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IDÉIAS
contra
IDEOLOGIAS
Técnico é o que sabe utilizar as idéias; intelectual, o que tem a vivência das
idéias.
A violência é pregada nas rádios, nas tevês, nas historietas infantis, como
único método para solucionar dificuldades.
PREFÁCIO
Pode-se dizer que a juventude é a grande vítima dos pais, que, por sua vez,
são cúmplices, por hipocrisia ou fraqueza, do ritmo desse processo de
esfacelamento dos lares, onde a autoridade deles, a pretexto de
camaradagem e compreensão, acabou deliquescendo num ajuntamento
amorfo, que conserva abusivamente o nome de família.
Outro erro grave na consideração da vida universitária (do qual, nos meus
tempos acadêmicos, partilhei fervorosamente com Oscar Tenório e outros
ingênuos) — é o de que a convivência democrática da Universidade
formula-se em termos políticos de direito público: o poder emergiria
também do “demos” universitário pelo mecanismo do sufrágio. Liamos as
pregações do movimento de Córdoba, que simplificavam o problema num
radicalismo pueril, que entrava no coração adolescente — e o inundava.
Todos em 1927 fomos reformistas desse tipo. Jamais houve quem viesse nos
explicar que não se transplanta tout court para o meio universitário
princípios políticos do direito público, com outras implicações e outros
contexto. E que, sobretudo, o “demos” imaturo, em diferentes graus de
capitis diminutio intelectual, não tinha qualificação para integrar o “povo”
soberano daquela democracia — porque ali se achava, precisamente, para
adquirir, através da educação, a maturidade cultural e política.
Volto a este livro para dizer que os capítulos que o compõem foram escritos
nos dois últimos anos, atropeladamente, atendendo a solicitações de
palestras ou de artigos. Giram todos em torno de temas que afloram da vida
estudantil.
Rio, 1971.
D.M.
Não posso esquivar a continuação dessa jeremiada, que se repete quase nas
mesmas palavras: “Enquanto o professor considerar, como entre nós
acontece, o magistério como achega (hoje diríamos “um biscate”) e procurar
fora dele os meios de subsistência; enquanto for rodeado de auxiliares
vitalícios sem aspirações nem entusiasmos: enquanto dispuser de material
escasso e defeituoso, o ensino superior será uma burla, uma farsa, uma
ilusão”.
Vale a pena ouvir, nas próprias palavras de Miguel Lemos, a crítica contra a
Universidade de seu tempo, segundo a imaginava; até parece de um
esquerdista de escada abaixo, quando profliga o nepotismo das classes
superiores:
Mas não desviemos a alça de mira da argumentação. O que quero dizer é que
estamos encetando a revisão dos velhos hábitos mentais. Aceita-se,
docilmente, a tese vitoriosa do industrialismo, que é a medula de toda a
Reforma. Mas quando se estudam as origens da Universidade, lá se deparam
as idéias embrionárias do tecnicismo, da correção do humanismo
excessivamente beletrista e greco-latinizante, da autonomia das instituições
docentes, em suma, a viragem do rumo em direção à praticidade.
Compreende-se a frase de Tocqueville, cujos olhos europeus contemplaram
o progresso norte- americano: “Nas democracias, nada é mais importante ou
mais brilhante que o Comércio”.
Por uma dessas voltas da dialética histórica, nos meados do nosso século, os
governos esbarraram com a verdade que política da pesquisa teórica, o
deslocamento da tônica para a especulação científica pura, a súbita
transformação do pensamento abstrato como essência da Ação humana. E
então o espírito humanístico da Universidade passou a ser namorado com
insistência pelo espírito lucrativo das empresas. Já não se via o professor
universitário como o ocioso das charadas intelectuais, parasitas de luxo que
eles, os criadores de riquezas, sustentavam com seu labor fecundo.
(2) “ ... abandonam-se obras primas literárias, morais ou não, para ensinar
aos alunos um inglês útil ou um alemão útil. Com efeito, não é com Goethe
ou Shakespeare que se escrevem cartas comerciais” — Idem, p. 22. Comte
escarneceu desse “espírito de especialização utilitária” no Couxs de
Philosophie Positive. Essa “conspiração contra as humanidades” foi objeto
de uma comissão parlamentar de inquérito que ouviu Ravaisson, Boutroux,
Lachelier, Seailles, Dorlu e Fouillée.
(3) “Os professores de filosofia, que devem constituir uma elite na elite
universitária, possuem decerto seus defeitos, mas tiveram pelo menos
consciência de uma obrigação pedagógica: a de despertar idéias, sugerir
fortes concepções morais e sociais, ensinar a pensar livremente, exercitar o
sentido crítico dos alunos” — Idem pgs. 149, 150 — Cabe-lhes a função de
dessectarização nesse processo de aliciamento ideológico que transforma
algumas cátedras em focos de proselitismo marxista. Nesse sentido
renovador, o estudo da filosofia deveria desempenhar papel de grande
importância pedagógica na formação do espírito democrático da
Universidade. A Fouillèe, Les estudes classiques et l’a Democratie, Armand
Colin, Colin, Paris, 1898.
Seria cedo para discutir essas interrogações, com apenas dois meses na
honrosa e alta investidura de Reitor, se não tivesse, no meu itinerário de
professor mais de três longas décadas, olhos teoricamente postos nos
problemas fundamentais do ensino superior. Apesar disso relembro o famoso
provérbio de que só se sabe o gosto do gerimum, (aqui degradado em
abóbora) — comendo-o.
Muitas vezes estamos a ver a árvore sem ver a floresta. Houve quem
dissesse que não é problema de mais verbas, mas de melhor distribuição de
recursos. Comparou-se a fraca competição de candidatos em Direito e
Ciências Sociais com o forte afluxo à Engenharia, Medicina e Tecnologia.
Querem excluir um aspecto para valorizar outro, e buscar, numa
complexidade de independências, uma função única e privilegiada —
simplificando termos da interrogação. Evidentemente, uma distribuição
racional de recursos minoraria a intensidade da aflição que lavra no campo
dos responsáveis pelos destinos da Universidade. Apenas atenuaria; não
resolveria os problemas fundamentais. O ajustamento da oferta de vagas à
procura da mão de obra intelectual, que a Universidade pretende fornecer às
necessidades do industrialismo crescente, é a face econômica, a ser
examinada segundo as diversas carreiras profissionais no seio do
desenvolvimento do país.
Ora, quando me refiro aos “capazes”, não passo a fixar limites. Aludimos
aos melhores dotados pela natureza, que devem ter acesso social à
Universidade. O magno problema é, pois, atenuar ou suprimir as diferenças
econômicas que perturbam aquele acesso, permitindo a circulação de
valores que formam as elites. A gradual supressão dos privilégios sociais
resultará da valorização, cada vez mais reconhecida dos privilégios naturais.
Quem nasce com talento matemático ou musical é um privilegiado.
Privilegiado é quem possui intuição poética ou excelentes cordas vocais. É a
natureza que dá a premissa maior. A sociedade não pode eliminar a
desigualdade natural, mas exaltá-la, vigorizando os bons através da
educação. Mas a maioria não é constituída de privilegiados, diga-se a
verdade. A maioria é de medíocres, de ineptos, de incapazes, não apenas
como resultado das injustiças sociais, mas das desigualdades biológicas.
Isso sem mencionar os fronteiriços da normalidade — o mentecapto, o
imbecil, o cretino orgânico, o oligofrênico larvar, o paranoide rebelde, essa
borra social que constitui muitas vezes o fermento das revoluções. Os
estudiosos sabem que os movimentos históricos têm suas leis imanentes nas
contradições internas das sociedades humanas, mas também não ignoram que
essa leva de desajustados é uma componente expressiva nas operações de
tumulto e destruição.
Outro grande ponto que vem acentuado com bastante ênfase na Reforma é a
indissolubilidade entre pesquisa científica e atividade docente. Nele se
encontra mesmo a diferença específica entre os dois tipos de Universidade
— o tradicional, que procuramos superar, e o atual, que procuramos instituir
este vínculo entre pesquisa e docência evidencia o processo que implica
numa tomada de consciência das necessidades sociais. Terá como corolário,
a formulação científica, fora das exaltações ideológicas, das mudanças para
novo tipo de relações entre os homens. É o papel transformador, que as
instituições do ensino superior são chamadas a desempenhar. Se as
Universidades não assumem a liderança desse processo — qual o órgão
mais capaz de fazê-lo? Não o conheço. Se recusamos-lhes a função
reformadora — só restará o caminho da agravação das lutas de classe e a
política chinfrim dos demagogos, capitaneando o sonambulismo messiânico
das massas atrás dos chefes carismáticos.
Tal liderança deve ser bem definida e na plena consciência dos objetivos
culturais. É tempo de dizer claramente que a hegemonia da pesquisa deve ser
limitada pela vocação suprema da Universidade, que é o humanismo
reelaborado nas perspectivas do conhecimento moderno. A Universidade
não é a usina de fabricar tecnologia para o industrialismo: tem um plus, que
ultrapassa tudo isso.
Para que remexer estatísticas, repetindo o que tanto se diz? Nunca se disse
tanto a mesma coisa a respeito das dificuldades de financiamento para
realizar os planos legislados e aprovados. Escandalizar-se porque de 4
milhões e meio de matriculados na escola primária somente 1 milhão e meio
se diploma (três graduados para 10 mil) é demonstrar bons sentimentos
cívicos. Entre o primário e o superior, há a tragicomédia do ensino médio,
de onde saem os afluentes tristíssimos para a Universidade. Mas será mais
prudente não falar dessa mercantilizadíssima área de pirataria do ensino
médio...
A história dos últimos anos está revelando que não é fácil abrir caminhos
independentes entre hemisférios hostis, mas nada indica ser impossível os
esforço à busca desse rumo original. A gigantesca polarização da
humanidade entre dois núcleos de poderio mundial mantém uma tensão de
expectativa que perturba a compreensão da natureza racional da solução. Ela
terá de ser buscada dentro dos limites da ação inteligente. Será obra de arte
política, não apenas o efeito brutal de forças engendrando consequências
implacáveis. O processo de consciência histórica, que se intensifica na hora
presente, desfaz qualquer temor ou crença num destino ditado por
determinismos catastróficos onde o homem seria o títere movido por deuses,
por vontades estranhas, pelo fatum, — entidades que hoje se encobrem sob o
nome de causas econômicas ou telúricas. Bem sabemos que há uma certa
interpretação modernizada, que ainda figura o homem como o joguete do
desenvolvimento de forças que se desataram e o impelem cegamente para
fins irresistíveis. Nessas explicações, para materializar a imagem na
sugestão emotiva das metáforas, acode o episódio do feiticeiro liberando
forças que não soube mais comandar. Na essência, esse irracionalismo é um
refúgio da impotência; e sua apologia, uma confissão abdicatária de
ideologias feitas de misticismo e metáforas. E não falta como sempre quem
aceite imagens à guisa de razões, confundindo o episódio da fantasia com a
demonstração da verdade.
Decerto não se há de atribuir ao indivíduo o privilégio de plasmar seu
destino à outrance; mas, na trama dos acontecimentos que constituem a
história, se aguça, em determinadas áreas sociais, e, nessas áreas, em
determinados grupos e indivíduos, uma representação mental viva do
processo, que os toma mais conscientes dos fins necessários à sobrevivência
e à felicidade coletivas. Por isso, o que eles dizem ou fazem exprime o que
obscuramente aspiram milhares de seus concidadãos. Tal direção do sentir e
pensar, Rousseau chamou-a áe volonté générale. Ela resulta da
consciencialização a definir-se em propósitos normativos. Essa
compreensão me conduz a reconsiderar diferentes tipos de voluntarismo do
tipo carismático, pregado por filosofias políticas afogueadas de ambições
eleitoreiras que por aí andam rabeando nas mudanças partidárias; e há o
voluntarismo íntimo gerado no processo de crescimento orgânico de um
povo. Tal processo se acompanha de concentração definida do poder — e a
história deixa de ser destino, como se lê nessa literatura feita de ingredientes
messiânicos e masoquistas, a proclamar, como Camus, que o único problema
filosófico sério é o suicídio. Esses onanistas especulativos não arvoraram a
morte como tema central do pensamento por simples capricho; a atitude
reflete uma mentalidade de elite desesperada.
Tudo isso é muito significativo e não se sabe quem lançará a principal pedra.
Mas ouso pedir que se retome o tema com frieza ou pelo menos sem
virulência emocional. Restabeleça-se uma preliminar para iniciar o debate:
a de que o pouco que os professores já estudaram e querem transmitir aos
alunos não lhes atrapalhará a compreensão do assunto. Não exagero, apenas
anoto o que ilustre catedrático, tomado de exaltação revolucionária,
escreveu num fascículo — em que nos nega a quase todos o direito de dar
palpites sobre a sorte da Universidade. Disse esse desvairado apóstolo da
redenção nacional: “Todas estas respeitáveis personalidades acreditam que
a Universidade é um templo sagrado, onde uma corporação de sacerdotes do
saber pontifica sobre todos os assuntos, na plena posse da verdade”. Só
quem não entrou numa Faculdade brasileira poderia crer nisso. Desde
Tobias Barreto que essa corporação sacerdotal, entre renques de alunos
reverentes, desapareceu — e reina cada vez maior familiaridade, que,
nalguns casos, raia pela indisciplina. Afirmar aquilo é positivamente faltar à
verdade. Mas o ilustre membro de corporação sacerdotal prossegue: “os
cursos das Faculdades são praticamente o desenrolar passivo, escassamente
atento, interessado em cumprir o ato de presença”. Faz a descrição
imaginária de uma solenidade imaginária num tempo imaginário. Alienação
— de quem? do autor. Ele pertence ao “seleto corpo professoral que prestou
juramento à classe superior” e explica-nos agora “luta de classes no interior
da Universidade”. Não se trata de “luta de gerações de cunho meramente
literário e romântico e tem objetivamente significado reacionário” — como
bem escreve o autor num concurso de docente, na Faculdade de Filosofia, já
o havia dito do alto da cátedra reaça que ele combatia nos idos de 63. Viu a
“esquerda professoral” composta de frustrados, ressentidos, indecisos,
bajuladores de aluno, populistas, preguiçosos, retardatários, faltosos; e, no
final, “o homem de esquerda ideologicamente autêntico”. Ninguém escreveu
com tal furor ideológico sobre a construção da Universidade, partindo da
estaca zero contra o “embuste do pedagogismo reformista” promovido pelos
“magnatas do ensino”. Replicou-lhe a tempo o prof. Aliar O. Gomes: “Não
negaria eu jamais a existência de aves empalhadas, manequins e oportunistas
entre os professores universitários. Não negaria tampouco que esses
espécimes representam verdadeiro flagelo para a Universidade e para os
estudantes e para o movimento cultural do país. Mas constituem eles
maioria?” Claro que não. Mas todos são acusados de submissão ao capital
estrangeiro e agentes do imperialismo. E qual remédio nos apontava o
professor insurreto? Sujeitar a Universidade ao Parlamento! Não se acredita
na seriedade da proposta — principalmente quando se observa a deturpação
do sistema representativo pelo poder econômico. O marxismo-leninismo,
privado de qualquer validade objetiva, se converte em uma sofistica velhaca
que só poderá seduzir o socialismo pré-pubere dos incipientes no meio
cultural, onde recruta o seu proselitismo.
Por essa época, Lenin insistiu em que cada povo teria que descobrir suas
próprias vias. Tudo isso foi suprimido na propaganda russa ao constituir-se
a burocracia centralizada e monolítica, uma perfeita criação do espírito
totalitário. Mas nenhum compêndio marxista voltou a referir tais palavras de
Lenin. Ao contrário: era o “exemplo da união Soviética”, a “pátria do
socialismo” e a “estrela do proletariado universal”, que comandavam a
marcha do mundo para a terra da Promissão. O ensino e treino de partidários
obedientes a Moscou, tornada a Meca do novo profetismo, que preparava os
novos jesuítas para a disseminação do credo. As resoluções russas são
comentadas, decoradas, veneradas nos órgãos comunistas do altiplano
boliviano, das favelas do Rio ou dos arrabaldes portenhos, com o mesmo
espírito ecumênico... E não deve causar espanto: se os guias espirituais
sacralizam os textos, que escapam ao exame crítico, é natural que as massas
adorem supersticiosamente a múmia de Lenin, na Praça Vermelha, em
peregrinação que só Maomé teve nos tempos islâmicos. Em conversa com
um amigo, naquela Meca sagrada, Silone, zombeteiramente, propõe uma
pequena revolução, que Lenin aplaudiria: incendiar a barraca do totem em
nome do materialismo histórico. E quando Thorez ou Toglatti tinham
assomos suspeitos de independência e queriam ler a bíblia sem a
interpretação do Kremlin — logo se fazia sentir o puxão no freio e a
chamada à ordem. E que dizer do que se passa ainda nestas décadas de
1970, quando enfim começam a rebentar os freios das obediências no seio
dos partidos comunistas espalhados no planeta!
Qualquer estudante de ciências sociais sabe que a cultura humana, vindo dos
albores do paleolítico, é um processo cumulativo socialmente transmitido —
e é toda essa “ambiência” que o homem criou através da história. Bastaria a
colocação do problema nestes termos para que se vislumbrasse a função das
gerações mais novas no processo de transmissão, que não é biológica, na
herança genética, mas sociológica, no processo interativo dos seres
conviventes. A “educação” constitui processo social por excelência — e
basta-me remeter o leitor às obras de Dewey, entre tantos, para dispensar
delongas. A plasticidade física e mental da infância e da adolescência é a
condição fundamental da transmissibilidade cultural. Nesse sentido, são os
jovens, principalmente universitários, os herdeiros do grande legado
representado pela ciência, letras, artes, filosofia. Por todo o admirável
mundo do pensamento criado pelos mais velhos. Duas simplificações
combativas se armam diante do problema.
Não vou acender uma vela a Deus e outra ao Diabo, mas tentar superar as
duas velas com uma lâmpada elétrica.
O mais espantoso é que essa cansada cantilena soa e ressoa na maioria das
cátedras e dos compêndios, sem que se faça grande esforço para contestar os
papagaios letrados. Bastaria pedir-lhes uma análise mais clara e mais franca
dos problemas que surgem em todos os quadrantes da civilização. Por que se
perpetuam tais slogans pretensamente científicos e arcaicamente filosóficos?
E, sobretudo, por que acumpliciar-nos com isso?
Daí, o seguinte: desfaz-se a linde que separa a vida pública da vida privada.
Nisto reside o cunho essencial do totalitarismo, o seu verdadeiro sentido.
Onde as massas eram atrasadas, sem clara consciência dos seus próprios
interesses produziu-se a ditadura paternalista. Nas nações subdesenvolvidas,
sem diferenciação das camadas da população promovidas pelo processo
industrial, as instituições parlamentares não serviam para exprimir a
realidade nacional. No Brasil, o rei reina, governa e administra — bradou
Itaboraí. Nas repúblicas ibero-americanas, as idéias do 1789, propagadas
por caudilhos de variados tipos, garantiram as aristocracias territoriais. (4)
Talvez mereça atenção esta passagem. De início, devo dizer que entendo por
“democracia” o regime que efetiva a intervenção do povo na organização do
poder político e no controle de suas estruturas. O conjunto de técnicas que
dá melhor eficácia a tal intervenção, revelando a “vontade” popular, varia
segundo o desenvolvimento social: é obra de arte política. Entre essas
técnicas estaria, no Ocidente, a democracia parlamentar, ao lado de suas
variantes, modeladas no progresso do capitalismo concorrencial e
reajustadas nas formas superiores do capitalismo financeiro. Decerto,
sobrevieram deturpações sérias no processo representativo, com a
corrupção dos partidos e o mercado de voto. Viu-se o concubinato do
parlamento com a finança espúria e a demagogia. Muitos vícios, todavia,
seriam corrigíveis por métodos meramente eleitorais. Problemas de forma,
não de fundo, ensina um mestre. Na opinião de muitos publicistas, o sintoma
denunciava a decadência das instituições parlamentares. O labor do
estudioso não será o de desacreditar as instituições democráticas, mas o de
aperfeiçoá-las para realização da menos imperfeita representatividade. E na
hora do perigo — como disse o ministro Busaid no Fórum da Universidade
— cada povo salva a sua democracia com as armas de que dispuser, dentro
do estilo de sua inspiração histórica e de sua tradição.
Aqui dou conta apenas dos pontos centrais. Entre outras coisas, escrevera
eu: “O núcleo de ação política se plasma em circunstâncias históricas
concretas — e sua estrutura muda através das idades em função do conjunto
dos fatores sociais inter-relacionados na práxis humana. O Estado, que é a
forma historicamente evoluída, representa o monopólio da força de
comando. A política é um dos aspectos da vida social concernente à
regulamentação do uso das faculdades coercitivas exercitadas pelo grupo de
dominação.” (1)
Sidney Hook fala com os olhos pregados na vida americana; mas eu o leio
com o pensamento voltado para o cenário das nossas agitações políticas, no
esforço de lobrigar a configuração constitucional das instituições
democráticas meio esbagaçadas e no anseio de sobrevivência. A mesma
pergunta, entretanto, se poderia formular agora, como em épocas anteriores,
aos homens das classes conservadoras: por que não acodem a defender o
direito de liberdade de expressão, de reunião, de cátedra, de imprensa, ao
lado do direito da liberdade de empresa? Todos esses direitos fazem a
mesma urdidura democrática, porque todas essas liberdades se conjugam no
postulado fundamental da liberdade política. Mas oculto o desânimo: porque
sei, como modesto estudioso de Economia, que os processos de
concentração da riqueza que originam os grandes organismos de produção
tendem, contraditoriamente, a restringir a constelação daquelas “liberdades
estratégicas”, de que fala o escritor norte-americano. Este, fascinado, ainda
pondera: “Essa relativa inatividade dos homens de negócios americanos no
fortalecimento do complexo cultural da liberdade é surpreendente do ponto
de vista de sua própria ideologia.” Mas o fato é que não surpreende tanto,
embora seja condição essencial para a existência das democracias.
Encerro estas lembranças comovidas — e volto à tese, que não está aqui.
Reeditei-a nos Temas de Política e Filosofia, tal qual era aprovada naquele
saudoso Congresso. Correm os anos, e eis que a professora Lygia Fonseca
de Rás, dirigindo um curso na John Hopkins University, em 1966, teve a
idéia de tomá-la como leit motiv de um debate, na School of Advanced
International Studies. Debateram-na alguns professores, estudantes
graduados, especialistas nos assuntos latinoamericarios, como se poderá ler
a seguir.
O problema distende tentáculos por diversas latitudes ideológicas. Os
demais ensaios, embora aparentemente desligados, convergem para as
mesmas interrogações. Quando se fala em democracia, está presente no
espírito todo um way of life, com seus estilos de pensamento e de ação
política. E, imperceptivelmente, a reflexão se desloca para os problemas de
liberdade, dos direitos civis, da organização constitucional, do poder
econômico, do poder militar etc. Assim, por consequência lógica, reúno
neste livro alguns estudos que, apesar de feitos em momentos diferentes da
atividade catedrática, foram pensados na mesma linha de ação pedagógica e
em função dos mesmos interesses educativos: a defesa da independência do
espírito. No fundo, o desejo de ajudar a ruptura dos casulos fabricados pelas
catequeses militantes.
Apertado nas duas pontas de uma única tenaz, o espírito livre toma-se
beligerante. Qui habes aures audiendi, audiat. E quem só tiver as orelhas
exteriores não adianta empiná-las: a burrice, encabrestável por vocação
natural, sempre foi a melhor argamassa das ditaduras. Por isso, o primeiro
passo é emudecer as vozes dissidentes, domesticar a Arte e a Ciência e
transformar os problemas científicos em segredos misteriosos; (e com
prudente desconfiança diga-se que “mistério” é a forma desmoralizada do
“problema”). Nesse diapasão, tudo tende rotina autocrática. A autocracia é
triste e silenciosa. Porque a alacridade dos sibaritas e o arruído dos
cortesãos não quebram o silêncio da inteligência. A faina dos glosa- dores
não substitui a atividade dos pensadores. Pouco importam os motivos
invocados: onde o Pensamento se torna perigoso, as ciências sociais estão
sentenciadas à asfixia. Ensinadas sob vigilância, o que resta delas é o
murmúrio das cátedras amedrontadas. Oculta vox aut suspicax silentium (10)
Estiolam-se os estudos sociais onde imperam ortodoxias políticas — quer
sejam marxista, quer sejam antimarxistas: ambas sistematizam a pedagogia
liberticida. São dois momentos da mesma distorção espiritual, dois gumes
do mesmo garrote. A caminho do poder, pregam a Liberdade; no poder,
confiscam-na.
(6) Political Decision Makers, sob direção da Dwaine Marvick, The Free
Press of Glencoe, USA, 1961.
Keynes.
Malthus, desde 1797, quando escrevia The Crisis, panfleto político bem
cauteloso, já se ajeitava nas posições de prudente whig, não lhe tendo ficado
vestígio da intimidade intelectual com os partidários do radicalismo quase
revolucionário. Assim, ao ler o Enquirer, de Godwin, na data em que
acabava de escrever The Crisis, integrava-se no papel eminentemente
conservador. O “princípio da população”, que enunciaria a seguir, se
adequaria ideologicamente à sua atitude.
Pois a nós nos parece que a pressão demográfica, que não contestamos,
cresce ou decresce ainda mais em consequência das dissimetrias internas
inerentes àquele processo. Não se deve, todavia, recair no erro oposto, que
seria apenas a simplificação de reduzir a zero a influência do crescer da
população. Façamos uma imagem — e é preciso cuidado com as metáforas
na Ciência. A vibração das cordas produz na viola a sonoridade da nota.
Mas é a caixa, que se lhe ajusta, que dá vigor audível à amplitude das ondas,
em repercussão. Pois a estrutura social funciona às vezes como a caixa de
ressonância das aflições da população crescente, alarmando a nossa
sensibilidade filantrópica e assanhando os demologistas nos quatro cantos
do globo, enquanto alguns homens fatalistas já começam a lobrigar,
turvamente, que a bomba atômica é um desígnio da Providência, senhora de
métodos inescrutáveis, a escrever sinuoso por linhas retas.
Apresentada como fundada na lei natural, essa lei de competição entre seres
humanos, que lutam para sobreviver com armas racionais a serviço de
apetites de minorias beneficiárias, toma a aparência de lei inelutável, que se
não poderia eliminar dos processos de convivência. E então, o racional se
torna em irracional dentro de tais processos. Não admira, pois, que um
escritor inglês, no começo do século XIX, embuçado pudicamente sob o
pseudônimo de Marcus, num panfleto intitulado On the Possibility of
Limiting Populousness (a 6 edição saiu em 1826), nos dias de férvido
malthusianismo, propusesse, com singeleza e descaro, que o Estado não
deixasse a família operária passar de dois filhos e meio (o “meio” resultava
do cálculo feito), devendo as sobras da produção ser destruídas
eutanasicamente (the exeess being painlessly destroyed). Ora, evidentemente,
a teoria da população, montada na hipótese malthusiana, refletia as
circunstâncias do meio inglês. Foi a transição do século XIX para o XX que
ditou os termos do problema, sem cavilações ou reticências, às elites com
medo da massa de deserdados vociferantes. Seu desejo de sobreviver
transformou-se no direito à vida. Através dos idealismos mais ou menos
agitados ou desvairados, fortalecia-se o direito inapelável, prosseguindo o
esforço de organizar formas racionais de convivência humana, o que só será
possível em sistema que assegure efetivamente a liberdade. Liberdade em
todas as modalidades como prerrogativa do regime. Liberdade que a
opressão econômica subtraiu de grande massa de seres humanos, no
capitalismo, e que não foi restituída nas latitudes dos regimes ditos
socialistas, onde impera, de fato, o mais tirânico capitalismo de Estado.
Onde esse Reino bem-aventurado, que não é deste mundo? dirão os realistas
com ressaibos de ironia conservadora. Toda idéia pioneira madruga nos
espíritos que sonham. Péricles disse aos atenienses que o segredo da
liberdade era a coragem. E o professor Harold Laski ponderou: “A
qualidade do clima livre é luz antes de ser calor. Porque a luz permite
argumentar e não podemos debater com homens que estão apaixonados.
Nada é tão fácil de gerar paixão que descobrir a ameaça de sacrificar seus
privilégios. O caminho da liberdade, portanto, está no promover a
organização das instituições sociais de modo que não haja privilégio a
sacrificar”.
Ressalta disso tudo uma grande, uma luminosa verdade: o Poder não deve ter
ortodoxias filosóficas ou religiosas. É o que nos ensina a história do
pensamento político. E para apoiar esta afirmação — quem invocarei? Uma
oportuníssima reflexão de Teófilo Ottoni, o grande “lusia” da Companhia de
Mucuri, na sua famosa Circular, a inconfidência de 7 de abril foi a
independência de 7 de setembro. E mais por trás, desenha-se a forca de um
alferes e um grupo aflito de intelectuais. No correr dos episódios históricos,
o mesmo fato toma nova significação. Essa variação de sentido é função de
uma correlação das forças sociais que produzem o movimento histórico, as
quais não são absolutamente imobilizáveis, porque neste caso não seriam
“forças”.
Vamos por partes. Em primeiro lugar, não defenderia tal simplismo. Não
predico uma ressurreição de valores embalsamados em textos — mas sim, o
estudo dó passado como fonte que se revitaliza à custa de experiência do
presente. O acumular dessas perspectivas, como disse há dias no Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, enriquecendo o presente, dá nova
opulência ao passado, suscitando outras formas de consciência e de estilos
de ação. Dele, portanto, não brotará essa vis inertiae de reação esclerozante,
mas um fluxo espiritual de progresso.
NOTA
Tal pergunta, sob outra forma, foi formulada num pronunciamento do Reitor
R. Connick, na Universidade de Berkeley. Com aquela objetividade do
espírito americano, e num teor essencialmente pragmático, ele procurava
analisar o quesito que às vezes entre nós, latino-americanos, se envolvem
numa difusa argumentação filosófica, que nos conduzem a torneios
especulativos e não a resultados positivos.
Para tomar posição diante do problema nesta palestra, fui à cata de um autor
russo, pois me pareceu curioso examinar como um grande intelectual
soviético delineava o tema da liberdade de pensamento altamente
interessante para nós do ocidente. Trata-se do físico Andrei Sakharov. Se
ainda viver, deve orçar aí pelos seus 49 ou 50 anos. Em 1945, com 24 anos,
ele tomava parte proeminente na confecção da primeira bomba H, que
explodiu pelos idos de 1945. Trabalhara na confecção desse engenho ao
lado do prêmio Nobel de Física, o professor Tomski. O livro, do qual retiro
as citações, que são cálidas, contra o confisco da liberdade de pensamento
do sistema socialista vigente na Rússia é de um homem de coragem, que já
perdeu a miragem de sonhos adolescentes. O libelo, que Sakharov escreveu
defendendo a liberdade do intelectual, acarretou-lhe a malquerença das
ortodoxias marxistas, que lhe rosnaram nos calcanhares. Ignoro se não lhe
resultaram consequências mais sérias e restritivas. Porque o eminente físico
se bate pela emancipação do intelectual, avacalhado na servidão do Partido
monolítico leniniano, e blatera contra o ópio da “cultura de massa”.
Os intelectuais, que por ventura se matriculam, nas suas agências, abrem mão
das faculdades críticas que caracterizam o homem de pensamento, a
faculdade de discutir idéias. Dir-se-á que, dentro dos organismos de base, as
chamadas “células” discutem à vontade; mas todo mundo sabe, pela leituras,
pelo exame de documentos, ou pelo trato ou convivência com alguns desses
sectários, que as ordens da cúpula são aceitas pelas tais células básicas, que
as executam servilmente. O intelectual, que por ventura penetra nesses
núcleos ascéticos de obediência, renuncia a autonomia mental para acolher
as decisões que vêm das cúpulas onividentes. Todas tentativa crítica é
considerada burguesismo, infecção de sua educação. Se não recita a cada
passo o mea culpa da autocrítica, vai logo posto no olho da rua, para o ar da
liberdade dos partidos, fora do ambiente onde arquejam as convicções
sufocadas.
Por uma tarde de maio, crispada num friozinho sutil roçando a pele e a alma,
ao dobrar a Calle Viamonte, caminho da Faculdade de Letras, onde dava
cursos de literatura brasileira entremeada de análise social, — um aluno me
detém e aponta para o primeiro andar do número 776 — “Professor, o senhor
admira tanto Ingenieros, pois ali era o consultório dele”. E, ante minha
curiosidade comovida, atalhou que lá dentro nada lembrava mais a presença
do escritor e o seu remoto consultório. Mas a viúva ainda vivia... Eis o que
escrevi, tirando trecho de um diário, num ensaio benevolamente esquecido:
“Ainda ouvi, pelo telefone, marcando-me entrevista em sua casa, Eva
Rutenberg, a esposa de José Ingenieros. Era 14 de julho; dias depois, a filha
comunicava que, após o almoço, na suavidade de seus quase oitenta anos, no
repouso da sesta, ela expirava docemente. Tudo soube de Délia e Julio
Ingenieros, revendo antigos livros que tinham pertencido ao pensador e
escritor. Dizem-me que sua mãe gostaria muito de falar sobre o marido a um
escritor brasileiro: tinha uma excelente memória e narrava pormenores
curiosos sobre a personalidade que era exemplo de saúde e força moral.
Pois era ali na Calle Viamonte, depois da clínica, que iam buscá-lo os
amigos para a “charla” intelectual, nos cafés, com o zombeteiro grupo de A
Siringa. Recolhia-se tarde; e, cerrada a porta do gabinete, após uma refeição
de leite e biscoitos, retemperado da folga boêmia, iniciava o estudo e a
produção admirável que só a morte haveria de interromper”.
Por esse ângulo (que não escapou a Romero) “sua atitude pessoal em frente à
filosofia não é rigorosamente positivista, porque não rechaça de plano a
metafísica nem a indagação a respeito dos problemas que estão para além do
campo científico”.
Quantos aspectos dos três pensadores deixo à sombra. Nem sequer falei de
seus primeiros passos científicos, com a tese La Simulación de la Locura,
nem falarei da empresa editorial “Cultura Argentina”, que lançou ao
mercado toda a riqueza de Alberdi, Sarmiento, Echeverria, Rivarola,
Agustin Alvarez, que eram inacessíveis ao estudante! Nem referirei as
conferências sobre uma Universidad del Porvenir, que a seu modo e dentro
de seus postulados, traçava o programa de como deveria ser o centro de
propulsão do pensamento científico integrado no processo de renovação em
que hoje nos empenhamos ante as perspectivas tecnológicas e seu impacto na
vida da inteligência.
NOTA
D.M.
XI. LIBERDADE
UNIVERSITÁRIA
Mas não é esse lado do problema que cumpre examinar agora. No tocante à
liberdade universitária, nervo essencial da nossa sensibilidade às idéias, o
princípio sofre adulterações astuciosas, que iludem os alunos. E o sofisma
que se arma, assenta na forgicação das premissas, que são postas às claras.
Passo aos fatos. A Universidade para realizar suas funções de transmitir o
conhecimento e de fazê-lo progredir (isto é, ensinar e pesquisar), dispõe de
certas estruturas. O aluno, que se matricula em determinado curso, tem
objetivos definidos nos respectivos estatutos e leis; inseriu-se num grupo
organizado para aprender determinadas matérias, que estão no currículo.
Pagou, matriculou-se para aprender física, matemática, psicologia, história,
etc. Se em vez disso, passa a ter aulas sobre Vietnam e política
internacional, fora de seus programas, estão lhe vendendo gato por lebre.
Comprou uma coisa, vendem-lhe outra. Foi ludibriado. Em nome de que? Da
liberdade de pensamento! É o que lhe bradam as minorias agitadas, cujos
arautos se tornam responsáveis pela fraude à liberdade em nome da
liberdade. Porque, sonegando os objetivos que atraíram as matrículas, estão
impingindo novos objetivos, que podem ser belíssimos — mas sobre os
quais os alunos não foram previamente consultados. Depois de reunidos, nas
formas do coleguismo estudantil, deixam-se levar, inibidos por uma falsa
compreensão de solidariedade universitária. Muitos deles, em íntimo
desacordo com a situação criada, retraem-se, intimidados pelo proselitismo
organizado e militante este só poderia ser combatido por outra frente
congênere e oposta, conjugando-os para fazer valer seus direitos de
estudantes, que desejam estudar física, química ou sociologia.
Para não alongar repetindo o que pode o leitor encontrar facilmente noutros
autores, remetemo-lo, ampliando as premissas deste insignificante ensaio, a
duas outras obras de grande densidade, respectivamente, Science and
Politics in the Ancient World, de Benjamin Farrington e El trabajo manual en
la Antiguidad clássica, de R. Mondolfo. De certo poderia arrolar ainda
muitos outros — mas já nos bastam os citados como motivação para nossas
primeiras reflexões. No correr delas invocaremos outros pensadores que
balizarão a rota da pergunta formulada acima.
Como ensinou Hegel, o “conceito” da coisa não está só no espírito, que não
é algo passivo, a refletir os processos externos, mas algo extremamente
ativo, captador, que mergulha na intimidade do Real, que “descasca” esse
Real da forma fenomenal porque se dialetiza a essência, triturando a cisão
dualista concebida pelo senso vulgar — e o apreende no seu “oposto” num
mundo inteiramente outro de relações heraclitianas. Inconcebível ao
formalismo lógico, é irredutível ao pensar comum.
Revertendo ao ponto. Como qualificar de malignas e agrestes a Ciência e a
Técnica? Anotemos um dos caminhos — a sua utilização anti-humana. Desde
que a utilização favorece os desígnios humanos que as geraram, é útil, o
oposto será o nocivo. Mas se as desprendemos daquele processo humano,
encarando-as em-si, então nem sequer tomam qualquer conotação: elas são
axiologicamente neutras. Do ponto de vista ético, não teriam “sentido”. Que
é eticamente uma pedra? Nada: não tem determinação ética. Empregada para
esmagar o ser humano — um mal. Sabemos que estamos argumentando com
duas categorias distintas — a economia (útil) e a moral (bem) — mas nos
colocamos provisoriamente do ângulo pragmático. “Em-si”, é uma “coisa”
natural cujas conotações são propriedades físicas. Mas uma faca já não é
apenas produto natural: resultou de uma ação humana finalística — e o fim
dá-lhe sentido axiológico. Todos os produtos culturais mergulham nessa
ambiência vital que lhes dá valor, como se mergulhassem numa radiância de
“intelegibilidade”. Mas também nas coisas naturais o homem “descobre” o
valor, seguindo-se a valorização. A indagação de “para que serve?” é o
limiar da penetração do espírito, — o revelar-se do conceito, que vai
crescendo axiologicamente da natureza inanimada ao orgânico, daí ao
mental. Sua plenitude está na zona do consciente onde o espírito encontra-se
a si próprio.
Mas tratando-se do que é criação humana, a essência não poderá ser maligna
e agreste.
b) digitabilidade (cheirotechnès)
Pois toda essa mixórdia tem seus teoristas — adultos que vêm à ribalta da
imundície teorizando sobre a repressão antiga, falando na resistência dos
“quadrados” ao espírito novo e à nova educação, que abre respiradouros aos
adolescentes oprimidos, ávidos de viver a sua própria vida. Outro dia, uma
dessas personagens, coerentes com as premissas, quis provar na tevê suas
teses de liberdade: começou a despir-se entusiasticamente. A estação,
porém, num gesto de opressão, cassou o programa do ar alguns minutos,
enquanto puxavam, alarmados, o herói para os bastidores. Talvez ainda seja
cedo para a realização de suas teses, por isso o precursor não teve seu
direito de exibição respeitado. Ainda reina, na opinião dos “pra frente”,
muita hipocrisia na legislação. Mas o Dr. Alceu de Amoroso Lima confia em
Deus que eles vencerão — e implantarão a nova ética, varrendo o lixo
burguês.
Para essa manipulação se desfiguram muitas medidas. Cito uma delas, tirada
do ensaio de Adam Curle, incluído no livro The Neto University. — Ele nos
mostra como o Q.I. se tornou critério falho, visto a longo prazo. Explicou-
me. De modo geral, exaltando o heterodidatismo, o sistema educacional tem
prevenções inconfessadas contra o autodidata, porque lhe foge da alçada.
Recusa a rotina de seus padrões normativos. As aptidões originais
contrariam os hábitos pedagógicos dos mestres, já encruados em paradigmas
docentes. A história das descobertas é fecunda no exemplo de inovações
repelidas pela sabedoria oficial. Agora porém, me refiro a processo mais
sutil. Por que se preferem as crianças de alto Q.I. às que têm mais
imaginação criadora? Responde Curle: — porque os estudantes de alto Q.I.
aceitam os mores e padrões da escola, enquanto os imaginativos são
recalcitrantes e mais difíceis de domesticar. A consequência é que o
desajustado imaginativo, se não é maleável às pressões do meio educativo,
será um inconformista, um crítico, o que não é socialmente maléfico porque
o processo da evolução precisa desses fatores lúcidos de analistas. Mas nem
sempre a personalidade crítica se forma equilibradamente — e, do mesmo
teor, se geram os esquizoides do movimento destrutivo, cujo papel é apenas
esse negativismo antissocial, agressivo e paranoide, nocivos à coletividade.
Assim, do ponto de vista político, chego a uma conclusão que não hesito em
declarar: a defesa das estruturas familiares é o ponto de partida contra a
massificação que, por sua vez, é a premissa do totalitarismo. É um sorites
que tem validade histórica. Toda a análise, que vimos fazendo, não é no
intuito de alinhar considerações abstratas, mas de retirar do exame abstrato
os ensinamentos práticos de ordem política. Isto é, normas de conduta que se
possam incorporar na sistemática de um programa.
Vejamos apenas uma componente familiar — porque a família por sua vez,
reflete, num efeito de ricochete, as transformações de sociedade
contemporânea.
Onde, nesse processo rural, a educação para a civitas, com o exercício dos
direitos políticos? onde o “povo”? Vale a pena ouvir Oliveira Vianna: “o
povo no sentido moderno que damos a esta palavra — o povo do sufrágio
universal, a massa que hoje vemos afluir aos comícios eleitorais — nada
disso tinha significado naquela época, endeusado pelo lirismo dos nossos
historiadores e publicistas liberais. Do eleitorado daquele tempo, como já
acrescentamos, estava afastados os negociantes “de Vara e covado” e os
taverneiros (os que mantinham “logea aberta”), bem como os seus
empregados, os que praticavam “arte mecânica” (os que trabalhavam em
“ofícios manuais”; e os pardos e os mulatos e os mestiços de todo gênero; e
os trabalhadores do campo, massa enorme que forma hoje a quase totalidade
do nosso eleitorado”.
A discriminação mostra como na Colônia era excluída das áreas
administrativas e decisórias extensa parcela de população ativa, a qual se
deve somar a classe baixa — o operariado atual — composta de mestiços e
mamelucos, a miuçalha, plebeus sem terra, a peonagem rural, os foreiros, os
agregados que não gozavam do jus sufragii, conferidos nos pelouros. Essa
massa, que se agregava aos clãs eleitorais do Império, foi convocada às
urnas pela ideologia do sufrágio universal, instituindo na Constituição sem
adveniência da estrutura de solidariedade social, que facilitasse a comunhão
cooperativa e o espírito público. O Estado não surgiu de vínculos de
vicindade e da consciência de interesses coletivos, porque as autarquias
agrárias do patriciado rural exprimia o privatismo, que definiria o regime do
coronelismo municipal ao longo da primeira República. Que fez o
liberalismo político? Esqueceu essas realidades nacionais ao idealizar o
figurino republicano. Essa a acusação de Alberto Torres, para invocar o
espírito mais límpido da crítica nacionalizadora dos nossos estudos sociais.
Não insisto nos estribilhos dessa crítica já demasiadamente repisada por
escritores valiosos. Torres aludia a “misérrimas realidades”. Não adoto o
superlativo, prefiro ouvir estas palavras de um saudoso mestre e amigo — o
sociólogo Oliveira Vianna: “Na verdade, o que devemos fazer para melhorar
o teor da nossa vida pública, não é imitarmos os ingleses e querermos ser
como eles — nesta vã esperança de que podemos mudar de natureza à golpe
de leis ou de Constituições. O que devemos fazer é aceitar resolutamente a
nossa condição de brasileiros. As consequências da nossa “formação
nacional”; é tirarmos todo partido disso. Não há razão para nos
envergonharmos dos nossos clãs, da nossa politicagem e dos seus
“complexos” políticos: somos assim, porque não podemos deixar de ser
assim; e só sendo assim é que poderíamos ser como nós somos”.
Fevereiro de 1971.
Alguns docentes têm achado que não deveríamos rechaçar tais ataques a
nossos colegas. A polícia, dizem eles, tem tratado das atividades públicas;
os ataques não conseguiram silenciar seus objetivos; e condená-los
publicamente equivaleria a dignificar ações que não merecem atenção.
Discordamos por vários motivos.
Em terceiro lugar, embora os homens que têm sido atacados até agora não
tenham silenciado, um ataque sobre um é tentativa de intimidar os outros —
tentativa essa que parece já ter obtido algum sucesso. Nem todos nós
estamos acostumados a enfrentar ameaças de represálias, de audiências
hostis e intempestivas, de interrupções de aulas — nem deveriam os
docentes ser uma mistura entre um ativista político e um soldado nacional. O
grande perigo que há no ataque a professores de nomeada (que podem ser
capazes de se defender melhor que os demais) é a pressão sutil que se
exerce sobre outros professores, em áreas críticas de conhecimento. A
coerção encoraja a autocensura, a predisposição de deixar omisso este
tópico controverso ou aquela interpretação, de modo a evitar as temíveis e
desagradáveis confrontações por que passaram outros professores.
Acreditamos que o principal objeto desses ataques a professores de renome
seja o de criar um clima em que outros passarão a hesitar antes de dizer
coisas ou apresentar materiais condenados por esses pretensos censores.
Não poderia haver maior ameaça à vida intelectual de nosso campus que a
poluição do clima que permite e defende a livre atividade intelectual e a
livre expressão em qualquer disciplina.
prefacio
VI
XII
ANEXOS
1. Berkeley: Gabinete do Chanceler 23 de setembro
de 1970
Mas não confundamos alhos com bugalhos. Muitos dos que reclamam a
liberdade de pensamento não estão à altura do exercício científico que
alardeiam — e prevalecem-se do princípio constitucional de livre debate
das idéias para a catequese juvenil, que pretende utilizar o “auditório
cativo” na ação aliciante. Tocamos frequentemente nesse ponto nevrálgico
no correr destas páginas — mas nunca é demais insistir no estribilho.