende fornecer às
necessidades do industrialismo crescente, é a face econômica, a ser
examinada segundo as diversas carreiras profissionais no seio do
desenvolvimento do país.

De modo breve, temos os dois campos — de um lado, o das ciências físico-


naturais e tecnológicas; de outro, o das ciências histórico-sociais e jurídicas.
Estamos vendo se configurar, sob essa dicotomia sumária o velho dualismo
que se armou desde a alvorada da campanha tecnicista entre nós — dualismo
importado da velha civilização européia, que em boa hora copiamos e de
que somos tributários inevitáveis.

Não comportando este nosso cavaco o debate do magno assunto, limitamo-


nos, brevitatis causa, a condensar observações que presumimos aceitáveis.

Do mesmo modo que o bacharelismo das elites tradicionais do Império e


começo da República representou uma exigência da sociedade patriarcal e
agrária, o tecnicismo exprime já a transformação industrial que se acelerou a
partir da primeira Guerra Mundial. Era uma reivindicação teórica, que
define bem a obra de Alberto Torres, a denunciar nossa literatura política
cheia de devaneios líricos do liberalismo, mas que só adquire consciência
crítica depois de 1930. Daí avante toma-se estribilho obsessivo até os dias
correntes. E a tal ponto agora magnetiza os espíritos que, unilateralizados,
perdem a visão integral do problema para circungirarem no tecnocratismo,
caindo no erro oposto: o sentido histórico e social, que o processo científico
desempenha na vida nacional, desaparece por asfixia do humanismo, que é
precisamente o elemento vital que permite a perspectiva humana do
desenvolvimento coletivo.

Outro problema a que aludimos no introito, diz respeito à “massificação” —


isto é, essa intensificação dos processos comunicativos que, com o
progresso tecnológico, multiplica os fatores de ampliação espiritual.
Monopolizados pelos órgãos de controle, tendem a uniformizar hábitos,
opiniões, atitudes, crenças. Logo perceberam os Estados totalitários, a partir
do nazismo, que a secretaria de propaganda era importante ministério de
massificação partidária. A preparação para o totalitarismo político se apoia
nas técnicas peculiares a certo tipo de comunicação e ensino. Totalitarismo
que, no socialismo marxista ou no nacionalismo fascista, é
impressionantemente igual na sua metodologia política de conscientização
coletiva, deslocando a capacidade decisória individual para lideranças
carismáticas. Educar, confundiu-se consequentemente, com adestrar.
Obediência, com a eliminação da crítica, não se distingue de servilismo. A
consciência entorpece. Porque consciência é instância optativa, debate
interior, seleção de rumos, — e desaparece, quando o objetivo é formar
automatismos e reflexos rápidos. Não há dúvida de que o maquinismo de
difusão espiritual, aperfeiçoado com as invenções técnicas, incentivou o
alargamento mental da sujeição ao comando.

A ideologia do valor numérico, sob forma ilusória de democratismo,


conduziu à falsificação democrática da divinização das massas, que Duguit
apontou nas teorias do Direito público, nos começos do século. No terreno
pedagógico, passou-se a opor uma “Universidade de massas” a uma
“Universidade de elites”. Como se argui o “elitismo!” Ouviu- se o galo
cantar sem saber onde. Que as massas por si mesmo nada valem é coisa
sabida, mas raramente proclamada. Há grande temor de ofender esse
popularismo chibante que avança tambour battant. Mas eles sabem que a
massa é força bruta, exige direção, que sempre vem de uma elite, em sintonia
com as tendências historicamente existentes. Cabe às Universidades a
preparação das elites solicitadas por determinada sociedade em certa fase
de seu desenvolvimento. Jamais as Universidades receberam massas;
recrutam os elementos intelectualmente capacitados. O esforço dos
ideólogos revolucionários é ligar indissoluvelmente a estratificação social
existente e a estrutura do poder, tirando dessa conexão a consequência de
que não se muda a Universidade senão subvertendo as bases de toda a
sociedade. No fundo tais ideólogos estão presos ao pensamento totalitário,
empenhados na instalação do Estado ditatorial de tipo leninista. Toda
argumentação deles, quando se aprofunda, visa apenas fazer da Universidade
a alavanca que promoverá a mudança de todas as relações humanas para
aquele tipo de patriarcalismo soviético. É necessário esclarecer bem tais
pontos, que ainda são obscuros na cabeça de muita gente, ignorando que se
pode mudar em várias direções progressistas sem cair nos regimes que
suprimem as liberdades fundamentais da livre pesquisa e das prorrogativas
culturais da vida universitária. Mais do que nunca se compreende que a
educação superior é componente vital do crescimento econômico; cumpre
esclarecer-lhe os fins tendo em mente as relações entre o processo de
acumulação do capital, que é puramente social e o progresso tecnológico,
que é essencialmente científico. O problema educativo tem aspectos
qualitativos, que se entremostram nitidamente nas conexões entre as áreas de
estudos e profissões e as atividades industriais. Não basta examinar séries
de índices econômicos para avaliar-se a natureza das transformações
qualitativas, que determinam as mudanças do ensino tradicional, e que se
devem encarar simultaneamente com o aspecto quantitativo. Ao valorizar o
qualitativo, queremos acentuar a posição dialética do enfoque — e não o
desligo do quantitativo: há implicação recíproca indispensável à
compreensão do problema.

Ora, quando me refiro aos “capazes”, não passo a fixar limites. Aludimos
aos melhores dotados pela natureza, que devem ter acesso social à
Universidade. O magno problema é, pois, atenuar ou suprimir as diferenças
econômicas que perturbam aquele acesso, permitindo a circulação de
valores que formam as elites. A gradual supressão dos privilégios sociais
resultará da valorização, cada vez mais reconhecida dos privilégios naturais.
Quem nasce com talento matemático ou musical é um privilegiado.
Privilegiado é quem possui intuição poética ou excelentes cordas vocais. É a
natureza que dá a premissa maior. A sociedade não pode eliminar a
desigualdade natural, mas exaltá-la, vigorizando os bons através da
educação. Mas a maioria não é constituída de privilegiados, diga-se a
verdade. A maioria é de medíocres, de ineptos, de incapazes, não apenas
como resultado das injustiças sociais, mas das desigualdades biológicas.
Isso sem mencionar os fronteiriços da normalidade — o mentecapto, o
imbecil, o cretino orgânico, o oligofrênico larvar, o paranoide rebelde, essa
borra social que constitui muitas vezes o fermento das revoluções. Os
estudiosos sabem que os movimentos históricos têm suas leis imanentes nas
contradições internas das sociedades humanas, mas também não ignoram que
essa leva de desajustados é uma componente expressiva nas operações de
tumulto e destruição.

Desmassificar é destacar a personalidade, exaltando-lhe as aptidões


originais, as faculdades criadoras e próprias, que a distinguem e
singularizam. Ora, é precisamente este o papel nitidamente educativo, a
função essencial das Universidades — a criação de elites que não resultem
de privilégios herdados socialmente, mas de privilégios biologicamente
constituídos na misteriosa herança genotípica.

Vou logo antecipando uma objeção fácil: a de que a herança cromossômica,


responsável pela formação de privilegiados naturais, não é condicionada
pelos estratos sociais e que são os contingentes das camadas beneficiárias
que desfrutam melhores oportunidades. Por isso mesmo indicamos a vexata
quaestio na ação reformadora que colima facilitar os acessos aos em
dotados, descobrindo-os e recrutando-os em todas as camadas sociais. Nisso
está o lado social mais sério da reforma — e não significa “universidade de
massa” que arrasaria os feudos do ensino oligocráticos, como pregoam
entusiasticamente. Ou finoriamente, não sei ao certo.

Em suma, coibir a seleção negativa, que a perpetuação dos privilégios


antinaturais estabelecem, para dar alento à seleção positiva, que a cultura
está solicitando cada vez mais como um imperativo inadiável. Das palavras
anteriores, não se infira qualquer justificativa para que grande número de
estudantes, que anualmente batem às portas da Universidade, seja reduzido
ao numerus clausus dos que logram transpor as barreiras vestibulares.
Mesmo porque os critérios seletivos são falhos e urge aperfeiçoá-los
rapidamente, a fim de não rechaçar valores legitimamente voltados ao estudo
superior. Se a Universidade não é um campo aberto, que faria decair o nível
do ensino, também não se admite esse paradoxo gritante de manter a
estreiteza de uma organização que frustre tantas aspirações da juventude
capaz. Leio, num ensaio, que o ritmo de crescimento da demanda na
educação superior, no México, cresce mais de 50% que o aumento do
ingresso real. No Brasil, embora o gasto com educação tenha crescido
ultimamente, a despesa, apreciada em termos reais, é insuficiente: de 1960 a
1966, subiu 2,2% a 3,3%: Em 1967 enquanto o crescimento demográfico foi
de 3%, aquela despesa chegou apenas a 3,5% em percentagem do produto
interno bruto, inferior aos E.U., que subiu 4,6%, num ritmo demográfico de
1,2%; o Japão, 5,3%, a U.R.S.S. 7,1% ambos num aumento de 0,2% segundo
dados do Ministério do Planejamento.

Calcula-se em 100 milhões a população brasileira no próximo ano de 1972.


Vamos continuar oferecendo 6 mil vagas na UFRJ? Tiraremos 6.000 de uma
massa de cerca de 35.000? Não, meus senhores, não é essa seleção que
devemos justificar. Dos 29.000 excedentes, evidentemente uns 15 a 20.000,
sem qualquer favor, teriam acesso legítimo, presumivelmente. Tal número,
entretanto, desorganizaria as estruturas existentes e insuficientes — e então
teríamos que falar, quase sem intuito metafórico numa “explosão
pedagógica”, que, até certo ponto, seria repercussão da outra, da
demográfica. Explosão que não seria combatida a pílulas industrialmente
confeccionadas. A onda vem mesmo bater nos patamares da Universidade e
os diques são irracionais. Poderão dizer-nos: e porque o Reitor não
responde à interrogação em vez de fazê-la? é que a resposta está na mente do
Reitor, na do Professor, na do Ministro, e na do Presidente da República —
que não há solução repentina e cabal. Porque é uma solução dependente de
recursos, que são cerceados por medidas que escapam aos seus arbítrios, às
legiferações e competências.

Outro grande ponto que vem acentuado com bastante ênfase na Reforma é a
indissolubilidade entre pesquisa científica e atividade docente. Nele se
encontra mesmo a diferença específica entre os dois tipos de Universidade
— o tradicional, que procuramos superar, e o atual, que procuramos instituir
este vínculo entre pesquisa e docência evidencia o processo que implica
numa tomada de consciência das necessidades sociais. Terá como corolário,
a formulação científica, fora das exaltações ideológicas, das mudanças para
novo tipo de relações entre os homens. É o papel transformador, que as
instituições do ensino superior são chamadas a desempenhar. Se as
Universidades não assumem a liderança desse processo — qual o órgão
mais capaz de fazê-lo? Não o conheço. Se recusamos-lhes a função
reformadora — só restará o caminho da agravação das lutas de classe e a
política chinfrim dos demagogos, capitaneando o sonambulismo messiânico
das massas atrás dos chefes carismáticos.

Tal liderança deve ser bem definida e na plena consciência dos objetivos
culturais. É tempo de dizer claramente que a hegemonia da pesquisa deve ser
limitada pela vocação suprema da Universidade, que é o humanismo
reelaborado nas perspectivas do conhecimento moderno. A Universidade
não é a usina de fabricar tecnologia para o industrialismo: tem um plus, que
ultrapassa tudo isso.

A Universidade, nesse ângulo de vista exposto, tem função autodinâmica e


reconceptiva: ela se toma o órgão, que promove a mudança e repensa a
problemática estrutural, dentro do processo de desenvolvimento. É um
centro ativo de elaboração científica ligado ao contexto social — e só
funcionará bem quando ajustar satisfatoriamente a oferta de vagas à procura
de profissionais, o que, noutras palavras, traduz a inserção das estruturas
docentes no processo econômico. Decorre daí a necessidade de planejar sua
educação superior dentro do ritmo de seu próprio desenvolvimento, de tal
modo que, em vez de entraves à expansão, se torne o mais forte de seus
estímulos. A relevância dos estudos de pós-graduação e especialização foi
determinada precisamente pela valorização qualitativa do ensino superior.
Essa valorização não exprime aspirações ou metas idealizadas por teóricos,
mas decorre do progresso tecnológico, das invenções labor saving. Ressalte-
se a contradição inerente: ao lado desse efeito qualitativo, os múltiplos
efeitos massificadores dos processos de comunicação que promovem a
consciência coletiva de formas de comportamento massificado, no qual a
personalidade se dissolve no caldo de cultura onde corre toda sorte de
estereótipos, anulando o valor original das faculdades criadores e críticas
individuais. Não devemos esquecer, entretanto, que, no seio do processo
econômico, a capacidade de absorção do mercado de trabalho qualificado
limita a ação universitária, ao mesmo tempo que lhe inspira o conteúdo e o
enfoque tecnológico. A carência de escoadouros do ensino médio para o
trabalho qualificado, que profissionaliza, é uma das maiores deficiências de
nosso sistema educacional, que foi parcialmente remediado com a criação
do Sesi e Sesc. O sistema, aliás, não atendeu a sintonia, que deve existir
entre a estratificação social e a estratificação por níveis de escolaridade,
variável no meio urbano e no meio rural. Aí deve predominar o critério
extensivo, não o seletivo, como no ensino superior. E o último ponto que
desejo assinalar nestes comentários: há trabalho administrativo crescente,
dentro de uma Universidade, que é estranho à competência do professorado.
É necessário que se desentranhe dos postos chaves da Universidade aquelas
funções, que são de ordem puramente administrativa, que deverão ser
atribuídas a profissionais da administração, com especialistas capazes de
atuar entre o campo docente e aqueles serviços. Não há dúvida que existe
grande diferença entre os conceitos de “administrador profissional” e o de
“docente profissional”, cada um deles tendo perspectivas independentes e
peculiares no processo de modificação das estruturas universitárias. A
Universidade não ensina porque pesquisa, mas pesquisa porque ensina.
Nisso está a definição docente de sua atividade. A função de transmitir
cultura implica na função de desenvolvê-la, porque se trata de um processo
orgânico de crescimento. De modo que nesse processo criador, reside a
notação genética do Conhecimento como interpretação vital da Realidade,
inerente ao próprio processo histórico. O velho hábito do logismo formal,
que desquitava o conhecer do agir, abstraindo a vitalidade da contradição
essencial a todo processo, punha o problema em termos de exterioridade
morta. Conhece-se pesquisando e pesquisa-se conhecendo. A primeira
consequência da nova atitude, essencial à Reforma, vem a ser a ruptura
daquele modelo dualístico para que se obtenham, a seguir, as flexibilidades
curriculares, as relações interdisciplinares das ciências e respectiva
supressão da rigidez das séries, a liquidação das cátedras autárquicas para
instaurar a unidade dos Departamentos — toda essa estruturação que a
Reforma planeou, com suas primeiras bases apenas ensaiadas, assoberbadas
de dificuldades. Não temos ainda o funcionamento normal dos
Departamentos nas infraestruturas, nem se organizaram os Decanatos e
Centros Universitários de estrutura média, que baniria totalmente o chamado
“feudalismo da cátedra”. É natural que os interesses cristalizados no
arcabouço resistam mudar. Até a sensibilidade dos professores velhos
conspira brandamente no ceticismo. Essa vis inertiae é multiforme,
indefinida, prevalecendo-se das perplexidades que nos cercam e às vezes
tem sua vaga simpatia com os protestos que nascem, no alunado, de um
sentimento oposto — do sentimento de que não se reforma nada, não se
avança nada e perde-se tempo em contemporizações inúteis. Assim, a
impaciência progressista dos jovens não destoa senão na essência da atitude
retrógada de alguns passadistas, que se envolvem no ceticismo, com efeitos
apenas no demorar a marcha da transformação. E temos o espetáculo
divertido de ver os que levantam bandeiras e brados contra o “colonialismo
tecnológico” ajudando os mais retardatários propósitos de eternizar essa
situação de subdesenvolvimento Cultural da Universidade,

Para que remexer estatísticas, repetindo o que tanto se diz? Nunca se disse
tanto a mesma coisa a respeito das dificuldades de financiamento para
realizar os planos legislados e aprovados. Escandalizar-se porque de 4
milhões e meio de matriculados na escola primária somente 1 milhão e meio
se diploma (três graduados para 10 mil) é demonstrar bons sentimentos
cívicos. Entre o primário e o superior, há a tragicomédia do ensino médio,
de onde saem os afluentes tristíssimos para a Universidade. Mas será mais
prudente não falar dessa mercantilizadíssima área de pirataria do ensino
médio...

O relatório do Grupo de Trabalho criado pelo Decreto 62.937, de 1968,


reconhecia nessa autoconsciência renovadora e crítica, a melhor força
cultural que a Universidade representa. “Longe de ser mera consciência
reflexa, termina por atuar diàlèticamente sôbre a sociedade da qual faz
parte” — diz o mais sério documento da Reforma. Exatamente porque se
torna órgão consciente dos fins sociais (recusa, diga-se de passagem, a
expressão “consciência reflexa”, porque a consciência emerge da própria
dialética da reflexão, que nada tem de reflexo, mas isso é um reparo
filosófico) — assume esse alto papel crítico e reflexivo, que caracteriza a
ação transformativa por excelência. Daí a Reforma ter em mira,
praticamente, “conferir ao sistema universitário uma espécie de
racionalidade instrumental em termos de eficiência tecno-profissional, que
tem por consequência o aumento de profundidade dos sistemas econômicos”.

O que tão arduamente se procura implantar, não parte do nada, é um


processo vivo, que está condicionado a instalações materiais onde encarne.
Isto é, carece inadiavelmente de estruturas novas, onde se possam exercitar
os novos métodos e os novos estilos de vida universitária. Em suma, o novo
espírito exige um novo corpo, que é a Cidade Universitária. Não se trata,
pois, como disse um crítico exaltado, de mero transplante do antigo para uma
perspectiva faraônica — perspectiva que parece ter iludido os primeiros que
idealizaram os lineamentos de Cidades Universitárias em vários Estados e
na ex-Capital Federal. Dessa fase utópica ultrapassada, herdamos
problemas, que serão corrigidos no curso da implantação e na medida do
possível, redefinindo algumas questões sem deter a marcha improrrogável.
Entretanto, alguns críticos, levados pela idéia jamais proclamada de que a
Universidade é apenas a alavanca ideológica de promoção da revolução
social, acusam, a título de combate ao neocolonialismo cultural, a encetada
Reforma como máscara destinada a encobrir fatores de obscurantismo e
regressão cultural, com fins suspeitos. É uma atitude sectária ditada por uma
ideologia internacional. Só aparentemente reclama o famoso diálogo —:
porque seus portadores carecem de permeabilidade mental para a
compreensão dos argumentos adversos. No íntimo, sabem que a
possibilidade de ajustar as instituições docentes às novas exigências
acarreta-lhes apenas o perigo de adiar as agitações que esperam mais fortes
se o desajustamento existente se agravar. E raciocinam com esses objetivos à
vista. Evidentemente, cada passo da Reforma no sentido das soluções
parciais, que advirá, de sua progressão evolutiva, trará o diferimento do
milênio catastrófico que é o alvo revolucionário. Sua postergação os aflige,
sua antecipação os entusiasma — e nisso está o seu encefalograma histórico.

Decerto que são os ideais pedagógicos que alentam as forças


transformativas, compelindo vitalmente a expansão da cultura. Idas o modo
de realizar as mudanças e de criar as novas estruturas, é preocupação que se
dilata pelo campo das relações do direito administrativo, cuja sistemática é
pouco permeável ao espírito reformista, ancorada nos interesses mais
conservadores e atrasados. De onde facilmente se deduz que esse
“profissional administrativo” que deveria agir no seio das estruturas
universitárias não existe entre nós — porque teria de atender a condições
diferentes a do espírito renovador, que sensibilizasse a necessidade
imperativa da mudança, aguçando-lhe a percepção da metamorfose que se
opera, no interesse da cultura, que a Universidade promove e representa.
Para satisfazer a exigência social desse novo administrador, toma-se
imprescindível, concomitantemente, criar uma disciplina de cunho
marcadamente definido, que seria a Administração Universitária,
incentivando a formação de especialistas que teriam funções específicas no
organismo docente. Este novo pessoal qualificado é indispensável ao
processo de desenvolvimento que deverá se ampliar cada vez mais. Só dessa
forma se poderia sintonizar os ideais do professorado ritmando-os
intimamente ao compasso administrativo da mudança, sem desafinar do teor
universitário.
III. BACHARELISMO,
TECNICISMO,
AUTODIDATISMO E OUTRAS
FEITIÇARIAS

A história dos últimos anos está revelando que não é fácil abrir caminhos
independentes entre hemisférios hostis, mas nada indica ser impossível os
esforço à busca desse rumo original. A gigantesca polarização da
humanidade entre dois núcleos de poderio mundial mantém uma tensão de
expectativa que perturba a compreensão da natureza racional da solução. Ela
terá de ser buscada dentro dos limites da ação inteligente. Será obra de arte
política, não apenas o efeito brutal de forças engendrando consequências
implacáveis. O processo de consciência histórica, que se intensifica na hora
presente, desfaz qualquer temor ou crença num destino ditado por
determinismos catastróficos onde o homem seria o títere movido por deuses,
por vontades estranhas, pelo fatum, — entidades que hoje se encobrem sob o
nome de causas econômicas ou telúricas. Bem sabemos que há uma certa
interpretação modernizada, que ainda figura o homem como o joguete do
desenvolvimento de forças que se desataram e o impelem cegamente para
fins irresistíveis. Nessas explicações, para materializar a imagem na
sugestão emotiva das metáforas, acode o episódio do feiticeiro liberando
forças que não soube mais comandar. Na essência, esse irracionalismo é um
refúgio da impotência; e sua apologia, uma confissão abdicatária de
ideologias feitas de misticismo e metáforas. E não falta como sempre quem
aceite imagens à guisa de razões, confundindo o episódio da fantasia com a
demonstração da verdade.
Decerto não se há de atribuir ao indivíduo o privilégio de plasmar seu
destino à outrance; mas, na trama dos acontecimentos que constituem a
história, se aguça, em determinadas áreas sociais, e, nessas áreas, em
determinados grupos e indivíduos, uma representação mental viva do
processo, que os toma mais conscientes dos fins necessários à sobrevivência
e à felicidade coletivas. Por isso, o que eles dizem ou fazem exprime o que
obscuramente aspiram milhares de seus concidadãos. Tal direção do sentir e
pensar, Rousseau chamou-a áe volonté générale. Ela resulta da
consciencialização a definir-se em propósitos normativos. Essa
compreensão me conduz a reconsiderar diferentes tipos de voluntarismo do
tipo carismático, pregado por filosofias políticas afogueadas de ambições
eleitoreiras que por aí andam rabeando nas mudanças partidárias; e há o
voluntarismo íntimo gerado no processo de crescimento orgânico de um
povo. Tal processo se acompanha de concentração definida do poder — e a
história deixa de ser destino, como se lê nessa literatura feita de ingredientes
messiânicos e masoquistas, a proclamar, como Camus, que o único problema
filosófico sério é o suicídio. Esses onanistas especulativos não arvoraram a
morte como tema central do pensamento por simples capricho; a atitude
reflete uma mentalidade de elite desesperada.

Eles não compreendem que o problema não é o da morte, mas exatamente o


contrário — o valor histórico da vida humana, que não pode ficar aos azares
das competições plutocráticas. Se as decisões políticas hoje se repartem
entre focos beligerantes de grupos econômicos dentro das nações industriais,
tomou-se discutível a neutralidade dum Estado liberal que exercite o
monopólio do poder político acima daquelas rivalidades. A propriedade
privada não é a base do poder econômico porque o Estado, assumindo a
propriedade dos recursos, amplia o intervencionismo através dos sistemas
de planificação. A soberania nacional, como expressa» unitária do “povo”,
sofre a ação erosiva oriunda dessa dilatação dos setores públicos, sob
influência dos oligopólios, dos partidos, dos órgãos de propaganda, das
assembleias, dos grupos de pressão. As conexões entre a administração
pública e as empresas viciam a decisão política, falseando-se o regime
representativo nas formas de um bastardo corporativismo, que é a absorção
do poder político pelo poder econômico. Tal concentração de meios
econômicos e técnicos — como ensina Henri Bartoli — determina a
aparição de centros de decisão que alteram as estruturas existentes. Daí
despertar movimentos contrários nas massas, que buscam, através da
organização do poder sindical, intervir no exercício das funções do Estado.
Recomendava Oliveira Viana — embora raciocinando em direção diversa
— que “na organização de nossas instituições políticas, é preciso que
encaremos nosso povo objetivamente, isto é, como realidade social — como
coisa viva”. É o que diz, na gíria moderna, outro escritor — “o povo real é
um povo de homens situados”. For isso, essa visão real do indivíduo na
posição concreta que ocupa dentro das relações sociais, rompe a ilusão da
homogeneidade nacional representada na soberania política do Estado,
segundo o modelo clássico das doutrinas liberais. Cabe à crítica científica
sob aquela aparência, descortinar as linhas reais da mudança social.

A sofistica aborda estes temas com a irresponsabilidade dos políticos e


publicistas jejunos de conhecimento científico. É preciso analisar a
inteligência facciosa, para mostrar como a circulação das “teorias” sobre
problemas nacionais encobre arranjos privados, que permitem depósitos
obesos nos bancos da Suíça, enquanto, nos bancos das praças públicas, o
povo os aplaude e os envia ao parlamento com o encargo de minorar as
aflições da Pátria e de representá-lo.

Todas essas implicações revelam aspectos atuais do processo que estamos


vivendo; e ao apontá-las, não o faço com intuito amargo de moralista ou para
capitalizar sufrágios nestas horas propagandísticas. Nesse clima, nasceu e
ondulou aquela bandeira do “desenvolvimento”, que formulou postulados,
enunciou princípios e construiu a. capital, credenciando até um clube de
filósofos para teorizar sobre tais esplendores.

Ora, meus senhores, desde o bispo Azeredo Coutinho, nosso primeiro


economista, que se buscam rumos para o desenvolvimento; e não me consta
que alguém ousasse resmungar objeções contra o progresso. Mesmo
nativistas, que pregaram valorização das raízes aborígenes, não tiveram a
coerência de insistir muito nessa regressão, contentando-se com vergastar
patrioticamente a imitação e cópia das coisas estrangeiras. Constitui moda
vituperar o bacharelismo que ficara de olho pregado nos figurinos
doutrinários da cultura européia, culpando-se as elites nacionais de
perderem contato vital com as realidades ambientes. “Manto floral de
devaneios líricos sobre misérrimas realidades” — disse Alberto Torres há
bons quarenta anos. E como a mediocridade não sabe ver a contradição viva
das coisas, formou-se, nesse nativismo enfezado, a imagem simplificante de
que urgia despir toda doutrina ou teoria e sacar da nossa experiência original
a cosmovisão autóctone nas artes, nas ciências e na filosofia. Esse strip-
tease cultural era o esforço supremo para criação de civilização tropical
aurida nas fontes ameríndias. Mais evidente parecia ser a imitação no plano
das instituições jurídicas e políticas — e, portanto, o bacharel das
Faculdades do Recife e de São Paulo foi posto no banco dos réus. Como
acontece nessas revisões, imputaram-lhe todo os pecados. Nos meus tempos
de acadêmico, debruçado nos códigos para fazer exames e em Alberto
Torres para aquecer debates, malhávamos a rijo o bacharelismo, enquanto,
seguíamos alegremente a caminho do bacharelato. Ao que me conste, nenhum
de nós largou os compêndios jurídicos para encetar o cultivo da cana e do
algodão ou tentar a industrialização do babaçu.

Digamos que participávamos das minorias representativas da “cultura


ornamental e reflexa”, distante da imensa legião anônima que constituía as
forças vivas do trabalho nacional. Elites recrutadas nas camadas dominantes
do patriciado agrário tão bem caracterizadas pelo grande pioneiro da
sociologia no Brasil, que foi Oliveira Viana. Ainda é saudável repetir a
lição de seus livros primorosos. Mas quando uma verdade começa a ser
acentuada além de seus limites, absorvendo outros aspectos, logo também se
inicia, por efeito de contradição imanente, o processo de sua negatividade.
Assim, à. medida em que se insiste no denunciar o “ornamentalismo reflexo”
de elites alienadas do meio brasileiro, começamos a descobrir que elas não
foram tão inconscientes dos problemas em torno. Ao contrário cuidaram
perspicazmente das interrogações emergentes, que corresponderam
nitidamente ao seu papel histórico. Aquele “ornamentalismo” teve cunho
realístico e sob a aparência alienada palpitou o sentido de nossas
“vivências” — o que explica a nossa sobrevivência como povo.

Aquela “nação essencialmente agrária” teve, até a primeira guerra mundial,


possibilidades de integrar-se ao influxo do dinamismo do mercado
internacional como exportadores do açúcar, do café, da borracha ou do
cacau. Mas a tal ciclo ligava-se o desenvolvimento de um capitalismo
mercantil conjugado ao patriciado rural que tendia a retardar o processo
industrial desejoso de alargar os quadros existentes de uma economia
acanhada. Nessa economia de exportação, os bancos, os portos, os
fêrrocarris, os beneficiamentos dos empréstimos externos, tudo é construído
a serviço de empresas que funcionam para fora do país. As artérias da
riqueza conduzem tudo para o mercado internacional, onde estão os centros
de decisão econômica. É uma economia extrovertida. A introversão só é
possível pela industrialização: romper o subdesenvolvimento é interiorizar o
comando de sua própria vida econômica. De que maneira se verifica esse
frenamento das forças do sistema? Hoje é fácil de ver porque as formas,
outrora embrionárias, se expandiram plenamente. Nesse quadro da economia
rural há insulamento relativo das regiões, que por sua autossuficiência pouco
participam dos mercados. Disso resulta certa tendência conservadora dos
artesanatos e de formas patriarcais de retribuição. A agricultura comercial
determina o deslocamento das lavouras tradicionais dos meios de
subsistência, enquanto a produção manufatureira tende a substituir a
produção artesanal das atividades mais ou menos domésticas (objetos de
couro, rendas de bilros, artesanatos de palha etc.). O sintoma mais visível é
a expansão da faixa monetária como consequência do impacto desse
capitalismo mercantil no seio da economia agrária, sem, entretanto, abrir- se
rumos à industrialização: a acumulação do capital não acelera a
transformação dos investimentos em equipamentos industriais porque as
limitações dos interesses mercantis e agrários circunscrevem-lhe a órbita
social e política: cada fase dessas transformações configurou-se de forma
específica segundo as circunstâncias de sua evolução. Não há, porém uma
história uniforme dessas mudanças, — mas histórias sociais das estruturas
em diversas situações.

É por isso difícil caracterizar como “feudais” as estruturas pré-capitalistas


da China, das aldeias comunais da índia, dos latifúndios ibero-americanos
ou da aristocracia territorial do império — compreendendo-as num só
esquema. Dentro de cada uma dessas estruturas se operaram desagregações
de tipo variado. Por sua vez, há diferentes estilos de ação, suscitando, no
seio das comunidades, respostas variadas de acordo com a composição da
população, o grau de diferenciação das camadas ou classes econômicas, a
divisão social do trabalho, a situação das camadas mercantis e artesanais, a
urbanização, as relações entre elas e as camadas agrárias etc., novos
métodos para criação de novas formas de riqueza.
Na América Latina, o processo de industrialização não percorre as linhas
clássicas para destruir as bases da economia pré-capitalista vigente ainda
nos subdesenvolvidos: circunstâncias novas modificam o problema que
economistas de oitiva não compreenderam. Destarte, sob estilos de ação
política das nações industrializadas, abrem-se perspectivas diferentes às
nações subdesenvolvidas em detrimento da esfera industrial. Aquela área,
vinculada aos mercados e à finança internacional, torna-se aliada espontânea
da economia agrícola, até certo ponto hostil às transformações reformistas
exigidas pelo processo industrial. Este aspira a expansão do mercado
interno, que é pressuposto vital de sua organização. É o inimigo natural de
todas as formas artesanais de produção doméstica, e das formas pré-
capitalistas de distribuição. A consequência será a diminuição da exportação
de matérias primas, que passará a ser utilizada internamente: serão fontes
que estíaparão do controle dos Estados industriais. Compreende-se a falta de
entusiasmo dessas potências para incentivar a industrialização. A
autossuficiência das ilhotas de valores de uso desaparecerá no processo
crescente da rede dos valores de troca, com toda as suas consequências:
aparelhamentos bancários, desintegração das formas de contrato de trabalho
rural, das formas dos clãs eleitorais, desagregação do paternalismo político.

Concentremos a atenção no ponto essencial desta exposição. Até onde se


poderia falar de “cultura ornamental e reflexa” no Brasil? Em que medida
foram as elites intelectuais alheias ou desajustadas à realidade ambiente? E
até que grau seus atuais acusadores estão ipso jacto distanciados dessas
mesmas realidades?

Se me permitem recordar, por alguns rápidos minutos, o velho Hegel, direi


que, na sua acepção, cultura é forma de alienação. O que o homem criou
espiritualmente já implica o processo de alienação, onde a linguagem seria o
fator essencial: a criatura é desconhecida pelo criador, que perdeu a
consciência da paternidade: daí a estranheza e a descoberta do estranho. O
vocábulo entrou em circulação, por condutos de um abundante filósofo de
nosso “desenvolvimentismo” convertido febrilmente ao marxismo e
furibundo profeta antiuniversitário, e está no jargão dos estudantes como
outros tantos conceitos. Na “Carta do Paraná", documento ingênuo do
marxismo desidratado que por aí trescala, o conceito aparece, na posição de
substantivo, de adjetivo e de verbo, um sem-número de vezes para
caracterizar principalmente o sistema pedagógico vigente.

Já se falou até em casta ou estamento professoral, que seria o corpo


representativo dessa “cultura ornamental e reflexa". A caricatura, que é
meia-verdade, correu mundo, como verdade e meia. Quero, precavidamente,
expor alguns embargos à sentença que por aí se alarga, fragorosa e juvenil.
Convenho em que os órgãos universitários, como estruturas arcaizadas, estão
distanciados dos ideais renovadores e não exercitam a função que deles
espera a juventude estudiosa. Há longo tempo que se viu tudo isso. A
sociedade industrial marcha celeremente — e o ensino superior não lhe
acompanha o ritmo de compasso crescente. A impaciência dos estudantes,
ansiosos de saber moderno e ávidos de novas técnicas, ameaçam novas
explosões contra essa universidade borocochô, que lhes pintaram insulada
na sua “alienação” e idiota nos seus objetivos. Idiota na acepção semântica
da voz grega: estrangulando, no esclerosamento de suas artérias docentes, as
ondas renovadoras. Acusam os mestres de caducos, arcaicos e mesmo
reumáticos — e assumem ares de “incompreendidos” nas suas aspirações
revolucionárias, filantrópicas e humanísticas. Um auto humorístico, que se
publicou na revista “Tempo brasileiro”, fez uma turbulenta crítica da
Universidade, promovendo-lhe acanalhamento entusiástico.

Tudo isso é muito significativo e não se sabe quem lançará a principal pedra.
Mas ouso pedir que se retome o tema com frieza ou pelo menos sem
virulência emocional. Restabeleça-se uma preliminar para iniciar o debate:
a de que o pouco que os professores já estudaram e querem transmitir aos
alunos não lhes atrapalhará a compreensão do assunto. Não exagero, apenas
anoto o que ilustre catedrático, tomado de exaltação revolucionária,
escreveu num fascículo — em que nos nega a quase todos o direito de dar
palpites sobre a sorte da Universidade. Disse esse desvairado apóstolo da
redenção nacional: “Todas estas respeitáveis personalidades acreditam que
a Universidade é um templo sagrado, onde uma corporação de sacerdotes do
saber pontifica sobre todos os assuntos, na plena posse da verdade”. Só
quem não entrou numa Faculdade brasileira poderia crer nisso. Desde
Tobias Barreto que essa corporação sacerdotal, entre renques de alunos
reverentes, desapareceu — e reina cada vez maior familiaridade, que,
nalguns casos, raia pela indisciplina. Afirmar aquilo é positivamente faltar à
verdade. Mas o ilustre membro de corporação sacerdotal prossegue: “os
cursos das Faculdades são praticamente o desenrolar passivo, escassamente
atento, interessado em cumprir o ato de presença”. Faz a descrição
imaginária de uma solenidade imaginária num tempo imaginário. Alienação
— de quem? do autor. Ele pertence ao “seleto corpo professoral que prestou
juramento à classe superior” e explica-nos agora “luta de classes no interior
da Universidade”. Não se trata de “luta de gerações de cunho meramente
literário e romântico e tem objetivamente significado reacionário” — como
bem escreve o autor num concurso de docente, na Faculdade de Filosofia, já
o havia dito do alto da cátedra reaça que ele combatia nos idos de 63. Viu a
“esquerda professoral” composta de frustrados, ressentidos, indecisos,
bajuladores de aluno, populistas, preguiçosos, retardatários, faltosos; e, no
final, “o homem de esquerda ideologicamente autêntico”. Ninguém escreveu
com tal furor ideológico sobre a construção da Universidade, partindo da
estaca zero contra o “embuste do pedagogismo reformista” promovido pelos
“magnatas do ensino”. Replicou-lhe a tempo o prof. Aliar O. Gomes: “Não
negaria eu jamais a existência de aves empalhadas, manequins e oportunistas
entre os professores universitários. Não negaria tampouco que esses
espécimes representam verdadeiro flagelo para a Universidade e para os
estudantes e para o movimento cultural do país. Mas constituem eles
maioria?” Claro que não. Mas todos são acusados de submissão ao capital
estrangeiro e agentes do imperialismo. E qual remédio nos apontava o
professor insurreto? Sujeitar a Universidade ao Parlamento! Não se acredita
na seriedade da proposta — principalmente quando se observa a deturpação
do sistema representativo pelo poder econômico. O marxismo-leninismo,
privado de qualquer validade objetiva, se converte em uma sofistica velhaca
que só poderá seduzir o socialismo pré-pubere dos incipientes no meio
cultural, onde recruta o seu proselitismo.

Ninguém discorda de que o progresso científico, criador das técnicas


modernas, que asseguram ao homem o domínio impressionante das forças
naturais, é função de elites científicas. Nunca o saber teve tão profundo
impacto sobre a vida coletiva. Tais afirmações já se tomaram lugares
comuns, linguagem dos que se voltam para tais problemas. A seguir, outros
estudiosos inspirados noutros pregadores observam que ao progresso
técnico não correspondeu o processo moral — e houve então uma
defasagem. Dela, como da caixinha de Pandora, espirram os males. Diante
desse hiato, o remédio ingênuo é fortalecer moralmente o homem. Então o
problema, em vez de residir nas estruturas da vida coletiva, passa para o
interior de cada um, entra na jurisdição da consciência. Interiorizando-se,
individualizou-se. Já não está no processo histórico, desapareceu do mundo
das relações humanas e das coisas exterior. Não adiantaria, pois, querer
enxergar, nas desigualdades de benefícios e rendas entre grupos e classes, a
fonte dos males e das agitações, porque tudo isso seria causas próximas e
efêmeras; as verdadeiras e profundas estariam nesse desadorado afã de
conhecer, de descobrir, de controlar, que a ciência representa. E não custa,
nessa altura do raciocínio, começar a culpar o saber excessivo como orgulho
que ofenderia a Providência. A riqueza, portanto — dizem eles — conduz à
infelicidade. Quão venturosa a idade patriarcal e agrária! Encontramos em
muitos economistas essa crítica do capitalismo industrial — que destruiu o
idílio da paisagem quieta da civilização rural. Entre nós, as saudades do
patriarcalismo canavieiro renderam boa literatura sociológica.

De modo que, a cada passo para frente, com as renovações técnicas,


produzem-se mudanças nas relações humanas e morais. É quando a
renovação tem mais profundidade revolucionária em virtude das descobertas
— outrora a energia elétrica, hoje energia nuclear — então a crise
impressiona. E imediatamente ressalta que o problema moral tem suas raízes
no ajustamento entre o progresso material e a organização política. O hiato é
entre o científico e a estruturação do poder. O que está em cheque não são os
códigos éticos, não é o decálogo mosaico, não são as normas religiosas — é
o sistema das relações de convivência humana onde a propriedade é
colocada acima das exigências sagradas da liberdade c da vida humana. Eis
a inversão monstruosa, que o tecnicismo não percebeu, nem poderia
perceber. Somente o humanismo será capaz de mostrar que, acima dos dois
grandes centros hemisféricos de aglutinação do poderio mundial, está a
consciência do genus humanum, que há de superar o antagonismo em nome
do futuro da própria espécie.

A solução não pode ser esse cesarismo nacionalista de “democracias de


massa” — que leva ao Estado Leviatã como sistema de governo. Debalde se
buscará nessas autocracias inquisitoriais o conteúdo humanista que animou
os ideais do socialismo. Sob configurações do leninismo, desnatura-se o
humanismo na hegemonia de uma máquina partidária que manipula o
servilismo executivo de sequazes que abdicaram de todo espírito crítico.

Tais informações começaram a ser tratadas nos meios estudiosos brasileiros.


Por que demoraremos em examiná-las? Claro: o subdesenvolvimento é o
culpado. A consciência dos subdesenvolvidos é subdesenvolvida: assim
opinam críticos que não sei bem onde vivem, mas são decerto prodigiosos,
porque escapam das limitações e perscrutam horizontes de águias. Situado
na área social da consciência ingênua e ligado à minoria universitária da
alienação, resta-me afirmar ocasionalmente que o problema entra em debate
na hora em que urge debatê-lo. Não foi o alvoroço repentino, que por aí
sacode a cauda, que trouxe, de chofre, os problemas do humanismo científico
e da reforma universitária para a controvérsia dos intelectuais brasileiros.
Que o suponham os meninos, que agora se iniciam nos estudos, é
perfeitamente admissível. Mas é inexplicável que o digam inteligências
adultas, a não ser a de algum cortezão da popularidade universitária.
Bastaria recordar como se vem desenvolvendo o processo histórico do
pensamento nacional, através de suas lutas contra preconceitos e rotinas,
contra práticas governamentais e resistências tradicionais, para se perceber
o encadeamento genético dos diversos momentos de nossa educação.

O tecnicismo e o humanismo foram postos em confronto como soluções ou


atitudes contrárias e rivais. A crítica do beletrismo veio como crítica do
bacharelismo; e apoiava-se nas ciências físico-naturais, que deram impulsos
em direção anti-metafísica nos estudos históricos-sociais nos fins do século
passado. Mas o “tecnisismo” não é senão o desligamento entre as ciências
biológicas e físicas e o contexto social, que lhe dá o sentido histórico.
Desentranhando-se das relações de convivência, seus cultores perdem
gradativamente a consciência viva dos destinos comuns. É o processo de
titerização, isto é, da formação dos títeres, quero dizer, de especialistas
clausurados no especialismo, verdadeiros eunucos do saber circunscrito.
Esse processo de desumanização, de esvaziamento social da pessoa humana,
é a metamorfose em que o “técnico” vira uma “peça” do sistema político. E
se tal acontece no capitalismo, o fenômeno é violento e terrível no
socialismo de tipo totalitário, com a asfixia dos órgãos críticos por uma
ideologia disciplinadora, onde desaparece a vida privada absorvida na
onipotência do partido único.
Mas, leitor, muito antes de tal ofensiva ser desencadeada nestas paragens, já
a análise do ensino secundário e superior fora feita por educadores
eminentes. Haveria necessidade de citar os nomes de Almeida Júnior, de
Fernando de Azevedo e de Anísio Teixeira, para limitar-me aos maiorais?
Foram inspiradores de todas as cruzadas pedagógicas. Os manifestos
lançados ao país e aos responsáveis pelos seus destinos escalpelaram os
vícios oriundos de um humanismo desquitado das ciências antropológicas e
sociais — e o perigo de enveredar por um tecnicismo, que suprime as
perspectivas históricas e reduz o trabalhador intelectual a mero serviçal das
organizações que se entrosam na máquina governamental. O maior risco é a
ablação da consciência, dando esse subproduto de civilização industrial, que
é o “técnico”, cientista que se fechou na sua cápsula e recebe da cultura
geral apenas as pastilhas sintéticas que lhe são confeccionadas pela
pedagogia oficial. Assim, o processo sutil de asfixia ou domesticação da
vida interior, pode realizar-se por métodos ditos “democráticos”, ou por
métodos autocráticos do partido único. O bolchevismo é a expressão política
das razões de Estado russo: há muito que ali o marxismo tomou posições
próprias, sujeitas a inopinadas mudanças de direções (a última diz respeito à
descarada glorificação de Pasternak, que arrostou em vida tantas acusações
de traição). A história política está evidenciando que, nos povos onde se
implantou a prática das instituições representativas, cresceu a resistência à
disseminação do marxismo de tipo leninista. Este alastrou-se rapidamente
nas sociedades subdesenvolvidas — e seu campo propício atualmente são as
nações afro-asiáticas e as latino-americanas. Nessas regiões, há um curioso
paradoxo, anotado, de modo diferente, por Jacques Lambert: refere que, na
América do Sul, a “legalidade republicana é comumente de espírito
conservador e, através de um sufrágio universal, livre de pressão
governamental, ela se inclina para a direita; em diversas formas de
ditaduras, militar, pessoal, fascista, ao contrário, são de tendências
renovadora e os regimes esquerdistas apoiam-se na ausência do sufrágio, no
sufrágio dirigido ou no sufrágio estrito”. Noutros termos — os governos
revolucionários, precisando desmantelar as oligarquias montadas, não
poderiam consultar democraticamente a massa — porque não dispõem ainda
de aparelhos capazes de captar o verdadeiro sentir das legiões de
analfabetos. Seria verdade se os “pronunciamentos” dessas repúblicas não
fossem lutas entre clãs facciosos para conquistas do poder. Algumas
exceções merecem estudo à parte.
Mas voltemos ao tema do autodidatismo, que se ramifica em múltiplas
interrogações.

Acredito que a ojeriza repentina e sistemática contra o autodidatismo tem


motivos mais fundos — e ao denunciar as falhas do autodidata, vai
demasiado longe: pretendeu bitolar as gerações educandas nos quadros de
um heterodidatismo que disciplinaria tudo. Então as virtualidades
imprevistas, as originalidades do talento criador, quando entram em litígio
com os paradigmas canonizados, devem ser devidamente aparadas. O que é
rebeldia assume cores de heresia — e o controle das faculdades originais
oferece obstáculos ao gênio criador. Como defender e propagar uma teoria
nova, que hostiliza o situacionismo cultural, o qual por seu turno, assenta no
situacionismo social e político? A pesquisa científica não pode desenvolver-
se em certas direções que prejudiquem os interesses vigentes. São verdades
comezinhas que, entretanto, são ocultadas ou disfarçadas a cada passo.

Poder-se-ia julgar que isso acontece principalmente no tocante às pesquisas


sociais, onde os interesses humanos são bem nítidos. Se uma conquista da
chamada ciência pura permite a construção de novo tipo de aparelhos, a
conexão com o mundo dos negócios poderia interferir no sentido do sigilo,
paralisando momentaneamente o progresso do conhecimento teórico. Fazer a
versão abstrata dos problemas econômicos, por exemplo, é esvaziá-los da
substância humana com pretextos de dar-lhes aparência hermeticamente
cientifica; todavia, tais problemas não podem deixar de ser políticos antes
de tudo: situa-se no conjunto das relações de classe, de grupos, de
corporações, através dos quais se exerce o poder. Tudo é um só processo
histórico, expresso numa só práxis histórica.

De tudo redundará o crescer da consciência, com a maior responsabilidade


dos intelectuais, que será bem definida nesta regra: não formular qualquer
interpretação a respeito das realidades sociais do mundo, sem prévia análise
das idéias. Seu papel como cientistas não é o de encobrir ou refrear as
transformações em curso, mas descobrir os rumos legítimos do porvir
humano.

Em face dessa perspectiva não existe o problema do tecnicismo e do


humanismo postos em termos separados. Separados constituem problemas
insolúveis, quase mistérios. A humanidade não resolve mistérios, apenas
arquiva-os no seu passado mitológico. Reduzi-los a problemas — é formular
as interrogações nos limites da experiência historicamente elaborada e
preparar a resposta que irresistivelmente, mais cedo ou mais tarde,
encontrará.

E como se refletem objetivamente as tendências para o bacharelismo e para


o tecnicismo em conexão com o quadro social do Brasil? Até certo ponto se
quisesse esquematizar simplistamente, poderia tentar vincular as duas
tendências, enxergando algum tropismo dos subdesenvolvidos para o
bacharelismo e dos desenvolvidos para o tecnicismo. De fato, com a
indústria em expansão, as exigências pelo profissionalismo científico são
cada vez mais intensas — e o mercado de trabalho qualificado, ao lado dos
demais mercados, se aprofunda no país. O aparelhamento da educação
superior é chamado a fornecer o pessoal habilitado que o consumo das
grandes empresas reclama. Isso evidentemente, não ocorre nos quadros de
uma sociedade atrasada, onde não há necessidade de grandes qualificações
técnicas. Então, o beletrismo das classes dirigentes se polariza para a cultura
humanística e clássica. Não se veja nessa cautelosa indicação uma assertiva
peremptória, mas aproximadamente verdadeira no que diz respeito à
evolução nacional. O prof. J. Roberto Moreira, escreveu que, em 1958, nas
matrículas dos 977 cursos superiores, 47% se destinavam aos cursos de
Direito, Filosofia e Letras e 17% aos de engenharia. Nessa constatação,
temos a prova da consistência social daquele tropismo bacharelício, de que
fala — “preferiam seguir a velha tradição brasileira”. E nos cursos de
economia e contabilidade? Apenas 7%. Antes, a percentagem ainda seria
mais expressiva — mas ela está em mudança porque o país experimenta
transformação rápida para a ampliação dos mercados.

A própria discussão do problema é sintoma dessa transformação. A


ressonância dos temas ligados à Lei de Diretrizes e Bases revelou aos
estudiosos as raízes que tais interrogações têm no processo histórico por
mais ignorância que dele têm no processo histórico por mais ignorância que
dele ofereçam alguns doutrinadores empenhados em sacar respostas que lhes
convenham. “É patente — diz lucidamente o pesquisador citado — a
preferência da iniciativa privada pelo ensino de natureza clássica e
humanística. Se os recursos públicos destinados à educação forem em grande
parte aplicados à expansão da escola particular, correremos o risco de criar
no país uma excessiva elite de filósofos e letrados, com prejuízo da
especialização para o trabalho técnico e científico, como requer o presente
estágio do desenvolvimento brasileiro”. Que significam tais palavras? Não
direi seja uma contradição entre duas tendências, mas oscilação que revela o
momento cultural como propedêutica à inteligência crítica e criadora,
superando a cultura reflexa e ingênua. O tema da “luta simultânea do
bacharelismo e do tecnicismo” (e essa “simultaneidade” é fortemente
expressiva) mostra os elementos comuns da cultura, que é processo vivo no
seio da comunidade ativa. Bacharelismo é o apelido do humanismo nativo,
que presidiu a formação da nacionalidade e teve seu berço nas Faculdades
do Recife e São Paulo. O tecnicismo, quando vence a rotina, incarna o
espírito galileano de pesquisa: nesse rasgar de horizontes, aure vitalidade
histórica. A pesquisa nasce do que há de mais humano — que é esforço para
dilucidar as coisas naturais: e a “idéia” da natureza se modifica através dos
tempos à medida em que a consciência progride e aprofunda. Como
divorciar, pois, o crescer do humanismo e o crescer do tecnicismo? Quem
assim procede, ou imagina a ciência como receituário de regras, ou supõe o
humanismo como o culto dos tabus. Ignora que das fontes humanísticas
saíram as ciências da natureza e da sociedade. — E sobretudo não divisa o
perfil da grande revolução dos nossos dias, que é a racionalização
antropocêntrica de todos os ramos do saber: o Homem é o polo de todas as
cogitações e o bem estar humano a finalidade suprema de todas as políticas.
IV. IDEOLOGIA E CIÊNCIAS
SOCIAIS NAS UNIVERSIDADES

Deverei caracterizar preliminarmente o que se entende por “ideologia”, mas


evitarei as nuanças semânticas que o termo atualmente suscita. Direi, de
maneira simplificante, que a ideologia pode ser considerada como um
sistema de idéias que tendem a certo esclerosamento político. Para facilitar
a exposição conceituemos a ideologia como mitologia do presente, a
mitologia como a ideologia do passado. Não basta, porém, o trocadilho
aparente. Tomemos uma conotação de ordem afetiva para avançar algumas
distinções. Falando em mitologia, evocamos a mentalidade pre-civilizada, e
vem-nos à mente, não a imagem do homo-sapiens ou do homo-loquens, mas
do homo-faber. Isto é, do ser essencialmente ativo, sob imperativos de
sobrevivência. In principio erat Actio, como reformulou Goethe. Da Ação
condicionada por determinantes biológicas, é que foi emergindo, lenta e
laboriosamente, das fontes sensoriais, o mundo das idéias, no processo que
permitiu a abstração e o pensamento conceituai. O mundo da mitologia é o
mundo das representações antropomórficas, já em pleno domínio da
racionalidade, Mas a tônica afetiva dá-lhe a nota típica, carregada da
componente pragmática. A visão primitiva do mundo é, pois, nitidamente
dramática, normativa. O processo especulativo cresce à medida que a tônica
racional aumenta.

Então, a diferenciação do Conhecimento se vai acelerando sempre. O


“quantum” racional é que determina a mudança qualitativa do Conhecimento,
com redução de sua feição normativa em favor da elaboração legislativa,
quero dizer, dos enunciados indicativos e não prescritivos, que se exprimem
na lei científica. Numa palestra realizada aqui, quinze anos atrás, analisei
este aspecto ao fazer a distinção entre doutrina, onde predomina a
normatividade, e a teoria, onde se acentua a legislatividade. No terreno
doutrinário é que vigem as polêmicas, que na teoria se amainam. E toda vez
que se acendem debates em torno de uma teoria, tais debates têm raízes
afetivas que não estão no plano especulativo.

O largo e agitado panorama das idéias é um exemplo. E no seio das


polêmicas, travadas em todas as latitudes do pensamento, concentra-se à
volta do marxismo a mais forte preocupação, graças às irradiações
doutrinárias a que não são estranhas as componentes científicas, que o
estruturam. O fenômeno da “russificação” do marxismo, que o transformou
na variante autocrática do socialismo, já foi estudado pelos dissidentes,
amaldiçoados como renegados e traidores pelas igrejas constituídas. Quando
se examinam as condições históricas, em que se realizou a implantação do
socialismo na U.R.S.S., compreende-se facilmente sua definição, a partir da
NEP, de “capitalismo de Estado”. A imaturidade do industrialismo, que não
prepara as bases históricas assinaladas por Marx para a organização de um
Estado de novo tipo, levou à instituição de um brutal paternalismo do Poder
público sob forma de ditadura de classe. Muito se tem dito e verificado
nesse campo, dispensando repetir o que se sabe. Indicarei apenas, de
passagem, a admirável análise de Mondolfo, Etudi sulla Revóluzione russa,
ensaios escritos ainda em 1922, reeditados com plena atualidade.

Compreende-se ainda porque, ao contrário do que dissera Marx, o elo da


cadeia capitalista arrebentou onde o capitalismo não se desenvolvera. As
revoluções marxistas atuais manifestaram-se nos países atrasados e agrários,
exatamente beneficiados pela técnica leninista de conduzir a agitação pelo
partido ferreamente organizado e clandestino.

Os partidos são formas transitórias de um movimento de renovação


inevitável. Como no bolchevismo, essas formas deformam o sentido, mas a
essência humana reaparece, noutras modalidades mais consentâneas. O
próprio Silone escreveu que o socialismo sobreviverá ao marxismo; as
vítimas “se livram do comunismo como quem cura de uma nevrose”.

Decerto são aberrações se acaso nos situamos na linha do pensamento


marxista. Na própria Rússia, foi a teoria leninista do Partido que abriu
caminho ao Poder. Mas a construção do Estado de tipo paternalista e
ditatorial do bolchevismo não representa o desenvolvimento do socialismo
marxista, como discorremos ao citar Mondolfo, demonstrando que o atraso
econômico frustrou o funcionamento do Estado socialista. O próprio Lenin,
que via mais longe que todos seus epígonos, tinha consciência do que
organizava ao dizer: “Seria ridículo apresentar uma revolução como espécie
de ideal para todos os países” (8º Congresso do Partido, 19 de março de
1919). E no mesmo ano, referindo-se à Hungria: “Neste país civilizado,
levar-se-á em linha de conta as experiências da revolução russa, a
socialização será efetuada de modo consequente, e o socialismo será
edificado mais metodicamente e com mais sucesso, graças a terreno de
melhor preparação.”

Por essa época, Lenin insistiu em que cada povo teria que descobrir suas
próprias vias. Tudo isso foi suprimido na propaganda russa ao constituir-se
a burocracia centralizada e monolítica, uma perfeita criação do espírito
totalitário. Mas nenhum compêndio marxista voltou a referir tais palavras de
Lenin. Ao contrário: era o “exemplo da união Soviética”, a “pátria do
socialismo” e a “estrela do proletariado universal”, que comandavam a
marcha do mundo para a terra da Promissão. O ensino e treino de partidários
obedientes a Moscou, tornada a Meca do novo profetismo, que preparava os
novos jesuítas para a disseminação do credo. As resoluções russas são
comentadas, decoradas, veneradas nos órgãos comunistas do altiplano
boliviano, das favelas do Rio ou dos arrabaldes portenhos, com o mesmo
espírito ecumênico... E não deve causar espanto: se os guias espirituais
sacralizam os textos, que escapam ao exame crítico, é natural que as massas
adorem supersticiosamente a múmia de Lenin, na Praça Vermelha, em
peregrinação que só Maomé teve nos tempos islâmicos. Em conversa com
um amigo, naquela Meca sagrada, Silone, zombeteiramente, propõe uma
pequena revolução, que Lenin aplaudiria: incendiar a barraca do totem em
nome do materialismo histórico. E quando Thorez ou Toglatti tinham
assomos suspeitos de independência e queriam ler a bíblia sem a
interpretação do Kremlin — logo se fazia sentir o puxão no freio e a
chamada à ordem. E que dizer do que se passa ainda nestas décadas de
1970, quando enfim começam a rebentar os freios das obediências no seio
dos partidos comunistas espalhados no planeta!

E foi assim, que, inesperadamente, as teses de Trotsky foram postas de novo


em brava discussão por Mao Tse-tung e sequazes. O socialismo não seria
consequência fatal de certas premissas objetivas, mas dependeria
essencialmente da energia revolucionária dos líderes e das massas, apelando
para o valor dos fatores subjetivos na condução do processo de
transformação social. Que diria Marx dessa afirmação? A Kugelman, numa
carta de 17 de abril de 1871, escreveu: “Seria coisa fácil criar a história, se
a gente pudesse fazê-lo não encetando a luta senão quando se conta
favoravelmente com todas as chances.” Isto parece uma concessão, tomando-
se isoladamente. Mas a passagem direta dos povos coloniais para o
socialismo foi motivo de debate entre Bernstein, Kautsky e Lenin. Como
saltar a etapa do capitalismo, onde amadurecem os elementos necessários à
construção do novo Estado? O “salto” fez emergir essa morfologia de Estado
oligocrático e ditatorial que aparece a modo de deformação na história
moderna. Para justificar ideologicamente a translação do “modo de
produção asiático” para o socialismo, houve necessidade de produzir um
marxismo onde o primado do homem, quase tomado prometéico, pode, pela
onipotência do trabalho, recriar as condições exteriores à batons rompus; o
subjetivo cria o objetivo, rugem os chineses no mais furioso voluntarismo
político e moralizante à frente da dita “revolução cultural”. Um ponto
sempre foi tormentoso para os teóricos: o fato de a dialética da história
implicar a “consciência”, sem cuja mediação não tem qualquer sentido.
Outros foram mesmo além: toda dialética é permeável ao espírito e a
Realdialektik, a dialética da natureza em si, é algo “incompreensível”. A
compreensão do processo natural já é sua permeabilidade racional — o que
é passo dado na direção do hegelianismo. Ao intelegir a história natural em
sua causação, descobrimos a relação interna da necessidade a que inerem os
fins — instituímos a ligação racional dos fenômenos, a lógica íntima do
Real, mas é o objetivo em tradução humana (subjetiva). Na história, a trama
se faz entre homens que pensam seus fins, numa ação conjugada, que se
estrutura — e a causação não é natural, do tipo anterior, mas de outro tipo
muito mais rico, porque no contexto opulento da “espiritualidade”.

Não exagera Plekhanov ao dizer que a abolição da propriedade privada em


regime que não dispunha dos elementos fundamentais da produção industrial
é da cultura científica para organizar o socialismo somente poderia fundar
um Estado autoritário do tipo dos Incas: os funcionários do Partido
desempenhariam funções similares aos “filhos peruanos do Sol” para
consolidação do regime igualitário. Tornou-se tão grave o problema que,
recentemente, o tcheco Frantisek Samálik escrevia que a alternativa
socialista no mundo é entre “burocracia” e “socialismo”: como transitar da
centralização burocrática para a democracia socialista? Eis a pergunta que
se levanta terrivelmente. O sistema de decisão centralista e ditatorial tem sua
sorte ligada ao bolchevismo — e cerra suas portas cada vez mais ao
encaminhamento democrático das formas políticas. Os órgãos de Estado
desaparecem nas roscas construtoras do partido. Nele estão todos os núcleos
de decisão política. Tais verdades evidenciam-se hoje com tal força, que
levam os leninistas a intransponíveis impasses no campo da teoria. Daí o
gaguejar interminável de glosadores, prontos a fulminar como renegados
meio mundo de estudiosos desamordaçados. No fundo do que dizemos, está
o fenômeno da sectarização como manifestação especial do espírito
esquizofrênico sob forma ideológica. Entre outros aspectos, note-se que, à
medida que o pensamento de uma doutrina se cristaliza em dogmas, vai
perdendo o “contato vital com a realidade”, fenômeno já observado na
psiquiatria por Minkowski, particularmente, e por Gabel, no seu aspecto
social.

Desde Bernstein, Kautsky e Turati que o socialismo evolucionista ou


reformista havia incorporado algumas teses erradas ou mal postas. É sabido
que os marxistas esbordoam, a golpes de epítetos violentos, os que não
rezam docilmente pela cartilha leninista nem veneram a descendência
“ortodoxa” do marxismo. O grande condutor da revolução russa atacou
desabridamente, na pessoa de Kautsky, de Martov, de Bogdanov, dos
menchevistas, o espírito negregado da traição ao marxismo. E como sucede
sempre (ou quase sempre, sejamos cautelosos) na História, atrás do gênio,
que abre roteiros, vem a procissão dos farricocos, que são os exegetas e
repetidores, no afã de sacralizar os ensinamentos, esclerosando-os em
dogma. Essa clerificação, isto é, o processo pelo qual se organiza o clero à
volta de certa doutrina, é que assegura social e politicamente a constituição
da “igreja”, qualquer que seja sua hierarquia e conteúdo.

Como aventurar-se em estudos e pesquisas sobre hegelianismo, alienação,


dialética, práxis, se havia o temor dos “desvios”, dos “erros”, que
chamavam fulminações sobre o pecador? “Somente o chefe do Partido —
discorre Joravsky — tem o direito de desenvolver o materialismo dialético
posterior; e ele, Stalin, desinteressava-se de refinamentos e sutilezas
epistemológicas: estava apaixonadamente interessado na unidade monolítica
do Partido entre os seus companheiros. O resultado foi a anomalia pasmosa:
o materialismo dialético tornou-se um dogmatismo cesáreo-papista
aclamado com unanimidade forçada como empiricismo coletivista.” Herbert
Marcuse, analisando as fontes filosóficas do marxismo, num exame valioso
da ideologia soviética, discerniu o papel dos estereótipos utilizados na
modelação oficial da mentalidade juvenil. A tal ponto se procedeu a
domesticação dos espíritos aos textos, a serviço dessa nova patrística, que
se configuraram estruturas específicas de sintaxe no estilo governamental, a
modo de litania e reza. Aprecia Marcuse: “O valor daqueles enunciados é
pragmático antes que lógico, claramente sugerido por sua estrutura sintática.
São fórmulas irrestritas, inflexíveis, suscitando respostas irrestritas,
inflexíveis. Na repetição infindável, o mesmo nome “governa-os” imediata e
diretamente, de modo que onde esse ocorre, aqueles “automaticamente”
acodem no seu lugar próprio. O mesmo verbo sempre “move” a proposição
na mesma direção e os dirigidos pela proposição supõem mover-se da
mesma maneira... “De onde conclui Marcuse que o conteúdo cognoscitivo
está no contexto dos clássicos do marxismo, restando-lhes apenas aquela
literatura para ser lida mecanicamente, soletrada monotonamente, como
liturgia para a ação. “Esse ritual de linguagem preserva o conteúdo original
da teoria marxista” — e, mediante seu “emprego mágico, a teoria assume
uma nova racionalidade”.

No íntimo do processo, surpreende-se a vassalização do espírito individual


em matéria política: é uma eunuquização do pensamento mediante sua
“petrificação”. Embalsamando- se em ideologia, o pensamento perde seu
valor vital de inquérito sobre a realidade, sua flexibilidade dialética de
permear as coisas: a inteligibilidade do universo pela razão desaparece.
Sequestra-se o mundo nas categorias de novo ritualismo. É quase pilhérico
que tal venha a acontecer precisamente por obra e graça dos apelidados
dialéticos, dialeticamente voltados ao contrário de si mesmos... O inaudito
Hegel falava nos “ardis da razão”, que arma situações pícaras através da
História do pensamento: à razão ardilosa está, neste caso, preparando uma
jovial pirueta filosófica.

Outro aspecto é o dos partidos, confundidos por alguns com o funcionamento


democrático, ao conceituar a democracia em termos de pluripartidarismo.
Na verdade, partido único é técnica inevitavelmente ditatorial. É máquina de
compressão para disciplinar, na mesma uniformidade ideológica de
dominação, toda a massa de cidadãos.

Igual equívoco é a tentativa para redução a dois ou três partidos, quando a


opinião política não poderia apresentar o enquadramento que se lhe exige,
como acontece na Inglaterra ou Estados Unidos. Ou o estratagema de seleção
de candidatos, transferindo a órgãos judiciários a opção das umas ex-vi de
argumentação frustradas. A função de vigilância crítica das oposições se
reduz, dentro da disciplina partidária, a tímidas alas de esquerda, ameaçadas
das penas de excomunhão no partido único. A ameaça assegura a unidade
doutrinária e de ação, consolidando a oligarquia das cúpulas. Acontece que,
com a diferenciação dos “strata” sociais da população, a pluralidade
partidária é corolário, não causa. É, portanto, indispensável à veracidade da
representação política. Destarte, as maiorias nacionais poderão participar
dos negócios públicos, na formulação e composição do governo.
Democracia, portanto, não é produto, é processo. E como todo processo, não
é perfeito, mas perfectível. Qual o fundo, o objetivo desse processo? A
menor desigualdade entre os cidadãos. Não se trata do nivelamento utópico
de igualdade; trata-se de não agravar desigualdades naturais com privilégios
sociais. É preciso estimular também desigualdades naturais pelo desigual
desenvolvimento dos indivíduos capazes com a supressão dos obstáculos
socialmente criados. Estes desideratos da democracia devem ser atingidos
no maior clima possível de liberdade. Aqui aparece o problema essencial da
liberdade como condição vital do funcionamento da democracia.

No debate dessas questões, entre nós, realça o grande livro de Pontes de


Miranda — Democracia, Liberdade, Igualdade —, o melhor estudo que já se
escreveu na América, nos últimos tempos, sobre temas políticos.

“Todos amam a liberdade: os que não veem só a si querem-na para todos; os


egoístas e perversos, só para si. Aí, o ponto capital: os inimigos da
liberdade amam ser livres; são a forma psicanalítica correspondente, no
plano político, aos usuários e aos ladrões. Liberdade é coisa que se rouba
como o pão. As reformas totalitárias, pretendendo assegurar o pão material,
escamotearam o outro. Enchem a barriga e esvaziam o espírito. O subditus
toma o lugar do eives. Tal objetivo não pode ser ideal de seres racionais.
Perdoem-me repetir a premissa acaciana de que a juventude hoje continua a
juventude de ontem no seu afã de prosseguir a renovação. É uma afirmação
superficial que dispensa argumentos: a juventude, não constituindo uma
“classe” ou “stratum” social, não tem o sentido que se lhe quer dar. Pelo
contrário, é preciso analisar a que camada social pertence o grupo de jovens
inquietos, a fim de elucidar as origens psicológicas dos desajustamentos aos
padrões que impugnam. As causas que determinam as mudanças de valores
sociais não se encontram apenas na idade ou na geração, mas nas condições
sociais de vida. É por isso que a “inquietação” e respectivo protesto
começam na área da “inteligêntzia”, concentrando-se, depois,
transitoriamente, no “stratum” universitário. Mas todas as agitações que
enchem o noticiário da imprensa falada e escrita são a espuma da torrente —
simulando ser a torrente histórica. A ilusão que está na mente da mocidade,
reforçada pela facilidade de comunicação do mundo moderno, provoca a
ação e a pregação que reinam nos quadrantes civilizados.

Políticos incompetentes — ou condenam os movimentos, propondo técnicas


sumárias de repressão sem o concomitante processo nacional de combate; ou
desovam louvores aos “instintos generosos” dos jovens, para que lhes
concedam o título de “progressistas”, mas, em verdade, apenas exprimem o
esforço ser ódio e senil de se conservarem nos postos a troco de uma
popularidade miseravelmente conquistada. Se os primeiros se tornam muitas
vezes adeptos de ditaduras que logo se esfarelam, os segundos são cortesãos
movidos por um paternalismo gagá ou pelo oportunismo eleitoral, privado
de qualquer horizonte e padecendo da maior penúria ideológica.

São esses os dois contingentes mais fortes que defrontam o movimento


chamado “poder jovem” — mito que não resiste à seriedade de uma análise
social e política, como veremos adiante.

Preliminarmente: não se vai negar nesta pequena digressão o valor da


juventude no papel de herdeira de cultura, o que seria futilidade. Nem sua
participação no processo histórico — principalmente na crise universal do
mundo moderno. Digo participação, não direção. A primeira contestação
ressalta logo na limitação daquele imperialismo ingênuo e adolescente,
açulado por demagogos que nele recrutam um aliado momentaneamente
favorável para o combate e sabe até que ponto é utilizável. Questão de tática
que astutamente não podem desprezar, bem se vê e melhor se concluirá.

Qualquer estudante de ciências sociais sabe que a cultura humana, vindo dos
albores do paleolítico, é um processo cumulativo socialmente transmitido —
e é toda essa “ambiência” que o homem criou através da história. Bastaria a
colocação do problema nestes termos para que se vislumbrasse a função das
gerações mais novas no processo de transmissão, que não é biológica, na
herança genética, mas sociológica, no processo interativo dos seres
conviventes. A “educação” constitui processo social por excelência — e
basta-me remeter o leitor às obras de Dewey, entre tantos, para dispensar
delongas. A plasticidade física e mental da infância e da adolescência é a
condição fundamental da transmissibilidade cultural. Nesse sentido, são os
jovens, principalmente universitários, os herdeiros do grande legado
representado pela ciência, letras, artes, filosofia. Por todo o admirável
mundo do pensamento criado pelos mais velhos. Duas simplificações
combativas se armam diante do problema.

A primeira, em face do enunciado, passa a exigir a obediência aos valores


consagrados; e essa exigência envolve todos os valores criados. Daí resulta
uma ortodoxia tradicionalista, que sufoca qualquer análise, porque paralisa
toda a crítica num respeito fixo, que se prostra indiscriminadamente de rojo
aos pés de coisas positivas e negativas do passado. Todos os privilégios
ameaçados refugiam-se nessa categoria. São preconceitos que se fingem
valores vitais — e querem proteger-se da extinção.

A segunda simplificação é exatamente o seu oposto: proclama a necessidade


de escorraçar os velhos valores da cena, fazer tábua rasa da tradição, partir
de estaca zero. Esse niilismo juvenil, dotado de uma pretensão corajosa, é o
que está grassando por toda parte. Na França, foram denominados de
“enragés”, tal o seu radicalismo colérico. Estão fora do diálogo?

Não vou acender uma vela a Deus e outra ao Diabo, mas tentar superar as
duas velas com uma lâmpada elétrica.

A observação mais simplória me acode ao lançar os olhos, superficialmente,


pela história, onde se evidencia a fragilidade da tese: os acontecimentos nem
sequer são provocados pelas gerações jovens, mas por conflitos de força
profunda, como diria o Conselheiro Acácio, que não lia K. Marx e era um
homem da severidade e da ordem. Os líderes geralmente se contam na etapa
dos trinta anos e talvez a maioria seja de quarentões bem definidos, embora
nos impressione os 23 anos de um Saint-Juste, ou os 21 das primeiras
conquistas de um Alexandre. De qualquer modo, já saídos dos bancos
escolares. Por que insistir nessa frivolidade? Porque estamos a ler todo dia
escritos entusiásticos imbuindo a mocidade a investir-se no seu papel
histórico, seduzindo essa adolescência que ainda está desabrochando,
cabeludinha e revoltada. Sabe-se que a precocidade existe em todos os
campos da atividade, mas parece que é tempo de ouvir a voz do bom senso,
inaudível no berreiro dos excitadores, que buscam trazer os moços para
atear a fogueira social onde arderão os privilégios de classe. Embora saiba
do nenhum efeito destas palavras para chamá-los à reflexão, vou repetindo-
as por desencargo de consciência de professor que agiu, nos seus tempos de
moço, noutras paisagens sociais e com menos imperialismo juvenil.
Reflexão é liberdade anterior, que deve projetar-se para o exterior. Sem
liberdade de pensar não há educação, mas simples adestramento. Por isso, o
clima essencial das Universidades é a liberdade, que deve ser defendida
contra os que, camuflados em seu nome, preparam regimes de asfixia.
V. SOCIOLOGIA OU ZOOLOGIA
SOCIAL?

O problema das elites, de que tratei num livrinho especialmente consagrado


ao tema (1), ramifica-se por vários segmentos da vida social, atraindo a
atenção dos sociólogos desde Pareto até Wright Mills, para citar apenas os
dois expoentes. É voz corrente que os temas abstratos facilitam muitas vezes
a “fuga” aos compromissos, e os “engajados”, orgulhosos da coleira que
ostentam, cospem seu desprezo sobre os desertores ou insubmissos. Sem
dúvida, essa evasão da realidade pode também ser estratégia política de
apavorados, acomodados ou tímidos. As mais altas lucubrações da
inteligência, se são legítimas, refletem a palpitação sutil do humano, que se
revela, cedo ou tarde, dentro da práxis histórica, no crescimento e
aprofundamento da consciência da unidade biológica e espiritual da espécie.
Podem dividi-la ódios de raça, de fronteiras, de classes; mas, dia a dia,
através das parcialidades exacerbadas, tonifica-se a convicção irreprimível
do todo, a consciência suprema da marcha para o genus humanum, vencendo-
se as rivalidades oriundas da luta competitiva e de todas as formas
transitórias do egoísmo. Tais formas tomaram, nalgumas filosofias, o valor
de estatutos naturais — com doutrinas oportunistas, conservadoras de
privilégios, justificadoras de novas classes privilegiadas.

Doutrinas de variados matizes identificam-se no mesmo miolo ideológico,


visando a convencer-nos de que o estado normal da Humanidade é a luta
zoológica, glorificando-se o instinto guerreiro como manifestação eterna do
homem. A competição seria o clima educativo dos fortes, o fraco desaparece
no combate de acordo com a lei natural sancionada por Deus ou pela
História. Tais doutrinas vão retirar da zoologia sua confirmação, transpondo
o darwinismo para o terreno da Cultura e pretendendo assentar, a título de
lição científica, o fundamento animal das sociedades humanas. E vêm à
baila, nessa altura, os grandes chavões da erudição sovada — homo homini
lupus, struggle for life, nihil sub sole novum. etc. — para que se apaguem
nos nossos corações todos os sonhos de paz e fraternidade.

O mais espantoso é que essa cansada cantilena soa e ressoa na maioria das
cátedras e dos compêndios, sem que se faça grande esforço para contestar os
papagaios letrados. Bastaria pedir-lhes uma análise mais clara e mais franca
dos problemas que surgem em todos os quadrantes da civilização. Por que se
perpetuam tais slogans pretensamente científicos e arcaicamente filosóficos?
E, sobretudo, por que acumpliciar-nos com isso?

É que, meus amigos, a cultura tem influência compulsória e resiste à


mudança quando se alia aos interesses sedimentares de certos strata sociais,
onde acabam se definindo como estilos de pensamento, que desempenham
função conservadora. Sobre tais “estilos” incide o impacto do pensamento
renovador. Rigorosamente, todo ato do pensar autêntico é inovante; quando
se cristaliza, cria a rotina mental, que é coisa diferente de “pensar”. Neste
caso, perde a ação genésica, deixa de ser pensamento e passa a ser
preconceito, vira tabu. Extinta a vocação criadora, o pensamento priva-se do
seu valor pragmático. E não interpretando mais ativamente a realidade, nega-
se a si próprio. A rotina mental é a morte do pensamento, porque pensar não
é repetir. O eco jamais foi a voz que revela a interioridade humana.

Volto ao ponto essencial do assunto. Que aconteceu à biologia darwinista?


No instante em que apareceu, entusiasmou o mundo sábio e os sociólogos,
interessados fundamentalmente no exame das formas de convivência humana,
sentiram — ou pressentiram? — que os princípios proclamados inspiravam
interpretações mais naturais e menos teológicas, mais positivas e menos
metafísicas, a respeito das sociedades desanuviando um pouco a exagerada
atmosfera que então pesava. E na preocupação de limpar completamente o
horizonte intelectual, carregado de teologia e metafísica, — começaram
ardentemente a formular as concepções novas. Corria a segunda metade do
século XIX. Para que lembrar o que todo mundo conhece? Spencer, René
Worms, Lilienfeld, Schaeffle, Comte, Noiré, Le Dantec foram nomes que
entraram no meio brasileiro como uma lufada de oxigênio. Boa? Acho que
foi boa. Contribuiu para incentivar polêmicas, acordar os espíritos,
desentorpecer. No meio cearense, na década de 70-80, irrompe polêmica de
grande vitalidade ideológica entre tomistas e evolucionistas — e as páginas
dos jornais Cearense e Fraternidade refletem o nível de estudos filosóficos e
sociais, com os nomes de Rocha Lima, Xilderico de Faria, Thomás Pompeu
Filho, João Lopes, Araripe Júnior, Capistrano de Abreu, diretamente
abeberados nas fontes européias. (2) Em Pernambuco, Sílvio Romero,
Tobias, Araripe Júnior, Arthur Orlando, Martins Júnior, Beviláqua, alguns
mais, são expressões de um momento do pensamento nacional.

Aqueles escritores estrangeiros, que foram lidos gulosamente, são bem


discordantes entre si. Mas tinham um ponto comum: a sociedade era produto
natural, submetido a leis que se investigariam objetivamente. A sociedade
era “organismo”. O sobrenatural fora banido com júbilo e ficou célebre a
declaração do óbito que Sílvio lavrou na cova da Metafísica, relegada a
fantasia do Medievo. Presumiu-se que era inconciliável com as formas
novas porque lhes aparecia o Conhecimento, processo crescendo no seio de
uma experiência historicamente transmitida.

Nesse diapasão se foi muito longe. E extrapolou-se demasiado. Insistiu-se


tanto na vitória biológica do mais forte, no valor da luta pela vida no campo
social, que as fronteiras entre sociologia e zoologia se tomaram
indiscerníveis. Chegou-se a escrever sobre o sistema nervoso da telegrafia,
o sistema digestivo dos mercados, o sistema executivo é muscular do Poder,
em paralelismos que raiaram pela futilidade. Serenada a especulação
metafísica, entrou-se na apologética da animalização do homo sapiens.
Esqueciam que as qualidades superiores conquistadas valiam mais que a
herança inferior transmitida. O sentido revolucionário da nova sociologia,
que pretendia evidenciar o parentesco natural do homem, iria virar pelo
avesso: camuflar-se-ia na reação conservadora. Sim, porque os adversários,
na primeira hora estonteados, logo se aprumaram, e senhores de si revidaram
com denodo aos exageros da sociologia naturalista, que se comprazia na
exaltação da vida instintiva e zoológica. Espertamente tiraram partido da
manobra, era bem de ver. Qual o remédio?

Ora, evidentemente, essa redução zoológica foi uma fase cheia de


contradições. (3) Os estudos prosseguiram tentando aprofundar a análise das
formas históricas das sociedades humanas. E foi o exame das origens sociais
das idéias, a etiologia do processo ideológico, por assim dizer, que veio
esclarecer a maneira por que os estilos de pensamento se vinculam aos
estilos de ação política. Aqui caberia mencionar os trabalhos de Karl
Mannheim, cuja educação marxista lhe sugeriu alguns fecundos ângulos de
enfoque do problema.

No biologismo sociológico, que o darwinismo inspirara, struggle-for-


lifisando demasiadamente a vida social, havia conteúdo político que foi logo
posto às claras: a mentalidade conservadora, representada pelas correntes
espiritualistas tradicionais, alongou, para dentro da ciência biológica, seu
pseudopodo reacionário. E sacou do transformismo as suas conclusões
conservadoras: a luta pela vida, no mundo social, comprovava a lei geral. A
feroz competição entre grupos econômicos e outros organismos
institucionalizados era imperativo inelutável, decorria de leis eternas, que a
Natureza ditava. Portanto, que esses sonhadores impertinentes de igualdade
democrática não viessem perturbar o progresso, que era impulso dos fortes.
Aqueles não passavam de místicos, gaguejando misticismos que a ciência
desautorizava. Ingenieros resumira lapidarmente: o determinismo negava a
liberdade, a luta pela vida negava a fraternidade, a natureza negava a
igualdade. Os três mitos, que a Revolução Francesa batizara no sangue
fraternal, afogando a miragem dos deserdados do mundo, sumiam na ilusão.
A democracia não subia a tais níveis utópicos.

Entretanto focalizando o problema com mais precaução, descobria-se a


obscura intenção que forjava essas conclusões. Intenção psicologicamente
tortuosa, mas socialmente nítida: revelava a idéia de que as leis naturais
sancionavam as injustiças e desigualdades históricas. Inscreviam como
norma divina o que era aquisição humana. Inseriam na Natureza o que era
História. Nessa transferência do plano “social” para o "natural” consistia o
estratagema arguto, que demonstrava “cientificamente” a inutilidade das
aspirações renovadoras. Não adiantaria protestar: sempre haveria pobres
neste mundo e infelizes gemendo no vale de lágrimas. Os sonhos dos
reformadores se extinguiriam sempre nas tardes do Gólgota.

Pensadores houve que deduziram, desavergonhadamente, todas as


consequências lógicas e antidemocráticas das premissas do biologismo
sociológico. Consequências racistas, classistas, soteriológicas,
imperialistas, ditatorialistas. Mas o erro apareceu. Esqueciam ou fingiam
esquecer que o fundamento biológico era apenas ponto de partida. A práxis
histórica, com a transmissão cumulativa da cultura, criou a dimensão da
Consciência, que é, propriamente, a profundidade humana do problema.
Dentro do causalismo histórico pulsa, crescentemente, o teleologismo
humano. Um animal que tem fins definidos na sua Ação superou o plano
zoológico; nele amadureceram qualidades que se não reduzem ao
biologicamente inferior. Nessa ascensão, a contingência permeabiliza o
determinismo: e o princípio da causalidade toma a flexibilidade racional do
teleologismo. O aspecto “interior” do processo é o sentido subjetivo e
finalístico, que só dialeticamente nega a causalidade histórica. Representa a
plenitude social da racionalidade, isto é, o ordenamento e dominação
consciente das forças sociais, o que conduz à luta por organização jurídica e
política das estruturas que permitam realização de tais objetivos.

É a essa luz que se toma imperioso falar de democracia, alongando o olhar


esperançoso pelo horizonte atual e buscando indicações e dados na paisagem
real da vida contemporânea.

Os dois núcleos gigantescos do poderio mundial repartiram, como já


escrevemos alhures, o mapa-múndi em hemisférios hostis. Deformaram-se,
na pressão dos dois blocos, as antigas formas de soberania política
territorialmente delimitadas: os demais Estados gravitam em torno dos dois
centros potentes, escapando-lhes as decisões políticas fundamentais.
Organismos internacionais exoneraram estes povos dos atributos clássicos
da soberania. O tecnicismo industrial imprimiu selo uniforme e
incaracterístico às relações humanas personalizadas. Controles espirituais
são exarados por grupos decisórios encastelados na imprensa, no rádio, na
televisão. As universidades, outrora centros de humanismo e floração de
idéias, tomam-se, cada vez mais, apêndices dos organismos industriais.
Hipertrofiam-se laboratórios de pesquisas experimentais para fins
destrutivos. A massificação democrática acelera o advento do Estado
Leviatã, que engolirá as liberdades civis. A liberdade, que fora quase
divinizada por nossos pais, é mito de ingenuidade aos olhos de nossos
filhos. O exercício autocrático do controle político assume caráter de coisa
politicamente inelutável: não há fugir do Destino. A produção de idéias é
uma operação mercantil. A cultura humanística é combatida como os
latifúndios. Ela permite uma visão da História — e o tecnicismo teme a
História: exige o conhecimento de área bem limitada. É preciso apagar a
consciência do processo humano para desumanizar o indivíduo. O bom
cidadão obedece. Não dá o passo de ganso ostensivamente mas tem no
espírito o seu ritmo. Dizia Angel Rivera há algum tempo: “Deve-se
comunicar desinteresse filosófico aos estudantes, cada dia mais pragmáticos.
Convencê-los de que a cultura é superação espiritual, como a higiene é
superação física.” E adiante essa nota incisiva: “Nas épocas de decadência,
a única coisa é renovar sem tardança as normas preceptivas viciadas pela
retórica.”

Há mercado para as funções espirituais ... Alugam-se físicos como Cartago


alugava mercenários. Daí a necessidade de subtrair a consciência do
técnico: dar-lhe um ensino desumanizado de técnicas sem raízes no solo
histórico. Tal desumanização é facilmente eficaz na esfera da física, da
matemática, da biologia, — em suma das ciências físico-materiais. Mas nas
ciências sociais, de fundo inapelavelmente histórico, a deformação
ideológica, principalmente a que se exporta dos Estados totalitários, é uma
fraude garrafal. Por isso mesmo, nas autocracias, tais ciências são bem
vigiadas. Há que desinfetá-las, emasculá-las. O pesquisador social é um
apologético; a cátedra é confiada aos beleguins políticos e é o primeiro
degrau das ditaduras. Isso que está se desenvolvendo no capitalismo
agravou-se monstruosamente na ditadura de tipo bolchevista. O partido
monolítico funciona como Moloque assírio, devorando as liberdades civis:
pensadores e cientistas são apenas glosadores de dogmas políticos. A área
da decisão política circunscreve-se cada vez mais: nos regimes ditos
democráticos, o centro decisório transfere-se, ameaçadoramente, para
órgãos sem representatividade; nos ditos totalitários, para a exígua cúpula do
Presidium do Partido único.

Sabe-se que as bases psicológicas das democracias assentam no exercício


das decisões racionais, — e Razão é acidentada criação histórica,
historicamente desenvolvida no convívio de seres que aprenderam a se
comunicarem entre si, a confrontarem idéias e opiniões no processo do
debate. A Ágora grega ou o Forum romano são símbolos. Focos de
palpitação de vitalidade democrática, sofreram, periodicamente, longos
eclipses. Mas, a cada instante de radiação, a luz persistia fascinantemente
nos espíritos através das idades mais brutais e mais violentas. Antecipações
de polis futura, cada eclipse mais lhe realça as lucilações.

Por mais rumor que façam, fingindo alacridades de renascença, as


autocracias são tristes. Seu monólogo é pessimista: introverte-se. Por que?
Porque a interiorização é o temor da convivência, do contato, da fricção com
a comunidade que cria as praças públicas, as assembleias, as tribunas livres,
onde a voz não é um eco, mas uma consciência, diferente das outras
consciências. E as diferenças se entendem. Já observaram como as
autocracias temem o Homem? Elas cercam-se de pretorianos, reforçam as
verbas secretas das polícias, povoam a noite de espias, enxergam fantasmas,
têm medo dos fantasmas. E quanto mais se resguardam, mais o medo
aumenta. Ficam sempre violentas. A violência é o sinal de sua debilidade. E
à medida em que os requisitórios e perseguições se tornam cruéis, mais o
aparelho repressivo recruta os psicopatas e masoquistas para exercitar a
tortura e saciar seus instintos profundos de desequilibrados. Porque a
autocracia não crê na bondade, diz Fontes de Miranda. Só vê no homem a
maldade, a procacidade, a traição, a protérvia, o instinto inferior. Então, tem
de vigiá-lo por todos os meios: nas palavras, nas obras, no pensamento.

O que o totalitarismo convoca nas praças não é o povo, assembléia de


consciências livres, é a massa plebiscito de sectários para consagrar os
messias políticos. O que parece um protesto não passa de um ato miserável
de obediência.

Daí, o seguinte: desfaz-se a linde que separa a vida pública da vida privada.
Nisto reside o cunho essencial do totalitarismo, o seu verdadeiro sentido.
Onde as massas eram atrasadas, sem clara consciência dos seus próprios
interesses produziu-se a ditadura paternalista. Nas nações subdesenvolvidas,
sem diferenciação das camadas da população promovidas pelo processo
industrial, as instituições parlamentares não serviam para exprimir a
realidade nacional. No Brasil, o rei reina, governa e administra — bradou
Itaboraí. Nas repúblicas ibero-americanas, as idéias do 1789, propagadas
por caudilhos de variados tipos, garantiram as aristocracias territoriais. (4)

Talvez mereça atenção esta passagem. De início, devo dizer que entendo por
“democracia” o regime que efetiva a intervenção do povo na organização do
poder político e no controle de suas estruturas. O conjunto de técnicas que
dá melhor eficácia a tal intervenção, revelando a “vontade” popular, varia
segundo o desenvolvimento social: é obra de arte política. Entre essas
técnicas estaria, no Ocidente, a democracia parlamentar, ao lado de suas
variantes, modeladas no progresso do capitalismo concorrencial e
reajustadas nas formas superiores do capitalismo financeiro. Decerto,
sobrevieram deturpações sérias no processo representativo, com a
corrupção dos partidos e o mercado de voto. Viu-se o concubinato do
parlamento com a finança espúria e a demagogia. Muitos vícios, todavia,
seriam corrigíveis por métodos meramente eleitorais. Problemas de forma,
não de fundo, ensina um mestre. Na opinião de muitos publicistas, o sintoma
denunciava a decadência das instituições parlamentares. O labor do
estudioso não será o de desacreditar as instituições democráticas, mas o de
aperfeiçoá-las para realização da menos imperfeita representatividade. E na
hora do perigo — como disse o ministro Busaid no Fórum da Universidade
— cada povo salva a sua democracia com as armas de que dispuser, dentro
do estilo de sua inspiração histórica e de sua tradição.

Mas é através do domínio das coisas que se pode dominar os indivíduos. A


luta por menor desigualdade leva à maior possibilidade social, de liberdade:
e a “desigualdade que se não vai destruir no passado, persiste e o preceito
de igualdade formal somente impede que a lei a agrave ou lhe junte outras
desigualdades” — observa Pontes de Miranda. Seria o caso de repetir com
Sieyès: “A garantia da liberdade pública não pode estar senão onde está a
força real. Não podemos ser livres senão com o povo e por ele.” Nesta frase
se conjugam a liberdade e o poder.

Com o mecanismo dos sistemas eleitorais, cerceia-se por vezes a liberdade


do eleitor quando se pretende regulamentar a vinculação dos representantes
aos partidos, estabelecendo compromissos de obediência às cúpulas. Estes
não podem mais tomar posição de franco-atiradores, obrigados que se acham
às injunções impostas. E como dentro de um partido se formam “cliques” e
parcelas oligárquicas, desvirtuam-se os propósitos sobre pressão de
interesses privados, criando-se clientela particular de parasitarismo no seio
da burocracia política.

Dir-se-á que é necessário canalizar as forças espontâneas do povo dentro de


formas adequadas encaminhando-as no sentido da representação política,
sem perturbar o equilíbrio. Isso estaria certíssimo se, com tais medidas, não
se verificasse a perda da substância popular e a corrupção do privatismo.
Encontrei, num publicista francês, essa frase: “os partidos minoritários são
os herdeiros dos tribunos da plebe”. De fato, neles tendem as massas a
buscar o intérprete de suas necessidades, a fim de que repercutam, no
parlamento, suas aspirações recalcadas. Nas crises, o raio da repressão cai
sobre as cabeças mais altas na onda montante. A tática fascista consistia no
açular o medo ao comunismo, ao judaísmo, à maçonaria, conforme as
latitudes, atraindo as clientelas dos partidos democráticos, que as guerras
enfraqueciam na Europa. Surgiram assim diferentes tipos de elite de
dominação. Nada mais variável que a estrutura social do poder através da
História. No fundo, porém, há o traço essencial, que é a monopolização da
força socialmente organizada. De um estudo feito noutras circunstâncias,
retiramos critério para classificar as elites de dominação nos três tipos
gerais que seguem: elites de sangue, elites econômicas e elites científicas.

As elites de sangue constituíram aristocracias territoriais nas civilizações


agrárias, vindas de estados mais remotos. Prender-se-iam pelo cordão
umbilical do patriarcado às organizações gentílicas, nas velhas comunidades
tribais — e chegariam às formas sociais do tipo feudatário. Existem onde a
direção dos destinos coletivos estão confiados às camadas da nobreza
territorial, que se transmite por laços de sangue.

O segundo tipo de elite surgiu com o desenvolvimento industrial: o capital


móvel, com as formas de riqueza da fase mercantil, constituindo-se a classe
dos homines novi que abriu caminho aos novos métodos de produção
capitalista e ao mundo moderno. As elites econômicas assumem comando
social que começa a enfraquecer nos nossos dias. Dos banqueiros medievais
aos financeiros modernos, dos Fuggers e Marchionis a Rotschilds e
Rockefellers, a linha define a aristocracia que funda a indústria com novos
monarcas: o “rei” do petróleo, o “rei” do carvão, o “rei” de outras
concentrações de capital, com organismos produtores, onde os problemas se
tomam imensos. Como enfrentá-los? São interrogações que exigem respostas
técnicas. O conhecimento científico entranha-se nos problemas de modo
assustador, escapando ao grupo de proprietários. Então se forma, ao lado do
grupo possidente, a camada intelectual, que se vai destacando noutro tipo
diferente de elite: a elite da cultura.
Essa elite vai conquistar sua independência? Assumirá a direção total da
sociedade? Funcionará sempre às ordens da elite possidente? O fato é que
não se desprendeu da elite de dominação econômica, nos países do
Ocidente; e nos países socialistas do Oriente, escravizou-se à terceira
classe, isto é, à burocracia do partido único, nas mãos do qual não passa de
instrumento dócil e dirigido.

De qualquer maneira, prenuncia o último tipo de elite, porque vai dominar


pelo espírito e com as armas do espírito. Terá de funcionar atenta às
necessidades coletivas, no ritmo dos interesses humanos. Não poderá, pela
natureza de sua vocação, escravizar-se a parcelas. Expungirá o ódio do
coração e alargará horizontes. Elas virão, porque têm que vir.

Serão elites humanas.

(1) Djacir Menezes, As Elites Agressivas, Org. Simões, Rio, 1954.

(2) Num próximo trabalho — A Ideologia Cearense de 1870-1900 — terei


margem para um estudo mais detido desse período intelectual na minha
terra.

(3) Examinei o problema em 1958, à luz das idéias aqui expendidas, no


livro Sentido Antropógeno da História, Org. Simões, Rio, 1959. Cf. também
Evolucionismo e Positivismo na Crítica de Farias Brito, Universidade
Federal do Ceará, 1962. Noticiando, em resenha bibliográfica na Revista
Brasileira de Filosofia, a publicação do livrinho, o Sr. Carlos Matos diz que
D.M. “repisa as críticas infundadas de Leonel Franca” — o que me
espantou. Infelizmente não consigo estar de acordo com o eminente jesuíta
nos pontos fundamentais — e um deles é pertinente ao espiritualismo. Parece
que o defeito insanável da minha crítica foi ignorar as comunicações do
censor ao Congresso comemorativo do centenário do filósofo. Pelo resumo
resenhado, porém, o articulista ainda terá longa estrada a percorrer nesse
terreno — antes de começar a escrever tão ingenuamente as suas preleções
— en pesant gravemeni des oeufs de mouche...
(4) Homenagem a Rousseau, in Revista de Direito Público e Ciências
Política. Fundação Getúlio Vargas, Rio, 1962.
VI. A REDESCOBERTA DAS
OLIGARQUIAS

Da ilustrada prof. Lygia Fonseca de Rás, que leciona na School of Advanced


International Studies, da Universidade John Hopkins, escola de política e
diplomacia para estudantes graduados, recebi, cerca de um ano, honrosa
carta com esta lisonjeira informação: “atendendo aos interesses imediatos do
alunado, procuro, tanto quanto possível, ensinar-lhes a língua utilizando
trechos sobre política e economia brasileiras. Assim foi, que escolhemos o
capítulo inicial “A Decisão Democrática”, retirado de seu livro Temas de
Política e Filosofia. Fizemos a leitura em aula, comentamos, analisamos,
discutimos, e, finalmente, eles me entregaram os trabalhos que lhe envio.
Todos trabalharam com afinco no project e estão agora esperando a sua
resposta.”

O nível do debate revela, ao mesmo tempo, a indiscutível competência da


professora, de límpido renome no Centro de Estudos Brasileiros, em Buenos
Aires, e a alta qualificação dos seus atuais alunos, naquela seção da gloriosa
universidade onde viveu John Dewey. Não me surpreenderam a força e
alcance da argumentação de que se desenvolveu à volta do tema
democrático. Nem o horizonte livre em que ficou situado cientificamente o
problema. Resolvi, pois, responder aos seis debatedores, cada um de per si,
com a atenção que exige a seriedade das interrogações postas à frente do
meu texto por equipe tão inteligente.

Aqui dou conta apenas dos pontos centrais. Entre outras coisas, escrevera
eu: “O núcleo de ação política se plasma em circunstâncias históricas
concretas — e sua estrutura muda através das idades em função do conjunto
dos fatores sociais inter-relacionados na práxis humana. O Estado, que é a
forma historicamente evoluída, representa o monopólio da força de
comando. A política é um dos aspectos da vida social concernente à
regulamentação do uso das faculdades coercitivas exercitadas pelo grupo de
dominação.” (1)

Entre os estudiosos que debatiam o tema, estava o Professor C. Noell


Ronning, catedrático de Estudos Latinoamericanos, que apreendeu
claramente o pensamento exposto. Mas parece que a idéia de “grupo de
dominação” não sintonizava com o sentimento democrático, embora não os
exprimisse em termos explícitos. Sirvo-me do ensejo para precisar
nitidamente o sentido dos conceitos empregados por mim. Quis dizer que,
nas comunidades humanas, das formas mais simples às mais complexas, ao
longo da história, a direção política é senhoreada por uma minoria de
comando: e somente a sua estrutura é dado histórico variável. Sob a
ideologia democrática, evidentemente, não diminuiu a importância das elites
que exercitam o poder; o que, porém, ela estabelece definitivamente foi o
reconhecimento das raízes do poder no demos. A verificação da vitalidade
das minorias ativas levou, nos fins do século passado, alguns sociólogos à
teoria de circulação de elites; e logo pretenderam negar a doutrina
democrática, retirando, daquelas premissas, argumentos a favor de nobrezas
ou strata privilegiados onde residiriam os focos de decisão política.
Desacreditada a velha doutrina do direito divino, arreglava-se, com a
sociologia naturalista, uma nova explicação compatível com o espírito leigo
do tempo. Assim, nesse diapasão, trabalharam juristas, preparando técnicas
cavilosas para ajeitar estranhos mecanismos de sufrágios qualitativos,
visando à sobrevivência dos privilégios ameaçados.

Runciman refere-se agora à “redescoberta das oligarquias”. (2) Outrora,


Michels, Bryce, Madison, Pareto, Sorel, vários outros, de ideologias várias,
descobriram a função que as minorias desempenhavam no controle dos
destinos sociais. Uma distinção fundamental se impõe, com o papel de regra
metodológica: não se deve confundir dois tipos de minorias: as que
representam o pensamento de puro conservantismo, que se apoiam nas
camadas mais reacionárias da sociedade, comprometidas com as tendências
mais egoísticas e parasitárias, recrutando intelectuais aptos aos
malabarismos eruditos de venalidade à flor da pele; e as minorias que
apuram a intuição histórica para descortinar as vias de acesso às formas
sociais menos injustas, cuidando preservar a liberdade como condição
indeclinável para o trabalho do Pensamento. Esta elite intelectual não é a
elite de status ou a elite governamental, ou outro tipo de elite, mas aquela
que, por sua posição no jogo e formulação das idéias, se torna mais
receptiva e mais capaz de elaboração racional dos objetivos nacionais.

Disse Michels que “toda organização pressupõe uma oligarquia”. Examinou,


por esse ângulo, o mecanismo dos partidos nas democracias. Oligarquia no
sentido de grupo impermeável, que tende à cristalização ou hermetismo
social. Tal conotação pessimista se aplica ao primeiro tipo de elite
mencionada acima: a que se entrincheira na defesa de interesses
estabilizados e assume posição conservadora a todo transe. Mas é
precisamente o segundo tipo de elite que concentra hoje as energias
vitalmente democráticas. O que as caracteriza é a vinculação com o demos,
que dá a legitimidade do poder às minorias governamentais. Aquela
vinculação, nas elites intelectuais, se define por sua natureza espiritual
revelada na capacidade de formular teoricamente o que as massas sentem
confusa e concretamente.

No Brasil, a minoria política era eleita no passado por setores da população;


o eleitorado não abrangia grandes segmentos do povo. Causas várias:
inconsciência política, analfabetismo, atraso de comunicações no meio rural,
ação do grande domínio territorial etc. No ocaso do Império, 220 mil
eleitores elegiam o Parlamento: constituíam 1,5 da população. Na verdade,
exígua base para anunciar qualquer democracia. A República aboliu o voto
censitário e conferiu cidadania em massa. Numa população de 14 milhões e
tanto, Prudente de Morais elegeu-se com 276.583 votos e havia 3 milhões de
almas eleitoráveis (permitam a expressão pitorescamente exata). Até 1930,
aquela percentagem co-decisória oscila entre 3.44 (Rodrigues Alves) a 5.65
(Júlio Prestes). De 1930 em diante, sobe de 13.42 a 19.14 (Jânio Quadros).
Com Jânio, comparecem 12.586.354 eleitores às urnas. Atualmente, discute-
se o voto do analfabeto, do qual as correntes esquerdistas esperam grande
alento para suas refregas. Não me demoro na questão do voto analfabeto.
Conjecturo apenas que a alfabetização facilitou a vassalização espiritual que
veio a grassar entre os povos mais cultos da Europa: os rebanhos, que
acertaram o passo de ganso pelo catecismo dos ministérios de propaganda
dos totalitarismos, eram rebanhos bem alfabetizados e por isso mesmo
recitavam exemplarmente o que lhes ditavam os órgãos dirigentes. Quão
superior a essa alfabetização polítizante é o analfabetismo arguto do
camponês desconfiado e solerte! Nele se manifesta o pragmatismo
espontâneo do espírito político, que o totalitarismo empareda dentro das
ortodoxias oficiais. Basta lembrar a cultura confinada dos povos que vivem
à sombra da burocracia do partido comunista: só conhecem do ocidente
capitalista a dosagem filtrada por sua imprensa e rádio, com as lentes
estabelecidas segundo o grau de astigmatismo doutrinário em vigor. Resumo:
se a sociedade não tem liberdade para o exercício da oposição partidária e
da crítica política, a alfabetização é apenas um instrumento a mais ao lado
da opressão e da desnaturação da democracia. Não produz espírito livre: dá
hábitos de credulidade.

Outro ponto importante do processo democrático é o da organização de sua


efetivação: o sistema eleitoral. À medida que se ampliam as bases sociais da
autoridade, promovendo o fortalecimento do processo democrático, crescem
choques e antagonismos entre os diferentes estratos da sociedade. Os
antagonismos remetem ao Parlamento porta-vozes violentos, que a
demagogia eleitoral, aliada à falta de educação popular, conduz às
instituições representativas. As desigualdades econômicas são motivos
fortes para alimentar programas emocionais. E, diante de tais perspectivas,
os juristas são mobilizados, não para aperfeiçoar o sistema no desiderato de
tornar “verdadeira” a representação, mas de obstar estrategicamente a
entrada de líderes nas assembleias legislativas. (3) Surge o aliado corruptor:
a finança espúria; esta cria o mercado do voto e envia seus corretores ao
Parlamento. Escrevi no capítulo tomado como tema de debate:

“Deformadas as instituições representativas, rompem as críticas contra o


regime democrático. Fala-se na “crise da democracia”. Não confundamos.
No fundo da argumentação, há, visivelmente, um grave equívoco. E há os
beneficiadores do equívoco. Juristas de renome se iludem. Proclama Girau:
“A democracia é um regime difícil.” Assessora-lhe Berthelemy: “A
democracia é o regime dos povos adultos.” Resmunga Bourquin: “A
verdadeira democracia não está ao alcance de todo mundo...” Seria
interminável se fôssemos transcrever os depoimentos sobre a “crise da
democracia”. Tal crise existe para os que relutam em examinar os termos
reais do problema mais sério do mundo moderno.” (4)
Os sistemas eleitorais e a organização dos partidos políticos estão sob a
ação do impacto da transformação industrial nos países subdesenvolvidos.
Se as minorias atuais insistem nos métodos que as desarticulam e
desprendem da base popular, acabarão sendo vencidas por outras minorias
que revisarem tais métodos e se alicerçarem naquelas bases. Isso, na melhor
das hipóteses. Porque ainda há uma terceira saída: a de serem devoradas por
correntes ditatoriais, amedrontados com a marcha do islamismo
bolchevizante, que já sopra da Ásia com o bafo remoto de Genghis-Khan.
Nenhum intelectual que se preze pode abdicar nas mãos de qualquer
organização o espírito de crítica, que é o fundamento de seu status como
homem de pensamento. Não resisto à idéia de transcrever este longo trecho
de Sidney Hook:

“Embora muitos homens de negócios se preocupem com as ameaças à livre


empresa — especialmente quando a ameaça toma a forma de controles
governamentais numa economia em ascensão — não evidenciaram, em
nenhum grau aproximado, o mesmo zelo em melhorar o estado de liberdade
cultural e política de suas comunidades. Por que a luta pelas liberdades
civis, pela liberdade de ensino, pelos direitos da minoria ficou
principalmente com os bispos, os advogados, os professores? Não
precisamos exagerar; Houve notáveis exceções, especialmente se incluirmos
os diretores de jornais e revistas entre os homens de negócios. Também
devemos reconhecer que, ao se oporem às práticas de discriminação e
segregação contra negros e outras minorias, os homens de negócios por
vezes prestaram um bravo e destacado serviço — na International Harvester,
por exemplo.” (5)

Sidney Hook fala com os olhos pregados na vida americana; mas eu o leio
com o pensamento voltado para o cenário das nossas agitações políticas, no
esforço de lobrigar a configuração constitucional das instituições
democráticas meio esbagaçadas e no anseio de sobrevivência. A mesma
pergunta, entretanto, se poderia formular agora, como em épocas anteriores,
aos homens das classes conservadoras: por que não acodem a defender o
direito de liberdade de expressão, de reunião, de cátedra, de imprensa, ao
lado do direito da liberdade de empresa? Todos esses direitos fazem a
mesma urdidura democrática, porque todas essas liberdades se conjugam no
postulado fundamental da liberdade política. Mas oculto o desânimo: porque
sei, como modesto estudioso de Economia, que os processos de
concentração da riqueza que originam os grandes organismos de produção
tendem, contraditoriamente, a restringir a constelação daquelas “liberdades
estratégicas”, de que fala o escritor norte-americano. Este, fascinado, ainda
pondera: “Essa relativa inatividade dos homens de negócios americanos no
fortalecimento do complexo cultural da liberdade é surpreendente do ponto
de vista de sua própria ideologia.” Mas o fato é que não surpreende tanto,
embora seja condição essencial para a existência das democracias.

Opina Schumpeter: o método democrático é aquele que assegura instituições


que permitam alcançar o poder mediante a luta competitiva pelo voto do
povo. Nessa livre competição pela preferência do eleitorado está a verdade
da democracia liberal, que longamente se buscou desacreditar em vez de
estudar a renovação de seus métodos. A circulação das elites não se esgota
naquela esquematização de Pareto. Deve exprimir a permeabilidade dos
órgãos do poder ao influxo das massas. Só o totalitarismo tem elites fixas
com. o partido monolítico, onde o sufrágio é mistificado nas estratégias de
aclamação e plebiscito, com eleitorado trabalhado pelas minorias ativas. Na
livre competição das elites, empenhadas na disputa do voto do eleitor isento
de quaisquer espécies de constrangimentos, reside a nota essencial da
democracia — o que é quase uma banalidade dizer, mas que se confunde nos
subterfúgios doutrinários. Entretanto, paira séria ameaça: os estratos sociais
economicamente fortes têm frequentes vezes influência corruptora sobre os
mecanismos de opção.

Duverger propõe a renovação da fórmula jeffersoniana: em vez de “governo


do povo pelo povo”, estoutra: “governo do povo por uma elite nascida do
povo” a que se deveria acrescentar: e a serviço do povo.

A objeção do Sr. William Brisk, Ph.D em Política Econômica, recai sobre o


enunciado: “O poder é”. O verbo está empregado na acepção arcaica e
filosófica dos escolásticos; é o verburn substantivum. No caso em discussão,
queria dizer que o poder não se define: constata-se historicamente sua
existência. Não é uma dedução, mas uma verificação. É, sociologicamente,
fato primário: intui-se. Não decorre de premissa anterior, da qual se infira.
Examina-se a história: toda forma de associatividade humana oferece-nos o
exemplo do poder como fato. A sua estrutura é que se transforma no seio das
relações de convivência: só a forma (clã, fratria, polis etc.) é dado histórico
variável. A forma do exercício do poder: eis a política. As fontes do poder?
No próprio demos. A explicação? Várias, que se reduzem a duas categorias
gerais:

a) origens místicas: Deus, forças mágico-animistas etc.;

b) internas à comunidade. Em cada uma dessas explicações, diversas


teorias interpretativas.

Note-se a distinção entre o fato e a explicação do fato. Isto é, entre o plano


da História e o plano do Pensamento. Exemplifico: o movimento da Terra
sempre foi o mesmo. A explicação de Ptolomeu foi uma, a de Copérnico,
outra, a revisão einsteiniana outra. Da mesma maneira, uma coisa é o poder
historicamente constituído, que verificamos nos dados; outra coisa, as
tentativas humanas para explicá-lo. E ao explicá-lo os homens têm interesse
social nessa ou naquela interpretação. O fato e o que os homens pensam
sobre o fato: e eles o pensam interessadamente não abstratamente, como se
fossem anjos ou vivessem em Sírius.

Objeção: os fatos mudam. Quid inde? Mudam; as camadas ou strata que


constituem a sociedade, idem. Daí resulta a necessidade de contínua
elaboração de novas categorias. Sempre gosto de repetir aos meus alunos,
para fazê-los bem atentos à relatividade do Conhecimento: a Ciência não é
perfeita, mas é perfectível. Dá-nos esquemas interpretativos de Ação: é,
simultaneamente, prospectiva e ativa. Dizendo “o poder é” não quis dizer
que fosse imutável, mas permanente no seu fieri. Também não dei
“explicação total do movimento político nas complexas sociedades
modernas”. Isso demandaria mais espaço, mais tempo, mais palavras — um
livro ou um curso.

Outra interrogação astuciosa partiu do Sr. Paul Flaim, indagando sobre os


métodos que permitiriam a maior participação das maiorias na construção da
ordem pública e do poder. Como realizar o “melhor” sistema de
representatividade? Questão inexaurível. Entre alguns fatores de deformação
do sistema, aponta-se o concubinato da finança com o parlamento, enlace
que abriu caminho, na década anterior à Segunda Guerra mundial, ao nazi-
fascismo, como ninguém ignora. Lewinsohn, que esteve entre nós, escrevera,
ainda na Europa, um livro densamente carregado de fatos, intitulado Das
Geld in der Politik. Não é, porém, este o aspecto que a pergunta lembraria,
mas outro: o da ação das minorias a serviço dos interesses coletivos. Se o
sistema de representatividade falha, a minoria corta o cordão umbilical com
a placenta democrática. O regime toma outra configuração, onde as minorias
monopolizam os controles políticos. Vai no mesmo sentido a objeção do Sr.
Michael D. Tirado relativamente às origens do poder no totalitarismo,
segundo pregaram seus messias. Desígnios divinos foram invocados pelo
führer, pelo duce, pelo caudilho. Refletem a natureza do líder carismático e
exprimem regressão a condutas pré-racionais. É a hora da teoria dos
“homens providenciais”, com o culto pela força, o qual se inocula nas
universidades, de onde se exila o espírito humanístico. Sumariamente,
qualquer transigência é acoimada de fraqueza. O quantum despótico, como
diz Pontes de Miranda, aumenta, em detrimento da energia civil. “E no
aspecto moral? o clima moral altera-se: e como medida puxa medida,
instala-se o regime de vigilância das consciências, a crítica é punida como
crime, a delação premiada como virtude cívica pela pedagogia do medo, que
domina as esferas dirigentes”, escrevia ainda em 1953.

Sem me afastar do núcleo do debate, nesta reunião, aproveito alguns minutos


para rápidas conjecturas, no tocante às redescobertas das estruturas
oligárquicas, quer no totalitarismo, quer nas democracias. Será, contudo,
exato chamar de oligarquia à minoria susceptível de substituição mediante
eleições livres? Decerto que não. Ao étimo grego oligón se insinuou
colorido político que estabelece diferente conotação semântica. A acepção
corrente aplica-se às elites do partido único. O partido comunista, na Rússia,
por exemplo, constitui uma minoria de 4% da população: mas senhoreia os
postos mais importantes e tem seus quadros impermeáveis. É, portanto, uma
grosseira mistificação denominá-lo de “partido de massa”. Na verdade, é
uma minoria situacionista dentro de uma economia que suprimiu a
propriedade privada dos meios de produção e criou uma burocracia estatal
de gerentes no controle de uma hierarquia de empresas. Que diria Marx de
tal socialismo? A ritualização de suas idéias em ideologia aprisionou a
mentalidade dos sicofantas: e, alienados, se espantam, comicamente, das
alienações do mundo capitalista.

Harold Lasswell, colaborando no simpósio Political Decision-Makers (6),


resume a tipologia das elites nas sociedades primitivas e nas feudais,
atribuindo ao vínculo entre grupos e strata o papel caracterizador. Valendo-
se da obra de C. J. Friedrich e Z. K. Borzeginsky (Totalitarian and
Autocracy) seleciona seis notas que distinguem as antigas formas de
autocracia das formas modernas: I) ideologia total; II) partido único de
massas; III) polícia secreta terrorista; IV) monopólio de comunicação das
massas; V) monopólio de armas; VI) economia planificada e centralizada.
Para movimentar um aparelho construído à vista desses objetivos, tornam-se
necessários recursos da ciência e da tecnologia mais adiantadas. O
recrutamento nas camadas da intelligentsia é indispensável. Recrutamento na
base da obediência estrita. Nas áreas da pesquisa físico-natural, os
professores universitários submetem-se ao comando do partido; e o mesmo
acontece nas ciências históricas e sociais. Estas são “perigosas” e exigem
vigilância dobrada: porque ali está a matriz das idéias e das ideologias.

As reflexões anteriores se prendem, de certa maneira, à objeção do Sr. John


Richard. Os argumentos citados pretendem mostrar que, ao lado do poder
oriundo da força material (exércitos, polícias, milícias fascistas etc.) — há
também o poder espiritual (sacerdotes, chefes religiosos, atraio, intelectuais
etc.) que se manifesta das formas mais diversas no curso da história. O
crescente prestígio da hierarquia científica no mundo atual deu a alguns
pensadores a ilusão de que as estruturas econômicas experimentam uma
transformação que afetaria a própria natureza do sistema econômico. A
perspectiva tecnocrática nascia desta premissa: uma hierarquia de empresas
concentraria o poder capaz de fazer a sociedade nova. A hierarquia seria
manipulada pelo profissionalismo técnico de um staff enxertado nos
organismos de produção do supercapitalismo. (7) Essa filosofia vai
acabando numa trivialidade inofensiva de algumas cátedras.

Já um tanto fora do debate, tomo, para concluir, o tema de Horkheimer e de


seu simpósio, exposto na obra documentada The Authoritarian Personality
(8): quais as áreas sociais mais sensíveis à propaganda antidemocrática
dentro de uma sociedade democrática? A sensibilidade às idéias socialistas
é uma; a sensibilidade às idéias fascistas é outra. Duas formas de
sensibilidade, correspondendo, evidentemente, às duas formas de
totalitarismo. Se as técnicas dos dois totalitarismo se identificam, os
conteúdos são, sociologicamente, diversos, fato que só a análise
inescrupulosa pode omitir. Os pesquisadores aludidos pretendem descobrir
um síndrome que define as personalidades que são vítimas de tropismo
psicológico para os redentorismos sociais. Afirmam eles que há indivíduos
que nascem com predisposição congênita à receptividade da propaganda
fascista. Essa psicologia especial é exacerbada pelo “romance neurótico
familiar” (essa expressão não vem naqueles autores, mas recordo-a da
psicanálise), isto é, pela constelação de fatores domésticos, que modelam
mais vivamente a afetividade infantil e juvenil.

A visão unilateral do problema reduziria a tipologia da liderança a capítulo


um tanto simplório da psicologia de Freud. Teríamos áreas sociais onde
residiriam as “potencialidades antidemocráticas”, preparadas por fatores
biológicos, quando a força dos desajustamentos sociais e econômicos, as
dissidências entre classes e grupos, assumem papel de mais significação
histórica. Os grupos sociais que não alcançam status que os satisfaçam,
constituídos por minoria em relações de conflito com o meio (minorias
religiosas, minorias étnicas, em ambientes hostis: judeus em gueto, negros
em favelas americanas etc.), são sempre sensíveis aos apelos de rebeldia e
apoiam com simpatia os líderes políticos que solicitam votos para
programas inconformistas. O estudo do comportamento eleitoral oferece uma
lição proveitosa e numerosos sociólogos e teoristas políticos estão voltados
para o assunto, principalmente na América do Norte. Assim, os fatores
internos, que a psicologia aponta, não são determinantes, por assim dizer,
das atitudes revolucionárias; os caracteres humanos surgem de um
background social, onde os conflitos definem desajustamentos mais
profundos. O critério das atitudes, valores, opiniões, que o indivíduo
adquire, exprime o processo de interação com os seres conviventes: é a
marca das estruturas onde está inserido.

Não se caia no extremo oposto de ver no indivíduo uma obra plástica da


ambiência, simplificação de que já fui acusado em certa ocasião em que não
acentuei a conjunção dinâmica entre os fatores sociais e os fatores que vêm
na hereditariedade. Leio em um dos autores referidos atrás que “se é certo
que opiniões, atitudes e valores dependem das necessidades humanas e se a
personalidade é essencialmente uma organização de necessidades, então a
personalidade pode ser considerada como determinante das preferências
ideológicas”. O raciocínio atenua, para fins de sustentar a tese criticada, o
valor da personalidade como produto social, — produto onde se
inscreveram as influências que plasmam o “espírito” dentro de “sistema de
espiritualidade” elaborado pela consciência humana.

Nota — O ensaio que antecede, já editado em opúsculos, nasceu de um tema


político e de uma provocação didática. Apresentei, em 1959, no Congresso
de Zacatecas, no México, algumas páginas discutindo o processo de
elaboração democrática da decisão política. Congregavam-se intelectuais
eminentes — o notável sociólogo Lúcio Mendieta y Nunez, Diretor do
Instituto de Investigações Sociais da Universidade Nacional Autônoma de
México, o historiador Agustín Cue Canovas, da Escola Normal Superior, o
Reitor Nabor Carrillo, o pedagogo Pablo Gonzalez Casanova, Floyd Dotson,
da Universidade de Connecticut, Lic. Alberto Vela, do Supremo Tribunal,
José Garcia Carrillo, do magistério superior, o filósofo Carmona Nenclares,
foragido espanhol, e numerosos outros, que seria longo enumerar. Os
resultados foram publicados em dois sérios volumes. (9)

A tese recebeu acolhimento caloroso: o vivo sentimento democrático acorda


e vibra facilmente nas elites estudiosas daquele grande povo. Recordo:
quando Trotski encontrava fechadas todas as portas civilizadas do mundo —
o presidente Lázaro Cárdenas abriu-lhe os braços da hospitalidade. Expulso
da Argentina, também lá foi morrer, num acidente de ônibus, o professor e
escritor Aníbal Ponce, discípulo admirável de José Ingenieros. E quantos
perseguidos mais, que lá encontraram simpatia, estima — e subsistência!

Encerro estas lembranças comovidas — e volto à tese, que não está aqui.
Reeditei-a nos Temas de Política e Filosofia, tal qual era aprovada naquele
saudoso Congresso. Correm os anos, e eis que a professora Lygia Fonseca
de Rás, dirigindo um curso na John Hopkins University, em 1966, teve a
idéia de tomá-la como leit motiv de um debate, na School of Advanced
International Studies. Debateram-na alguns professores, estudantes
graduados, especialistas nos assuntos latinoamericarios, como se poderá ler
a seguir.
O problema distende tentáculos por diversas latitudes ideológicas. Os
demais ensaios, embora aparentemente desligados, convergem para as
mesmas interrogações. Quando se fala em democracia, está presente no
espírito todo um way of life, com seus estilos de pensamento e de ação
política. E, imperceptivelmente, a reflexão se desloca para os problemas de
liberdade, dos direitos civis, da organização constitucional, do poder
econômico, do poder militar etc. Assim, por consequência lógica, reúno
neste livro alguns estudos que, apesar de feitos em momentos diferentes da
atividade catedrática, foram pensados na mesma linha de ação pedagógica e
em função dos mesmos interesses educativos: a defesa da independência do
espírito. No fundo, o desejo de ajudar a ruptura dos casulos fabricados pelas
catequeses militantes.

Apertado nas duas pontas de uma única tenaz, o espírito livre toma-se
beligerante. Qui habes aures audiendi, audiat. E quem só tiver as orelhas
exteriores não adianta empiná-las: a burrice, encabrestável por vocação
natural, sempre foi a melhor argamassa das ditaduras. Por isso, o primeiro
passo é emudecer as vozes dissidentes, domesticar a Arte e a Ciência e
transformar os problemas científicos em segredos misteriosos; (e com
prudente desconfiança diga-se que “mistério” é a forma desmoralizada do
“problema”). Nesse diapasão, tudo tende rotina autocrática. A autocracia é
triste e silenciosa. Porque a alacridade dos sibaritas e o arruído dos
cortesãos não quebram o silêncio da inteligência. A faina dos glosa- dores
não substitui a atividade dos pensadores. Pouco importam os motivos
invocados: onde o Pensamento se torna perigoso, as ciências sociais estão
sentenciadas à asfixia. Ensinadas sob vigilância, o que resta delas é o
murmúrio das cátedras amedrontadas. Oculta vox aut suspicax silentium (10)
Estiolam-se os estudos sociais onde imperam ortodoxias políticas — quer
sejam marxista, quer sejam antimarxistas: ambas sistematizam a pedagogia
liberticida. São dois momentos da mesma distorção espiritual, dois gumes
do mesmo garrote. A caminho do poder, pregam a Liberdade; no poder,
confiscam-na.

Nada disso prevalecerá. É o que nos diz a antevisão da saúde futura.


(1) Djacir Menezes, Temas de Política e Filosofia, Serviço de
Documentação, DASP, Rio, 1962.

(2) Runciman, Ciência Social e Teoria Política, Zahar, Rio; 1966.

(3) Observa o ministro Seabra Fagundes, a propósito da afirmativa acima,


que era preciso considerar o aspecto contrário, isto é, o papel que
desempenham os juristas como força frenadora das ditaduras. De fato, a
minha argumentação, visando demonstrar a tese esposada no texto, deixou à
sombra o outro lado da questão, que a restrição enunciada vem ilustrar.
Aceito a restrição como exata e justa.

(4) Cf. Temas de Política e Filosofia, onde retomei o tema de Elites


Agressivas, Org. Simões, Rio, 1953.

(5) Sidney Hook, Liberdade e Política, Zahar, Rio, 1966.

(6) Political Decision Makers, sob direção da Dwaine Marvick, The Free
Press of Glencoe, USA, 1961.

(7) Djacir Menezes, Proudhon, Hegel e a Dialética, Zahar, Rio, 1966.

(8) The Authoritarian Personality, de T. W. Adorno e outros. Harper & Row,


Publishers, New York, 1950.

(9) Instituto de Investigaciones Sociales de la Universidad Nacional


Autônoma de México, Estúdios Sociológicos, 2 tomos, México, 1958.

(10) Imitação de Cristo.


VII. O MALTHUSIANISMO,
SUAS IMPLICAÇÕES E
IMPLICÂNCIAS

“Economics is a very dangerous science”.

Keynes.

A documentada e clarividente conferência do Dr. Glycon de Paiva sobre o


proliferação dos seres humanos no planeta, em geral, no Brasil, em
particular, e no Nordeste, em confidência, sugere alguma meditação aos que
se dedicam aos problemas sociais. Assim é que não resistimos à tentação de
anotar desvaliosas e rápidas reflexões sobre o mesmo tema, que, nestes
últimos decênios e após as últimas guerras, absorve cada vez mais os
demologistas, sociólogos e estadistas. Alarmados, falam, misteriosamente,
na “explosão demográfica”, para qualificar, nessa linguagem eruptiva, a
reprodução da espécie, que exagerou, em descompassado ritmo, o preceito
bíblico do “crescei e multiplicai-vos” a fim de povoar a Terra. Decerto o
velho código de mores, oriundo de povo longínquo, que apascentava
rebanhos e amanhava jeiras de terra em recanto do globo, teria de mudar
algumas prescrições para regrar relações alteradas e adulteradas em
sociedade industrial e atômica.

Não precisamos, todavia, ir buscar os fios de nossa argumentação em


origens tão distantes. A pergunta se enrosca, em nossos dias, com a tese
malthusiana. É à volta da famosa formulação de Thomas Robert Malthus que
vamos canhestramente excogitar o assunto. Fazemo-lo sem arrière pensée,
livremente, examinando as contraditórias faces que nos oferece, na melhor
intenção de encontrar resposta satisfatória; ou para não chegar a solução
nenhuma, por pura provocação intelectual. Os investigadores se
preocuparam em rastrear, no passado, as raízes do pensamento de Malthus.
A idéia de que a limitação dos meios de subsistência exerceria pressão
sobre o crescimento da população já fora enunciada por Montesquieu,
Franklin, William Petty, James Stewart, Arthur Young, Townsend, James
Mill, entre outros. O próprio Malthus, na primeira edição do opúsculo, que
engrossaria em livre, rendeu agradecimentos a Hume, Smith e Wallace. A
idéia da correlação entre a potência germinativa e os recursos nutritivos,
porém, ainda vem de mais longe. Cannan e, antes dele, Bonar, historiaram a
gênese das teorias da população pelas alturas dos séculos XVI e XVII.
Talvez se encontrem, nos escritores antigos, idéias esparsas sobre o assunto;
e então se poderia repetir a sovada frase do nihil sub sole novum, com que a
erudição cobre molemente a indigência de certa filosofia conservadora, que
pretende ver na flecha do índio o foguete nuclear e no palencéfalo do
neandertalense a antecipação de Einstein. Diremos exatamente o contrário —
tudo é novo sob o sol e a redução das formas novas às formas passadas só é
possível por mutilação das essências vitais: a redução cadaveriza porque a
vida não prescinde da criação íntima e perpétua nos seus processos.
Destarte, as formas de- pensar desabrocham das anteriores, delas vivendo e
por elas se expandindo, mas negando-as e suprimindo-as genericamente: e é
isso o desenvolvimento histórico do Espírito. Por isso, é irrisório querer
encontrar no pensamento filosófico de um Hegel apenas o heraclitianismo ou
no tomismo apenas o aristotelismo. E, no nosso caso, deparar no
malthusianismo apenas a primitiva idéia de uma correlação entre duas
progressões — a da alimentação e a da natalidade dos seres humanos.

O primeiro ensaio de Malthus, com paradoxos lampejantes e estilo gracioso,


despertava a atenção dos estudiosos para um problema de particular
intensidade na Inglaterra, onde se desenvolviam as indústrias e as
necessidades do externo. Não há dúvida de que tais idéias já perpassavam
no clima intelectual da época. Entretanto, a maneira por que as expôs o
pastor protestante, até então obscuro ao público, envolvia argumentação
eivada de pessimismo cientifico, de fácil ingestão, com fascinante incitação
à controvérsia. Keynes escreveu que o ensaio é a “obra de um gênio
juvenil”; por outro lado, Colleridge opinou que era “palavrório e repetição
incoerente” (verbiage and senseless repetition), perguntando a seguir se a
pior forma de pobreza repontava onde não havia mais bocas do que couves e
mais coração do que cérebro.

Ora, o fato é que Malthus pretendia contestar Godwin, Condorcet e outros do


mesmo naipe. Ressoava por aquele tempo, nos espíritos menos perspicazes,
a larga maré ideológica que subira com a Revolução Francesa e lambia
corrosivamente os privilégios: e houve quem buscasse, nos escritos de
Malthus, o pavor secreto do movimento desencadeado pelos enciclopedistas.
“Influenciado também pelas impressões do Dr. Johnson, os historiadores
Gibbon e Burke esquecem facilmente a importância da jovem Inglaterra
radical do último quartel do século XVIII — anota Keynes — em que fora
educado Malthus, bem como o efeito destrutivo da esmagadora decepção das
consequências da Revolução Francesa (comparável às que a revolução russa
cedo trouxe aos seus prosélitos de hoje) — embora o saibamos na evolução
de Wordsworth e Coleridge e no invencível ardor de Shelley — na transição
do século XIX ao XX”.

Entre os pregoeiros da liquidação feudal, na França, os contrastes foram


enormes. Se, de um lado, Rousseau escrevera o credo do liberalismo
político, que animaria os anos sangrentos do Terror — e nunca na História
se louvou tanto a fraternidade e a igualdade, — de outro, Voltaire, zombando
cruelmente do solitário de Ermitage, concebera Deus como fiador da ordem
social contra o assalto dos bandidos: “Que freio se poderá meter à cupidez,
— confessava — às transgressões secretas e às impunidades, senão a idéia
de um Senhor eterno, que nos veja e nos julgue até nos pensamentos mais
íntimos.” É demasiado conhecida a carta que mandou a Jean Jacques a
propósito da igualdade do bon sauvage, modelo de felicidade natural dos
instintos não depravados pela convivência. Voltaire retruca-lhe que aqueles
paradigmas dos irracionais em comunhão com a mãe Natureza, oferecidos
por Rousseau, não podem mais ser adotados por ele, pois perdera muito
cedo o hábito de andar de quatro e se achava infelizmente demasiado velho
para tentar recuperá-lo. O patriarca de Ferney colocava-se ao lado da
propriedade e de seus direitos ante certas consequências do pensamento de
Rousseau. Diderot andou perto, declarando também sua insopitável ojeriza à
massa: “O homem do povo é tolo, é o mais tolo e mau de todos os homens;
despopularizar-se ou tomar-se melhor vem a ser a mesma coisa” —
declarou. Era o pensamento social do novo código que se iria cristalizar no
grande código napoleônico. Burke resmungava que a canalha, a multidão
suína (swinish multitude) não deve saber ler — e por toda a velha Albion de
gloriosas piratarias marítimas corria um vento de receio, que fustigava as
universidades. A efígie de Tom Payne era queimada pela massa no Market
Hill, em Cambridge, e estudantes amotinados pediam a expulsão de Freud da
cátedra do Jesus College. Tudo isso reflete a transposição de uma etapa do
espírito humano: era o estalar das amarras ideológicas que se ouvia, captada
pelos escritores que transmitiram aqueles rumores à posteridade. Deram-nos
a lição política de não levantar diques para deter o irresistível, mas de
discernir os caminhos inteligentes que permitam a marcha da História, que
não volta atrás; tentá-lo é mais que estupidez — é crime contra a
humanidade.

Mas voltemos a Malthus. Criticando a Godwin, tinha em mira na sua


Political Justice, situada em ponto de incandescência socialista, as injustiças
decorreriam da organização da sociedade industrial e mercantil, que estava
em acelerada expansão. Godwin pregava, dentro de uma perspectiva um
tanto quimérica, a necessidade de corrigir os desequilíbrios sociais
mediante a restauração das instituições do casamento e da propriedade: “a
matéria da propriedade privada é a pedra de toque que completa a estrutura
da justiça política” — diziam as primeiras palavras de seu panfleto. Malthus
havia desviado o alvo fixado, que era a existência de classes participando
desigualmente do gozo da riqueza criada: “Há pessoas infelizes que, na
grande loteria da vida, tiraram o bilhete branco”. Então vaticinava que se o
sistema social de Godwin se implantasse, fundado na benevolência, “em
menos de trinta anos sua destruição seria completa em consequência do
simples princípio da população”. Como as pernas de uma tesoura, as duas
progressões malthusianas decepariam o sonho de Godwin: assim pensa o
pastor. E saem-lhe duras verdades da pena: “A felicidade de um país não
depende absolutamente de sua pobreza ou riqueza, de sua juventude ou
senectude, de ser escassa ou densamente povoado, — mas da rapidez com
que aumenta, do grau em que anualmente o crescimento dos recursos
alimentícios aproxima-se do crescimento anual de uma população ilimitada
(unrestricted)”.

A argumentação de Malthus parecia nascer de atitude científica: e logo os


cientistas se impressionaram com a maneira por que punha o problema. Não
foi lendo suas páginas que Darwin teve a idéia do transformismo das
espécies? Ao reverso, a arguição de Godwin assumiu caráter completamente
diverso: acenava com os ideais de reforma social e de justiça política. Um
toma aspecto de verificação objetiva; outro, de subjetivismo revolucionário.
Vale a pena cotejar as duas manifestações para descobrir até que ponto as
duas aparências iludem, pois ambas refletem como aqueles dois homens
representavam as tendências profundas da sociedade de seu tempo, quiçá de
todos os tempos: a tendência conservadora de Malthus e a tendência
renovadora de Godwin, a Tradição e a Revolução, que penetram todo
processo dialético da História universal.

Não é por simples desígnio de documentar-se que Malthus transforma a


primeira edição de 1798 de seu pequeno livro, engrossando-a nas segunda e
terceira edições ulteriores. Porém já nelas começa a diluir-se o vigor do
ataque a Godwin, embora continue o mesmo o pensamento interno da obra. O
vendaval de críticas que desabou em redor foi enorme, conferindo-lhe
imprevista notoriedade. As teses são nítidas: “Formulo claramente dois
postulados. Primeiro, que o alimento é necessário à existência do homem.
Segundo, que a paixão entre os sexos é necessária e permanecerá
aproximadamente igual aos dias presentes”. Estabelecidos assim os dois
polos biológicos imutáveis — conservação do indivíduo e conservação da
espécie — a tese fundamental neles, se arraiga; assim, transfere-se para o
plano da natureza (e, consequentemente, segundo a interpretação teológica,
para a ordem fixada pela Providência), a responsabilidade dos
desequilíbrios sociais. Neste teor de idéias, aconselha-se mais resignação e
menos fervor revolucionário; é por esse prisma que a atitude malthusiana
mais contrasta com a atitude de Godwin.

É verdade que Malthus apontava aqueles instintos de subsistência e de


procriação como os prima moventes da vindoura penúria universal; mas
pregava remédio diferente, que era o controle racional do instinto genésico
mediante abstinência alcançada por meios pedagógicos. Ora, percebe-se que
a importância de causas naturais esquiva a significação de causas socais,
resguardando as estruturas jurídicas e políticas, veementemente acusadas
pelo socialismo com voz cada vez mais desabusada.
Godwin declarava que “nós não viemos ao mundo com princípios inatos” e
que “as qualidades morais do homem são produto de impressões recebidas
por ele” — o que rescende ao mais puro sensualismo de John Locke, cujo
pensamento, repassado de naturalismo ainda imaturo, incentivaria as
insurreições espirituais subsequentes. Derivando de tais premissas, a
inquieta pena do panfletário iria blaterar que “a doutrina da injustiça da
propriedade acumulada tem sido a base de toda moralidade religiosa”. Tais
palavras lembram as numerosas condenações da patrística e os grandes
movimentos sociais de essência religiosa desencadeados na Idade Média
contra os “riscos”, personificados nos senhores feudais. O espírito
reivindicador vestia a roupagem mística do tempo.

Malthus, desde 1797, quando escrevia The Crisis, panfleto político bem
cauteloso, já se ajeitava nas posições de prudente whig, não lhe tendo ficado
vestígio da intimidade intelectual com os partidários do radicalismo quase
revolucionário. Assim, ao ler o Enquirer, de Godwin, na data em que
acabava de escrever The Crisis, integrava-se no papel eminentemente
conservador. O “princípio da população”, que enunciaria a seguir, se
adequaria ideologicamente à sua atitude.

Recapitulemos alguns comentários que se têm feito sobre as teses


malthusianas. O aumento da população não é uma variável independente no
desenvolvimento histórico. De início, urge advertir que a população se
expande, nos quadros sociais de determinado regime econômico e político,
relacionada a formas de produção e distribuição da riqueza historicamente
configuradas e não se espraia pelo ecúmeno obediente às solicitações
climáticas e geográficas. A ação do meio natural se exerce através de
estruturas da vida coletiva. Isto é, a relação entre a população e os recursos
naturais não se faz diretamente entre o homem e a riqueza ou a pobreza da
ambiência, mas mediante todo um processo histórico muito complexo, no
seio do qual se elaboraram instituições políticas e jurídicas, que disciplinam
e canalizam eis atividades humanas e respectivos resultados. Em função
dessas estruturas é que o movimento demográfico toma sentido e deve ser
examinado. É fácil, em face disso, mostrar a nebulosidade um tanto sofistica
dos índices de renda per capita, ou de outros índices per capita, quando
abstraídos de formas concretamente históricas de produção. É como já
articulava o velho Ricardo — as leis econômicas principiam no estudo das
relações oriundas do criar e do repartir os valores obtidos pelo trabalho. É
naqueles verbos e não no circular e consumir que radicam os mais cruciantes
problemas do mundo moderno.

Pois a nós nos parece que a pressão demográfica, que não contestamos,
cresce ou decresce ainda mais em consequência das dissimetrias internas
inerentes àquele processo. Não se deve, todavia, recair no erro oposto, que
seria apenas a simplificação de reduzir a zero a influência do crescer da
população. Façamos uma imagem — e é preciso cuidado com as metáforas
na Ciência. A vibração das cordas produz na viola a sonoridade da nota.
Mas é a caixa, que se lhe ajusta, que dá vigor audível à amplitude das ondas,
em repercussão. Pois a estrutura social funciona às vezes como a caixa de
ressonância das aflições da população crescente, alarmando a nossa
sensibilidade filantrópica e assanhando os demologistas nos quatro cantos
do globo, enquanto alguns homens fatalistas já começam a lobrigar,
turvamente, que a bomba atômica é um desígnio da Providência, senhora de
métodos inescrutáveis, a escrever sinuoso por linhas retas.

É inquestionável que Malthus teve o graúdo mérito de atrair insólita atenção


para o proliferação humana. Todo mundo entrou a discutir a pressão
escatológica que estaria certa altura do subir dos termos correlatos das duas
progressões. Mais do que a qualquer outra, caberia a tal teoria o apelido
dado por Keynes de “doutrinas pseudo-aritméticas”, a repetirem, na história
do pensamento, sob aparências científicas, simples apologéticas de regimes
onde as elites não conseguem descobrir sendas de renovação.

Hoje, em termos de sociologia, deve-se examinar a intima conexão que


existe entre o volume dos recursos e a natureza da combinação dos fatores
produtivos, de um lado, e o volume da população ativa, de outro. No fundo,
trata-se do ajustamento, que se realiza dentro de cada regime econômico,
entre os meios de produção e a força do trabalho, entre equipamento e mão-
de-obra, entre recursos físico-naturais e recursos humanos conjugados no
dinamismo fundamental que vai distribuindo a população nos diversos
setores da economia.

Keynes vem trazer boa contribuição ao debate. Repõe, de ângulo nitidamente


antissocialista, o princípio da população no fogo da controvérsia, e não se
lhe pode negar a penetração da abordagem teórica. Com tal inteligência o
fez, que aprimorou a própria aparelhagem conceituai requestada para exame
dos fatos, atraindo à sua liderança os economistas que, mais ou menos
disponíveis, andavam à cata de unidade doutrinária. Outrora, Marshall, num
inquérito minudente, dissera que os defensores das Poor Laws continuavam
raciocinando encalhados no esquema clássico da concepção do fundo de
salário: para eles, se se favorecem economicamente as classes
trabalhadoras, incentiva-se o seu crescimento e concorre-se para a baixa
posterior dos salários o que redunda na agravação de suas condições de
vida. Se tal ocorresse, o honesto não seria pregar a conformação com tal
sistema social, mas o apelo à sua destruição como fizera Lassalie. Caberia
então perguntar se o esforço pelo melhoramento dos padrões de vida dos
povos subdesenvolvidos não seria uma política ditada por hipócritas ou por
ignorantes? Ou creem na Ciência que ensinam ou a Ciência que ensinam é
uma burla cínica, encobrindo outros propósitos.

“Parece-me — estranhava Marshall com probidade — que, em face de


quaisquer passagens que leia da literatura das Poor Laws, sou obrigado a
regredir ao começo do século; e tudo que dizem sobre economia tem o sabor
daqueles velhos tempos”.

Jamais uma hipótese — referimo-nos à hipótese malthusiana — teve tão


diversas e profundas repercussões no pensamento social e político, ora de
maneira clara e ostensiva, ora de maneira latente, corrosivamente
introduzida nas premissas nem sempre muito consciente. Reconheçamos que
desabrocha com nova tonalidade na análise keynesiana das causas do
desemprego. De que depende a utilização dos recursos? Do potencial do
método produtivo — responderam os clássicos. Também da procura efetiva
de bens e serviços produzidos — corrigiu Keynes. Até onde alcança a
procura de bens e investimentos, particularmente de habitação e utilidades
públicas, prevalece a influência do crescer demográfico. Ao inverso, uma
população, que diminui, é provavelmente responsável por uma depressão na
demanda, especialmente de bens de investimento. Em consequência,
subemprego de recursos. Comenta um economista que Keynes era precavido
— e não pretendeu, com sua teoria do desemprego, exorcizar o demônio
malthusiano da superpopulação. O pastor — notara ele — continuaria
caminhando na vida seguido pelo mesmo avantesma da mocidade; apenas já
escrevendo suas páginas econômicas, na velhice, o crescimento da
população lhe apareceria, saltando de dentro das rupturas da demanda
efetiva, nos paroxismos das crises. Escreve chistosamente Keynes: “Agora,
quando o diabo malthusiano P é amarrado, o diabo malthusiano A é
propenso a andar às soltas. Quando o diabo P da população é jugulado,
ficamos livres de ameaças; mas somos mais expostos ao outro diabo A dos
recursos desempregados do que éramos antes”.

A superpopulação que se manifesta no fenômeno do desemprego não se


confunde com a que se manifesta com a insuficiência dos meios de
subsistência, mas com a insuficiência dos meios de trabalho. O excedente
humano não decorreria do nível dos recursos para alimentação, mas do nível
técnico, que não permite a utilização plena da mão-de- obra existente.
Entretanto, Malthus viu a possibilidade do desenvolvimento técnico,
amortecendo a ação das causas do chômage no processo da acumulação
capitalista; e restaria apenas o outro fator, relativo à escassez do alimento.
Conforme observou Bettelheim, ao examinar o problema, Malthus transita
um tanto levianamente da tese da insuficiência dos meios de consumo para a
insuficiência dos meios de trabalho. O paradoxo, porém, reside no fato de
irromper a crise do desemprego precisamente quando abundam recursos, no
panorama da superprodução, mercados estagnados, paralisia das iniciativas:
a pletora dos recursos aparece contraditoriamente mais forte: a miséria no
seio da abundância. Assim, levando ao extremo a hipótese de que a crise
resulta de condições naturais, Malthus acabou, a contrario sensu, brindando-
nos com a idéia oposta, a de que os fatores sociais presidem aquele
processo crítico.

Todavia, no pensamento de Malthus ainda se esboça outra conexão de


causas, que parece influir na determinação do fenômeno: e vem a ser a da
vinculação entre o nível de lucro de emprego. Esta suposição lhe serve para
hostilizar as tentativas políticas de majoração salarial, mas, no desdobrar de
suas conjecturas, acabam sendo teses acessórias. A tese fundamental
persiste: a da superpopulação e insuficiência dos meios de trabalho.

Admitida a hipótese de que a população cresça atualmente mais por efeito da


taxa declinante da mortalidade (antibióticos e outros progressos
terapêuticos) do que da proliferação, — então será necessário o freio
malthusiano para impedir nascimentos, e sobre o seu funcionamento falou
erudita e cristalinamente o Dr. Glycon de Paiva. Não sabemos se tal medida
contaminará os espíritos nesse instante em que se afinam as pontas das
picaretas reformistas, que podem passar a mãos mais febris de
revolucionários urgentes, já maquinando planificações imensas. Quem sabe
se não está a germinar a idéia da proliferação planificada? Estamos a ver,
nesses dias ordeiros de obediência estatal, o humilde súdito, encolhido
diante do guichê do Estado, com a petição na destra, solicitando mansamente
o direito de gerar mais um filho. E as dificuldades burocráticas contidas no
despacho da autoridade, que exige provas de que o cidadão reprodutor está
legalmente capacitado para gozo da concessão que se lhe outorga ou se se
trata dum reacionário cheio de concupiscência burguesa. Não podemos
antecipar qual seria penalidade, estipulada em novo código criminal sem
revisão do Professor Roberto Lira, a ser aplicada aos contraventores
lascivos ou impacientes, desrespeitosos dos prazos legais. Decerto haverá
um Ministério do Sexo, com toda a burocracia necessária à administração
das relações genésicas. E como o pistolão é instituição indestrutível —
suspeitamos que só os funcionários mais conchegados à onipotência das
altas esferas terão família prolífica: obteriam com mais facilidade os cartões
de racionamento sexual.

Mas isso não é uma página furtada ao romancista George Orwell.

Retomando as reflexões precedentes, recordamos que o aperfeiçoamento dos


métodos de produção e as novas invenções, reduzindo, em certos casos, a
mão-de-obra, atuariam no sentido favorável aos excedentes malthusianos.
Acode-nos aqui a proposta do Sr. Prebish, recomendando a aquisição de
máquinas menos aperfeiçoadas por nações subdesenvolvidas, a fim de não
lhes causar impacto sobre o meio social, onde sobejam trabalhadores
sujeitos a salários baixos, o que agravaria muito o problema social. A
inferioridade dos preços de custos é assegurada pelo excesso de braços em
padrão de vida precário. Noutras palavras, essa força de trabalho tão barata
permite a utilização de máquinas que seriam aposentadas nos salários mais
altos de regimes de labor saving inventions, para falar na terminologia de
Hicks. Observe-se, portanto, que a solicitação da quantidade da força de
trabalho não resulta do capital como totalidade, mas da parcela do capital
que os clássicos chamaram de “fundo de salário” e Marx de “capital
variável”, a qual entra em relação dinâmica com a outra parte (“capital
constante”) na composição do capital global. Esta dicotomia revela um
aspecto das relações no interior do processo produtivo; ao aludir, porém, às
categorias do capital “circulante” e “fixo”, transladamo-nos para o plano da
circulação e consumo da riqueza, onde surgem outras conotações.

Sabe-se que o equipamento produtivo tem nível de emprego compatível com


sua fase técnica de desenvolvimento. Ora, é exatamente esta relação com a
população trabalhadora que configura bem visivelmente o pseudoproblema
malthusiano. Dizemos pseudo porque é falso, se formulado nas bases
naturalistas e em termos puramente biológicos dos discípulos radicais, que
deixam em silêncio as determinações sociais indispensáveis à sua definição.
Se o progresso técnico, expressão positiva da inteligência humana (que entra
no problema como variável qualitativa de alta valia), é, por sua vez, causa
da produtividade do trabalho, o ritmo da progressão aritmética dos
alimentos no espartilho malthusiano funciona apenas como metáfora
pessimista, inspirada no espetáculo social da legislação britânica sobre o
preço do trigo e pensões de pobres, em 1790. Responsabilizava-se o
subsídio oficial como pieguice que ajudava a proliferação da miséria
ociosa, que as pestes e guerras e outras maneiras providenciais de ceifar
vidas não bastavam para ajustar o equilíbrio social.

Como pendemos mais para a interpretação sociológica, onde se amolece e


amolga o rigorismo da interpretação econômica, aplaudimos, na obra
malthusiana, o impacto que deu às conjecturas dos técnicos. Talvez lhe
pesasse no espírito o voto religioso. O certo é que procurou descobrir as
conexões entre a miséria e o funcionamento do sistema. E é, de fato, o
problema da miséria que está no centro da Economia Política definida por
alguns como a ciência da riqueza e da abundância. “Ciência muito perigosa”
— escreveria Keynes biografando Malthus. Ao que se nos afigura, Keynes
não era tão keynesiano como no-lo pintam seus prosélitos...

Não se deduza destas considerações que Malthus tivesse uma perspectiva


histórica dos problemas humanos. Sua visão é retrospectiva, denuncia certo
saudosismo das classes territoriais, alérgicas ao progresso industrial e
mercantil. Quem nos indica isso é ainda Lord Keynes, ao ensinar que a
“demanda efetiva” de Malthus não invoca, como Ricardo, a quantidade de
moeda para explicar a subida de preços, — mas aponta a “tentativa de
aumentar os subsídios concedidos em proporção ao custo do trigo”. Nessa
conjugação de causas, a quantidade de moeda seria “antes um efeito do que a
causa do preço alto das provisões”. Tais teses, segundo discorre o maior
teórico do capitalismo moderno, ficaram submersas no inframundo
econômico durante a longa tirania ricardiana.

A análise de Malthus, investigando a causa do ascender dos salários nas


classes proletárias e nos subsídios da legislação social, mostra posição
diferente da em que se colocou Ricardo. Seu antiburguesismo leva-o a
opiniões amargas sobre a distribuição dos bens feita de acordo com “as
sórdidas distinções do dinheiro”, adjetivação de travo saborosamente
feudal. Ricardo, homem da bolsa e do câmbio, jamais resmungaria essa
linguagem da nobreza territorial vencida por uma das classes mais
empreendedoras do século que se abria.

As ponderações que precedem nos encaminham para o exame de uma das


leis que são postas à base da teoria malthusiana da população — e vem a ser
a lei dos rendimentos decrescentes. No parecer de vários autores, ela
conferia validade científica às interpretações modernas dos que persistem no
emprestar foros de cidadania doutrinária às teorias do célebre pastor.
Procedente de uma experiência agrária, a proposição foi enunciada mais ou
menos como segue: “Se os métodos de produção permanecem os mesmos, ao
aplicar-se a determinada área de terra quantidades crescentes de capital ou
de trabalho (ou de ambos), o rendimento, depois de ascender a certo ponto,
começará a decrescer”. Posteriormente, generalizando-se, pretendeu-se
obter a lei de proporções variáveis: a um fator fixo A se aplicam fatores
variáveis B, C, D... N, comportando-se o rendimento em conformidade com
a curva prevista.

A condição inicial, que postula a permanência dos métodos de produção,


suprime do raciocínio uma das causas mais importantes, que é o progresso
científico. É este que determina a intensificação dos demais fatores,
provocando inversões de capital e modificações na quantidade e
qualificação da mão-de-obra, e fazendo subir o rendimento, mesmo que o
fator terra porventura continue invariável. Destarte, além de certo ponto,
qualquer investimento adicional dos fatores sobre o fator fixo (terra)
corresponderia a uma dose adicional decrescente do produto. Mill havia
enunciado nos Principies of Political Economy, de 1848, que o produto da
terra aumenta, coeteris paribus, em razão decrescente ao aumento dos
trabalhadores empregados. — Esta proposição foi apresentada como “lei
universal da indústria agrícola”.

Ouçamos também, nos dias recentes, arraiais calorosamente hostis.

Atacando a Bulgakov, que apoiava nessa lei o processo de desenvolvimento


da agricultura, Lenin encarniçou-se contra a interpretação, escrevendo que
“seria o mesmo que dizer que a parada dos trens nas estações representa uma
lei geral do transporte a vapor, enquanto o movimento dos trens entre as
estações é uma tendência temporária que paralisa a operação da lei
universal de parar”. Não podemos nos deter no exame da questão; o ponto de
vista em que se colocam os marxistas, sob a batuta bolchevique, dá
perspectiva diversa, que não interessa hic et nunc.

Aproximemo-nos da conclusão. Conclusão desta palestra, porque ficam de


pé as interrogações fundamentais e seria estultice pretender encerrá-las. Não
somente em virtude da verificada debilidade de análise, quanto pelo fato de
persistirem tais perplexidades vivas no seio das sociedades crivadas de
contradições exacerbadas. Não foi só o marxismo que transpôs para o plano
social o princípio darwiniano do struggle for life sob a forma da “luta de
classes”, erigindo-o em motor da história humana. Antes mesmo, o
liberalismo econômico fizera a apologia do princípio da competição como
fundamento de uma filosofia da vida e lei universal das sociedades. O surto
das ciências biológicas deu mão forte aos seus partidários, assimilando cada
vez mais a sociologia à biologia darwinista, que se deturpava
irresistivelmente no consórcio. A moral do forte, que triunfa, e do fraco, que
convocou entusiastas para formulação de certa filosofia guerreira, que, pela
boca de Von Moltke e Ratzenhofer, declararam que a “guerra purificava os
povos”. Outros pensamentos frenéticos desabotoaram desse estado de
espírito e não se pode esconder o espanto de que o mundo ocidental e cristão
não tivesse farejado a essência anticristã de tal atitude perante a vida. A
consequência inevitável dessas premissas malucas, se algum sofisma não
torce a linha do raciocínio, é a de que toda a medida de amparo ao pobre,
que não é proprietário neste mundo com a promessa de ser aquinhoado no
outro, será contrária à lei natural da sobrevivência do mais forte e à seleção
dos mais aptos, reguladoras da evolução bestial da espécie. Se nos parece
brutalidade a luta no nível zoológico, no nível social teve justificadores e
apologéticos audaciosos. Gustavo Le Bon, em livro que lemos na
adolescência e citamos agora pela recordação, falou, com coerência
cinicamente científica, na ação nefasta das instituições filantrópicas. Chegou
à conclusão de que a caridade é um vício altamente nocivo ao progresso
humano. O próprio Malthus, que apascentava rebanhos evangélicos,
escreveu:

“Desde que a população tende constantemente a sobrepujar os meios de


subsistência, a caridade é ineptamente um encorajamento público à
pobreza”. Cai a fulminação sobre todas as formas de organização
administrativa da caridade, desde a que nasce na grã-finagem das
respeitáveis senhoras da ociosidade dourada, nos círculos do esnobismo
privado, até a que brota por inspiração legislativa e se encaleira pelos
regatos da burocracia oficiosa. Quer isto dizer que nosso autor do princípio
da população acaba pertinho dos sectários da “luta de classe”. Estes,
entretanto, nos prometem um Estado onde se desvaneceriam os antagonismos
na pacatez de um seio de Abraão público, metáfora que cobre a ditadura
onde os tais antagonismos, devidamente amordaçados, se aquietam,
rosnando, no progresso histórico, para refluir suas pulsações ao interior das
consciências sem respiráculos.

Apresentada como fundada na lei natural, essa lei de competição entre seres
humanos, que lutam para sobreviver com armas racionais a serviço de
apetites de minorias beneficiárias, toma a aparência de lei inelutável, que se
não poderia eliminar dos processos de convivência. E então, o racional se
torna em irracional dentro de tais processos. Não admira, pois, que um
escritor inglês, no começo do século XIX, embuçado pudicamente sob o
pseudônimo de Marcus, num panfleto intitulado On the Possibility of
Limiting Populousness (a 6 edição saiu em 1826), nos dias de férvido
malthusianismo, propusesse, com singeleza e descaro, que o Estado não
deixasse a família operária passar de dois filhos e meio (o “meio” resultava
do cálculo feito), devendo as sobras da produção ser destruídas
eutanasicamente (the exeess being painlessly destroyed). Ora, evidentemente,
a teoria da população, montada na hipótese malthusiana, refletia as
circunstâncias do meio inglês. Foi a transição do século XIX para o XX que
ditou os termos do problema, sem cavilações ou reticências, às elites com
medo da massa de deserdados vociferantes. Seu desejo de sobreviver
transformou-se no direito à vida. Através dos idealismos mais ou menos
agitados ou desvairados, fortalecia-se o direito inapelável, prosseguindo o
esforço de organizar formas racionais de convivência humana, o que só será
possível em sistema que assegure efetivamente a liberdade. Liberdade em
todas as modalidades como prerrogativa do regime. Liberdade que a
opressão econômica subtraiu de grande massa de seres humanos, no
capitalismo, e que não foi restituída nas latitudes dos regimes ditos
socialistas, onde impera, de fato, o mais tirânico capitalismo de Estado.
Onde esse Reino bem-aventurado, que não é deste mundo? dirão os realistas
com ressaibos de ironia conservadora. Toda idéia pioneira madruga nos
espíritos que sonham. Péricles disse aos atenienses que o segredo da
liberdade era a coragem. E o professor Harold Laski ponderou: “A
qualidade do clima livre é luz antes de ser calor. Porque a luz permite
argumentar e não podemos debater com homens que estão apaixonados.
Nada é tão fácil de gerar paixão que descobrir a ameaça de sacrificar seus
privilégios. O caminho da liberdade, portanto, está no promover a
organização das instituições sociais de modo que não haja privilégio a
sacrificar”.

Tal caminho é progressivo: consiste na eliminação paulatina das


desigualdades econômicas, que não desaparecem por golpes de demagogia
legislativa. “Toda vez que emudecemos diante de uma injustiça —
considerou ainda Laski — anuímos na perda da liberdade; e se insistimos em
que tais injustiças não dependem de nós, mais cedemos campo à obra dos
demagogos, que mobilizam a opinião pública para seus desideratos
políticos”.

Não importa: mediante paralisias e arrancos, marchas e contramarchas dos


ziguezagues históricos, a humanidade cobra, em cada point tournant, o saldo
positivo a favor do futuro coletivo. Não se pode confundir com regressão os
cotovelos do caminho tortuoso. Os eclipses da liberdade não são a noite da
opressão. Porque mesmo as noites passam e dias novos alvoram no renascer
das esperanças. E sobretudo porque renunciar à liberdade será um preço
muito alto para a sobrevivência.
NOTA — Para o ensaio acima, relemos os seguintes livros: D. V. Gass
Introduction to Malthus. Watts & Co., London, 1953; — John Maynard
Keynes, Essays in Biography, MacMillan & Co., London, 1933; — David
Ricardo, Works and Correspondence. vol. II, Notes on Malthus; Principies of
Political Economy, Cambridge University Press, 1951; — T. R. Malthus An
Essay on Population, Everyman’s Library, London, 2 vols., 1952; —
Godwin, Political Justice, a Reprint of “The Essay on Property”, George
Allen & Unwin Ltd., London, 1949; — Kenneth Smith, The Malihusian
Coniroversy, Routledge & Kegan Paul, London, 1951; — Lenin, Die
Agarfrage und die "Marxkriiiker", in Werke, Dietze Verlag, vol. 5; Berlim,
1959; — Ch. Bettelheim, Le problème de l'Emploi ei du Chômage dans les
Théories économiques, Centre de Documentation Universitaire, Paris, 1949;
— Karl Marx, Das Kapital, vol. I, capítulo XXIII, J. W. Dietz-Nacht, Berlim,
1928 (edição de Karl Kautsky).
VIII. ASFIXIA DO HUMANISMO

Na comunicação feita por Gilberto Freyre, na última sessão da semana


passada, relativa às atividades do Instituto Joaquim Nabuco, que se
constituiu em centro propulsor da cultura sob a orientação do eminente
sociólogo, há, nas considerações preliminares, uma tese de grande
irradiação, que não pude deixar de assinalar logo após sua leitura. Vai daí, o
sr. Presidente Arthur Cezar Ferreira Reis, sempre disposto a mandar alguma
brasa que despeça fosforescências quodlibéticas à volta de interrogações
pertinentes à cultura, intimou o provocador a trazer à colação as reflexões
com que ameaçara os colegas.

De fato, a observação inteligentemente feita a respeito da asfixia dos


elementos humanísticos por um tecnicismo que está desfigurando, por causa
de sua exagerada penetração no processo docente, a fisionomia da nossa
cultura, já começa a ter influências deformadoras. Ele o disse por outras
palavras, mas creio que a idéia foi mais ou menos essa que me apresso a
comentar, tirando algumas consequências imediatas. Antes, porém, quero
prevenir que não tenho intenções de mea culpa. Esclareço: há bons vinte
anos ou mais, critiquei (esta crítica se tornara paradoxalmente rotina), os
vícios do bacharelismo que se entranhara na vida pública, coisa que se fazia
desde as páginas clássicas de Alberto Torres e Oliveira Vianna. Lembro-me
até que compareci a um dos Congressos de educação levando uma tese
tecnicista como se empunhasse um florete: e clamava pela urgência de
encravar as ciências técnicas no cerne do processo educativo — e malhava o
pau no ensino de latim. Aliás, com inqualificável ingratidão, porque nele
iniciara os primeiros passos no magistério carioca, no Colégio Aldridge, na
praia de Botafogo, ainda no quarto ano de Direito e recém chegado do
Ceará, onde, como diz a canção “tomara um Ita no norte”, lá pelos idos de
1929, numa clara tarde de sol e de saudade.
Perdoem: não me distanciarei do assunto. A tese não era simples; era
simplista: o bacharelismo assumia a responsabilidade total dos erros de
nossa formação. Era um fator parcial, mas a juventude não vê parcelas, vê
panoramas e transforma sempre aspirações paroquiais em ideais
ecumênicos. De modo que não podia enxergar o valor das elites que, saídas
dos dois focos bacharelígenos de Olinda e São Paulo, continuaram a assentar
os fundamentos da organização nacional, prolongando a obra das elites
anteriores, nos arrebóis da colônia, vindas de Coimbra e de lá trazendo e
aplicando a legislação reinol, onde se fazia sentir, ao lado do mecanismo de
dominação metropolitana, os esboços daquelas garantias foralícias das
liberdades municipais, qual no-lo descreve lapidarmente Alexandre
Herculano.

Com a revolução de 1930, avançava o pensamento tecnocrático, ainda


tateando, mas já hostil, já rosnando contra a velha educação aleitada nas
tetas do classicismo.

Tais reações dão sempre a idéia de um movimento pendular: o ponto de


equilíbrio não será respeitado — porque iríamos cair no exagero oposto,
cujos efeitos agora se começam a perceber sem ainda cogitar nas
retificações. O que ai está dito — é certamente o que estão a pensar os
estudiosos que pensam com a própria cabeça e não têm compromisso senão
com a própria consciência de estudiosos.

O “técnico” ou melhor e precisando o termo, o “tecnocrata”, que é sua


variante mórbida, se carece de cultura geral, é um homem em que mirrou a
seiva histórica, abstraído naquele “idiotismo profissional” de que falou
Marx. Pois é a produção desses autômatos, que são uma mola na
engrenagem, mas não são uma consciência no processo, nalgumas áreas da
civilização industrial, tornou-se a meta de todo um vasto e dominador
programa de educação. Educação ou adestramento? Programa
excelentemente ajustado a um Estado totalitário, é uma conspiração
indecente contra os princípios elementares de qualquer consensus
democrático. Confunde, primordialmente, disciplina com docilidade, e tende
sumariamente a ver na crítica a subversão. Ora, o conflito das idéias é a
atmosfera salutar da liberdade para o desenvolvimento científico, filosófico
e artístico. Nas mãos dessa ortodoxia, a censura se transforma numa arma de
opressão intelectual, que é o mais odioso modo de asfixiar o pensamento. No
desígnio de combater a desordem, institui outra forma de sectarização, que
consiste na reivindicação, por sugestão do inimigo e fazendo-lhe o jogo, de
processualísticas que obturam os respiradouros da inteligência. Tornam-se
exemplos daquilo que precisamente condenavam: e iludem-se na convicção
de que só sua ortodoxia e seus valores são verdadeiros. Daí é um passo para
querer exterminar os valores adversos.

Ressalta disso tudo uma grande, uma luminosa verdade: o Poder não deve ter
ortodoxias filosóficas ou religiosas. É o que nos ensina a história do
pensamento político. E para apoiar esta afirmação — quem invocarei? Uma
oportuníssima reflexão de Teófilo Ottoni, o grande “lusia” da Companhia de
Mucuri, na sua famosa Circular, a inconfidência de 7 de abril foi a
independência de 7 de setembro. E mais por trás, desenha-se a forca de um
alferes e um grupo aflito de intelectuais. No correr dos episódios históricos,
o mesmo fato toma nova significação. Essa variação de sentido é função de
uma correlação das forças sociais que produzem o movimento histórico, as
quais não são absolutamente imobilizáveis, porque neste caso não seriam
“forças”.

Glorificam-se as ciências técnicas e faz-se a apologia da tecnocracia. Há


uma insopitável tendência para uma sofocracia esotérica e pedante na
filosofia dos tecnicismos. Simultaneamente, sua ação social estimula esse
gradativo dessorar silencioso e persistente, da seiva humanística, e é
exatamente isso que se deve impedir. Como? promovendo a assimilação de
elementos que o humanismo antigo desconhecia nem podia conhecer. Ele
bebeu sua vitalidade nas letras greco-latinas. Pois é ainda nesse passado
onde estão as riquezas espirituais, as grandes fontes do pensamento.
Perguntar-se-á: então vamos embatucar nessa admiração retrospectiva? O
conselho é mais velho que a Sé de Braga, como se dizia no Liceu do meu
tempo sem saber onde era Braga nem se havia Sé.

Vamos por partes. Em primeiro lugar, não defenderia tal simplismo. Não
predico uma ressurreição de valores embalsamados em textos — mas sim, o
estudo dó passado como fonte que se revitaliza à custa de experiência do
presente. O acumular dessas perspectivas, como disse há dias no Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, enriquecendo o presente, dá nova
opulência ao passado, suscitando outras formas de consciência e de estilos
de ação. Dele, portanto, não brotará essa vis inertiae de reação esclerozante,
mas um fluxo espiritual de progresso.

Ainda mais — porque inverto a metodologia corrente, seguindo a lição


hegeliana: não é o passado que explica o presente, mas o presente que
explica o passado. Isso não é um paradoxo ou um dito de espírito; é uma
profunda reflexão filosófica. A experiência atual, mais larga e mais
complexa, contém os elementos que podem esclarecer as fases anteriores
mais simples. Assim, é o organismo humano que permite compreender
melhor o organismo do antropoide — e não vice-versa. No balancement do
complexo é que se entende o simples. Quando se começou a compreender o
mundo feudal? Precisamente quando ele entrou em decadência; ao
desagregar-se, revelava seu mecanismo interno, trabalhando pelas novas
forças sociais do capitalismo, que abriam espaço as novas formas de
produção. O arbusto não permite prever o talhe da árvore. O embrião só
contém potencialmente as diferenciações em devenir. De sorte que é a forma
evolvida e expandida, que expõe o que antes constituía algo de mistério e
incógnito.

É, portanto, a consciência plena do presente que pode aquilatar o repertório


de tendências em gestação no fundo do passado. O humanismo foi
revolucionário no quadro da renascença. Depois foi se retardando e acabou
batalhando contra o novo espírito científico, que de certa maneira pariu a
tecnocracia como filho espúrio. Aconteceu, porém, que as necessidades
sociais, no seio do mundo industrial, renovaram o humanismo, que é a força
progressiva e não pode ser soterrado pelos coveiros apressados da
democracia. A característica do novo humanista reside na potência que lhe
dão as ciências sociais e históricas. A apologia massolátrica, que venera o
número, simplifica assustadoramente o problema. A corrigenda repõe em
cena hegemonia das elites. O que passou foi o privilégio das elites do
sangue, como está passando o privilégio das elites econômicas tout court,
nessa valorização dos conhecimentos tecnológicos. Mas a História está
grávida, engendrando outra elite, que deriva sua força da inteligência
científica inserida no processo humano — esse “humanismo naturalista” de
que falou Dewey há bons decênios.
Reconheçamos a urgência de restaurar os elementos humanísticos no
processo cultural. Não é admissível esse sufocar de perspectivas históricas,
onde o estudioso depara a compartimentação estanque. Não lhe cumpre
auxiliar a pôr os antolhos nas gerações, para que só enxerguem a estrada
batida da rotina, sem poder ver as margens onde a verdura sorri bebendo luz
e vida. Nessa ordem de idéia, a função educativa se concentra no disciplinar
o comportamento dentro dos normativismos políticos, esquecendo de exaltar
as energias originais da personalidade. Para eles, a submissão que imita,
vale mais do que a rebeldia, que descobre. O autodidatismo, que às vezes é
marca dos grandes espíritos, passa a ser condenado em nome da rotina
canonizada. O heterodidatismo não transige, aplainando tudo na mesma
razoira.

Preciso, entretanto, acentuar que não estou promovendo a louvação dessas


múltiplas rebeldias, que por aí rabeiam em protestos fúteis que partem de
microcéfalos calvos ou peludos, tão insolentes quanto ignorantes. Isso nada
significa, por mais que, na imprensa e no rádio, apresentem-se e louvem-se
uns aos outros como “fabulosos” espíritos que andam revolucionando as
artes, as literaturas e as filosofias, em obras alimentadas por uma
propaganda de altos penachos.

Devemos apreciar o fato nas circunstâncias que o definem, social e


psicologicamente. A torrente de sons e imagens que inunda os lares, olhos e
ouvidos a dentro, representa um grande fator nas contorções da incultura
nacional — e não é difícil anotar-lhe as singularidades.

A massolatria é uma componente ideológica que não contradiz a civilização


tecnocrática. Que miopia social, a da erudição tecnicista! A falta de digestão
do conhecimento, que é cultura, reduz-se a catálogo informativo, que é
erudição. Não cometo a façanha de negar as admiráveis conquistas que
substituem o esforço humano pelas formas cibernéticas; porém insisto em
proclamar com obtusa ingenuidade, evidências que andam meio
obscurecidas. Um obscurecimento sindicalizado e militante, que faz jogo
duplo: de um lado, com o afã tecnológico e as ciências ditas exatas, elimina
a consciência histórica, criando o “técnico”; de outro, desacreditando os
estudos históricos e sociais, que são a essência do humanismo moderno, cria
as condições espirituais do Estado totalitário. Sabe-se o carinho que os
líderes totalitários manifestaram sempre pelas ciências físico-nucleares e
antipatia que nutrem pelas ciências sociais. Suspeitam eles que tais ciências
são veículos do judaísmo, da maçonaria e outras assombrações da
visualização mágico-animista. Porém isso é outro assunto para outro estudo
a longo prazo.

Volto ao ponto. O raciocínio é de alarmante esquematização: há um


pensamento perigoso latejando nas ciências sociais. Então alguns
cavernícolas, que não estudaram a sociologia moderna como deviam,
propõem, nunca tática de avestruz inescrupuloso, que se arredem aquelas
ciências do campo do estudante — ou que as sirvam em catecismos
policiados, o que ainda mais provoca e excita o adolescente. É a safadeza do
fruto proibido, que redobra de magia não pelo sabor, mas pela proibição.
Adão devia ser adolescente quando viu a placa proibitiva na árvore da
Ciência — e a consequência foi aquela escandalosa história da maçã, que se
cochichava no colégio das freiras e hoje as alunas olham
desinteressadamente nas gravuras que desfazem o mistério da fruta
caluniada. Contudo, se o sexo se escancara ad nauseam, (a ponto de que em
breve vestir-se será imoral porque provocará o homem), as idéias, que
deviam ser combatidas com a crítica das idéias, são muitas vezes submetidas
a censores pré-galileanos que ainda pensam em apagar o sol quando flameja.

Com um apagador de lata duma igreja.

Nem sequer compreenderam o fenômeno elementar de que não há


pensamento perigoso, há estruturas e mentalidades que devem ser
reformadas. Quando os estudiosos são impedidos de estudá-las, os
demagogos entram em ebulição, prometendo às massas o reino da bem-
aventurança antes da hora do jantar ou do próximo sábado. Transforma-se o
objeto de estudo científico em objeto de beligerância ideológica. As elites
do conhecimento, únicas capazes de adotarem estilos de ação político-
racional, cedem o passo ao passo de ganso das elites violentas, que cercam
as lideranças carismáticas; estas de oratória crispada, danam-se a estugar as
massas. No fundo, são sempre minorias guiando, convencendo, brigando,
abrindo rumos. O problema, em todos os quadrantes, é de tipologia de elites,
as quais diferem terrivelmente entre si, nos mais variados estilos de ação
histórica.
Decerto o desenvolvimento industrial mostrou a necessidade de uma
reformulação do humanismo e os estudiosos estão procurando definir as suas
características. No sismógrafo do Instituto, que superiormente dirige,
Gilberto Freyre já leu o registro das primeiras ondas que são captadas na
cultura nacional. Há outras faces do mesmo problema — e o sutil espírito de
Afonso Arinos, após minha singela observação, trouxe à baila a especulação
acerca da normatividade jurídica, que despontou no Recife sob inspiração
de Tobias e de cunho acentuadamente germânico, originando uma tradição
ainda hoje discutida.

Mas já são outras questões, que se ramificam no pensamento brasileiro


vinculado às situações históricas que se sucedem.

Aí ficam, sr. Presidente Arthur Reis, as frágeis cogitações que me inspiraram


as palavras do eminente sociólogo pernambucano. Rascunhadas rapidamente
para esta sessão, estas linhas fazem apenas obteve repasse de algumas idéias
já enunciadas em diferentes momentos, e que me parecem, entretanto, mais
do que nunca, vivamente significativas no processo de expansão cultural do
país. Resumindo, direi que a inserção do conhecimento científico na
evolução histórica do Brasil deverá preservar a debilitação da tradição
humanística, substância de uma cultura, vinda de mananciais longínquos que
são as próprias matrizes do pensamento ocidental europeu.

(Lido na Sessão Plenária de 30 de junho de 1969 do Conselho Federal de


Cultura).

NOTA

Estudo muito instigador, pelas perspectivas que mostra, é o de autoria do


Conselheiro Djacir Menezes, sob o título “Asfixia do Humanismo”,
publicado neste número de Cultura.

Provocado por uma observação do sociólogo Gilberto Freyre sobre a asfixia


dos elementos humanísticos por um tecnicismo que os está desfigurando, o
autor, desincumbindo-se de missão que lhe foi dada pelo Presidente deste
órgão, Professor Arthur Cezar Ferreira Reis, demonstra o processo pelo qual
se glorificam hoje as ciências técnicas e se faz a apologia da tecnocracia.

Reconhecendo a vitalidade das letras greco-latinas, das riquezas espirituais


e das maiores conquistas do pensamento humano, preconiza o trabalho a que
nos reportamos o estudo do passado não como elementos estático senão
como fator que se revitaliza à custa da experiência do presente. “O acumular
dessas perspectivas — notou-o Djacir Menezes falando no Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro — enriquecendo o presente, dá nova
opulência ao passado, suscitando outras formas de consciência e de estilos
de ação”. Daí adviria naturalmente novo progresso espiritual.

Revolucionário na Renascença, acabou o humanismo por se retardar e entrar


em choque com o novo espírito científico que num certo sentido deu origem
à tecnocracia. Mas, conforme observa ainda Djacir Menezes cujas palavras
transcrevemos, as necessidades sociais, surgidas no seio do mundo
industrial, produziram o neo-humanismo, o qual se constitui em força de
progresso e evolução, em fator capaz de garantir a democracia, dando-se
ênfase às ciências sociais e históricas, acima da simplificadora e terrificante
apologia do homem massa e do número.

Passado o privilégio das elites de sangue, assim como está passando o


privilégio das elites econômicas — acentua Djacir Menezes — engendra a
História, por força dos conhecimentos tecnológicos, uma outra elite, a qual
deriva seu poder da inteligência científica inserida no processo humano.

Chamamos a atenção para esse estudo do cientista político que encarece a


urgência de serem restaurados os elementos humanísticos no processo
cultural.

(Nota da revista do Conselho Federal de Cultura)


IX. PERSONALIDADE E
REBANHO

Quando o Prof. Canedo de Magalhães convidou-me para abrir estes cursos,


hesitei; e ao mesmo tempo me alegrei com a distinção, que se me conferia. A
hesitação foi pelo inesperado convite, que não me dava ensejo de preparar
um tema ao nível das conferências que deverão seguir-se. Apenas tomei
anotações que balizariam o roteiro da palestra e essas mesmas, no afogo de
um trabalho diário, que meus colegas conhecem; não foram ordenadas como
desejaria. Com essas palavras justifico, até certo ponto, antecipando tais
atenuantes, o desalinhavado das idéias que submeto à vossa apreciação.

A dificuldade despontou na escolha do tema. Qual seria o assunto que no


momento concentraria minha curiosidade intelectual, concomitante às minhas
atividades de Reitor? Evidentemente, temas vinculados às inquietações da
juventude estudiosa, das correntes ideológicas que a agitam, visíveis no
plano nacional e no piano internacional.

Sena estudo que se projetaria em panorama amplo, de onde emergem


interrogações nascidas de profundos conflitos da vida contemporânea a
repercutirem no cosmo universitário, com vários reflexos.

Em uma Universidade como a UFRJ, onde os problemas são múltiplos,


multiplicaram-se as perplexidades. É uma Universidade que já orça em 20
mil alunos, agenciados em Unidades dispersas: 2/3 na área citadina, e 1/3 na
Ilha Universitária. Tantos problemas repontam de sua infraestrutura, com 42
Unidades; de sua estrutura média plasmada pela Reforma e em via de
instalação; e da articulação dos órgãos superiores. As perplexidades são
tantas, que se pode concluir, não que o Reitor seja um homem ocupado, mas
que seja um homem preocupado. E se a ocupação produz a fadiga mental, a
preocupação produz a fadiga moral, que é outra espécie de desgaste, porque
consome até as reservas éticas do otimismo, combustível indispensável à
luta em que todos encontramos.

O tema, que me parece situar-se no centro das reflexões teóricas e adquire


configuração ideológica nas Universidades do mundo inteiro, é talvez o que
poderíamos designar como tendo sua raiz ou seu ponto de partida na
“liberdade universitária”.

Há semanas publiquei breve e insignificante ensaio sobre o assunto. Pensei


suscitar debate em torno dessas palpitantes Leitideen. A interrogação, eu a
formulava um tanto pitoresca- mente: ninguém reivindica liberdade ou
direito de andar de bicicleta em uma igreja; mas há quem reivindique o
direito de discutir o Socialismo, Stalinismo ou qualquer desses “ismos”
trepidantes, numa aula de álgebra ou num laboratório de química.

Tal pergunta, sob outra forma, foi formulada num pronunciamento do Reitor
R. Connick, na Universidade de Berkeley. Com aquela objetividade do
espírito americano, e num teor essencialmente pragmático, ele procurava
analisar o quesito que às vezes entre nós, latino-americanos, se envolvem
numa difusa argumentação filosófica, que nos conduzem a torneios
especulativos e não a resultados positivos.

Para tomar posição diante do problema nesta palestra, fui à cata de um autor
russo, pois me pareceu curioso examinar como um grande intelectual
soviético delineava o tema da liberdade de pensamento altamente
interessante para nós do ocidente. Trata-se do físico Andrei Sakharov. Se
ainda viver, deve orçar aí pelos seus 49 ou 50 anos. Em 1945, com 24 anos,
ele tomava parte proeminente na confecção da primeira bomba H, que
explodiu pelos idos de 1945. Trabalhara na confecção desse engenho ao
lado do prêmio Nobel de Física, o professor Tomski. O livro, do qual retiro
as citações, que são cálidas, contra o confisco da liberdade de pensamento
do sistema socialista vigente na Rússia é de um homem de coragem, que já
perdeu a miragem de sonhos adolescentes. O libelo, que Sakharov escreveu
defendendo a liberdade do intelectual, acarretou-lhe a malquerença das
ortodoxias marxistas, que lhe rosnaram nos calcanhares. Ignoro se não lhe
resultaram consequências mais sérias e restritivas. Porque o eminente físico
se bate pela emancipação do intelectual, avacalhado na servidão do Partido
monolítico leniniano, e blatera contra o ópio da “cultura de massa”.

Diz-nos ele que tais métodos são peculiares a ideologias “covardes,


egocêntricas e intolerantes”, a que se anexa a intolerância de uma burocracia
oligárquica, que era a medula do stalinismo. Claro que ele falou isso tudo já
depois do regime stalinista, verberando o terror burocrático de um
dogmatismo esclerosado a serviço da censura, que era seu instrumento
favorito. Casualmente me lembro agora de um episódio que dá um tom mais
pitoresco à apreciação que faço. Aí por volta de 1942 ou 43, à porta
visionária da Livraria José Olímpio, ainda na Rua do Ouvidor, alguns
intelectuais costumavam reunir-se para comentar os acontecimentos mais
flagrantes. Numa roda à tarde, presentes José Lins do Rêgo, Graciliano
Ramos, alguns outros de que não me recordo bem, conversava-se sobre a
liberdade da arte. Alguém sustentava asperamente que arte era propaganda e
que a concepção da “arte pela arte”, era repugnante mistificação burguesa.
Graciliano contrariou, dizendo que a arte não se subordina às injunções de
natureza política; então um dos presentes, que defendia a tese oposta,
sentenciou que arte era partidarismo, como também a filosofia e a ciência.
Corriam os dias em que o Kremlin condenava a Relatividade, denunciando-a
aos prosélitos como artimanha ideológica da pequena burguesia. O
contestante não hesita: “Graciliano, você está errado, sua orientação está
errada. Zdanov já disse que arte é propaganda”. Retruca Graciliano: “Ah,
Zdanov disse isso? Então Zdanov é um cavalo”. Esta resposta seca como
uma cutilada é de um espírito independente que foi algumas vezes atropelado
pelas ortodoxias.

Voltando a Sakharov. Esse acusou os Mitos germânicos, que o Nazismo


desmoralizou, o mito do sangue, o mito do solo, o mito judaico, o mito dos
espaços vitais. Lembram-se de Rosenberg, o filósofo que se dedicou a
construir as ideologias afetivas e irracionais da Raça, do Sangue e Solo, a
teologia sangrenta do famoso livro Mito do Século XX? Tais mitos
germânicos foram derruídos no vendaval desencadeado. E os mitos
chineses? Estão aí em efervescência. Pode-se dizer que assopram o
nacionalismo frenético do Maoísmo, que tem várias características. Mas não
é assunto para tratarmos agora, com todo seu anti-intelectualismo violento e
histeróide. Os mitos, porém, que permaneceram inabaláveis na mentalidade
esquerdista foram os mitos soviéticos, de uma natureza intelectual mais
elevada, porque elaborados através do marxismo. Não vou negar a
contribuição do marxismo à análise dos sistemas econômicos. É outro
aspecto. Podem-se apontar ainda alguns outros mitos da teoria marxista, já
por assim dizer ultrapassados. Por exemplo, a “teoria da pauperização
progressiva da classe média”, que os teóricos fiéis do século passado
defendiam, ensinando que o perecimento da classe média era fatal na
proletarização que prepararia o choque inevitável, dialeticamente previsto
no duelo das duas partes da sociedade, as quais então se enfrentariam,
burguesia e proletariado. E a tal ponto isso era inelutável na perspectiva
marxista, que um gênio como Lenin previu, para dentro de 20 anos após a
queda do Czarismo, o advento triunfal do comunismo na Europa.

Ora, se a interpretação materialista da história iludiu um homem de um


talento excepcional como condutor das lutas sociais, se enganou um homem
de tal estatura, facilmente ludibriaria toda a estirpe cacarejante de
ideólogos. O mesmo poderia dizer de outra tese famigerada, a que afirma a
“cadência progressiva da taxa de lucro”.

Domina a todos, porém, o mito fascinante do messianismo proletário: a


classe trabalhadora seria a força redentora da emancipação da humanidade.
Ora, sabemos que o proletariado, nos movimentos russos e chineses, foi
conduzido por elites organizadas que firmaram a disciplina militarizada de
um partido ferreamente instituído, o partido nos moldes bolcheviques,
moldado segundo a intuição de Lenin. O líder russo compreendeu que o
atraso de seu país privava-o dos elementos necessários à constituição do
estado teorizado por Marx. O leninismo não é mais do que um
prolongamento ditatorial do marxismo, sob forma de um partido monolítico,
ditado pelas condições pré-industriais da Rússia. Essa verdade elementar é
recusada ainda por todo marxista ortodoxo, que anda procurando outras
explicações, por não reconhecer, na estrutura do partido, o tipo mais brutal
do regime oligárquico.

Os intelectuais, que por ventura se matriculam, nas suas agências, abrem mão
das faculdades críticas que caracterizam o homem de pensamento, a
faculdade de discutir idéias. Dir-se-á que, dentro dos organismos de base, as
chamadas “células” discutem à vontade; mas todo mundo sabe, pela leituras,
pelo exame de documentos, ou pelo trato ou convivência com alguns desses
sectários, que as ordens da cúpula são aceitas pelas tais células básicas, que
as executam servilmente. O intelectual, que por ventura penetra nesses
núcleos ascéticos de obediência, renuncia a autonomia mental para acolher
as decisões que vêm das cúpulas onividentes. Todas tentativa crítica é
considerada burguesismo, infecção de sua educação. Se não recita a cada
passo o mea culpa da autocrítica, vai logo posto no olho da rua, para o ar da
liberdade dos partidos, fora do ambiente onde arquejam as convicções
sufocadas.

É um dilema realmente muito duro, armado pelo engodo totalitário.


Magnetizados pelo jogo das contradições capitalistas, os ideólogos
marxistas vêm naquela dialética o processo de decomposição do regime
conduzido inapelavelmente à catástrofe final. Bernstein, Kautsky, e toda
aquela gente alcunhada de “reformistas”, apontavam os pregoeiros da visão
catastrófica como evangelizadores de um marxismo quiliástico. Era o
Katastrophensozialismus em oposição ao Kathedersozialismus. O
“socialismo de cátedra” era ironizado porque recusava a tese dialética de
que a perseverança histórica da contradição promoveu realmente a expansão
do capitalismo. Basta olhar para América do Norte e ver a que altura chegou
sem explodir. Entretanto, não temos a perspectiva aberta do que se passa nos
países socialistas, principalmente soviético e chinês.

Nas latitudes ocidentais e democráticas, tudo transparece na opinião pública.


Se se trata da façanha de atingir a lua, acompanhamos com antecedência os
preparativos e os episódio sensacional. No hemisfério socialista não é
assim. Ali funciona em toda plenitude o regime de censura, o regime do
policiamento radical, o regime de desidratação das consciências pelo terror
inquisitorial. Não prolongarei esse assunto. Os senhores sabem tudo isso —
et quibusdam áliis.

Para citar exemplos na ordem intelectual, bastaria recuar um pouco até a


época de Stalin. Nos anos em que reinava Stalin, qualquer crítica que
roçasse a pele de um comunista militante, despertava-lhe a reação. Era
corrente o epíteto de “lacaio da burguesia”. Eu mesmo o ouvi em aula, na
Faculdade de Filosofia, quando fazia uma análise da “teoria da mais-valia”,
por parte de um energúmeno, inscrito como aluno. Omitirei modestamente a
réplica do professor. Quero mostrar apenas como a crítica arrisca-se a
deflagrar cargas emocionais nos indivíduos infeccionados pela catequese.
Mas aludia a era stalinista; todos sabem a luta travada pela Biologia
mitchurinista, os ataques políticos às teorias de Mendel e de Weissman. A
interpretação heredológica pelos geneticistas mendelianos, menosprezando a
ação do meio exterior e pondo a tônica da transmissão dos caracteres nos
fatores genotípicos, afastava-se dos postulados marxistas. Reduzia a
importância do meio social, do jogo das forças sociais através da trama,
vitalíssima para eles, da luta de classe, em cuja ambiência se configuraria a
personalidade. O desenvolvimento da psicologia individual teria sérios
fatores primários na herança genótipica, segundo a concepção
Weissmaniana, que põe a tônica na herança biológica. Evidente que essa
teoria manifesta sentido nitidamente antimarxista — e é até acusada de ser
uma forma mística na interpretação dos fenômenos da transmissibilidade dos
caracteres dos seres vivos.

O biólogo Stalin condenou as investigações que iam contrariar o


lamarckismo com tinturas marxistas. As consequências da excomunhão foram
sérias, porque imediatamente os laboratórios que trabalhavam ao arrepio da
ideologia oficial sofreram reprimendas. Decerto não foi uma sonegaçãozinha
de verba ou coisa semelhante, como sói acontecer em outros países mais
ingênuos. Lá o sujeito está arriscando a liberdade e às vezes a vida. O
filólogo Marr (não é Marx, reparem bem), começou a emitir interpretações a
respeito da evolução das línguas. Vai daí, Stalin julgou-as em desacordo
com a dialética marxista. Então imediatamente saiu à liça e decretou que
aquelas teorias filológicas eram heréticas. Se o papa do marxismo
condenava a teoria, — imediatamente toda a sequela de doutrinadores, toda
aquela procissão de bajuladores (que existem em toda parte, constituindo o
cimento dos partidos), toda essa procissão gelatinoide logo se colocou ao
lado do georgiano. Sabem o que aconteceu com Deborin? Começou estudar a
dialética hegeliana com sinceridade. Os comunistas em geral recebem a
dialética da herança de Engels-Marx: este dissera que Hegel formulara a
dialética de cabeça para baixo. Marx pretendia pô-la nos verdadeiros pés.
Hegel concebia a evolução universal como manifestação da Idéia.
Infelizmente não me é possível (nem a qualquer outro) sumariar a
complexidade ofuscante de seu pensamento em alguns minutos. Mas direi
apenas que, ao pô-la sobre os pés, dando-lhe exegese materialista, resolvia-
se o enigma, fundando a “verdadeira dialética”! Nascida pela mão dele com
a inversão supra citada. A Idéia, de Hegel, era como uma espécie de Padre
Eterno bíblico, desempenhando a função de criar o Universo através da
especulação filosófica. Os comunistas recebem toda crítica contra Hegel de
mão beijada. Só lerão Hegel com os óculos emprestados pelo marxismo.
Ora, aconteceu que Deborin, criado dentro da Rússia, participando daquelas
polêmicas, resolve ler Hegel diretamente. Embrenhou-se no estudo da lógica
hegeliana, e aos pouco viu que as coisas eram diferente do que vinha na
tradição da ortodoxia soviética. Pior: arredou-se da linha oficial ao escrever
ensaios a respeito da lógica hegeliana. Dentro em pouco, veio-lhe o raio do
Olimpo stalinista: — foi acusado de “desvio idealista”. Ser acusado alguém
de pecado idealista, no país de materialismo oficial, é coisa muito perigosa.
Na Rússia, do ponto de vista filosófico, é uma espinafração terrível. Porque
o idealismo lá faz o papel do diabo na idade média: seduz e desgraça
qualquer professor. É como sangue semita no faro do Santo Ofício. É
herança de pequeno burguês, mentalidade deteriorada do mundo capitalista.
Resumindo: tomam-lhe a cátedra, cassam-lhe a direção da revista. É preciso
impedir a concepção sufocando o corruptor. Qual o meio de redimir-se, de
recuperar o crédito? Renegar o erro rezando a autocrítica: minha culpa,
minha máxima culpa. Só o Partido acerta, só o Partido onipotente sabe
filosofia.

Porque o Partido controla a filosofia. Entre eles, é máxima corrente que


filosofia é partidarismo político. Aceita a premissa de que filosofia depende
do partido político, calou- se o famoso diálogo, de que tanto se blasona.
Resta um catecismo de castrados, castrador de inteligência. Que mais se
admira na mocidade? A rebeldia renovadora. Quem não sentiu na
adolescência o fremir das correntes de idéias generosas? Por isso mesmo
repugna o maquiavelismo que pretende utilizar esse impulso de liberdade —
para formar os batalhões do futuro Estado Ditatorial. Onde se recrutam esses
inocentes desavisados? Deixo-lhes a pergunta indiscreta.

Li, num dos nossos documentos sobre a Reforma, que a Universidade é a


“empresa que produz ciência, arte e técnica”. Esta definição dá-nos um
aspecto parcial da Universidade. Se o centro do pensamento reformista é
pesquisa e técnica, que são os dois pilares da nova ideologia, esqueceu
outro aspecto relevantíssimo, que quero pôr no mais vivo destaque.
Recordo, de início, que, dialeticamente falando, qualquer idéia, ao extremar-
se, torna-se a sua oposta. Quero dizer, acaba negando-se a si própria.
Explicar-me-ei. A Universidade tradicional foi soberanamente, vastamente,
criticada pelos maiores espíritos na nossa pedagogia. Desde os primeiros,
que levantaram a bandeira da Associação

Brasileira de Educação, como Fernando de Azevedo, Sessekind Mendonça,


Anísio Teixeira, Almeida Júnior e Lourenço Filho, etc. Eles fizeram a crítica
da velha pedagogia, prolongando, no meio nacional a herança crítica que
vinha da Europa contra o excesso de intelectualismo e o descaso da
atividade prática. A revisão começou com o exame da escola primária,
depois da escola secundária, todas livrescas, preparando letrados e
bacharéis. A crítica foi crescendo, chegou a um ponto que, realmente, exigia-
se fizesse a reforma. Abriu-se, então, espaço á pesquisa; e esse espaço
cresceu tanto que ameaça engolir toda a atividade docente. Muitos chegaram
a dizer que ensino é apenas pesquisa. Não há mais conjunção “ensino e
pesquisa”, mas a sinonímia “ensino é pesquisa”. Absorvendo tudo na
pesquisa, acabamos assistindo a prática de certos ginásios primários: a
professora determina pesquisa às crianças de 6 anos, iniciando-se uma
deformação, em sentido oposto. Examinando melhor o problema, facilmente
se compreenderá que “ensinar” e “transmitir” são dois aspectos de um só
processo. “Transmitir”’ a cultura não se confunde com “ampliar” a cultura,
que é um devenir do conhecimento.

Pelo fato de incidir-se no erro formalista de separar as duas faces, não se


cometa outro erro também da mesma natureza, resultante de uma
identificação formal. No fundo, há uma identidade dialética,, coisa
absolutamente diferente de uma identidade formal. É com esforço que me
desprendo desse assunto e passo adiante. A área do conhecimento in fieri
está sob intensa ação industrial, interessa a expansão econômica do país. E
por isso interessa a Universidade, que se entrosa dentro do programa
econômico nacional em todas as áreas civilizadas do mundo. As raízes vitais
mergulham nesse processo de crescimento orgânico. Ao lado desse
conhecimento in fieri, está o conhecimento feito. E além e acima de tudo, o
problema da formação de personalidade. Educar não é apenas preparar os
indivíduos lucrativos, quero dizer, aqueles que vão para dentro da empresa
prestar-lhe serviços. Há alguma coisa que está mais alto, que é desenvolver
aptidões primárias, originais, que constituem o equipamento hereditário do
indivíduo e o distinguem e destacam. A educação não pode suscitar senão
aquilo que a pessoa trás no seu patrimônio biológico. Não visa somente
adestrar em técnicas, perdendo-se de vista o ponto importante, que é a
formação dos “inventivos”. Whitehead escreve: os tolos têm imaginação,
mas não têm conhecimento; os pedantes têm conhecimento, mas não têm
imaginação. Então à Universidade cabe fundir a faculdades imaginativa à
experiência cognoscitiva. A experiência se revela na forma organizada de
conhecimento; desta conjunção é que se espera tudo. As maiorias se
compõem de mediocridades. Por mais que se exalte a democracia, as
medianias, os conformados, as inteligências de voo curto, que, somadas, são
a argamassas da estabilidade social. Nelas assentam as instituições. Onde
estão os que conduzem o desenvolvimento histórico em qualquer país? Esses
são os privilegiados. São eles que mais interessam às Universidades. Fiz
uma vez o elogio do privilegiado. Um aluno me compreendeu mal e trouxe à
debate a tese. Fiz ver que regime igualitário, aplainando e nivelando, é
tendência intrínseca aos regimes que precisam de massas disciplinadas,
como nos totalitários. Ali se endeusa a massa. A massa é objeto do culto de
que falava Sakharov: o “ópio da cultura de massa”, cultura essa, que se toma
cada vez mais forte a medida em que os instrumentos de comunicações
incentivam a educação de rebanho, preparando os títeres, que sabem dar o
passo do ganso mas não sabem cantar a marselhesa. A obediência que usa a
coleira de um partido não possui a virilidade necessária ao espírito criador.
O inventivo é aquele que se separou do rebanho, é aquele que se excetua. É
o privilegiado. Cabe-lhe o primeiro plano na Universidade; claro que não é
privilegiado econômico. É privilegiado o que nasceu com boas cordas
vocais e pode ser um Caruso; o que nasceu dotado de alta inteligência
matemática e pode ser um Galois; o de vivo talento na pintura, na música, no
teatro; em suma, o que a Natureza conferiu privilégio, não o sistema político.
É uma coisa tão evidente que causa pasmo ver estas verdades tão
elementares nascidas de premissas esquecidas.

Voltando ao tema do ensino e da pesquisa, resumirei dizendo que ensinar é


transmitir cultura feita, pesquisar é promover o desenvolvimento da cultura.
Enunciando assim, obscurecemos certa dialética do processo cognoscitivo,
onde se exprime a dupla função desempenhada pela Ciência na sociedade,
Não é contradição gerada dentro da Universidade; são duas funções do
ensino superior, que se institucionalizam na Universidade, que é também a
produtora dos quadros, docentes do trabalho qualificado. Cumpre-lhe
atender à demanda social do material humano. Institucionalizando-se,
burocratizam-se. Formar pensadores, cientistas e pesquisadores não é formar
seguidores de normas cristalizadas, mas criadores de normas novas. Houve,
em certa altura do itinerário reformista, uma propaganda intensa de
descrédito do autodidata. Pretendia-se valorizar — et pour cause — o papel
do heterodidatismo; nestes órgãos educativos se preparam indivíduos para a
sociedade, sem que se reduza todo o processo educativo à mera tarefa
adaptativa de pensar, sentir e agir em consonância como os valores
tradicionais. Se assim fosse, acabaria preparando o indivíduo para se ajustar
aos quadros Sociais no papel medíocre de operar o nivelamento e
ajustamento às condições vigentes; mas, o outro aspecto? O em que se
verifica o papel de criar novas normas, novos valores, novos estilos de ação
e pensamento? As qualidades inovadoras afloram do autodidatismo, que
favorece as originalidades e o instinto criador.

AS massas adaptam-se; mas a elite criadora, que realiza o progresso


cientifico, filosófico e artístico, é sempre desadaptadora.

Nas elites científicas estão os capazes de quebrar esse heterodidatismo nas


horas inventivas, para ver além do campanário, do preconceito, da rotina. Só
os privilegiados são capazes de ver acima dos rebanhos, que só enxergam
horizontalmente. E que cabe à Universidade ? Colocar os melhores jovens
sob a influência intelectual de uma equipe de sábios imaginativos.

Eis o problema central da educação superior. Quando digo sábio imaginativo


aponto as mentes abertas à verdade e à renovação, em posição de eminência
para descortinar os destinos humanos. É exato que a estabilidade social
exige certa uniformidade de opiniões, de sentimento, de crenças. Seria tema
para outro debate interessante, mas já vou me aproximando de algumas
conclusões. Ainda tinha aqui uma nota a respeito da posição da
Universidade no papel de uniformizadora e niveladora espiritual, uma
daquelas funções do processo educativo exercitada de preferência pelo
heterodidatismo, tão apologizado na instalação das Faculdades de Filosofia,
na década de 30. E muitos, que lá chegavam, eram autodidatas nas várias
matérias inexistentes em nossos cursos superiores. Não há mais tempo para
abordar a última interrogação, que reservava para encerrar essa série de
flashes pedagógicos. Incidia sobre uma classificação feita por dois alemães
Hagermas e Friedburg, da Universidade de Frankfurt. Inquiriam eles a razão
porque a mocidade se apresentava hoje tão desajustada e rebelada. São
sintomas universais.

Verificam aqueles pesquisadores, por exemplo, que a percentagem de


estudantes politicamente interessados é pequena: atinge 9%. O outro extremo
da curva sinusóide, alcança a percentagem de 10%. A maioria, que se
poderia denominar de medianamente distanciados de preocupações
políticas, se distribui entre tais extremos. O inquérito revelou causas várias
do alheamento, predominando a atenção aos objetivos da carreira
profissional, motivo determinante da entrada da Universidade. Entre nós, ao
que me consta, não se fez ainda pesquisa nesse sentido. Creio, entretanto,
que nos aproximaríamos daqueles resultados: a maioria dos nossos
universitários visa à preparação técnica de uma estabilidade econômica, que
lhe assegure o futuro.
X. JOSÉ INGENIEROS E MINHA
GERAÇÃO

A minha geração ouviu, magnetizada de admiração, a prédica apostolar de


José Ingenieros. Conservo o adjetivo: apostolar revela nosso juvenil estado
de espírito nos idos de 1926 diante do grande argentino desaparecido dois
anos antes. E foi à luz de seu magistério feito através dos livros que
discernimos os perfis de duas outras figuras daquela genealogia de
pensadores — Alexandre Korn e Francisco Romero.

Guardadas as distâncias e os hiatos dessa sucessão, Korn e Romero nem


seus discípulos foram, como aquele dedicadíssimo Anibal Ponce,
organizador das Obras Completas a que aditou biografia carinhosa e
manuscritos póstumos. Se Korn é contemporâneo que sobreviveu, o acme de
Romero é posterior e mais distante. Nesta palestra, tomo a figura de
Ingenieros como parâmetro de referência, a fim de lançar os olhos na
paisagem das idéias que se desatam das lindes dos séculos passados e
entram século XX a dentro.

O mestre brasileiro Oliveira Vianna, embora perfilhando pontos-de-vista


bem diversos, também confessaria sua admiração pela obra do mestre
platino. E quando Ingenieros, lá do exílio voluntário a que se impôs como
repulsa a um ato do governo, que considerou ofensivo à dignidade
universitária, lançou ao público jovem do continente El Hombre Medíocre,
rumorejou, como vento num arvoredo primaveril, a mais larga e entusiástica
onda de aplausos. Passado aquele frêmito, que nascia mais da emoção ética
do que da atitude reflexiva, recordamos hoje saudosamente, que era um de
seus mais fracos livros, mas o que mais sonoramente repercutiu nas almas
adolescentes. Talvez por isso mesmo.
Minha geração universitária saiu dos bancos acadêmicos na Revolução de
30, estonteada de liberalismo e com urgente necessidade de salvar a pátria,
retirando-a da beira do abismo, onde a oratória nefelibata a colocara
assustadoramente. Oscar Tenório, Adelmo de Mendonça, Hider Correia
Lima, Pascoal Carlos Magno, J. Paternostro e Francisco Bruno Lobo, alguns
mais, constituíam o núcleo do mensário Folha Acadêmica, que o prof. Bruno
Lobo mantinha por aí por volta de 1928. Eu chegava do Ceará — e já vinha
com a Criminologia, os Princípios de Psicologia biológica e a Sociologia
Argentina vincados no espírito. Em torno desses livros, lá na província,
fervia debate. Walter Pompeu, Moesia Rolim, Sócrates Bonfim, Jader de
Carvalho, Josafat Linhares, Ubatuba de Miranda, outros mais, buscavam,
avidamente, as idéias que vinham quebrar, como maré alvissareira, a
monotonia da Biblioteca Pública, onde se acumulava a muralha minolítica
dos clássicos. Eram idéias que rompiam o ensino tradicional — e a
mocidade sempre aspirou ver o que está para além do campanário.
Saltávamos de Tito Livio e Mommsen para Alberdi. Daí para o biologismo
darwinista: Le Dantec, Romanes, Worms, Sighele, canalizados até nós pelo
caudal de Ingenieros.

Mas devo contar primeiro minha tentativa de descobrir o rastro espiritual do


mestre platino na sua admirável cidade, já professor e organizando o Centro
Argentino-Brasileiro, em Buenos Aires, a convite do Itamarati.

Por uma tarde de maio, crispada num friozinho sutil roçando a pele e a alma,
ao dobrar a Calle Viamonte, caminho da Faculdade de Letras, onde dava
cursos de literatura brasileira entremeada de análise social, — um aluno me
detém e aponta para o primeiro andar do número 776 — “Professor, o senhor
admira tanto Ingenieros, pois ali era o consultório dele”. E, ante minha
curiosidade comovida, atalhou que lá dentro nada lembrava mais a presença
do escritor e o seu remoto consultório. Mas a viúva ainda vivia... Eis o que
escrevi, tirando trecho de um diário, num ensaio benevolamente esquecido:
“Ainda ouvi, pelo telefone, marcando-me entrevista em sua casa, Eva
Rutenberg, a esposa de José Ingenieros. Era 14 de julho; dias depois, a filha
comunicava que, após o almoço, na suavidade de seus quase oitenta anos, no
repouso da sesta, ela expirava docemente. Tudo soube de Délia e Julio
Ingenieros, revendo antigos livros que tinham pertencido ao pensador e
escritor. Dizem-me que sua mãe gostaria muito de falar sobre o marido a um
escritor brasileiro: tinha uma excelente memória e narrava pormenores
curiosos sobre a personalidade que era exemplo de saúde e força moral.
Pois era ali na Calle Viamonte, depois da clínica, que iam buscá-lo os
amigos para a “charla” intelectual, nos cafés, com o zombeteiro grupo de A
Siringa. Recolhia-se tarde; e, cerrada a porta do gabinete, após uma refeição
de leite e biscoitos, retemperado da folga boêmia, iniciava o estudo e a
produção admirável que só a morte haveria de interromper”.

Mas vamos encarar o perfil do pensador. Parto de uma observação de


Romero, ao estranhar o curioso e injustificável preconceito, contra a história
da Filosofia. E porque desconheceu o papel que a história das idéias
filosóficas desempenha, faltou-lhe a perspectiva para a compreensão do
horizonte hegeliano. Por que? Supomos que essa posição derivaria de
excessivo apego ao biologismo que dominara as ciências sociais nos fins do
século. Biologismo que fora salutar, porque ajudara a reação contra o
escolasticismo metafísico aristotélico, que paralisara o pensamento na
chocadeira do moralismo tradicional e dogmático. Romero culpou a
mentalidade “cientificista”. O evolucionismo biológico e o positivismo
batalhavam galhardamente contra a estreiteza da tradição filosófica, mas
assentava, por sua vez, outros limites, que resultavam da nova ótica privada
de perspectiva histórica. Ignoraram a existência de um Hegel, referido
apenas como um criador de sistema ultrapassado, que voava nas asas da
Razão bêbeda de lógica pura. Todo alento vinha das fontes do naturalismo,
que nutria a cosmo- visão reinante. Na pugna contra a metafísica tradicional,
o cientificismo condenava toda metafísica sem discriminação. Não
conseguia distinguir, na variedade dos estilos de pensamento especulativo,
as modalidades vinculadas aos sistemas que caducavam em face das nossas
aquisições científicas. O rebate, que a reação clarinava contra o
dogmatismo, era fundamentalmente antidogmático e antireligioso.

Ponto superficialmente paradoxal: o evolucionismo, em qualquer de seus


matizes ideológicos, no plano das ciências da natureza, tem essência
histórica. Entretanto, tal historicismo se descaracteriza no campo das
ciências sociais: a elaboração da aparelhagem conceitualística desfigura-lhe
o sentido. Diria, tentando fixar esse paradoxo aparente, que, no domínio das
ciências históricas, o evolucionismo se desistoriciza. Por que? Aqui é
preciso aprofundar o exame. O que se chama ciências históricas, eram
ciências teológicas e morais. Eram filhas primogênitas de um tipo de
mundividência medieval. O processo de laicização lavrara contra aqueles
estilos de pensamento. Não penetrara nesse domínio o historicismo
hegeliano, que era outro tipo de ação especulativa. Embora nascendo da
especulação teológica, trazia no sangue o germe herético, que logo a
pituitária dos teólogos alarmados farejou e denunciou. Teologismo bebido
nas fontes protestantes, onde se alargaram as liberdades da Razão e de suas
acrobacias. Nessa dissidência entre metafísicos se abriria espaço onde
brotaria a crista das grandes heresias modernas. O périplo hegeliano
delimitaria as praias do novo continente. E correriam décadas para que os
novos nautas percebessem a enorme dimensão que seria traçada nos mapas
especulativos.

Graças ao movimento naturalista, a metafísica, nos começos do século, seria,


nos arraiais evolucionistas e positivistas, sinônimo de mera divagação
estratosférica. Conhecia decerto aquele sonho, descrito por Diderot,
daqueles sábios, calvos e velhíssimos, que equilibram bolhas de sabão nos
canudos: personificam metafísicos formulando hipóteses.

Quem atacava a metafísica, tinha em mira, invariavelmente a definição


positivista. Raros foram à cata da definição clássica, que vinha do
aristotelismo pelas vias tomistas. Refutavam aquela concepção simplista,
que Comte formulara, relativamente fácil de demolir. Outra concepção,
engendrada por Engels, facilitou a refutação — que os marxistas badalam até
hoje e que consistiu na sinonímia entre lógica formal e metafísica. Metafísica
significava tudo que não era dialética, argumentação que não atinge o núcleo
do problema já bem trabalhado por Hegel e bem remendado por Feuerbach.

Fiz essa digressão para trazer à baila o planteamento do problema nos


termos em que o pôs Ingenieros. A perspectiva biológica evidentemente
permitiu-lhe despir os erros da tradição metafísica de tipo escolástico; mas
não desvendou a perspectiva que lhe poderia dar a especulação pós-
kantiana. Ingenieros tentou ler a Ciência da Lógica. E que concluiu?
Concluiu sorrindo e bromeando: comparou-a ao delírio glossolálico de um
paciente de sua clínica psiquiátrica.

Não rejeitou, porém, simplistamente, o conceito de metafísica, a maneira do


positivismo. Deu-lhe acepção que me pareceu singela e profunda: seu objeto
é o inexperiêncial. São inesgotáveis os problemas inexperiências. Para
abordá-los, formulam-se hipóteses, que, por sua vez, baseiam-se nas
hipóteses experiênciais, portanto, científicas. Esta sistematização de
hiperhipóteses é que constitui a estrutura da metafísica e permite a
abordagem adequada dos problemas meta- experienciais. E como seu
fundamento primário é iniludivelmente a práxis histórica incessantemente
refeita no seio do processo social, o sistema apresenta-se como
essencialmente perfectível, e, consequentemente, antidogmático.

Por esse ângulo (que não escapou a Romero) “sua atitude pessoal em frente à
filosofia não é rigorosamente positivista, porque não rechaça de plano a
metafísica nem a indagação a respeito dos problemas que estão para além do
campo científico”.

Resumiria assim seu pensamento: a experiência decide da validez das


hipóteses científicas: a lógica decide da legitimidade das hipóteses
metafísicas. Na laboração de uma concepção do mundo, função fundamental
da filosofia, as duas ordens de hipóteses são intercorrentes na identidade do
mesmo processo especulativo. Do pensamento de Comte se pode inferir que
em toda filosofia há sempre, inconscientemente, a latência de uma sociologia
em conjunção com uma moral. E é por isso mesmo que sua concepção de
hierarquia das ciências culmina na sociologia desfechando na moral.

A metafísica de Ingenieros é, pois, o coração de todas a filosofia.


Concebendo o pensamento como gerador da Ação, o comportamento
coletivo tem sua expressão histórica na política, que traduz objetivamente o
repertório das tensões idealistas: “Idéia-força”, como designava Fouillée,
embora em conceituação diferente. Prefiro lembrar aqui a idéia no sentido
hegeliano, que os marxistas malsinaram, pondo os antolhos que lhes permitiu
chapinhar, de faro rasteiro, o rastro do profeta do mundo que morre. Não
será possível renunciar jamais à função legítima de elaborar hipóteses sobre
o metaexperiêncial, ensina Ingenieros. Aí está o centro vital da filosofia. Por
que não dizer? Da metafísica. Ouçamo-lo:

“Reclamaram o nome de metafísicos os que estavam dispostos a sacrificar


toda verdade possível, refugiando-se no comentário dos sistemas
precedentes, ou seja, na paleo-metafísica; para não assumirem o papel de
retificar as velhas hipóteses de acordo com os resultados incessantes
perfectíveis das experiências, preferiram entregar-se à glosa dialética das
filosofias passadas, mudando a vestimenta literária. Assim compreendida, a
metafísica se converteu em disciplina morta, em douta heurística de
superstições e lendas, impossíveis de reanimar com sutis disquisições
literárias, sempre estéreis por seu valor construtivo, ainda que por vezes
atraentes por sua argúcia polêmica”.

O que resultou? O glossário tradicional que o argentino chamou de


“deslustrada tanatologia”. Era evidente que, com o crescimento do novo
espírito científico, a velha pele havia de mudar. Essa mudança aparecia sob
a forma de “crise da metafísica”, confundida com a morte de toda metafísica.
Também confundi o fenômeno nos meus anos de noviço. Dentro do
dimensionamento da experiência biológica, onde circunvagava o
cientificismo, não se poderia jamais visualizar o dilatado horizonte mental
que se inaugurava com a “perenidade do inexperiêncial”, que impulsionaria
sempre o pensamento metafísico para além dos quadros escolásticos,
restaurando-lhe o primitivo sentido aristotélico, o sentido que possuía antes
da podagem medieval.

Em estudo publicado há quase dez anos, escrevi que “com Alberdi,


Echeverria e Sarmiento inaugurou-se a interpretação do passado argentino
no limiar do pensamento moderno”. Assinalava então que essa trajetória
ideológica contava seu ponto pinacular na obra de Ingenieros. De fato, sua
visão da história platina prolongaria a experiência que se exprimira nos
escritos clássicos, alimentando-se do espírito que animava a sociologia de
seu tempo. Dali em diante, porém, inflete na direção da renascença idealista,
sincrônico com o movimento espiritualista, cuja crítica antecipara, com
notável finura, na análise que fez da obra de Emile Boutroux. A debilitação
do positivismo e do evolucionismo, exauridos na Europa numa filosofia
oficiosa que já dava frutos outoniços na incapacidade de renovar-se dentro
da antiga moldura, cedia terreno à reação idealista. O espiritualismo sofria
ações opostas; encabrestado, de um lado, pelo tradicionalismo supersticioso,
de outro, estimulado pelo idealismo hegeliano, que alargaria as
possibilidades de uma nova metafísica. Indaga Ingenieros: “O idealismo
hegeliano não foi antes uma arma de ação contra o clericalismo em mão de
Bertrand Spaventa? O panteísmo de Croce e Gentile não era hoje combatido
como dissimulado ateísmo pelos neoescolásticos?”
A repugnância ao idealismo filosófico é produto da propaganda marxista, a
que também pagamos tributo nas primeiras andanças especulativas. Quem
desconhece que até os neoescolásticos italianos em 1870 foram acusados de
materialistas, nas polêmicas do padre Chiochetti contra Croce e Gentile,
época em que se restaurava o tomismo na filosofia católica? Tais batalhas
invadiam o âmbito do ensino superior, com estrépito espiritual. Refiro-me às
críticas que lhe têm sido feitas, adiantando que o próprio Ingenieros já as
respondeu em parte. Bastaria que se relesse seu Émile Boutroux. É a análise
cuidadosa da decadência do pensamento universitário francês, que
começara, há decênios atrás, a namorar de novo Ravaisson, Victor Cousin,
Rénouvier, quando estes corifeus reagiam contra o evolucionismo e a
exegese histórica de Comte, Littré e Renan. Quando todos viam em Bergson
um arauto clarividente, Ingenieros escandalizou-os, considerando-o um
confeiteiro da biologia para o paladar dos granfinos que lhe assistiam as
conferências.

O pensador argentino pregou uma “exclaustração do ensino universitário”,


que permitisse a reforma dos quadros docentes sob imperativos da
experiência acumulada socialmente sob forma de sistematização científica.
A Universidade não é apenas uma constelação de Faculdades para a
formação de profissionais e técnicos, mas tem ainda o papel relevante de
centro de coordenação das idéias gerais que não se capitulam no domínio
especial onde se enunciam as hipóteses científicas. Ao lado de meras
abastecedoras do mercado de trabalho qualificado, como advoga concepção
de espírito napoleônico e totalitário, banindo-lhe o horizonte humanístico, —
há outro papel mais alto e profundo, que é o de elaborar a cosmovisão de
uma época que afirmou a curvatura do continuum espaço-tempo mas
permaneceu com a mentalidade ancorada inconscientemente nos arquétipos
do mosaico bíblico.

Ingenieros teve a sensibilidade econômica despertada pelo marxismo. Como


anotou Korn, os ciclos do pensamento europeu repercutem na história do
pensamento argentino e no resto do continente com atraso de três décadas.
Mas, através de mentalidades excepcionais, — não é apenas um eco da
cultura transatlântica; têm o sinete de originalidade que as circunstâncias
históricas inserem. Vai para algum tempo que o nativismo caboclo, erguido
em sistema eivado de jacobinismo, rompeu propaganda de uma volta as
raízes tradicionais, que foi admiravelmente ridícula. Ondularam entusiasmos
pelas inteligências dos inquietos nessas pesporrências de mensagens e
autenticidades. Nunca se leu tanto o adjetivo autêntico e derivados. Eles não
perceberam que as bases da organização social e política não foram criação
dos tupinambás nem de outros bugres que comiam piolhos na beira dos
regatos; e que bancos, moeda, praxes comerciais, formas de exploração
agrícola, técnicas, relações salariais, regime de propriedade,
normatividades jurídicas, língua, religião, nada era autóctone. Toda uma
superestrutura de estilos de pensar e sentir se desenvolvera com o processo
capitalista e seus núcleos de ação econômica e política. “Autenticidade,
solução brasileira” — exigiam. Até a exigência é importada, porque tais
movimentos tinham irrompido antes na Europa. Onde o sociólogo, o
psicólogo, o economista encontrariam o sistema de relações sociais vigente
sem os métodos respectivos de agir e pensar? Onde o sentido da greve seria
outro? Onde o cheque nominal seria diferente? A taxa de juros? Não me
lembra quem descobriu, no colono de calças de brim branco com fraque
preto, a originalidade da civilização nacional. E como o senhor de engenho
preferia redondas e roliças negras para desfastio da monotonia conjugal,
falou-se na doçura da escravatura brasileira e fez-se lirismo sobre a saudosa
era da felicidade patriarcal e do eito.

Isso tudo é de uma prodigiosa candura. Porque, se tais são as estruturas


sociais, como seriam diferentes as formas de especulação científica ou
filosófica? Os problemas universais não mudam com o clima, a raça ou a
uberdade do solo. O ser humano adquiriu características essenciais, que são
as mesmas por toda a parte desse velho e ameaçado globo.

Voltando ao ponto, direi que ao inspirar-se nalgumas idéias fundamentais da


sociologia biológica, Ingenieros produz uma interpretação da história
argentina onde se refletem as peculiaridades do gênio nacional, através das
peripécias que vão do período colonial de formação até o configurar-se da
nacionalidade. Não fez uma aplicação de fórmulas européias a modo de
tantos microcéfalos do sebastianismo marxista, que transferem as visões de
uma luta de classes de país industrializados. Também não recaiu naquele
indo-americanismo, que foi a forma pueril de um nativismo jacobinista
destituído de qualquer ótica sociológica. Seu alento econômico para os
estudos sociais manava de Aquiles Loria e Turati, que Hector P. Agostini
menosprezou ao acusar Ingenieros de conhecer um Marx de contrafação. A
ortodoxia sempre procurou desacreditar toda a crítica feita pelos
revisionistas, amaldiçoados por traição ao profeta. Mas Ingenieros ensinava
que “era impossível escrever-se a história argentina sem recordar a
européia” — o que denunciava sua intuição no papel das idéias na evolução
humana. Tal ação ideológica se intensifica através das elites ativas: “A
vontade social ou capacidade de realizar certos progressos necessários é um
privilégio de pequenas minorias que se antecipam a seu tempo” — esclarece
noutra passagem da Evolución de las Ideas Argentinas. Assim, quando se
publicaram os manuscritos póstumos de Alberdi, logo Ingenieros percebeu o
valor de sua análise, reconhecendo que neles se continham uma
“interpretação econômica da história política argentina”, integrando, ao lado
dos estudos do meio e da raça de Sarmiento, uma longa visão do passado
nacional. Alberdi observara que a “economia política não era somente a
ciência da riqueza, senão também a ciência da pobreza”, ao que Ingenieros
acrescenta-lhe estas notas de biologismo: “as palavras crises, remédio,
contração, revolução, pletora são termos de medicina usados na economia
em virtude da analogia entre o corpo social e o corpo humano”. Na América
Latina, seria preliminarmente a ciência do pauperismo e das desigualdades
sociais, que não resultam de crises, mas determinam as crises que golpeiam
esses povos ao longo de sua história. Ao estudar o livro de Lucas
Ayarragaray — La Anarquia argentina y su caudillismo — acentua, estas
características do fenômeno: “o caudilhismo é o exercício da autoridade
pessoal, independente de toda representação de interesse coletivo; a
anarquia, a falta de interesses comuns dentro de um mesmo agregado
político”. Entre os proprietários rurais havia, como no Brasil, laços débeis
na composição de um patriciado disperso; os ambientes históricos
peculiares definiram relações de um tipo feudalitário específico. Sérgio
Bagu, recentemente, levou a análise mais a fundo, mostrando a estratificação
que se processou lentamente na formação do regime colonial agropecuário,
base do futuro capitalismo. É nessa ordem de interpretação histórica, porém,
que, a nosso parecer, o sociólogo comete pecado que não é venial: deixa-se
levar pelas conclusões de uma sociologia racista, malgrado toda sua
autonomia intelectual. Vai procurar no mélting pot platino a predominância
da raça branca, acalenta a miragem de uma raça argentina e lança olhar
piedoso para o Brasil, onde fermenta essa enorme “democracia biológica”,
na expressão de Cassiano Ricardo, prevendo, na cauda de Le Bon, que a
mestiçagem anarquizaria de vez os demais países desprovidos da segurança
racial. Talvez depois de ler esse prognóstico, Oliveira Vianna, vítima da
mesma crença lapougiana — foi à busca de uma tendência arianizante, dentro
do Brasil, para salvá-lo do vaticínio que caía, como pingo de treva, da mais
luminosa pena do continente.

As grandes mentalidades têm também suas miragens. Quem se preocuparia


agora em tentar refutar as profecias de ambos? Miragem não se refuta: a
marcha do sol simplesmente as desfaz.

Não teria tempo para abordar, mesmo sucintamente, outros lados do


pensamento argentino que a obra de Ingenieros abraça e espelha. Seria
perímetro muito dilatado na história das idéias. Mas não posso esquecer um
livro quase póstumo denominado Tratado del Amor e dedicado a Eva
Rutenberg, “la esposa elegida por mi corazón toda inteligência y toda
bondad, para compartir mi sacrifício de constituir um hogar modelo”. Digo
quase póstumo porque foi a dedicação de Anibal Ponce que o preparou, pois
que, encontrando-o quase pronto, carecia de demão final do artista. Foi o
livro que vim a conhecer por último, cuja leitura só fiz em 1953, em Buenos
Aires. Supunha-o escrito no estilo sonoro e cheio de exageros literários
como El hombre medíocre; e receiava não estivesse ao nível da
Criminologia e Princípios de Psicologia biológica. A surpresa foi grande.
Pergunto-me sempre a razão de relativo olvido em que ficou sempre esta
obra excepcional. Tão esquecida que devo demorar-me alguns minutos no
exame de alguns aspectos, se me permitem a escassez da tempo e a
benevolência do auditório.

Decerto só indicarei, a breve traço, algumas passagens mais fascinantes.


Assim, não me deterei nas premissas científicas em que assentam as
afirmações mais fortes a respeito do sentimento amoroso, que analisa desde
seus primeiros alvores na escala zoológica, quando ainda não é sentimento
nem sequer instinto, mas simples processo de reprodução agâmica. Dali
passa a germinação dimórfica e ascende ao nível onde se esboça e organiza
o instinto sexual. E a medida em que sobe na filogênese, no rumo dos
animais superiores, a complexidade do comportamento sexual aumenta de
novos ingredientes, até a aparição desse sentimento que se denominou
“Amor”. Por vezes se degrada o conceito para designar o que é apenas
instinto sexual. Esquecemos que “amor” tem conotações humanas, e que as
formas instintivas, que prematuramente despontam na espécie dos primatas
(agora revivendo nos primatas cabeludos que tentam ressurgir o
primitivismo dentro da civilização), distam tanto do “amor” quanto a gema
do ovo dista da futura águia. Ali estão os rudimentares sinais do sentimento
que atingirá sua plenitude subjetiva nas imortalizações da Arte. A madrugada
não é o dia, mas seu prenúncio: ainda asfixiada pelos restos da sombra que
morre, também já está deixando de ser noite. Instinto sexual não resume o
amor, que é sentimento de longa e lenta formação pelo gênio da Espécie, no
enriquecimento subjetivo que só o homem civilizado alcança. E no
civilizado, sua plenitude se revela somente nos mais nobres e superiores
exemplares da cultura, onde a delicadeza de intelecto e da sensibilidade
atinge formas sublimadas das afinidades eletivas, de que falava Goethe.
Sentimento que evolveu, longa e filogeneticamente desde o hominídeo,
iluminando progressivamente aquela afetividade que alvorejava das
profundezas anímicas do inconsciente paleolítico, num ser que se tomou
vertical, que ascendeu prometeicamente, que educou a preensibilidade do
pitecoide, cujo neencefalo se desenvolveu, cujo trabalho manual transformou
a garra na digitabilidade da mão. Os Sons configuram intenções no agir
sobre as coisas e com as coisas, a causalidade se transfigura na visão
consciente da finalidade, — e de tudo isso emerge, laboriosa e
inexplicavelmente, a racionalidade humana.

A vis poética de Ingenieros manifesta-se na intuição dos mitos


cosmogônicos: Eros representa o símbolo especulativo da geração, cuja
representação concreta é Afrodite. E que belas páginas não lhe saem da pena
ao interpretar o mito hesiódico e o hinário órfico que se canta nos mistérios,
delineando a fisionomia das lendas teogônicas! E diz-nos, a páginas tantas:
“O Eros cosmogônico agoniza nas vésperas do século de Péricles. Os
filósofos preparam-se para degradá-lo.” Quer dizer, o mito vai sucumbir sob
as flechadas da crítica... Idas o fato é que muito antes, desde Heráclito, o
arpão lhe fora cravado no peito — e toda a especulação presocrática já
começa a estrangular a superstição antiga nas roscas do racionalismo
nascente.

A introdução da obra é uma admirável ouverture sobre a cosmogonia


helênica, onde o pensamento filosófico se disfarça no seio de formas
místicas; e, após, vem a explanação soberba a respeito da heterofecundação,
descortinando a paisagem histórica onde se operam as transfigurações do
sentimento amoroso, e onde pulsa, robustamente, jugulado pelas
normatividades sociais, o instinto sexual. Eis como Ingenieros, sempre hábil
nos enunciados claros, dá-nos a definição: — “Instinto sexual é o conjunto
de hábitos sistematizados hereditariamente numa espécie para que seus
indivíduos de sexos complementares efetuem eficazmente a aproximação dos
germes incompletos, indispensáveis para gerar um germe integral mediante a
fecundação”. O lamarquismo, que transparece na definição, se coaduna nas
linhas gerais do pensamento do autor. Do fundo daquele instinto fluirá o
“sentimento do amor”. E onde seria captado esse maravilhoso sentimento, a
mais alta e delicada flor da afetividade humana? No seu mais sutil e fino
radar espiritual de apreensão, na Arte.

É na Arte que Ingenieros recolhe o melhor material de sua análise


penetrante. Nem sequer mencionarei o estudo da formação da personalidade
amorosa, que pesquisa nas obras geniais de Goethe, de Byron, de Musset.
Porque é na literatura que se reflete, como espelho social dos carácteres
humanos, a intimidade psicológica das tramas sentimentais, desenhando
delicadamente as personalidades. O amor sacrificado à domesticidade, a
rebeldia da sensibilidade individual contra a normatividade moral, o medo e
a ilusão de amar, toda a gama dramática dos choques afetivos que a intuição
dos escritores geniais captou na criação de Werther, de Carlota, de D. Juan,
de Romeu e Julieta, de Hamlet, de Otelo, de Beatriz, de Manon Lescaut, de
Tristão e Isolda... Falei de Wagner. Em Wagner é preciso parar. É um
píncaro sagrado rodeado de espantos. Porque o gênio ali não se exprime
apenas na linguagem literária: a ópera gigante explode sentimento amoroso.
O paroxismo da paixão encontrou o veículo expressional supremo através da
música consubstanciada ao verbo poético. Di-lo Ingenieros: “Poema único
na expressiva paridade da palavra e da ação, profundo no simbolismo da
idéia, febricitante no ritmo do verso, tempestuoso na melopeia lírica,
arroubado na magnificência da sinfonia. Não basta, com efeito, escutar a
música deste poema, em seus versos, que clamam delírio de amor e angústia
de volutuosidade, transpira um conceito filosófico que nas passagens mais
conspícuas denuncia a influência de Schopenhauer sobre o maior gênio
musical de todos os tempos”.
O sentimento amoroso amolga-se no sentimento doméstico. A domesticidade
redu-lo ao papel social da reprodução da espécie na agência biológica
chamada “família”. Em certa fase da evolução humana, assistimos essa
“fuga” do amor da estrutura familial, corrompida pelo interesse econômico
onde o instinto maternal resiste às distorções. Não se originando da mesma
raiz — ensina Ingenieros, o Instinto social e o Instinto doméstico limitam-se
reciprocamente: um é o liame típico da horda, outro o liame típico do clã.
Há entretanto, uma fusão ou transfusão, entre esses sentimentos na
componente do sentimento maternal. Ajunte-se-lhe o sentimento de
propriedade masculina, que se fortaleceu em certa fase da evolução humana
e está em declínio, e ver-se-á como a moral doméstica, lentamente, se
degradou em moral econômica. Em face do fenômeno, ponderou Ingenieros:
“É notório que a infidelidade é frequente nos homens casados, cuja
monogamia legal está mitigada pela poligamia prática, especialmente nos
ricos; a moral não lhes proíbe ter amantes, contanto que não nas exibam”.

Trava-se a pugna entre o amor e a moral, ‘tema que será explorado


admiravelmente na literatura. D. João é a imoralidade de amar, diz
Ingenieros. Preferiria dizer: D. João é a incapacidade de amar. Não seria
exagerado apontar a sintomatologia social moderna à volta do problema
como debilitação do amor, no profundo sentido do conceito? Hesito.
Resultariam tais sintomas da transformação da família no seio de uma
civilização que perturbou miseravelmente o sentido da conjugação amorosa.

Foram as circunstâncias exteriores — explica-nos ainda, que transformaram


o amor em paixão: “o mundo da aparência, construído pela mentalidade
social, separa Isolda de Tristão para arrojá-la nos braços do marido
incógnito que mais convém à razão de Estado; contra ele se ergue o Instinto,
que incendiou de amor seu coração e a impele para o amante ideal”. Na
colisão de sentimentos, vale toda uma simbologia a que a potência musical
empresta força mágica, que supera todas as tentativas de exprimir a paixão
no seu tumulto e na sua violência. Porque em Wagner realiza a aliança
profunda entre a poesia e a música, os dois meios mais altos e mais
vigorosos, criados pelo homem, para a tradução do subjetivo; e quando a
palavra falece, é a misteriosa pujança da música, só subjetivismo, despida
de todas as conotações do conceito, que atinge o mais íntimo da alma
humana, as entranhas mais vitais do sentimento e da emoção, que ficam para
além de toda tentativa de Verbo.

Não sei se sou injusto com Alexandre Kom e Francisco Romero ao


considerá-los astros menores; mas julgo dar o depoimento de minha geração,
como disse inicialmente. Não tiveram aquele grau de contaminação que
emanava da personalidade de Ingenieros. Contaminação radioativa, que agia
à distância.

Kom, nascido em 1860, em S. Vicente, província de Buenos Aires, doutorou-


se aos 22 anos. Mas é no ano de 1906 que começa a ensinar Filosofia, na
Faculdade de Filosofia e Letras. Até jubilar-se, em 1930, regeu a cátedra de
Gnosiologia e Metafísica, e, na Universidade de La Plata, História da
Filosofia. Sua especulação filosófica, como a de Romero, é quase sempre
uma crítica do naturalismo determinista. Distinguindo três etapas na
evolução do positivismo, caracteriza a primeira como aquela em que toda a
atividade se volta para a exploração do mundo exterior, dentro dos
paradigmas do mecanicismo. Na segunda etapa, a psicologia experimental
pretende resolver os problemas subjetivos e promete a explicação total da
filogenia do espírito. A terceira já é a fase da decomposição desses modelos
naturalistas ante a recrudescência de novas formas do idealismo em luta
contra o dogmatismo positivista.

Quis de certa maneira, reagir contra as estreitezas daquela raison bourgeoise


que não atinou bem com a função desempenhada pelos valores vitais que
estavam na história.

Assim, os mitos, como florescência infantil da Razão, nascem de raízes


afetivas, exaltam essa intuição que vem de recessos anímicos — e tudo isso
foi convertido em novos métodos de oposição ao racionalismo científico. O
husserlianismo, com sutilíssimas análises, reduziu a filosofia a um
descritivismo ascético da experiência, privando-a das seivas que lhe vinham
por vias intuitivas. Foi uma tentativa de depuração espiritual, que filtrava as
vivências históricas num supremo jejum abstratizante, espécie de
anacoretismo aspirando a desencarnação e sublimação requintada do
“intelecto puro”. No husserlianismo, pode-se dizer, que o abstrativismo
subjetivista chega ao seu grau máximo de rarefação histórica e empírica. Se
Husserl é o abstracionismo intelectualizante, Scheller é o afetivismo
intelectualizante, — os valores da intuição emocional passam a constituir
nova categoria cognoscitiva, que faculta legitimar toda a axiologia mítica.

Em 1925, Kom dedica vigorosa crítica ao positivismo. Conforme Romero,


ele jamais considerou o positivismo argentino “um mero grupo de aderentes
a Comte e de outros sequazes de Spencer, mas uma parte considerável da
tradição nacional, que em certos momentos buscou fundamentos teóricos em
Comte e Spencer. Na verdade, quando se relê suas páginas, não se encontra
o proselitismo do propagandista ou do doutrinador, a aceitação beata da
doutrina. Há pensadores que, assimilando a nova orientação, adotam- na
como norma metodológica de pensamento, no objetivo de aplicá-la à
interpretação da vida argentina. Kom busca na filosofia da personalidade, na
axiologia, na liberdade criadora as razões da negação do determinismo
naturalista. Toma direção subjetivista: “Devemos ter presente, pois, que o
mundo externo não é uma realidade conhecida, sim um problema; que, por
conseguinte, quando existe, somente existe em uma consciência”. Como
evitar esse desfecho solipsista? Para ele, espaço e tempo, newtonianamente
concebidos (apesar de escrever o ensaio em 1932), “as duas grandezas em
que se enquadra o processo cósmico, só se conhecem como elementos da
consciência e sua existência real fora dela não é um ato comprovado”. Nessa
ordem de idéias, o pensador que irá concentrar sua atenção é Kant. Dele
retirará sua melhor argumentação. Depois de examinar a intuição como ponto
de partida do pensar, decide bravamente: “realidade, em filosofia, é um
conceito fóssil, isto é, uma superstição. Reservemos a palavra com um valor
convencional, sobretudo para distinguir o fato certo do fato imaginado ou
desejado. Um tratado de filosofia, para ser lógico, deveria escrever-se com
verbos, sem empregar um só substantivo”.

O que não impediu Korn de fazer, no final, o apanágio da liberdade criadora


como o impulso supremo do homem, em meio dessa Natureza cega aos
valores éticos e teleológicos.

“A experiência íntima da liberdade se acha instalada no centro mesmo do


pensamento de Korn — escreve Romero. Na tradicional polêmica entre a
liberdade e a ordem, ele se decidiu pela liberdade não porque negue a
ordem, sim por que, como outros altos espíritos, sente que a opressão e a
ordem que ela impõe são o grande escândalo, a maior desordem real”.
Era um dos mais assíduos membros da Sociedade Kantiana de Buenos Aires,
a que também pertencia Romero, onde ambos dispunham de auditórios
atentos e seletos. Dali surgiu a idéia da fundação do Colégio Livre de
Estudos Superiores.

Estava filosoficamente bem próximo de Francisco Romero. Romero não se


filia no biologismo da época de Ingenieros. Sua temática gira em torno do
problema da cultura, de onde ressaltam motivos peculiarmente humanos.
Infletindo nesse rumo, ampliou-se a crítica ao naturalismo. O escritor seguiu
nas pegadas dos pensadores europeus — Dilthey, Laski e outros. A tônica da
crítica recai sobre a oposição entre o “natural” e o “espiritual”, no sentido
de agravar o hiato, desconhecendo-se a relação dialética entre os dois
domínios. No mundo da “cultura”, valorizam-se componentes espirituais,
insistindo na caracterização da autonomia do cosmo teleológico e
voluntarista, onde a intencionalidade e a finalidade dominam, em contraste
com a causalidade e determinismo vigentes na Natureza. O mundo histórico
desquita- se do mundo biológico em profundidade, recusando as ligações
suspeitas da filosofia que o darwinismo inspira. Passara a belle époque onde
florescera o naturalismo...

Romero, entretanto, não resvala em simplificações radicais. Mas não


compreendeu que a oposição entre aqueles dois mundos assenta na
identidade dialética, que permite a visão antitética das suas relações.
Discorre a propósito: “Ao espírito assim definido, não lhe atribuímos
nenhum caráter sobrenatural nem misteriosos. Espírito é simplesmente a
designação daquilo que, no homem, cria a linguagem, a religião, a arte, a
moralidade, o Estado, etc. Como este princípio somente o encontramos no
homem, utilizamo-lo para separar o homem da natureza”. Destarte, toda as
criações que povoam a paisagem, humanizando-a, são realizações do
espírito. Romero chega mesmo a falar em termos hegelianos, no “espírito
objetivo”. Mas já estou falando de Romero, testemunho das atividades de
Korn, cujos pontos de vista filosóficos convizinham suas digressões
marcadas pelo mesmo cunho crítico hostil ao naturalismo das décadas
anteriores, quando enchia o horizonte a figura e a claridade de Ingenieros.

Quantos aspectos dos três pensadores deixo à sombra. Nem sequer falei de
seus primeiros passos científicos, com a tese La Simulación de la Locura,
nem falarei da empresa editorial “Cultura Argentina”, que lançou ao
mercado toda a riqueza de Alberdi, Sarmiento, Echeverria, Rivarola,
Agustin Alvarez, que eram inacessíveis ao estudante! Nem referirei as
conferências sobre uma Universidad del Porvenir, que a seu modo e dentro
de seus postulados, traçava o programa de como deveria ser o centro de
propulsão do pensamento científico integrado no processo de renovação em
que hoje nos empenhamos ante as perspectivas tecnológicas e seu impacto na
vida da inteligência.

NOTA

Esta conferência, feita no INSTITUTO BRASIL-ARGENTINO, teve


inicialmente o título “como minha geração viu três pensadores argentinos:
Ingenieros, Kom é Romero.” Depois de escrevê-la, percebi que a
personalidade de Ingenieros invadira toda a conferência, ofuscando os
outros dois. Quase não se me ofereceu1 ensejo de examiná-los senão
reflexamente. Todo meu pensamento se concentrara no perfil e na obra do
autor do “Princípios de Psicologia biológica”. Por que? Por que minha
geração se concentrara naquela direção. Assim, minhas palavras refletiram
aquele momento vivido há quatro décadas.

A mocidade é assim exclusivista. Precisaria de outra oportunidade para


alongar o exame aos outros dois mestres. Porém sobre eles já não escreveria
com a mesma saudade, com o mesmo gosto e facilidade evocativa, diga-se a
verdade. No velho altar já empoeirado, o ídolo que absorvia nosso culto
atrapalhava a reverência a ídolos menores, esses a que o crente lança o olhar
meio distraído, na vaga desconfiança da debilidade do seu socorro.

Evoquei-o como o sentíamos, exagerando-lhe as qualidades, esquecendo-lhe


as deficiências. Assim mesmo, anotei alguns reparos que lhe não mareiam a
auréola, reparos que já são frutos da maturidade. Quis dar um depoimento,
não fazer análise. Procurei não ser crítico, atitude que atualizaria demais o
retrato. Retrato, não do que ele fora na realidade, mas do que fora na nossa
imaginação. E não é na imaginação que todos eles revivem hoje? Destarte,
registrei somente os reparos indispensáveis para inseri-lo na perspectiva
que se formou depois, a troco de leituras, pelos anos afora. O espírito jovem
é o solo feraz onde germina tudo facilmente, na força matinal do seu
despontar. Crítica é atitude ulterior, que se desenvolve no maturar da
experiência outoniça. Se os ídolos vicejam nos entusiasmos, as auréolas
extinguem-se na reflexão. Mas há tanto ouro de bom quilate nesta auréola
que jamais sua radiação será turvada na alma argentina.

D.M.
XI. LIBERDADE
UNIVERSITÁRIA

Vale á pena fazer algumas reflexões à margem de uma declaração do Prof.


Robert E. Connick, Reitor da Universidade de Berkeley, a respeito da
liberdade universitária. É um tema que está no centro das preocupações
intelectuais, com ramificações no terreno social, político, científico — e não
simples quesilia nascida de pruridos ideológicos, como parece a muitos.
Aliás, quem recordar alguns lanços da história das universidades, observará
sua ligação, ora clara, ora subterrânea, com os estilos de vida política,
mesmo no tempo em que se concebeu o saber hermético insensível às
agitações temporárias. Por vezes, esse hermetismo era um pretexto contra a
vassalisação, tentativa de independência em face das exigências do Poder,
interpretado como fuga aos problemas urgentes.

Ao recrudescerem as lutas à volta da Universidade a polêmica se concentrou


em torno do problema da liberdade de pensamento. Evidentemente esta
expressão envolve todos os aspectos: acessibilidade aos órgãos de
expressão, direito de exprimir livremente as idéias, respeito às minorias no
exercício desse direito.

Destarte, a Universidade avocou a si total responsabilidade assumindo papel


de órgão intelectual da divulgação da verdade. Se a verdade é algo que se
dissociou da convivência humana, então enveredamos no cipoal dos
exercícios escolásticos; ao contrário, se a verdade é conceituada como
simplória expressão das relações sociais na consciência humana, alongamo-
nos na direção de outra falsidade, porque tal “verdade” se reduz apenas a
subprodutos de forças dos grupos e classes. São duas extrapolações em dois
sentidos opostos. Entretanto, mesmo para afirmar a cultura como singelo
mascaramento daquelas relações de força, disfarçando a opressão, precisa-
se de um critério firmado à priori, do ângulo do qual faça tal julgamento.

Se declaro que a cultura é uma impostura, é porque assentei, precisamente,


premissa estranha à impostura; quer dizer, que carecemos de um critério
prévio de verdade. Mas se declarei, preliminarmente, que a verdade é essa
mesma máscara ideológica, estou num círculo vicioso: — como sair dessa
falácia? Se nego a verdade, nego a possibilidade de desmascarar a
impostura, que só será impostura confrontando-a com seu oposto, que se
chama, através dos séculos, “verdade”.

Não defendo aqui a existência de uma verdade absoluta, invariável, eterna, o


que viria contradizer radicalmente tudo que até hoje venho dizendo nas aulas
e em livros. Entretanto, à luz de um critério historicamente variável, há certo
parâmetro essencial de relativa invariância, dentro dos limites do
conhecimento, que se exprime nas linhas mais gerais e universais do
pensamento filosófico.

Estouram protestos estudantis contra acontecimentos mundiais no ambiente


das Universidades, sob motivos variados. O mais ruidoso é a invocação
entusiástica do princípio da liberdade de manifestação de pensamento,
resultado de árdua conquista contra os sistemas de opressão. Observa-se,
paradoxalmente, que a defesa da liberdade é promovida por facções que, ao
senhorear-se do poder, não hesitam coarctar a liberdade dos adversários.
Por isso, quando recebi a láurea de professor emérito falei nos “libertadores
liberticidas”, para caracterizar esses redentores aflitos e apressados.

Mas não é esse lado do problema que cumpre examinar agora. No tocante à
liberdade universitária, nervo essencial da nossa sensibilidade às idéias, o
princípio sofre adulterações astuciosas, que iludem os alunos. E o sofisma
que se arma, assenta na forgicação das premissas, que são postas às claras.
Passo aos fatos. A Universidade para realizar suas funções de transmitir o
conhecimento e de fazê-lo progredir (isto é, ensinar e pesquisar), dispõe de
certas estruturas. O aluno, que se matricula em determinado curso, tem
objetivos definidos nos respectivos estatutos e leis; inseriu-se num grupo
organizado para aprender determinadas matérias, que estão no currículo.
Pagou, matriculou-se para aprender física, matemática, psicologia, história,
etc. Se em vez disso, passa a ter aulas sobre Vietnam e política
internacional, fora de seus programas, estão lhe vendendo gato por lebre.
Comprou uma coisa, vendem-lhe outra. Foi ludibriado. Em nome de que? Da
liberdade de pensamento! É o que lhe bradam as minorias agitadas, cujos
arautos se tornam responsáveis pela fraude à liberdade em nome da
liberdade. Porque, sonegando os objetivos que atraíram as matrículas, estão
impingindo novos objetivos, que podem ser belíssimos — mas sobre os
quais os alunos não foram previamente consultados. Depois de reunidos, nas
formas do coleguismo estudantil, deixam-se levar, inibidos por uma falsa
compreensão de solidariedade universitária. Muitos deles, em íntimo
desacordo com a situação criada, retraem-se, intimidados pelo proselitismo
organizado e militante este só poderia ser combatido por outra frente
congênere e oposta, conjugando-os para fazer valer seus direitos de
estudantes, que desejam estudar física, química ou sociologia.

Mesmo tratando-se de ciências sociais, veio estudar Economia ou


Sociologia, não veio para ouvir unilateralmente o catecismo marxista. A
ciência não é marxista, nem tomista, nem aristotélica, embora dentro dela
possam os cientistas perfilhar tais doutrinas e inclinações. Onde começa o
sectarismo, termina a liberdade intelectual. O horizonte do espírito humano
não é o dos campanários das ortodoxias, que batalham pelo império dos
espíritos e pela docilização da consciência, Não concebo Universidade
amarrada ao cabresto de uma doutrina, principalmente quando está doutrina
é exclusivista, agressiva, imperialista — e só admite a si mesma como
verdade última, como acontece com o marxismo do tipo leninista. Volto ao
ponto: se o aluno se inscreve em uma cadeira de prótese dentária ou de
direito falencial e doutrinam-no sobre o plano de guerrilhas urbanas ou como
se deve assaltar um banco, estamos em face de um embuste. Primeiro, pela
malévola substituição do objetivo; segundo, porque se prevalecem daquilo
que já se chamou de “auditório cativo”: uma minoria solerte impinge sua
pregação porque conquistou o “poder” isto é, a cátedra. Essa minoria, que
está violentando regulamentos e a finalidade do próprio órgão universitário,
grita pela liberdade. Não vê (ou finge) que ela mesma afronta a liberdade da
maioria, desnaturando a instituição docente. Nisso está a mais garrafal
intrujice desses paladinos do livre pensamento.

Ninguém reclama o direito de andar de bicicleta numa igreja; mas há quem


reivindique substituir uma aula de álgebra por um debate sobre a morte de
Guevara ou discutir a bomba de Mao-Tse-tung numa sala de estudos de
latim. Não negamos a liberdade de idéias e o direito de discutir o
guevarismo, o fidelismo, o stalinismo. O que contestamos é a distorção
institucional a título de que a Universidade representa o pensamento livre,
pois esse princípio é a fonte vital das Universidades. Contestamos esse
proselitismo, que pretende sufocar as maiorias congregadas no âmbito
estudioso com finalidades que discrepam daquelas. Contestamos a
desvirtuação do princípio, que se transmuda velhacamente no seu contrário
fazendo do “campus” universitário um campo de batalha social.

Basta ver o comportamento agressivo dessas maiorias que confiscam a


palavra do adversário onde quer que assumam a liderança. Quando certos
diretórios acadêmicos, obedientes ao comando marxista, dominaram durante
curta fase da vida universitária, os piquetes de execução das greves
intimidaram maiorias desprevenidas e pacatas, que não dispunham de órgãos
adequados para contraminarem a escalada tecnicamente bem orientada do
sectarismo. Eis porque está mal posto o problema da liberdade universitária,
nesse jogo de cartas marcadas. Não trago impressões de cristão novo nem
estou adotando nova perspectiva de Reitor que deseja ordem e paz para
poder realizar alguma coisa duradoura; reclamo compreensão e apoio do
alunado. Muito mais disse, há cerca de dez anos, na Faculdade de Filosofia,
quando era apenas professor de história das doutrinas econômicas. E toda
minha ação pedagógica se concentrava na descentralização do espírito
juvenil, que pela sua impaciência generosa, é facilmente captável às ilusões
dos caminhos messiânicos e das soluções rápidas. Se vencem, serão os
primeiros trambolhos a serem alijados pelos reais condutores do movimento,
onde não passam de brigadas de choque, utilizados nesta fase do combate.
Nada mais calado e asfixiado que a Universidade dos países totalitários. O
rumor das apoteoses é manipulação de massas domesticadas, que se
entusiasmam dentro dos programas do poder. Onde quer que uma
personalidade se erga originalmente — o facão do partido único lhe corta a
voz, isto é, para melhor segurança, o pescoço. Mas como é difícil convencer
o sectário! Digo convencer medularmente, de que só na liberdade se toma
possível evitar a contaminação dessas mitologias em que se divinizam as
massas! Assentam nessa massificação inicial: racismo, fascismo, marxismo,
leninismo, stalinismo, vinhos da mesma pipa totalitária; pretendem realizar a
justiça social e a liberdade intelectual. Onde encontrar a demonstração
histórica das realizações? Nos países onde se implantaram, criaram a
oligarquia burocrática, que confiscaram as conquistas democráticas.
“Cassaram os direitos burgueses!”, explicam. Mentira. Sujeitaram todos. E
mesmo os que não se iludiram, o rolo compressor esmagou- os quando
quiseram recuperar a voz. Até em assunto de genética e filosofia da teoria da
relatividade a censura foi asfixiante.

No triênio 1936-39, mais de um milhão e meio de membros do partido


comunista soviético — metade do total — foram encarcerados, muitos deles
torturados no curso de interrogatórios. 600 mil transportados ou mortos em
campos de concentração. Raríssimos os que, reabilitados, voltaram a cargos
de direção. Quem no-lo conta é o físico nuclear Andrei Sakharov, do
Instituto Leberdev, de Moscou. Sakharov se bateu pela liberdade intelectual
e teve o prêmio Stalin em 1950. Como era insubmisso aos oligarcas do
Partido, passou a ser suspeito ao regime — o que significa um risco de
liberdade e de vida.

Dizem então esses pregoeiros que se pretende desquitar os estudiosos das


preocupações políticas. Não é verdade. Preservar o meio universitário dos
encarniçamentos ideológicos e políticos não significa alienar os professores
e alunos dos interesses vitais da comunidade, mas impedir que o “campus”
se torne o centro de conspiração e os líderes universitários meros agentes de
uma propaganda que alicia á juventude contra a ordem democrática. É
curioso que esses advogados de uma Universidade que submeta todos os
valores à crítica sejam exatamente os representantes de sistemas sociais que
encabrestaram a Universidade à burocracia totalitária do credo comunista.
Ao converter-se em órgão da ideologia oficial, ela perdeu a liberdade das
opções intelectuais no litígio das doutrinas, mesmo porque, de seu seio,
desaparecem os litígios, decretando-se a uniformidade. Tais sectários
promovem, valendo-se da liberdade existente, as violências que deflagram
nos “campi” da Berkeley, da Cornell, e de outras universidades norte-
americanas. É um erro supor que uma política abdicatária contribui para
apaziguar a intolerância dos agressores. Tivemos exemplos em algumas
universidades do país, no tempo do governo Goulart, quando grupos
estudantis, capitaneados por marxistas, pleiteavam a dominação dos
colegiados, defendendo a idéia da “cogestão” didática e administrativa das
universidades. Assistimos sessões de Congregação onde a equipe dos
líderes discentes, beneficiando-se da faixa ondulante de professores, alguns
já amarelos de medo, outros avermelhados de ideologias, conseguiam obter
decisões favoráveis a seus propósitos. Nas vésperas de 31 de março, o
controle dos diretórios era visível, em quase todas as unidades, com algumas
exceções.

Como disse o Reitor da Universidade de Berkeley — não se nega o direito


de os estudantes promoverem demonstrações de protesto. Nega-se, porém, o
direito a manifestações inteiramente dissociadas dos programas que frustram
a liberdade universitária pela intromissão das teses sociais e políticas que
deveriam ser objeto de estudo de outros programas pelos respectivos
especialistas.
XII. CIÊNCIA, TÉCNICA E
PRAXIS

“Por que a Ciência e a Tecnologia se nos afiguram agrestes e malignas?” *

No admirável livrinho de Hermann Diehls, intitulado Antike Tecnik,


reunindo sete conferências pronunciadas em diversos momentos, o grande
helenista e filósofo nos revela a intimidade do pensar e do fazer, do mundo
especulativo e do mundo ativo, interação de que emanaram as criações da
Arte, da Ciência e da Filosofia que estão presentes no espírito universal. Um
passado sempre presente, fenômeno que Heidegger denomina das Gewesene,
que não é o passado, die Vergangenheit, o que deixou definitivamente de ser.

Aquelas conferências apresentam-nos o drama vivo da interioridade x


exterioridade, do sujeito x objeto, na intimidade dialética do processo de
transformação das coisas naturais em coisas culturais. Essa crescente
“humanização da natureza”, expressão enunciada por outros pensadores, vem
de eras remotas. Seu alvorecer coincide com o despontar do humano e,
portanto, do alvorecer da própria história, como a compreendemos. Nessas
relações ativas entre o homem e o meio se definem as primeiras formas do
trabalho, vinculadas ao desenvolvimento da filogênese espiritual e das
estruturas sociais. As chamadas artes (agricultura, cozinha, cerâmica,
náutica, tecelagem, etc.) implicaram o descobrimento das propriedades das
coisas, que as necessidades biológicas incentivaram.

Para não alongar repetindo o que pode o leitor encontrar facilmente noutros
autores, remetemo-lo, ampliando as premissas deste insignificante ensaio, a
duas outras obras de grande densidade, respectivamente, Science and
Politics in the Ancient World, de Benjamin Farrington e El trabajo manual en
la Antiguidad clássica, de R. Mondolfo. De certo poderia arrolar ainda
muitos outros — mas já nos bastam os citados como motivação para nossas
primeiras reflexões. No correr delas invocaremos outros pensadores que
balizarão a rota da pergunta formulada acima.

Ciência ou técnica insuladamente, por si mesmas, são abstrações. Toda vez


que as examinamos objetivamente, é numa determinada sociedade e em
determinada fase do desenvolvimento de sua consciência social. Exprimem,
portanto, uma situação histórica concreta, vinculadas ao comportamento dos
homens em suas relações ativas com a Natureza. Digamos, da vida social em
seu conjunto. O lado prático daquelas relações, reflete-se na técnica; o lado
teórico, na ciência. Nesses dois aspectos temos apenas uma simplificação,
que vale didaticamente apenas como primeira aproximação do problema.
Porque se sabe que a interpretação de teoria e prática, no processo ativo,
caracterizando o “agir humano”, é, na realidade, indecomponível. Mesmo na
simples atividade perceptiva, o ser reage no captar as propriedades do
objeto, decompondo-o, analisando-o, — digerindo-o subjetivamente, como
explicou Hegel na Fenomenologia do Espírito; a coisa é triturada em notas e
determinações, que se reconstituem conceitualmente. Há, no processo
cognoscente, uma dialética profunda, que Hegel buscou explicar, ao mostrar
o despontar alvorescente da consciência-de-si no fieri da experiência
sensível.

O nível técnico, que se esboça rudimentar no plano zoológico, só se define


mesmo no homo fáber: quando os fins a atingir se aclaram e o
comportamento, embora condicionado pelas circunstâncias exteriores, torna-
se de mais a mais teleológico, permitindo a progressiva compreensão das
causalidades naturais. Nessa compreensão das conexões entre as coisas está
o começo do domínio das coisas. O proveito, que o homem tira do fato de
intelegir como as coisas acontecem, permite-lhe prever e utilizar
instrumentalmente as situações, onde discerne as componentes manobráveis.
Pari passu, resulta a elaboração das primeiras técnicas, que prolongam sua
ação no ambiente. O valor pragmático da imaginação acentua-se no processo
ideativo. A transitividade do imaginar, cheio de resíduos perceptivos, para o
idear, onde cresce a força racional, é um capitulo obscuro da psicologia.
Vamos adiante. O utensílio já é idéia. “Que significa isso?” Indagamos,
diante de um artefato que desconhecemos. — “É um bumerang.” Ouvimos
uma palavra também desconhecida. Quando no-lo descrevem, as conotações
ou. determinações aclaram: arremessado no ar, como arma, volta ao ponto de
partida. Assim, o instrumento pré-civilizado revela as proto-idéias humanas
— porque a história começa no nível do desenvolvimento em que aparece a
conduta implicando embriões da conduta simbólica. Nesse sentido, diz
Gordon Childe que a “pré-história constitui uma parte entre a história
humana e as ciências naturais de geologia, de paleontologia e de
arqueologia”. Decerto continua a história natural — mas continua
descontinuando, dialeticamente, como sua negação. Porque o mundo
histórico, superaria a causalidade cega por uma iluminada interioridade
finalística: a inversão do instrumento marcou a transição qualitativa no
processo histórico — a passagem do animal para o humano, a herança
biológica cedendo passo à ação da herança cultural, a conduta estereotipada
subordinando-se à conduta flexível. A invenção não é uma mutação acidental
nos cromossomos, mas resulta do processo cumulativo da experiência
social.

A inferioridade dos ramos da família humana diante de outros animais no


pleistoceno exprimia a dificuldade de sobrevivência. Desapareceria se seu
equipamento de respostas não se enriquecesse de novos estilos de ação| Os
processos conjugam-se: a produção de técnicas que revelam o
desenvolvimento da mão graças a atitude ereta, da habilidade digital, das
partes do cérebro que condicionam as conexões ideo-motrizes, do sistema
nervoso em geral, do crescente mundo dos sinais advindos da articulação
fônica, que constituem um inicial “saber de experiência feito”. Se a
experiência animal se transmite pela hereditariedade biológica, sob forma de
comportamento estereotipado — a experiência social do artesão do
pleistoceno, às voltas com os “eólitos”, se transmite nas situações de
convivência, pelo contato entre os seres que partilham das finalidades
comuns.

Destarte não se pode simplificar o problema da tecno-gênese reduzindo-lhe


a etiologia apenas às relações entre o indivíduo e a natureza. Mais
complexas são as relações entre o ser social e o meio natural. Dois aspectos
de um só processo: mais profundo que a interação homem x natureza é a
interação expressa no processo histórico inter-humano, consciencializante,
que dá novas dimensões ao processo natural, em cujo seio se desenvolveram
as formas plásticas da conduta racional. Esta não sufoca as formas de
repertório genético, da hereditariedade anímica que se constituiu
filogeneticamente. O desenvolvimento técnico implica a interação que
caracteriza o aprendizado, que se define na experiência cumulativa
socialmente transmitida graças aos meios simbólicos, cuja elaboração foi
simultânea no longo, fecundo processo histórico da convivência. Nesses
ensaios primitivos da técnica, o processo ideativo, in statu nascendi, se
embebe, indistinto, na imaginação e nas fontes sensoriais. São idéias-
imagens, formas pictóricas dos aspectos do Real, a busca dos sinais, como
ponto de apoio exterior para a interioridade balbuciante.

“Como nos sons germinaria o sentido Onde amanhece o mundo da


Razão?”(1)

Sem o apoio do sinal exterior — sonido, sinal gráfico, mímica — que


cristaliza o sinal interior, toda a racionalidade seria sufocada in nuce. A
externalização, hegelianamente, extraneou o interno, nesse jogo iterativo
vitalmente dialético. O sentido viveu no signo nessa fase de nascimento do
“pensar abstrato”, que, sem a linguagem, não seria. A sutil técnica de
comunicação permeia todas as outras formas de técnicas como uma
atmosfera que lhes dá vida. O progresso da mão e do olho humano exprime
toda a educação que caracteriza a passagem do hominídeo ao homo sapiens.
Essa ação recíproca entre o desenvolvimento dos órgãos humanos (é
simultaneamente, de toda a estrutura humana) e as forças naturais é a
essência do “trabalho”, núcleo genético da história. Viu-o Hegel com lucidez
inexcedível. Nesse processo é que se vão destacando o objeto, a
objetividade, a desprender-se do “Subjetivo” — drama que se espelha no
animismo primitivo quando o paleopsiquismo sai da noite zoológica dos
jetos, do indiferenciado Foi o que expôs, noutras palavras, na sua admirável
obra sobre a “teoria dos jetos”, o grande pensador Pontes de Miranda.

A ação onde se somam esses fatores já é diferenciada: ela se reforça na


aparição e desenvolvimento dos órgãos artificiais, a técnica que, tendo
assim um profundo sentido biológico, abre o horizonte do devenir histórico
da consciência. A lasca de sílex, objeto natural, só começou a ser
instrumento, quando o processo interno de apreensão, compreensão,
exercício da faculdade subjetiva, que se robustece, permite conceber o
“objeto” humanizado: isto é, quando a -pedra apareceu-lhe como faca, o
produto da natureza como produto do trabalho. E só apareceu assim quando
tal ser não era apenas um ser-animal, mas um ser-social — isto é, quando se
tornou um ser-humano. O humano despontou colhendo nos objetos
determinações outras, que resultaram de sua ação modificativa sobre eles,
ação que os mudava conservando, que os formava transformando. Mas,
simultaneamente, o homem aos transformá-los, transforma-se, porque
interiormente experimentava um desenvolvimento que o afastava das fontes
imediatas do sensível, reforçando-lhe, simultaneamente, a captação
sensitivo-perceptiva.

O cheirotechnès nasceu dessa emancipação dos membros superiores; a


classe intelectual, a inteligência, como stratum sociale, também se formara
quando a emancipação das exigências do trabalho produtivo permitiu a
estratificação de classes ociosas.

Há uma frase admirável no Emile, de Rousseau, de impressionante alcance


filosófico: a em que diz que a filosofia começa no agitar das mãos do recém-
nascido. Pois foi no novo emprego das mãos, ao assumir a postura ereta, que
as libertou das fainas da locomoção do quadrumano, que raiou o primeiro
passo da humanização. É a hora memorável em que se anunciam os
primeiros ensaios “técnicos”, marcando o madrugar da história humana. Por
que a pré-história já é o devenir humano a definir-se na técnica.

Desse ângulo de vista, num ensaio ainda animado de hegelianismo, — Marx


escreveu que os sentidos do homem transcendem os sentidos do animal.
Neles já está, definindo- os, o sentido que transcendeu o zoológico.

Destarte, o que se define como humano é precisamente o que supera o


zoológico — e se lhe opõe. A técnica é a primeira expressão desse superar
— e sua expansão será íntima ao crescer da civilização. Aqui passamos a
outros aspectos do problema — e vem então à baila a interrogação (que
julgamos, data vênia e sem qualquer pretensão de corrigenda), inabilmente
formulada: porque ciência e tecnologia se afiguram agrestes e malignas?

Contestamos frontalmente a agrestia e a malignidade. A pergunta pressupõe


que ciência e técnica o sejam — e indaga das causas que as originam.
Portanto, temos que iniciar o debate negando o que a pergunta já pressupôs.
Porque “agreste”? Da voz latina agrestis que se opõe a urbanus como agrios
e opõe a ásteios. Ruttica vox et agrestis, diz Cícero, contrastando com a
eloquência polida e refinada. Sinonímia — rusticus, silvestris, ruãis,
incultus, horridus, ferus, asper. O sentido que pode emanar dessa adjetivação
é inteiramente discordante do que a ciência e a tecnologia se nos afiguram.
Se uma nos dá o aspecto teórico e ideal do conhecimento, outra dá-nos o
aspecto prático e aplicado, ambos inteiramente ligados num só processo,
que, por sua vez, exprime a ação social do homem. O sentido de
solidariedade humana é inabluível do processo cognoscitivo — basta que se
recorde sua natureza essencialmente histórica. Nasceu da convivência, na
convivência, de que a polis é a expressão social. São os estímulos do
convívio que desenvolvem o pensamento, que o “desautisam” como
verificaram os psicólogos aos observarem o crescimento mental da criança
(Piaget e outros). Queremos dizer, a ambiência social promove a ruptura do
autismo, típico das fases infantis nos indivíduos e na espécie para o trânsito
objetivisante, ascendendo ao nível de apreensão e captação das
determinações da “coisas” e dos “nexos”. Os centros científicos sempre se
vitalizaram nos focos urbanos — e não foi o espírito camponês, agreste,
rústico, inculto, que incentivou o processo científico ou técnico. É na polis
que se intensifica a vida do espírito.

A conotação malignas já envolve o valor axiológico pessimista com que


alguns moralistas, no velho sentido da palavra, pretendem carimbar a
pesquisa científica, assustados com as mudanças de padrões éticos de
conduta que se está açulando no seio da sociedade contemporânea. Com o
desequilíbrio dos antigos valores morais e antes que se restabeleça um
código de ética, há certo assombro do farisaísmo ante o tremor que sacode
as bases da tradição. Então por que agrestes e malignas a Ciência e a
Técnica? De várias maneiras poderíamos contestar a conotação axiológica.
Preferimos simplificar nossa argumentação, despindo-a precavidamente de
qualquer pretensão especulativa.

O “sentido” que as coisas têm, reside nas coisas mesmas? — ou reside no


ato de aprendê-las e inseri-las no nosso processo de ação? A simples e pura
apreensão e captação das notas ou determinações, num ato de “pura”
intelecção — dir-se-á — não lhes dá a tintura valorativa. Diga-se: capta
objetivamente. Sugere o refletir impessoal, o quid est na sua máxima
isenção: o sujeito inerte (paradoxalmente dessubjetivado), como espelho
“morto” das manifestações exteriores que o afetam. Essa nulificação de
qualquer índice próprio do “percipiente”, como sujeito dessubjetivisado, é
uma criação do intelectualismo objetivo e cientificista: nunca existiu. Porque
a ação do meio exterior, que origina os processos internos, tem no resultado
cognoscitivo algo da exterioridade. O desenvolver-se da dialética profunda
do sub e do ob, que vem desde as primeiras manifestações da
espiritualidade, anula esse esquema de cognoscibilidade. A equação pessoal
se reduz ao mínimo no conhecimento científico — mas se sabe da
impossibilidade de reduzi-la a zero. Em todo caso temos a objetividade
crescente como aproximação asintótica do Real. Assim a sucessão das
interpretações científicas representam, na história do pensamento, esse
aperfeiçoamento “objetivante” crescente.

As teorias, perfectíveis sempre, porém nunca perfeitas, serão susceptíveis de


valorização ética? Decerto: são fatores positivos no progresso humano,
contribuíram para o desenvolvimento ético, estético, político, social do
homem. Graças a Ciência, aumenta o conforto que cerca a vida humana. Se o
conflito dos interesses, a ambição, a maldade, o ódio, utilizam o progresso
científico para finalidades anti-humanas (guerras, destruição, massacres)
será lícito concluir daí a intrínseca malignidade da Ciência ou da Técnica?
Onde residirão a malignidade e agrestia — no instrumento ou na mente que
usa o instrumento? O instrumento tanto pode ser um objeto físico (o motor
eletrônico) quanto um objeto intelectual como o cálculo tensorial. Qual o fim
em que se empregam? Qual a intenção que o orienta? Essa intencionalidade
está no objeto, nas suas conotações, que revelam os seus fins? Mas há fins
alternativos. A química da farmacopeia e a química dos gases tóxicos.
Fabricar explosivos termonucleares não é a mesma coisa que fabricar
antibióticos.

Como ensinou Hegel, o “conceito” da coisa não está só no espírito, que não
é algo passivo, a refletir os processos externos, mas algo extremamente
ativo, captador, que mergulha na intimidade do Real, que “descasca” esse
Real da forma fenomenal porque se dialetiza a essência, triturando a cisão
dualista concebida pelo senso vulgar — e o apreende no seu “oposto” num
mundo inteiramente outro de relações heraclitianas. Inconcebível ao
formalismo lógico, é irredutível ao pensar comum.
Revertendo ao ponto. Como qualificar de malignas e agrestes a Ciência e a
Técnica? Anotemos um dos caminhos — a sua utilização anti-humana. Desde
que a utilização favorece os desígnios humanos que as geraram, é útil, o
oposto será o nocivo. Mas se as desprendemos daquele processo humano,
encarando-as em-si, então nem sequer tomam qualquer conotação: elas são
axiologicamente neutras. Do ponto de vista ético, não teriam “sentido”. Que
é eticamente uma pedra? Nada: não tem determinação ética. Empregada para
esmagar o ser humano — um mal. Sabemos que estamos argumentando com
duas categorias distintas — a economia (útil) e a moral (bem) — mas nos
colocamos provisoriamente do ângulo pragmático. “Em-si”, é uma “coisa”
natural cujas conotações são propriedades físicas. Mas uma faca já não é
apenas produto natural: resultou de uma ação humana finalística — e o fim
dá-lhe sentido axiológico. Todos os produtos culturais mergulham nessa
ambiência vital que lhes dá valor, como se mergulhassem numa radiância de
“intelegibilidade”. Mas também nas coisas naturais o homem “descobre” o
valor, seguindo-se a valorização. A indagação de “para que serve?” é o
limiar da penetração do espírito, — o revelar-se do conceito, que vai
crescendo axiologicamente da natureza inanimada ao orgânico, daí ao
mental. Sua plenitude está na zona do consciente onde o espírito encontra-se
a si próprio.

Então, a medida em que essa “penetração” avança o itinerário torna-se mais


“iluminado”, porque estamos caminhando já na história do essencialmente
humano, que se amplia.

Escrevíamos há coisa de um ano, prefaciando a tradução do livro de


Bertaux; “Ao demonstrar a malignidade do homem, beligerante e devastador
de paisagens, esquece um pouco que esse animal predatório é impulsionado
por estruturas sociais, que o levam ao arrasamento das floras e das faunas.
Não se trata, pois, de instinto simplesmente destrutivo e maligno, que iria, na
opinião do autor, tornar a planeta inabitável”. O que pretendíamos acentuar,
restringindo o biologismo da explicação, era a convergência de fatores
humanos e naturais na composição de um determinismo que não se poderia
reduzir, unifilarmente a uma única linha de causação. E que a “consciência”,
isto é, a liberdade de opção humana, abre espaço a forma de
desenvolvimento onde as conotações do bom e do mau, categorias utilitárias,
assumem formas do bem e do mal, categorias éticas.
Ora, uma técnica é resultado da práxis humana à vista de fins humanos. Não
se compreende que se origine normalmente de fim anti-humano. Os fornos
crematórios não foram descobertos para as metas nazistas de comburir
judeus nos campos de concentração de Buchenwald e Auschwitz. Toda
corrupção teleológica, que a política lhes dá, não qualifica a técnica, mas
seu emprego. Essencialmente, a técnica é boa, porque nasce das exigências
da evolução humana, para assegurar e expandir o humano. Nem sequer
admitimos aqui a neutralidade axiológica de que o instrumento seja apenas
uma coisa insignificativa — porque, conforme já argumentamos, ele reflete,
clara ou obscuramente, a consciência dos fins humanos, que o explica; até o
que a natureza produz, ao ser utilizada humanamente, revela seu valor ético
como um bem. Dir-se-á: a natureza também produz coisas anti-humanas, que,
portanto, seriam intrinsecamente mal. Decerto — até o instante em que o
desenvolvimento científico inverte a conotação, utilizando as propriedades
naturais hostis no sentido do bem-estar humano.

Mas tratando-se do que é criação humana, a essência não poderá ser maligna
e agreste.

Só uma visão imbuída de resíduos mitológicos pode querer encontrar, no


desenvolvimento técnico, portanto na atividade científica, uma essência
misteriosamente eivada de malignidade, como fruto da árvore do mal. E em
vez de ver no conhecimento a fonte que marcou a ascensão humana, recuar
ao velho mito de uma condenação miserável, que lançou o homem nos azares
de uma felicidade para sempre perdida.

Em todo aumento e revolução dos processos técnicos há, simultaneamente,


uma revisão dos processos de pensamento — porque, como já insinuamos, a
tecnologia é “pensamento objetivado”, para empregar a expressão hegeliana,
e ganha vitalmente sentido no “sistema de pensamento” socialmente
existente. Todo passo mais acelerado dá História, nas horas críticas de
transformação, implica nessa mutação espiritual que precede às mutações
materiais — e ambas entranham no mesmo devenir. A hereditariedade dos
caracteres da espécie não é apenas o que se transmite no repertório
cromossômico — mas também no repertório ativo da hereditariedade social,
onde o contato humano desempenha função imensa na maturificação dos
sinais especificamente humanos. Não nos referimos ao que é evidente no
processo de transmissão cultural — os estilos de fazer e de agir, que
resultam do aprendizado, porém às virtualidades psíquicas, que se
manifestariam mediante a interação convivente — o “instinctus loqaens” e
outras características intimamente humana.

A hereditariedade dos caracteres, que a teoria cromossômica encarava como


expressão dos genes, amadurecem, isto é, aparecem como ta s no seio da
práxis, que já se suspeita de atingir também a morfogenia: a estrutura mental
do homem, fundamento do que se abrange, numa denominação um tanto vaga,
de “natureza humana”. Esta “natureza” está em franca mutação, no opinar de
alguns biologistas, por efeito das máquinas que estão desempenhando
funções outroras específicas da mente humana. Nada seria, pois, mais
historicamente variável do que a “natureza” humana, que só se nos afiguraria
imutável dentro do limitado período histórico em que se desenvolveu a
observação científica — um período que, no máximo, abrange algumas
dezenas de gerações.

Para confirmar, reconheço a validade da tese de Pierre Bertaux: há


transferência de “memória” para a máquina. A cibernética, dispensando no
homem o esforço de conservar na memória as informações, começa a
imprimir outra fisionomia à inteligência humana, desenvolvendo-lhe mais as
aptidões combinatórias em detrimento das mnemônicas. O escolar médio
atual não é capaz de memorizar facilmente uma centena de versos latinos de
Vergílio, façanha banal nos colégios de outrora, onde se educava na
atmosfera do classicismo. Era comum professores de português recitarem
quase todo os Lusíadas — e ainda outras façanhas eruditas. Dir-se-á que o
ensino visava principalmente a exercitar a memorização, fundamentado que
era no estudo de história e das línguas greco-romanas, que eram o eixo do
humanismo clássico. De fato, tudo isso se harmonizava no mesmo contexto,
que foi lenta e implacavelmente desarticulado pelas ciências naturais —
fenômeno já demasiadamente analisado, comentado, discutido, pedagogizado
em todos os tons.

Essa destruição daquele tipo de humanismo não arruinou o humanismo, que


está tomando outras formas compatíveis com o grande progresso científico,
que teve seu alento remoto no darwinismo — e tem agora seu incentivo
próximo na física, relativista e eletrônica. A transferência à máquina de
operações mentais abriu horizonte inesperado: passou-se a distinguir entre
pensamento orgânico e pensamento maquinai. Para não alongar demais,
remeto o leitor aos livros de alguns filósofos que rondam o tema com
arregalada gula especulativa. Esse “pensamento maquinai” responde às
perguntas adequadamente formuladas, resolvendo questões de uma estupenda
complexidade. Tais máquinas prolongam a mente humana como os
instrumentos prolongaram os membros na ação exterior — o poder da mão,
dos braços, dos músculos, da capacidade de agir em suma. E foi na própria
natureza que o espírito procurou a imagem dos modelos: os desenhos de
Leonardo da Vinci sôbre o voo humano mostram os “aparelhos” a
semelhança do pássaro, de morcegos, com asas parecidas.

Nota Bertaux que os automóveis tinham o combustível na frente — porque na


frente estavam outrora os cavalos que puxavam o veículo. Ao evoluir, a
idéia se aprofunda e perde a forma inspirada nas fontes sensoriais oriundas
do contato com a Natureza. A gênese da tecnologia é a lição mais importante
para o filósofo — porque se confunde com a gênese do próprio pensamento
no esforço histórico de controlar as coisas naturais; e no cadinho da práxis é
que se definiram as qualidades especificamente humanas.

Ora como inferir de tal argumentação que a Ciência e a Técnica sejam


malignos e agrestes? Defluindo das fontes profundas do “humano”,
aflorando, ganham expressividade, do seio obscuro da natureza até
conquistar, no plano superior das formas conscientes, as novas dimensões de
“racionalidade”, esboçando-se nos primeiros ensaios do conhecimento e da
técnica. Tudo é sabiamente humano e na sua expansão mais se revela o
sentido vital. Como admitir o que a pergunta já pressupõe, sub-
repticiamente, e que levaria ao dilema traiçoeiro subjacente, — tecnicismo
ou humanismo?

Ao desquitar-se da práxis, tanto a técnica quanto a ciência perdem seu


conteúdo, que vem precisamente de sua inserção no processo histórico.
Nessa cisão está o maior falseamento da perspectiva, organizando essas
elites agressivas e aflitas, incapazes de compreensão das horas que vivem.
Daí manifestarem um vago saudosismo de tempos pacatos e patriarcais — e
a idéia de que o progresso multiplicou a desgraça e a infelicidade humana e
tem suas causas na expansão técnica e científica.
Tais idéias passaram. Caíram em exercício findo. E se porventura ressurgem
num programa de simpósio — é apenas para que novas contestações se lhes
oponham. Com o renovar do debate, novos aspectos serão apreciados,
suscitando novos caminhos intelectuais.

Entre nós, confirma-se esta afirmativa com o rápido exame da literatura da


Reforma universitária que se buscar implantar no país. Não precisaria senão
citar o itinerário das idéias em que a renovação do ensino se inspirou. A
concepção da indissolubilidade conjugal entre ensino e pesquisa deriva de
uma intuição que radica na unidade dialética da teoria e da prática e que
“tem por objetivo elevar a Universidade ao plano da racionalidade crítica e
criadora, tornando-a estância de reflexão sobre as condições e o sentido do
desenvolvimento”. São lúcidas palavras do relatório do Grupo de Trabalho,
sob a orientação do ilustre Ministro Tarso Dutra. Denunciam que, antes de se
positivar na execução concreta, já o sismógrafo espiritual apreendera as
tendências latentes, que se deviam exprimir no plano da discussão teórica.
Encontramos o mesmo pensamento sobre este papel da inteligência que
antecipa nessa reflexão: ‘‘Aliás, a consciência que nela se elabora, longe de
ser mera consciência reflexa, termina por atuar dialeticamente sobre a
Sociedade da qual faz parte”. Não sendo espelho passivo das mudanças
sociais, cabe a Universidade a função previsora, efetivadora e ordenadora
das potencialidades e nisso está sua mais importante ação revisora e crítica
no conjunto das instituições. Com esta ação crítica atalha e frustra, porque
cientificamente antecipa, a política subversiva dos que advogam mudanças
catastróficas, levados por sectarismos vigilantes e ignorantes.

Ainda nesse plano de ação social há técnica e ciência que visam às


transformações na natureza da sociedade — e que nada tem de agrestes ou
malignas, mas exatamente miram às mudanças racionais e conscientes. Estas
só se realizarão mediantes os métodos superiores do conhecimento, onde se
conjugam ciência e técnica, altamente harmoniosos e benignos na expansão
do bem estar humano.

* Tese formulada no Simpósio da 2.a Bienal de Ciências e Tecnologia, em


S. Paulo, 1969.
(1) D.M. — Poesias heréticas e heresias poéticas, Rio, 1970.
XIII. TOMADA DE POSIÇÃO

“É natural que esta culminante distinção na vida de um professor, haurindo


seu alento mais salutar na confiança de seus colegas, seja, simultaneamente,
um forte e complexo motivo de emoção, de estímulo, de reflexão e de
responsabilidade. Aqui chegamos com a experiência de anos laboriosos,
retemperados na frágua de algumas vicissitudes que não secaram a fonte
invisível desse idealismo essencial ao exercício docente. Idealismo que,
perdendo os arroubos, aproximou-se daquele “saber de experiência feito”,
que permite antepor a atitude racional de crítica e de seus métodos às
precipitações da generosidade e de seus imprevistos.

Já se afirmou que a solidariedade das gerações se funda no compromisso


dinâmico entre as tendências renovadoras dos jovens e as resistências
conservadoras da maturidade. Bem sei que essa simplória interpretação,
esquematizando a agitação contemporânea num contraste etário corre mundo
e ganhou foros de equacionamento científico na boca dos apedeutas ávidos
de soluções fáceis, que deformam realidades difíceis. As simplificações
fascinam rapidamente a preguiça mental, a insuficiência de estudos e a
importância dos doutrinadores, que veem na honestidade do esforço
reflexivo a cumplicidade com a rotina. É exatamente esse o perigo das
simplificações: penetram nas mentes, criando-lhes a ilusão do saber e
encorajando-as a cometimentos audaciosos, na miragem de redenção a curto
prazo. Tática que seduz as massas angustiadas nas crises modernas.

Desde cedo os estudos sociais convencem de que só o método científico


abre o único caminho racional para o desenvolvimento humano, enunciado
que é quase acacianice. Mas às vezes é preciso ter coragem de fazer
reflexões no teor do caluniado conselheiro Acácio, principalmente quando,
dessas reflexões, derivam consequências desacacianizadoras. Explicarme-
ei. Sob certa algaravia científica, deslizam sectarismos que, exacerbando
uma atmosfera de inquietação, tendem a suprimir dos espíritos a atitude de
livre disponibilidade crítica, necessária ao debate de idéias. Permitam-me
confirmar o que digo agora, repetindo palavras passadas, ditas na ocasião
em que recebia a láurea de Professor Emérito:

“A maré montante de filosofias instintivistas, de sexualidade, de


afrouxamento sem discrime de sanções e inibições, não exprime libertação
humana, mas regressão zoológica. Porque liberdade é expansão do humano e
tem conteúdo ético. A visão simplificante da ignorância não capta diferenças
essenciais. A voz que pede liberdade de idéias não encoraja dinamitação de
edifícios públicos. Quem reivindica a liberdade de ser livre, começa por
compreender o crime dos sectarismos liberticidas. Há quanto tempo Jhering
escreveu: na violação do direito alheio está a ameaça de tua própria
personalidade! Foi Clovis Bevilaqua quem prefaciou aquelas páginas de Der
Kampf uns Rechts, que entusiasmou as gerações acadêmicas de outrora — e
ainda contêm máximas para o futuro, se no futuro a máquina do Estado, o
Leviatã de mil olhos e mil tentáculos, munidos de antenas que escutarão o
pensamento e de drogas que levarão o cérebro, não converter o eives dos
velhos tempos no títere movido a ‘slogans’ pelas lideranças onividentes de
um partido sagrado e implacável.”

Para não deixar nos espíritos a impressão desse quadro sufocante,


descortinava então a clareira do porvir, em nossa missão docente: “Prefiro
supor que tudo isso seja alarma falso. Vale, entretanto, como toque de
despertar das forças racionais. Creio, e vós também o credes, que essas
forças residem na educação. Desculpem o estribilho: educação não é o
nivelamento ou a padronização. Quando se condenou o autodidatismo dos
antigos mestres, caiu-se no extremo oposto, valorizando-se demasiado os
órgãos plasmadores de convicções políticas, científicas e filosóficas.
Valorização que amolgava o indivíduo às injunções dos regimes, para recitar
estereótipos e pensar dentro de estilos consagrados. Pensar? Não, repetir,
esquecendo-se que o ponto essencial da educação é o desenvolvimento das
qualidades e aptidões pessoais, do repertório de tendências originais. Mas
os glorificadores das massa não batiam palmas a essa pedagogia que
exalçava dotes originais e criadores.”

A Universidade é o órgão seletivo de preparação de elites. Elites “abertas”,


capazes de dominar os métodos de ação científica, que são essencialmente
métodos de reflexão e de crítica. Não desconheço que, ao falar de “elites”,
posso incorrer na ira ou prevenção dos que insistem na apologética das
massas, exaltando-as como o supremo motor da história. Essa pregação
perde todo seu pathos demagógico quando a análise sociológica desentranha
os mecanismos que acionam os movimentos históricos. Não é esta a
oportunidade para aproximar-me do tema; apenas devo declarar que, ante a
idolatria bárbara, do número, conduzindo às estruturas irracionais das
autocracias, creio ver o espírito universitário inclinar-se para a
racionalidade qualitativa da consciência progressivamente iluminada pela
expansão crescente do saber como condição vital das democracias. E vem a
calhar esta profunda reflexão de Pontes de Miranda — a educação superior
frustra a possibilidade dos Messias, corta o caminho dos demagogos, abate
as bandeiras dos meneurs, — porque substitui o voluntarismo carismático
dos profetas pela verificação objetiva das verdades sociais.

É, entretanto, um pensamento que os energúmenos facilmente caricaturam,


apresentando a imagem de uma Universidade inacessível às camadas sociais
mais desfavorecidas. Aliás, é um estereótipo muito útil a certo tipo de
propaganda, que trunca os problemas, despindo-o de suas contradições
internas, para obter êxitos de ebulição rápida. São duas imagens falsas: a de
uma Universidade esotérica, absolutamente estranha ao meio; e a de outra
Universidade totalmente aberta às massas como tais. Entre essas duas
imagens extrapoladas, a realidade oscila, avizinhando-se ora de um, ora de
outro polo. Cumpre-nos aproximá-la do polo democrático, e é este o sentido
da Reforma. Mas entendamo-nos: accessível a todos os jovens capazes. E o
profundo, o árduo problema está no impedir que as desigualdades
econômicas perturbem a seleção de valores indispensáveis ao
desenvolvimento social. Predicando o recrutamento ativo dos capazes,
evidentemente não se olvidará o papel das desigualdades naturais, isto é, do
que o indivíduo representa como ser dotado de aptidões originárias, que a
educação desenvolve, mas não cria. A natureza dá privilégios. Deu
privilégios a Newton, a Beethoven, a Hegel, a Goethe, a Einstein, a
milhares, pela História a fora. E não há rasoira igualizante que casse tais
privilégios! Ao contrário, é preciso descobri-los, porque são preciosos. Só
a burrice é igualitária. O que se deseja é que não se criem privilégios
sociais e econômicos, eliminando os óbices que impedem o reconhecimento
e a validez dos privilégios que a Natureza conferiu por caminhos que nos
são desconhecidos. O número de medíocres, de ineptos, de inferiores, que
constitui o cimento social, sempre foi grande em toda a polis — e o papel
por excelência da Universidade é da seleção democrática dos valores dentro
das contingências do nosso processo histórico. Porque, de tal seleção para
formação dos strata pensantes e dirigentes, é que dependem as autênticas
elite científicas.

Nesse processo, há um surgir incessante de interrogações novas, que


renascem de interrogações passadas, cujas soluções se frustraram. Toda
reforma se anuncia por uma mudança de mentalidade, que resulta de uma
conscientização progressiva das insuficiências das estruturas existentes. De
início, há uma consciência parcelar, que tetea em alvitres segmentares e
tímidos, até alcançar a plena integração, quando se adquire a visão total dos
lineamentos institucionais da mudança. É a fase que se abre a todos nós, com
a Reforma legislada, que não é tangível e deverá sofrer as corrigendas que a
realidade impuser dentro de suas linhas fundamentais. Conforme bem viu o
Grupo que a elaborou, nessa hora da civilização industrial há duas funções
cardiais na Universidade. Há a função democrática de transmitir a cultura ao
maior número, elevando o nível das populações e dos mercados de trabalho
qualificado; e há a função oligocrática de abrir novos horizontes científicos
e renovar a cultura. As duas funções não são antinômicas, como poderia
parecer a observação superficial, mas revelam suas exigências profundas do
desenvolvimento humano. Exigências que se formulam no âmbito da
Reforma, na redução dos períodos dos cursos superiores ditadas pelas
especializações das sociedades industriais, na vinculação com mercados de
trabalho qualificado, flexibilidade de currículos, com a substituição das
séries pelo regime de créditos, a eletividade das disciplinas, facultativas e
obrigatórias, área amplificada dos cursos de pós-graduação, onde residem
hoje os fatores de aceleração tecnológica em conexão com as necessidades
da expansão industrial. É para que o sistema funcione bem, urge a conexão
entre o ensino técnico-profissional e o ensino de 2 grau, conexão
socialmente exigida, que permitirá, no nível da educação superior, a
vigência de mais rigorosos critérios seletivos, em virtude de seus mais altos
custos. Ora, tudo isso se organiza em sintonia com uma visão prospectiva em
novos níveis, em termos de investimento, de pesquisa, de adequação das
estruturas universitárias ao novo estágio das forças econômicas. E há o
ponto vital nestas realizações: a liberação de recursos orçamentários dentro
do planejamento aprovado, sem que as medidas de contenção de verbas lhe
coarctem as possibilidades de aplicação.

O que me cumpre declarar nesta hora é minha decisão de enfrentar as tarefas


que a Universidade reclama e os recursos facultam. Não me sobram opções
nesta fase do nosso itinerário. Diz-se que querer é poder. Não. O querer se
move condicionado pelas limitações das circunstâncias, que medem o
alcance do poder. Ademais, não se trata de um querer individual, mas de um
querer integrado, num somatório de volições, expressão das forças
espirituais do cosmo universitário.”

Nessa altura, o Prof. Djacir Menezes disse que aí interrompera a redação do


discurso, cortado pelo telefone que lhe comunicava a súbita enfermidade do
Exmo. Sr. Presidente da República Marechal Costa e Silva A cerimônia de
posse se revestiria, como estava ocorrendo, da maior singeleza. Não poderia
concluir, entretanto, esse seu improviso final, sem algumas referências, que,
indeclinavelmente, se lhe impunham. Grandes Reitores o haviam antecedido;
com eles privara intimamente. Ninguém desconhecia ali a figura excepcional
de Pedro Calmon, cuja dedicação incansável à Universidade marcaria para
sempre a memória de todos os colegas. Comprazia-se — declarou — em
repetir naquele momento o que dele dissera ao ingressar no Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro: não lhe conhecia um ato de mesquinhez
ou um gesto de perseguição ou de ódio, na sua longa e luminosa vida de
professor. À seguir, mencionou o Reitor Raimundo Moniz de Aragão, unidos
que foram nas mesmas pelejas universitárias, lado a lado nas mesmas
causas, em agitados dias idos e vividos. Fibra de combatente, retilineamente
digno nas atitudes, prestava-lhe naquele ensejo o mais vivo preito de estima
e apreço. Das mãos do Vice-Reitor em exercício, o jovem Clementino Fraga
Filho, que honrava o nome ilustre de seu grande Pai, recebia naquele instante
as altas responsabilidades do cargo. Eram testemunhas de sua competência,
honorabilidade, descortino e valor — todos os conselheiros e professores
presentes e ausentes.
Nas suas palavras finais, rendeu homenagem ao Ministro Tarso Dutra, que
vinculara seu nome ilustre ao grande momento da Reforma universitária em
marcha, orientando-a nos rumos gerais das metas inspiradas por sua límpida
inteligência. E encerrou fazendo votos pelo rápido restabelecimento do
Senhor Marechal Presidente da República, votos que estavam no coração de
todos os brasileiros.
XIV. ESTRUTURAS SOCIAIS
CONTEMPORÂNEAS

Todas as formas de comportamento vinculadas a centros de interesse social


tendem a institucionalizar-se. Isto é, tendem a tornar-se uma agência regida
por normas coordenativas do modo de proceder das pessoas. Surgem pois,
aos olhos dos estudiosos das morfologias sociais, como estruturas. E desde
logo se percebe que tais estruturas são historicamente condicionadas, porque
refletem o grau de desenvolvimento da sociedade, que, simultaneamente,
adquire consciência crescente de seus objetivos. A ação conjugada dos seres
que partilham a experiência comum, através do processo educativo, cria
estilos de vida que caracterizam cada comunidade na organicidade de uma
mesma cultura, no sentido antropológico do termo.

Não vamos examinar agora problemas de sociologia genética, porque nossos


temas são retirados da história contemporânea. Indicamos apenas, a largo
traço, algumas premissas básicas para a inteligência de nossa argumentação.

Não precisamos demorar no exame das instâncias rudimentares do processo


de interação, que vem de fases pré-humanas — tropismos, reflexos, instintos
— compreendidos no repertório do equipamento biológico. Os antropólogos
já nos explicaram que a sociabilidade animal preparou o convívio humano
desde o primata do Eoceno, há vinte milhões de anos atrás. Mesmo em nível
zoológico, a interação é reciprocidade de influências que plasmam o
comportamento. À plasticidade destas condutas, ao ascender ao nível
humano, atinge as formas do comportamento simbólico e do pensamento
abstrato. Esse hiato entre o humano e o animal tem profundo sentido não só
científico, mas filosófico: porque assinala o surgir do especificamente
humano, a configuração da racionalidade, irredutível às fases propriamente
zoológicas.
Poderíamos assinalar as seguintes notas para definição do “humano” nesse
processo evolucionário:

a) postura (homo erectus)

b) digitabilidade (cheirotechnès)

c) vocalismo (homo loquens)

d) neencéfalo (lumen rationale)

São aspectos do mesmo processo de desenvolvimento, em cujo seio se


manifestam institucionalmente o que Bronislav Malinowski chamou de
“imperativos culturais”. Estes decorrem de necessidade biológicas
(procriação, alimentação, abrigo, vestuário) cujo exercício se concentra na
família como grupo básico de proteção. Outras instituições emergem
gradualmente — ritualismos mágico-religiosos, arte, técnicas de produção,
etc. — que, pelo processo iterativo, se consolidam em instituições com
carácter mais ou menos normativo.

Parcelando o esquema exposto, aqui considerarei apenas as duas estruturas


fundamentais: a família como estrutura social de procriação, o poder, como
estrutura social de dominação.

Ao dizer “família”, indico uma agência de propagação da espécie que


remonta a pré-história. Nas fases remotas, o tipo familial se confunde com os
limites da comunidade primitiva. Já lestes obras clássicas neste assunto, que
nos explicam os sistemas complicados de parentescos, onde
matrilinearidade leva a supor o matriarcado como fase preliminar da
estrutura familial, que se nos revela de surpreendente complexidade no seio
das sociedades primitivas. Mas uma lição é nítida: há uma disciplina interna,
que delimita o comportamento sexual e define a forma social da família,
através de suas normas inibitórias, recuando, para eras bem longínquas e
quase inteiramente animais, a fase discutível da chamada “promiscuidade”.

Também a personalidade não se definiu nitidamente, destacando seu


contorno da amorfia clânica, o que só aconteceu em fase adiantada. Seria
difícil dar um esboço das complexas linhas da sua evolução. Contentemo-
nos em concluir que a família se transformou ao compasso do ritmo das
estruturas mais gerais da sociedade, como órgão responsável pela função
fundamental de assegurar a descendência. A transmissão dos caracteres
biológicos e a continuidade das tradições sociais são os dois grandes
processos. É, porém, exatamente na transmissão que se faz pelo contato entre
os seres humanos, isto é, pelo processo educativo, que se inspiram os
propósitos de melhoramento e de progresso. Por mais que as funções de
transmissão se hajam transferido para órgãos estranhos, a família continua
ainda, nesta fase de civilização, a forja plasmadora da personalidade. Dizem
Ogbum e Nimkoff — “o tipo de cidadão relaciona-se intimamente com o tipo
de mãe, de pai e do lar que o indivíduo possui. ”

Eis uma das mais profundas intuições de Ingenieros: a denúncia de que se


observa, na civilização contemporânea, dentro dos limites de uma moral
farisaica, a transferência do amor para estruturas Clandestinas fora da
família legalmente constituída. Não vou resumir aqui as páginas lapidares do
seu Tratado del Amor, obra póstuma, que me parece superior às publicadas
em vida. Quem tiver sua curiosidade aguçada, que a procure e leia.
Aproveito-lhe aqui as conclusões sobre a decadência do órgão social onde
pulsa o instinto doméstico. Corrompido pelo interesse econômico, é
dominado e dirigido pelo sentimento de propriedade masculina. Seu declínio
está na sua redução à faina procriativa e na “fuga” do Amor, que vai se
realizar em aventuras, onde nem sempre se realiza.

Westermarck, o campeão etnológico da monogamia: buscou encontrar o par


andrógino, sob forma instintiva, nas sociedades arcaicas, a fim de nos
convencer da eternidade da instituição. Preferimos admitir a monogamia, não
como ponto de partida, mas como meta de chegada da civilização. As
afirmações de Westermarck e dos missionários jesuítas, que incursionaram
pela etnologia, foram refutadas pelos antropólogos mais interessados na
observação objetiva do que em alicerçar teses doutrinárias. Se nalguns
grupos primitivos delineou-se a tendência à monogamia, não era, como
queriam aqueles escritores, uma reversão a formas iniciais de família, mas
decorrência de condições de vida, conforme anota Calverton. Resultava
antes da conspiração de fatores exógenos do que do “instinto”. A família
emerge, filogeneticamente, de um tipo de agrupamento que começa a se
configurar no contexto clânico.
De qualquer forma, perguntaria se não é essa pseudo-transformação da
família, que perdeu sua base no instinto, (que é o Gênio da Espécie,
sublimado no desenvolvimento psíquico do homem), a causa invisível e
profunda do grande desequilíbrio, que é sintônico ao desequilíbrio
econômico, os dois somando suas agravantes na catástrofe do mundo
moderno? Fazer a pergunta já denota que o espírito pende em certa direção.
Não me eximo da responsabilidade dessa suspeita: a de juntar, como
fundamental, ao fator econômico, a componente subjetiva, que seria de
ordem ética, no alto sentido da palavra “ethos”, que os latinos expressaram
no mos, moris, perdendo um pouco a profundidade semântica do conceito
originário.

Argumentei melhor invocando o desastre da família contemporânea, sobre o


qual, levianamente, sentenciam doutores de tevês com uma pasmosa
volubilidade de erudição e de frases.

Firmou-se o juízo de que os filhos, em certas camadas favorecidas da


fortuna, são os tristes desamparados. O dinheiro reforçou o egoísmo dos
pais, que transferiram, não só a totalidade das funções educativas para os
órgãos especializados, como também as funções afetivas. Esse segundo
passo é que gerou o desastre moral. Será pieguismo de quem nasceu noutro
clima estar a dizer aqui, nesta altura da vida, que só o Amor, sob as suas
formas variadas — conjugal, fraternal, filial — concorre para a formação
ética superior da personalidade? Não seria erro de perspectiva, resultante de
uma educação que está sendo ultrapassada? E eu, fechado na concha
espiritual do lar antigo, não possa ver além desse horizonte moral — e
distinguir as novas formas condizentes com as energias sociais, que
procuram caminho? Adianto-lhes que não me parece provável essa hipótese.
Não creio que as energias biológicas se conjuguem na elaboração dessas
formas abortícias de crises, que representam embriões sociais de vida
futura.

Nessa degradação do sentimento amoroso, que reduz toda afetividade às


exigências no sexo, recua-se ao nível zoológico. Esse recuo, na escala
evolutiva do humano, não pode ser um passo à frente no aperfeiçoamento da
vida afetiva. Querendo libertar o Amor do preconceito ignorante, que
recalcava as prerrogativas indeclináveis do sexo, erigiu-se o sexo em lei
suprema do Amor. E toda a delicada gama do sentimento amoroso, que se
sutilizava em conotações superiores nas transfigurações do Instinto
desabrochando em floração racional, tudo desapareceu no fundamento
obscuro dos apetites bestiais.

Nesse recuo miserável da afetividade superior para o grau primário do


instintivismo está um dos espetáculos mais tristes da atualidade.

Porque se divulga, em correspondência com esse “progressismo”, uma


ideologia sintonizada com tais propósitos. Racionaliza-se a situação
doméstica e formulam-se novos códigos morais em função das
circunstâncias. O comportamento dos pais está sancionado aos olhos dos
filhos, que já vêm no “Velho” o sujeito que lhes deve pagar o crescimento, a
educação, a gasolina, a boate, as amantes em flor.

Não se sufoca o sentimento íntimo. O jovem, comprimido pelos erros em


torno, não enxergando caminhos, não ouvindo nada no lar nem no ambiente
social, resvala para as diversas normas de protesto. Desde a maconha ao
boletim subversivo — tudo é protesto. Se abre o rádio — espalha-se a
burrice e a sordidez de programas que lhes açulam os instintos, que facilitam
lucros. Faturar tomou-se expressão corrente. Todos os estímulos externos à
Universidade, incorporados à ação dos órgãos de comunicação, conspiram
na mediocrisação dos jovens. Tais órgãos preparam o público para consumir
whisky, fumo, cosméticos, música zoológica, gíria imoral, novelas de
estupidez exemplar. Encaminham os moços a profissionalizações nascidas
das aberrações do gosto, que algumas empresas de publicidades promovem
denodadamente. Essa familiarização com a arte sórdida fabricada
comercialmente entra lares a dentro e pega a criança em pleno viço.

Pois toda essa mixórdia tem seus teoristas — adultos que vêm à ribalta da
imundície teorizando sobre a repressão antiga, falando na resistência dos
“quadrados” ao espírito novo e à nova educação, que abre respiradouros aos
adolescentes oprimidos, ávidos de viver a sua própria vida. Outro dia, uma
dessas personagens, coerentes com as premissas, quis provar na tevê suas
teses de liberdade: começou a despir-se entusiasticamente. A estação,
porém, num gesto de opressão, cassou o programa do ar alguns minutos,
enquanto puxavam, alarmados, o herói para os bastidores. Talvez ainda seja
cedo para a realização de suas teses, por isso o precursor não teve seu
direito de exibição respeitado. Ainda reina, na opinião dos “pra frente”,
muita hipocrisia na legislação. Mas o Dr. Alceu de Amoroso Lima confia em
Deus que eles vencerão — e implantarão a nova ética, varrendo o lixo
burguês.

Vejam, porém, como o tema é dialético — e ramifica-se. Eu e muitos outros


“quadrados” sustentamos contra esses redondos que, ao lado do processo de
transmissão cultural, que é função nitidamente pedagógica, há o processo de
desenvolvimento das qualidades originais, que exprimem o talento criador, a
ruptura com a rotina, a abertura de novas vias ao espírito. Defendemos a
idéia da Universidade seletiva, não a de massa. A Universidade que
promove a ascenção dos valores, não a que nivela a mediocridade agressiva.
Pois essa onda barulhenta de medíocres, que se encrespa contra a rotina, é
vista pelos seus teóricos como desbravadora do novo ideal! Esse enxurro,
que extravasa instintos — como libertador da razão oprimida! Um conluio
de obscurantismo pretendendo ser a aurora da redenção. É dramático — mas
está no curso histórico. Qual o papel dos educadores? revelar a verdade, que
se mistifica no jogo dos mercantilismos assanhados como piranhas pela
lucratividade desesperada. É preciso discernir o joio do trigo, e denunciar
os que logram a adolescência, usando a linguagem da renovação quando
manipulam a corrupção mais hipócrita do mundo.

Para essa manipulação se desfiguram muitas medidas. Cito uma delas, tirada
do ensaio de Adam Curle, incluído no livro The Neto University. — Ele nos
mostra como o Q.I. se tornou critério falho, visto a longo prazo. Explicou-
me. De modo geral, exaltando o heterodidatismo, o sistema educacional tem
prevenções inconfessadas contra o autodidata, porque lhe foge da alçada.
Recusa a rotina de seus padrões normativos. As aptidões originais
contrariam os hábitos pedagógicos dos mestres, já encruados em paradigmas
docentes. A história das descobertas é fecunda no exemplo de inovações
repelidas pela sabedoria oficial. Agora porém, me refiro a processo mais
sutil. Por que se preferem as crianças de alto Q.I. às que têm mais
imaginação criadora? Responde Curle: — porque os estudantes de alto Q.I.
aceitam os mores e padrões da escola, enquanto os imaginativos são
recalcitrantes e mais difíceis de domesticar. A consequência é que o
desajustado imaginativo, se não é maleável às pressões do meio educativo,
será um inconformista, um crítico, o que não é socialmente maléfico porque
o processo da evolução precisa desses fatores lúcidos de analistas. Mas nem
sempre a personalidade crítica se forma equilibradamente — e, do mesmo
teor, se geram os esquizoides do movimento destrutivo, cujo papel é apenas
esse negativismo antissocial, agressivo e paranoide, nocivos à coletividade.

Ao lado dos meios eletrônicos de comunicação, que é um poderoso fator de


transformação da mentalidade jovem, aproveito o ensejo para rápido exame
dos fenômenos que se envolvem na expressão “sociedade de massas”. Nessa
sociedade, que resistência têm essas estruturas sociais? Para responder,
permita-se-me pequena digressão.

Diz-se, às vezes, a título de explicação, que “vivemos numa sociedade de


massas” — e nem sempre se define o que se deve compreender por “massa”.
Houve tempo, segundo observa León Bramson, que a sociologia e a
psicologia social desacreditaram os conceitos de “massa” e “multidão”. O
autor mais divulgado foi Le Bon, que se preocupou em assinalar o
primitivismo e a afetividade inferior das multidões, regressivas e brutais nas
suas manifestações. Exemplos históricos não faltavam para ilustrar a tese.
Sighele e Tarde escreveram páginas clássicas.

Eram as massas e multidões da divulgação pré-eletrônica. O grande


excitador dos espíritos era a tribuna e o jornal. Com os órgãos eletrônicos
— a audiência não é mais a massa aglomerada em multidão na praça. É o
público invisível disseminado pelos lares — um público diferente, reflexivo
e tranquilo, mas também suscetível de envenenamento gradual pela
propaganda insidiosa. Assistimos o afrouxamento dos vínculos que
caracterizam as estruturas da família através da ação corrosiva dos órgãos
eletrônicos. Em verdade, eles também fazem episodicamente, a propaganda
defensiva quando há perigo para as instituições, abandonando a bússola da
lucratividade privada pelas inspirações do interesse coletivo. Os teóricos do
nazismo fizeram, a todo passo, apologia da “democracia de massas”, que
permite a implantação do Führerprinzip, princípio considerado de integração
política. F. Aloys Hermes declarou, num ensaio sobre a sociologia das
formas do Estado, intitulado Demokratie und Kapitalismus, escrito sob o
bafo doutrinário do hitlerismo, que “a democracia moderna é a democracia
de massas, de que o parlamentarismo é a forma aparente ou fenomenal
(Erscheinungsformen) A instituição parlamentar teria sido preparada, na sua
estrutura atual, pela desintegração de vínculos sociais promovida pela
capitalismo industrial em sua fase competitiva, estimulando a filosofia
individualista do liberalismo político. “O homem moderno não se sente
interiormente vinculado a seus conviventes (Mitmensch)” — acrescentando
adiante: “o individualismo e o nacionalismo culminam na instabilidade
(Làbilitaet) da sociedade capitalista.”

Nessa “sociedade de massa”, considera-se ataque à democracia e ao


parlamentarismo qualquer crítica à literatura que faz a apologia da massa. E
a massa é a deliquescência dos vínculos — a atomização do indivíduo pela
debilitação das estruturas. A família, que era a mais resistente, transforma-
se numa agregação temporária, fundada no apetite sexual que ignora o amor.
As demais estruturas não desenvolvem sentimentos profundos, viciadas no
interesse econômico ou político. Na massa, os indivíduos são atômicos e
isolados, não têm quaisquer nexos vitais, nem tradição, nem normas comuns.
Não há processo de interação, que dê organicidade; a meta, que os congrega,
é efêmera e sentimental. É a massa que respira nas grandes cidades.
Mergulhado na massa, o indivíduo sente a mais profunda solidão. Porque a
convivência não é o contato físico, mas resulta dos laços permanentes que
tecem a solidariedade humana. Estes foram dissolvidos, corroídos e
corrompidos. Essa base humana serve maravilhosamente ao totalitarismo.
Porque o totalitarismo, na estrutura monolítica do partido único vigilante,
absorvente, aniquilando personalidades e robustecendo lideranças
carismáticas, é o criador de massas obedientes.

Assim, do ponto de vista político, chego a uma conclusão que não hesito em
declarar: a defesa das estruturas familiares é o ponto de partida contra a
massificação que, por sua vez, é a premissa do totalitarismo. É um sorites
que tem validade histórica. Toda a análise, que vimos fazendo, não é no
intuito de alinhar considerações abstratas, mas de retirar do exame abstrato
os ensinamentos práticos de ordem política. Isto é, normas de conduta que se
possam incorporar na sistemática de um programa.

Deveria passar ao exame do poder, cuja estrutura é variável através das


idades. Contento-me em assinalar os traços gerais do fenômeno, que já
estudei noutras páginas. Uma observação preliminar e fundamental: o poder
é fenômeno que se constata em qualquer comunidade humana e mesmo pré-
humana, na forma de comando porque se manifesta nos símios superiores.
Fenômeno vinculado à matéria social, envolve simultaneamente, como
expressão das relações de convivência. Acentuamos o com para destacar a
notação social do viver relacionado, da experiência historicamente
partilhada pelos seres vinculados no processo associativo. G. Tarde
menciona até as “predisposições vitais para o poder social”, onde se
combinam tendências hereditárias e tradição nas morfologias históricas do
poder. A análise etnológica discerniu formas de proto-estado até nas
estruturas tribais, como escreve, por exemplo, Malinowsky: a aparição do
Estado — tribo é o sinal de perigo na história da humanidade, porque
assinala o nascimento do “militarismo”. Entretanto, o etnólogo americano
reconhece a seguir, que foi o Estado que integrou a unidade cultural,
expressão do monopólio da força organizadora e agência coordenadora das
demais instituições como pré-requisito da liberdade. A ilusão dos
antropólogos culturais é dilatarem as perspectivas das comunidades arcaicas
pela civilização a dentro — e não distinguirem as mudanças qualitativas que
se operam. A translação dessas conotações dá dimensão ilusória ao
problema.

Qualquer livro de sociologia política nos ensina, variando, apenas, o critério


classificativo, sobre as formas de organização do poder. Não digo as formas
de organização do Estado, porque desejo abranger morfologias que
antecedem os regimes estatais, incluindo as formas nacionais do proto-
Estado. Para assinalar-lhes a conotação essencial em matéria política: a da
força jurígena e normativa, que se impõe à obediência de todos. Assim, a
relação social caracteriza o “dado” político captado na relação “dirigente-
dirigido”, “governante-governado”; portanto, exercício de coerção pelo
monopólio da força. “O poder não é em suma, senão, o privilégio do fazer-
se obedecer” — resume Tarde. E há sempre ritualismo na sua transmissão,
assinalando a necessidade social da subordinação e do comando,
evidenciando aquela relação de dominação fundamental:

“A verdade é que, para maioria dos homens, doçura irresistível inerente à


obediência, à credulidade, à complacência amorável diante de um Senhor
admirado. No fundo, é o que dizia o meu compatriota La Boetie, em sua
Servitude Volontaire. Os defensores das cidades galo-romanas, depois da
queda do Império, hoje são os salvadores de nossas sociedades
democráticas e revolucionárias, isto é, objeto de idolatria entusiástica, de
genuflexões apaixonadas.”

Onde começam a aflorar as primeiras qualidades humanas? No seio da


afetividade doméstica, ao calor da proteção materna, imprimindo no
psiquismo aqueles dramas que a psicanálise revelou e que se projetam no
mundo místico e lendário. Ali residiria a origem da componente familiar
mais forte da autoridade — e, aceitando-se o ponto de vista, derivaria da
estrutura de procriação a mais forte causa da crise que afeta a estrutura de
dominação. Suponho ser uma das causas: porque seria excessivo perquirir
na família as raízes das tremendas contradições que caracterizam o processo
econômico moderno.

Transita-se das sociedades totémicas para as sociedades tribais: nestas, a


liderança se reforça. De modo geral, pode-se dizer, adotando a nomenclatura
de Morgan, que a linhagem do parentesco define a societas, enquanto as
relações de propriedade e o elemento territorial definem a civitas — O
primeiro, constituindo um sistema classificatório de parentesco, caracteriza
a comunidade clânica e tribal; o segundo constituindo um sistema descritivo,
a comunidade agropastoril e a sociedade de classes posteriormente
desenvolvidas. É de notar que o sistema classificatório permitiu o
crescimento orgânico tribal, as frátrias, estimulando a cooperação e
suprimindo a competição, como mostrou Radcliffe-Brown.

E a revolução agrícola — considera Leslie A. White — que transforma a


sociedade primitiva, baseada no parentesco, em sociedade de classe,
baseada na propriedade e na organização territorial. A civitas emerge na
estrutura competitiva, eliminando formas arcaicas de solidariedade clânica.
Foi o sistema de parentesco classificatório que assegurou a resistência da
sociedade primitiva.

É um longo percurso acompanhar a sistematização histórica desses órgãos


que realizam tal função até a organização do Estado constitucional moderno,
cujas crises se agravam no abrir de novos horizontes com as transformações
das estruturas sociais. A crise é um processo patológico: revela, nas suas
fases agudas, o jogo das forças íntimas do organismo coletivo. Aprofunda —
se a consciência das relações de classes, de grupos, dos diferentes strata
sociais permitindo ver os mecanismos que atendem às necessidades da vida
comunitária. Rasgam-se os véus ideológicos, que falseiam a compreensão do
funcionamento real das estruturas. É assim que as crises periódicas do
sistema econômico têm facilitado aos economistas a interpretação de sua
constituição e de seu dinamismo, descobrindo-se as leis que o regulam.
Através das crises melhor se desvenda a função das estruturas que exercitam
o poder e define-se o papel dos grupos liderantes ou de dominação. Como
tais agentes da comunidade obtêm a força de comando? Quais as formas por
que conquistam a obediência dos demais? Como se define a subordinação?
Por que processos se manifesta a anuência dos governados?

Nessas perguntas, que giram em torno do motivo político, concentra-se, in


nuce, toda a “sociologia do poder”. Desde as formas arcaicas de dominação,
decorrente de fontes guerreiras e místicas, às formas modernas, derivadas da
elaboração racional das normatividades jurídicas.

Para manter minhas indagações no terreno da sociologia, não entrarei no


debate das teorias do Estado e dos sistemas políticos.

Na classificação, que proponho, há duas estruturas, que são fundamentais, a


meu ver. No intuito de caracterizar-lhes o papel primordial, nomeio-as como
núcleo de procriação e como núcleo de dominação, isto é, sexo e comando,
correspondentes a dois instintos profundos na psicologia humana. A seguir,
alinhei estruturas, que conotei como diferenciações institucionais de órgãos
que assumem o exercício progressivo de funções definidas no curso de
evolução histórica. Porque toda evolução social se pode resumir em duas
linhas gerais de mudança: diferenciação de estruturas e especialização de
funções.

Decerto essas “funções indiferenciadas” se somam, embrionariamente, num


processo difuso. As funções educativas existem no estado pré-civilizado sem
órgãos especializados que as exerçam. O conhecimento é uma práxis vital:
ele se transmite na vida e pela vida comunitária. O crescimento da herança
cultural, que se organizará logicamente como ciência, arte, filosofia, exigiu a
responsabilidade de estruturas específicas, a saber, sua institucionalização.
O mesmo aconteceu com o processo religioso, com o processo econômico,
com o processo jurídico-político, configurando-se, na complexidade
crescente da sociedade civilizada, através das vicissitudes históricas que as
foram plasmando.

Vejamos apenas uma componente familiar — porque a família por sua vez,
reflete, num efeito de ricochete, as transformações de sociedade
contemporânea.

Ganhou foros de estereótipo a “insurreição generalizada dos espíritos”.


Ouve-se que está em crise o velho instinto de obedecer, estudado por Tarde.
Tem-se a impressão de que todo mundo quer libertar-se do dever de
obedecer — mas nunca as massas procuraram um bridão com tanta urgência.
A ferrugem da crítica comeu o metal dos velhos freios sociais; há uma ânsia
por lideranças violentas, que salvem e castiguem, enquanto se distribui a
maconha de outros messianismos. Num velho livro, Pierre Janet fala dos
aflitos que padecem a doença da dúvida. Diria melhor, do medo da
insegurança. Enfraquecidos os laços espirituais da antiga mitologia política,
moral e religiosa, desgravitado o “espírito”, a necessidade de segurança
exige ansiosamente novas mitologias.

Mas não pode esquecer algumas lições da experiência psicanalítica,


acrescentada às corrigendas modernas. O protótipo da aristocracia se inspira
na relação filio-paternal. A relação entre os fratrés configuraria a forma
arcaica da democracia, conforme afirmou Flugel. Daí o papel da família
como o órgão conservador de valores, não como renovador de valores. A
solidariedade doméstica prepararia, filogeneticamente, as tendências e
instintos de resistência à destruição dos mitos vitais da comunidade. A
explicação psicanalítica descobre a força motriz no instinto fundamental de
reprodução: é o compasso da libido que marca as transformações sociais.
Cada tipo de civilização seria expressão de um núcleo de complexos.
Prefiro enunciar ao inverso — e ver a origem dos complexos determinada
pelo estilo de relações humanas. Por conseguinte, os tipos de complexos
anímicos, os tipos de sonhos, a natureza do inconsciente resultariam das
estruturas sociais. Teriam uma sociogênese onde se somam as influências
variadas. Pelo fato de fluir de fontes biológicas profundas, a libido se
configura socialmente, permeabilizando o social, mas não o produz. Embora
tendo pontos de contatos com a teoria de R. Bastide, não aceito a hipótese de
que a tese conduza à dicotomia da sexualidade — uma sexualidade
libidinosa (individual) e uma sexualidade social (simbólica).

O clã, noção totémica, define-se pelo totem, noção religiosa.

A normatividade é simultaneamente ético-jurídica: é uma unidade política,


familiar e religiosa. As primeiras organizações sociais indiferenciadas têm
seu núcleo primigênio no tabu e nas prescrições. £ no seio dessa amorfia
clânica que começa a delinear-se o tecido do protopoder as relações de
matrilinearidade e de vinculação ao grupo (relação de sujeição). A
passagem da filiação uterina à filiação agnática denuncia-se pela dissolução
do clã e a formação das aldeias. O jus sanguinis cede passo ao jus soli, o
elemento territorial vence o Mutterrecht primitivo, quando desponta o direito
paternal e patrimonial.

Bom material de estudo encontra-se nas Instituições Políticas do Brasil, de


Oliveira Viana. Indico, particularmente esta obra, entre tantas outras de
autores nacionais, porque a seleção dos fatos e a observação sociológica se
ajustam aos objetivos da análise proposta nestas páginas. O sociólogo
patrício, que soube garimpar nossa experiência histórica com amorável
espírito de brasilidade, ressaltou a falta de vínculos da sociedade nacional,
que deu a estrutura colonial do país aquela fisionomia de centros
ganglionares perdidos na vastidão dos latifúndios.

Onde, nesse processo rural, a educação para a civitas, com o exercício dos
direitos políticos? onde o “povo”? Vale a pena ouvir Oliveira Vianna: “o
povo no sentido moderno que damos a esta palavra — o povo do sufrágio
universal, a massa que hoje vemos afluir aos comícios eleitorais — nada
disso tinha significado naquela época, endeusado pelo lirismo dos nossos
historiadores e publicistas liberais. Do eleitorado daquele tempo, como já
acrescentamos, estava afastados os negociantes “de Vara e covado” e os
taverneiros (os que mantinham “logea aberta”), bem como os seus
empregados, os que praticavam “arte mecânica” (os que trabalhavam em
“ofícios manuais”; e os pardos e os mulatos e os mestiços de todo gênero; e
os trabalhadores do campo, massa enorme que forma hoje a quase totalidade
do nosso eleitorado”.
A discriminação mostra como na Colônia era excluída das áreas
administrativas e decisórias extensa parcela de população ativa, a qual se
deve somar a classe baixa — o operariado atual — composta de mestiços e
mamelucos, a miuçalha, plebeus sem terra, a peonagem rural, os foreiros, os
agregados que não gozavam do jus sufragii, conferidos nos pelouros. Essa
massa, que se agregava aos clãs eleitorais do Império, foi convocada às
urnas pela ideologia do sufrágio universal, instituindo na Constituição sem
adveniência da estrutura de solidariedade social, que facilitasse a comunhão
cooperativa e o espírito público. O Estado não surgiu de vínculos de
vicindade e da consciência de interesses coletivos, porque as autarquias
agrárias do patriciado rural exprimia o privatismo, que definiria o regime do
coronelismo municipal ao longo da primeira República. Que fez o
liberalismo político? Esqueceu essas realidades nacionais ao idealizar o
figurino republicano. Essa a acusação de Alberto Torres, para invocar o
espírito mais límpido da crítica nacionalizadora dos nossos estudos sociais.
Não insisto nos estribilhos dessa crítica já demasiadamente repisada por
escritores valiosos. Torres aludia a “misérrimas realidades”. Não adoto o
superlativo, prefiro ouvir estas palavras de um saudoso mestre e amigo — o
sociólogo Oliveira Vianna: “Na verdade, o que devemos fazer para melhorar
o teor da nossa vida pública, não é imitarmos os ingleses e querermos ser
como eles — nesta vã esperança de que podemos mudar de natureza à golpe
de leis ou de Constituições. O que devemos fazer é aceitar resolutamente a
nossa condição de brasileiros. As consequências da nossa “formação
nacional”; é tirarmos todo partido disso. Não há razão para nos
envergonharmos dos nossos clãs, da nossa politicagem e dos seus
“complexos” políticos: somos assim, porque não podemos deixar de ser
assim; e só sendo assim é que poderíamos ser como nós somos”.

Firmada esta convicção, vamos mudar, dentro do nosso ritmo histórico, a


nossa maneira de agir, compassando-a ao teor das nossas tradições. Porque
já é tempo e, noutras latitudes do planeta, é mais tarde do que nós pensamos.
XV. A AMEAÇA INTERNA À
LIBERDADE ACADÊMICA

Notas ocasionais do Conselho para a Comunidade Acadêmica Publicado


seis ou mais vezes por ano pelo CAC em Berkeley,

Fevereiro de 1971.

Nos últimos meses, durante estes tempos “calmos” no “campus”, têm


ocorrido em Berkeley uma série de graves ataques internos à liberdade
acadêmica: a assim chamada “Comissão dos Crimes de Guerra”, as ameaças
e os ataques contra os Profs. Glaser, Jensen, Scalapino, Searle, Teller e
outros, e os recentes esforços no sentido de interromper as aulas dos Profs.
Jensen e Scalapino. São essas ações parte de um esquema de tentativas de
exercer coerção e intimidar docentes, de puni-los por seus pontos de vista,
de modo a servir de exemplo a outros que pudessem ter ou defender
posições similares. São estes, realmente, ataques à, liberdade acadêmica e
intelectual de nossos colegas — feitos por pretensos censores na
comunidade, no corpo discente e na faculdade. A nosso ver, este esquema de
coerção ameaça a liberdade acadêmica do “campus” mais que as pressões
externas, às quais sempre reagimos na medida certa.

Alguns docentes têm achado que não deveríamos rechaçar tais ataques a
nossos colegas. A polícia, dizem eles, tem tratado das atividades públicas;
os ataques não conseguiram silenciar seus objetivos; e condená-los
publicamente equivaleria a dignificar ações que não merecem atenção.
Discordamos por vários motivos.

Em primeiro lugar, visam estes esforços, claramente, a isolar certos colegas


que se acredita terem pontos de vista impopulares, e afastá-los do “campus”.
Devemos reiterar nosso apoio e solidariedade a qualquer colega sob um
ataque dessa espécie. Na verdade, a Declaração de Ética Profissional,
emitida, em 1966, pela Associação Americana de Professores
Universitários, torna uma obrigação de todo docente o “respeitar e defender
a livre atividade intelectual de seus colegas”.

Em segundo lugar, nosso silêncio em face de tais ataques a colegas nossos,


pode levar a um gradual embotamento de nossas sensibilidades, e a uma
presteza em aceitar como “normais” ações que há pouco teriam sido objeto
de condenação. Já existem sinais de que estamos nos acomodando a uma
situação em que até mesmo docentes podem associar- se a grupos como o da
“Comissão dos Crimes de Guerra”, cuja declarada intenção é de intimidar
colegas.

Em terceiro lugar, embora os homens que têm sido atacados até agora não
tenham silenciado, um ataque sobre um é tentativa de intimidar os outros —
tentativa essa que parece já ter obtido algum sucesso. Nem todos nós
estamos acostumados a enfrentar ameaças de represálias, de audiências
hostis e intempestivas, de interrupções de aulas — nem deveriam os
docentes ser uma mistura entre um ativista político e um soldado nacional. O
grande perigo que há no ataque a professores de nomeada (que podem ser
capazes de se defender melhor que os demais) é a pressão sutil que se
exerce sobre outros professores, em áreas críticas de conhecimento. A
coerção encoraja a autocensura, a predisposição de deixar omisso este
tópico controverso ou aquela interpretação, de modo a evitar as temíveis e
desagradáveis confrontações por que passaram outros professores.
Acreditamos que o principal objeto desses ataques a professores de renome
seja o de criar um clima em que outros passarão a hesitar antes de dizer
coisas ou apresentar materiais condenados por esses pretensos censores.
Não poderia haver maior ameaça à vida intelectual de nosso campus que a
poluição do clima que permite e defende a livre atividade intelectual e a
livre expressão em qualquer disciplina.

Sendo uma Faculdade, devemos reafirmar que, neste campus, a única


expressão legítima de desaprovação a pontos de vista expressados por
colegas e estudantes é a crítica racional.
Devemos condenar com especial vigor a participação de docentes nessas
tentativas de coagir ou intimidar colegas em suas atividades de ensino ou de
pesquisa, ou na expressão de seus pontos de vista sobre quaisquer matérias.

O Conselho para a Comunidade Acadêmica expressou suas idéias a respeito


junto à administração do campus e ao Comitê de Liberdade Acadêmica do
Senado Acadêmico. Ficamos satisfeitos em ver condenados ou quase
condenados por ambos este esquema de correção e intimidação em termos
fortes. O Comitê de Liberdade Acadêmica já está realizando uma
investigação mais vasta sobre todo o problema. Solicitamos ao Comitê que
inclua, como parte de seu trabalho, ações em defesa de um clima adequado à
devoção acadêmica e ao debate racional. Primeiramente, solicitamos que o
Comitê tome a responsabilidade de investigar qualquer alegada violação de
liberdade acadêmica, sem esperar, como tem feito até agora, por uma queixa
formal de um docente atingido. Em seguida, solicitamos especificamente que
o Comitê investigue e aja contra o uso de instalações da Universidade para o
preparo ou a apresentação de ataques às liberdades da Faculdade de
Berkeley.
notas

prefacio

VI

XII
ANEXOS
1. Berkeley: Gabinete do Chanceler 23 de setembro
de 1970

Ao: Corpo Docente, Administrativo e Discente.

Do: Roger W. Heyns

“Um retrospecto dos acontecimentos dos últimos meses de maio e junho


indica a necessidade de esclarecer a política universitária no que se refere
ao uso de suas instalações, de seus recursos e de seu nome para fins
políticos. A 18 de setembro último, o Reitor Hitch emitiu uma declaração
sobre a política de utilização dos recursos e instalações universitárias para
atividades políticas, solicitando aos Chanceleres que “tomassem
imediatamente medidas apropriadas para a aplicação dessa política no
campus”. Nesse sentido, prescrevem- se as seguintes diretrizes para o
campus de Berkeley. Seu objetivo visa a assegurar que atividades políticas
pessoais: (1) não sejam confundidas com atividades da Universidade; (2)
não envolvam o uso de fundos, equipamentos, instalações, materiais ou
outros recursos institucionais da Universidade; (3) não perturbem o
programa de ensino ou outras atividades da Universidade.

A Universidade reconhece e respeita os direitos que têm os membros da


Universidade, como indivíduos, de engajar-se em atividades políticas de
caráter pessoal. Essa atividade política pessoal (seja de indivíduos ou de
grupos) inclui, mas não se limita, a organizar e filiar-se a associações
políticas, propagar opiniões políticas, participar de campanhas políticas,
solicitar ou contribuir com fundos para candidatos políticos ou causas
públicas, ou, de qualquer outro modo, auxiliar candidatos.

Todavia, enquanto agindo na capacidade de membros de uma instituição


educacional, os membros da comunidade universitária devem
conscienciosamente manter separadas e distintas suas atividades
universitárias inerentes a seu papel institucional. Por exemplo, um indivíduo
não deve usar para fins pessoais (políticos ou não) recursos destinados pela
Universidade a suas realizações educacionais; nem deve engajar-se em
atividades políticas pessoais de tal modo que possa parecer estar agindo, ao
mesmo tempo, em sua posição institucional ou em nome da própria
Universidade. Esta, simplesmente, não pode permitir ser assim
comprometida. Além do fato do uso impróprio do nome, das instalações ou
dos recursos universitários, está em questão a obrigação da Universidade de
manter no campus um ambiente protetor e conveniente à livre atividade
intelectual acadêmica.

As diretrizes seguintes pressupõem a existência de certas áreas de campus


que continuarão disponíveis para reuniões tendo em vista fins políticos
voluntários. Essa área obedece às regras especiais, que prescrevem “o
tempo, lugar e forma da expressão pública”, no campus e permitem ao
estudante submeter-se ou participar de atividades políticas. Mas não poderá
ocorrer desvio de recursos da Universidade para fins políticos, além dos
limites estabelecidos nas regras do “lugar, tempo e modo”.

Devido ao papel único do ASUC, a aplicação dessas normas será objeto de


carta separada de delegação deste Gabinete.

As diretrizes seguintes baseiam-se nas regulamentações já existentes tanto no


âmbito da Universidade quanto do campus e ainda nos tradicionais
princípios de responsabilidade dos corpos docentes e administrativos. Estas
diretrizes estabelecem uma normatividade muito mais explícita do que a já
existente. Na análise final, um exame de todos os fatos e circunstâncias que
envolvem uma atividade será necessário para determinar sua propriedade.
Deverão ser encaminhadas ao Vice-Chanceler Assistente, Dr. Glen H. Grant
as perguntas referentes à aplicação destas normas.

1 — Na correspondência, declarações ou outros materiais relativos à


atividade política de caráter pessoal, o título na Universidade de um membro
dos corpos docente e administrativo, só poderá ser usado para identificação.
Se tal identificação puder ser, no entanto, considerada como expressão de
apoio ou de oposição da Universidade relativamente a esses fins ou
atividades políticas de caráter pessoal, a identificação deverá ser
acompanhada de uma declaração explícita de que o indivíduo está
expressando pontos de vista em caráter pessoal e não na capacidade de
representante da Universidade ou de qualquer de suas Unidades e
Escritórios.

2 — O nome, a insígnia, o selo, o endereço da Universidade ou de


quaisquer de suas Unidades e Escritórios ou qualquer número de telefone da
Universidade não deverão ser usados para atividades ou fins políticos
pessoais.

3 — Os escritórios da Universidade não deverão ser usados como


centros ou escritórios ligados à organização de atividades política pessoal.

4 — Equipamentos universitários, suprimentos e serviços — por


exemplo, máquinas de escrever, duplicadoras, serviços de secretaria, malote
interno, serviço de correspondência, veículos, computadores, material de
escritório — não deverão ser usados para fins ou atividades políticas
pessoais. Nem podem os telefones da Universidade ser usados para
chamadas ou o malote universitário usado para a remessa de materiais de
promoção da atividade política pessoal.

5 — Os locais e instalações da Universidade não deverão ser usados de


forma regular ou continuada para organizar ou manter atividades políticas de
caráter pessoal. Tais atividades são permitidas nas “áreas de discussão
aberta” na forma prescrita pelas regulamentações do campus concernentes ao
“tempo, lugar e forma da expressão pública”.

6 — A exposição ou distribuição de materiais políticos — inclusive


cartazes, notas, folhetos e flâmulas — deverão conformar-se a
regulamentação do campus concernentes ao “tempo, lugar e forma da
expressão pública”.

7 — Nem os professores nem os estudantes deverão fazer uso dos cursos


ou de tempo de aulas para organizar atividades políticas de caráter pessoal.

8 — Tópicos e materiais políticos submetem-se à regra geral de que os


instrutores de cursos, tanto quanto os assistentes de ensino, são obrigados a
ministrar cada curso em razoável conformidade com o assunto e descrição
do curso anunciados previamente (a menos que o plano do curso tenha suas
alterações aprovadas pelo Comitê de Cursos); a liberdade acadêmica não
justifica a introdução de considerável quantidade de assuntos estranhos à
matéria, ou de discussões e atividades irrelevantes, durante o curso de uma
aula.

9 — Nos cursos em que tópicos e materiais políticos contemporâneos


constituem a própria matéria de estudo, professores e estudantes deverão
tratá-los como sujeitos de estudo e análise de acordo com os padrões
intelectuais aceitos para a investigação e expressão acadêmica.

10 — Os membros dos corpos docentes e administrativos, quando


exercendo atividades políticas de caráter pessoal juntamente com outros
professores, funcionários e/ou estudantes, deverão estabelecer claramente a
natureza voluntária de tal atividade e manter a nítida separação entre sua
atividade política pessoal e o programa educacional e recursos e operações
da Universidade.

11 — O instrutor é responsável pela proteção da integridade acadêmica de


suas aulas. Ele não poderá delegar esta autoridade ou confiá-la a outros,
como, por exemplo, ao permitir que o contrato ou a forma de seu curso sejam
determinados conclusivamente pelo voto de seus estudantes ou ao permitir
que o curso seja desviado de seus objetivos previstos por pressões extra-
acadêmicas, sejam políticas, sociais ou de qualquer outra natureza”.

Obs. — Quando nos referimos acima a “atividades políticas de caráter


pessoal”, não estamos absolutamente interferindo no pleno exercício, por um
membro do corpos docente e administrativo, da responsabilidade do
serviço, contribuindo para a formulação da atividade pública nas áreas sob
sua competência profissional.
2. Universidade de Berkeley: pronunciamento do
Reitor Robert E. Cormick em 13 de outubro de
1969.

Os partidários do Movimento de suspensão de atividades no Vietnam


sugeriram diversas providências, que poderiam ser tomadas pela
Administração da Universidade ou pelo corpo docente, no reconhecimento
da demonstração. Acredito ser oportuno declarar meu parecer a respeito
desse assunto.

O Diretório Acadêmico solicitou o cancelamento normal das atividades


programadas para 15 de outubro. Respondi em 7 de outubro, que não poderia
cancelar atividades normalmente programadas, em apoio da sua paralização:

“O fim da guerra do Vietnam e a busca da paz afetam-nos profundamente.


Entretanto, o movimento de cessação das atividades no Vietnam têm o
propósito claro de interromper as tarefas universitárias e outras, a fim de
compelir o Governo dos Estados Unidos a dar ordem de retirada imediata
das tropas do Vietnam. Este objetivo é político. Se a Universidade suspender
as aulas e participar formalmente nos atos políticos externos estará
realmente em posição precária para impedir a oposição externa de se
imiscuir nos negócios da Universidade perseguindo objetivos políticos”.

Uma base igualmente importante para esta decisão, é que a suspensão


administrativas das aulas violaria a liberdade acadêmica dos estudantes e da
faculdade, dispensando-os das aulas a fim de promover um objetivo político.

Sugeriu-se que os professores, individualmente, dispensassem seus alunos


para apoiar o movimento de suspensão. Creio que isso também violaria a
liberdade acadêmica dos estudantes.
O comitê de Liberdade Acadêmica do Departamento de Berkeley declarou
em 25 de outubro de 1968:

“Não há, naturalmente, contestação do direito geral dos estudantes e dos


professores de promoverem protestos e demonstrações.

Se, porém, o protesto toma a forma de ação que obsta a estudantes ou


instrutores o cumprimento dos seus programas educacionais regularmente
elaborados, quando assim o desejem, então o protesto interfere na liberdade
acadêmica. Deve observar-se ainda que, quando os protestos são
completamente dissociados do programa acadêmico, os estudantes têm a
liberdade, como indivíduo, de participar ou não. Porém quando o protesto
toma a forma de suspensão de aulas ou de outras atividades educacionais
programadas, os estudantes em desacordo com o protesto são privados de
sua liberdade de expressão e de sua liberdade de estudar”.

A obrigação de proteger a liberdade acadêmica dos estudantes não pode ser


revogada para acudir ao desejo de uma maioria dos estudantes de
determinada classe. É direito de cada estudante, individualmente. Tanto a
liberdade de palavra quanto a liberdade acadêmica da minoria deve muitas
vezes ser protegida contra a maioria. Quando um membro da faculdade
exerce sua autoridade para negar aos estudantes uma aula programada,
invocando razões de convicção pessoal, ele deve, especialmente, cuidar de
defender estudantes que possam ser coagidos ao silêncio de seu desacordo
ou de sua dúvida naquelas idéias. Outros sugeriram que os membros da
faculdade promovessem discussão em suas classes sobre a guerra, em 15 de
outubro. A responsabilidade pelo teor de um curso deve caber a um membro
da faculdade, e neste ponto, acredito que a liberdade acadêmica dos
estudantes exige que o professor permaneça dentro da esfera de sua
competência profissional.

O AUP declara a esse respeito: “O professor tem liberdade de discutir seus


temas na sala de aula, mas deverá precaver-se para não introduzir em seus
ensinamentos matéria controversa, que não tenha relação com o assunto”. A
definição e garantia desses deveres éticos e profissionais dos docentes são
responsabilidades primordiais das próprias faculdades. Com a progressiva
intromissão, nas faculdades, de assuntos políticos, cumprir-lhes-á em breve
considerar se tais deveres acham-se definidos e compreendidos
apropriadamente ou exigem posterior reformulação. Não me refiro somente
ao possível impacto do protesto político sobre a ética profissional, também
acerca da possibilidade de que os órgãos da faculdade a serviço do Governo
e dos negócios privados interfiram nos direitos dos estudantes. Debateu-se
que uma mais alta responsabilidade moral pode preceder às
responsabilidades profissionais a que me referi. Com efeito, cada indivíduo
deve ajuizar por si próprio, quando houver tal conflito e deverá ser
escrupuloso em apreciar a complexidade moral de seu julgamento. Contudo,
mesmo uma justificativa moral de não lecionar uma classe não atenua as
consequências para os estudantes, que têm o direito de receber instrução e
não exime o professor de suas responsabilidades educativas ante cada um de
seus alunos. A história ensina a necessidade do ceticismo extremo e de
autocontrole na imposição oficial dos ditames da consciência a outras
pessoas contrárias aos deveres normais de proteger a independência
daquelas maiorias. Eu compartilho da aflição do povo quanto à guerra. Os
efeitos perante a Nação são da mais grave importância. Os estudantes que
desejarem demonstrar seu interesse em não comparecer às aulas, são livres
para assim proceder. A fim de assegurar um debate público moderado,
solicito aos membros da faculdade, que não se comprometam em franquiar
aos estudantes suas salas de trabalho para grupos de debate. Entretanto, em
nosso sistema, em face de tais consequências, acredite que a comunidade
universitária, a longo prazo, somente prestará maior contribuição à solução
desses problemas se houver adesão escrupulosa aos princípios de liberdade
acadêmica.

Robert E. Connick — Reitor

(Tradução de Vladir Menezes e Marty Tavares)


3. A propósito da declaração da Universidade de
Berkeley.

A legislação universitária posterior à Revolução de 31 de março de 1964


antecipou diretivas que depois vimos consignadas no pronunciamento do
Chanceler da Universidade de Berkeley, que se edita nas páginas anteriores.

Assim, a proibição de utilizar as instalações e equipamentos da


Universidade para finalidades estranhas às necessidades docentes está
expressa no art. 1.°, itens II, III, IV e VI, Dec. Lei 477, que coibiu as
manifestações predatórias e responsabilizou os diretores de Unidades.

Em vários outros dispositivos, que fixam normas de organização e


funcionamento do ensino superior (lei n.° 5.540, de 28 de novembro de
1968) ou que reformulam a organização da representação estudantil (dec. lei
n.° 228 de 28 de fevereiro de 1967) há a mesma inspiração) fundamental
nascida dos princípios agora proclamados na Universidade de Berkeley: a
defesa da integridade acadêmica, agredida por múltiplas maneiras nessa
estratégia habilmente capitaneada por líderes que se imiscuem no meio
estudantil.

Dentre as normas formuladas pelo documento que comentamos, uma é


particularmente significativa: a que se refere à liberdade de discutir os temas
políticos e sociais na aulas de Sociologia e Economia. A tese é legítima e
sempre adotamos. Mas cumpre distinguir. Com astuciosa candura (candura
na aparência, astúcia na essência), invocam muitos a liberdade de cátedra
como condição imperativa para a exposição e análise científica das teses
marxistas e de outras doutrinas afins. Posto o princípio nessa abstrata
generalidade — ninguém se poderá opor. Somos o primeiro, na qualidade de
velho professor de ciências sociais, a pugnar por esse clima vital de
liberdade e de livre disponibilidade do espírito no exame dos problemas.

Mas não confundamos alhos com bugalhos. Muitos dos que reclamam a
liberdade de pensamento não estão à altura do exercício científico que
alardeiam — e prevalecem-se do princípio constitucional de livre debate
das idéias para a catequese juvenil, que pretende utilizar o “auditório
cativo” na ação aliciante. Tocamos frequentemente nesse ponto nevrálgico
no correr destas páginas — mas nunca é demais insistir no estribilho.

Dou exemplos: os professores que se mostravam recalcitrantes, esforçando-


se em analisar com independência o marxismo, eram, por volta de 1960,
considerados indesejáveis pelos grupelhos comunizantes e alvo da campanha
insidiosa que os apontava aos estudantes como fascistas ou incompetentes.
Criavam-lhe ambiente de repulsa nas classes, açulavam greves de protesto
exigindo sua remoção. Alguns diretórios governavam essas manifestações —
e muitos colegas ainda devem recordar-se que determinados nomes eram
estigmatizados como “inimigos” dos estudantes. Às vezes, as perturbações
constantes nas aulas obrigavam o professor a afastar-se. E toda essa
campanha era habilmente conduzida por certos diretórios, que escoimavam,
nos vestibulares previamente articulados com os famosos cursinhos, os
elementos inóspitos e facilitavam o acesso dos seus agentes.

De modo que, ao sobrevir das medidas saneadoras centra a politicagem, que


grassava a pretexto de cogestão administrativa e representação estudantil,
restabeleceu-se o funcionamento da Universidade no seu papel de órgão de
estudo e de pesquisa.

Fascículo de 1.° de setembro de 1970, intitulado University of Califórnia


Policies Relating to Students and Student Organizations, Use of University
Facilities and Nondscriminations, resume todas as normas que foram ditadas
pelas necessidades de implantar a tranquilidade no meio estudantil. Nesse
documento, as autoridades do “campus” tiveram até de definir o que se
compreende por “estudante”, especificando-lhe os deveres e direitos que
assumia ao inscrever-se na Universidade.

Transcrevemos a seguir a Seção II, Parte A, referente ao padrão de


comportamento:

Seção II — Dos Estudantes e das Organizações Estudantis Parte A —


Normas de conduta
“Um estudante inscrito na Universidade e bem assim qualquer pessoa, que
pretenda nela ingressar, assume a obrigação de conduzir-se de forma
compatível com as funções da Universidade como instituição educacional.

Capitulam-se no rol das condutas irregulares, passíveis de punição, as


seguintes:

1 — Desonestidade, como: fraude, plágio ou fornecimento consciente de


informação falsa à Universidade;

2 — Falsificação, alteração ou uso indevido de documentos da


Universidade, anotações ou identificações;

3 — Obstruir ou interromper o ensino, a pesquisa, a administração, as


normas disciplinares, ou outras atividades universitárias, inclusive o
funcionamento de seus serviços públicos ou de outras atividades autorizadas
na propriedade da Universidade, ou, durante período de emergência no
campus, dentro do raio de uma milha;

4 — Abusos físicos ou conduta que ameacem a saúde ou a segurança de


qualquer pessoa em local de propriedade da Universidade ou sob seu
controle, em serviços mantidos ou supervisionados por ela ou, em período
de emergência no campus, dentro do limite de uma milha em tomo do campus
da Universidade ou instalação;

5 — Furto, destruição ou dano de propriedade da Universidade, de um


dos membros da comunidade universitária, cu de visitantes ao campus ou,
em períodos de emergência no campus, destruição ou dano à propriedade, no
campus ou no raio de uma milha;

6 — Uso não autorizado de instalações, equipamentos ou recursos da


Universidade e entrada sem permissão em tais locais;

7 — Violação da política universitária ou dos regulamentos do campus


relativos ao registro de organizações estudantis, ao uso de instalações
universitárias, bem como as concernentes a tempo, lugar e forma de
manifestação pública;
8 — Fabrico, tentativa de fabrico, uso, posse ou distribuição de
narcóticos ou drogas perigosas, inclusive, mas não apenas, maconha, ácido
lisúrgico, dietil-amida (LSD), salvo nos casos expressamente permitidos em
lei;

9 — Violação das normas de administração de residências em locais de


propriedade da Universidade ou por ela contratados;

10 — Conduta desordenada, lasciva, indecente ou obscena, bem como o


uso de expressões desta natureza em locais de propriedade da Universidade,
sob seu controle ou em serviços por ela mantidos ou supervisionados;

11 — Participação em desordens coletivas, perturbação de paz ou reunião


não autorizada, no campus ou em instalações da Universidade, bem como em
período de emergência, no raio de uma milha;

12 — Descumprimento das ordens emanadas de autoridade universitária


ou pública, no exercício de suas funções, em campus Universitário ou
instalações da Universidade, bem como, nos períodos de emergência, no
raio de uma milha; resistir, retardar ou obstruir determinações de
autoridades universitárias ou públicas, no desempenho ou tentativa de
desempenho de suas atribuições;

13 — Conduzir-se de forma a comprometer a condição de membro de uma


comunidade acadêmica.”

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