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A CULTURA DO RENASCIMENTO NA ITALIA Jacob Burckhardt A CULTURA DO RENASCIMENTO NA ITALIA Jacob Burckhardt BL © 1991 by Edtora Universidade de Brasiia, que se reserva 0s direitos desta tradugio “Tule oxgina Die Kultur der Renaissance in Halien Tradugio feta sobre a versio inglesa editada em 1878, que corresponde a0 texto imegrl ds segunda edigao alems, de 1869, ecotsjaa com a edigbes alema e espanol de 1928 e 1959, espectivament ‘Agradecemos a Casa do Estudante do Brasil pela autorizagdo para reproduzin, ‘como precio desta obra, o ensaio de Oto Maria Carpeaus, cujs direitos atorais so preservados Eeltora Universidade de Brasilia Caixa Postal 15-3001 "70910 Brasilia, DF Traducio: ‘Vera Licia de Oliveira Sarmento ¢ Femando de Azevedo Corréa Revisio da adugao: Sérgio Fernando Guarisehi Bath e Alberto de los Santos reparagio de orginaise revisio de provas: ‘Ana Tereza Perez Costa, Fatima Rejane de Meneses, Mauro Ceixota de Deus ¢ Regina Coeli Andrade Marcues Supervisdo Antonio Busta Filo e Elmano Rodrigues Pineiro Ar Cope Cheduitiuc. Fernando Lopes 45-99 £8 (0.00 imal 8439.9 ISBN 85.230.0266.9 Js Dados de catalogapio na publicagio ‘Burckhardt, Jacob (1818-1897) A cultura do Renascimento na Iti: um ensso / Jacob ‘BureKhardt; radupdo de Vera Lucia de Oliveira Sarmento © Femando de Azevedo Correa, - Brasilia: Editora Univers dade de Brasilia, 1991, 347. Os classics . SUMARIO Jacob Burckhardt: profeta da nossa época, de Otto Maria Carpeaux Parte I ~ OESTADO COMO OBRA DE ARTE Introdugao... . Déspotas do século XIV. Déspotas do século XV s pequenos despotismos As grandes dinastias . 0s oponentes dos déspotas . As repiblicas: Veneza e Florenga Politica externa . A guerra como-obra de arte - © papado . Patriotismo Parte I 0 DESENVOLVIMENTO DO INDIViDUO. O ridiculo e © humor Parte I = O REFLORESCIMENTO DA ANTIGUIDADE Introdugao . ‘As muinas de Os humanistas Universidades e escolas . Propagadores da Antiguidade .. ‘Reprodugéo da Antiguidade: Epistoloiatia Oradores latinos . O tratado ¢ a historia em latim ...... vii 105 109 115 121 125, 129 137 144 A Antiguidade como fonte comum .... 148 A poesia neolatina . 153, ‘A decadéncia dos humanistas no século XVI. 162 Parte IV A DESCOBERTA DO MUNDO E DO HOMEM ‘As viagens dos italianos im As ciéncias naturais na Italia... 173, A descoberta da beleza da paisagem, 178 A descoberta do homem ...... A biografia na Idade Média e no Renascimento Descrigéo do homem exterior Descrigao da vida humana ...... 2 Parte V AS FESTAS E A VIDA SOCIAL Igualdade de classes 217 Vestuario e moda... 223 Linguagem e sociedade 228 Etiqueta social ... 232 A educacao do cortigiano 235 Misica 237 ‘A igualdade entre homens e mulheres 239 Vida doméstica .. i 243 Festas ... 245 Parte VI MORALIDADE E RELIGIAO Moralidade e discernimento ... 261 Moralidade e imoralidade 262 A religido na vida cotidiana q 280 A forga da velha f6 296 A teligito e 0 espitito do Renascimento . 302 Influéncia da antiga superstigio ..... 313 A generalizagao do espirito de divida . 334 Indice a 341 JACOB BURCKHARDT: PROFETA DA NOSSA EPOCA Otto Maria Carpeaux A Gloria, ja se disse, ¢ 0 conjunto dos mal-entendidos que se criam em torno de um nome. Muitas vezes esses mal-entendidos formam um denso nevoeiro, donde surge um busto de gesso, o idolo das Obras Completas, cobertas de poeira: é 0 caso dos‘ clissicos’. As ‘vezes esses nevoeiros desaparecem, de sibito, para permitir uma ressurrei¢ao surpreendente: ¢ 0 caso dos ‘poetas malditos’. E muito raro que © véu se levante pouco a pouco, oferecendo o espetdculo de uma renovacdo incessante, toda a historia de uma gloria: € 0 caso de Jacob Burckhardt. s seus contemporaneos conheciam-no pouco. A posteridade imediata reconheceu o grande historiador da civilizagdo, para depois ‘enganar-se profundamente sobre as suas teorias. Para nos, no momento que atravessamos, tornov-se o conselheiro intimo da nossa angistia. Amanha sera um profeta, o ultimo dos profetas talvez, ja ‘que o tempo nao tera mais futuro. Eis quatro etapas da historia de uma sl6ria. O caminho para a compreensao esta tracado. ‘A sua biografia é muito simples. Filho de uma velha familia patricia de Basiléia, nascido em 1818, consagra-se aos estudos mais diversos. Uma incursdo no jomalismo politico fracassa. De 1844 a 1893, ensina historia das belas-artes na velha universidade da sua cidade natal, poueo conhecido do piiblico, mas muito estimado dos seus colegas. Burckhardt ama a sua cidade, as estreitas ruas medie- vais, 08 telhados e torres, observatdrio do grande mundo batalhador fuori le mura, a cidade intima, patria; 86 a abandona para Viagens & Talia, pais da sua nostalgia, nunca atenuada, Recusa cargos honrosos nas grandes universidades alemas, trago de profunda significagao que compreenderemos depois. Enfim velho e fatigado, retira-se da ativi- dade para morrer docemente num dia de agosto de 1897. Uma vida fora vivida. Como explicar essa mistura dum patricio reservado ¢ dum ‘pequeno-burgués afével, dum professor pedante e dum poeta fracas- sado? Essa deciftacdo revelara algumas surpresas. Os seus alunos ‘também se surpreenderam, quando da primeira visita protocolar de Este ensti, publicado originalmente no Correia da Mana, do Rio de Yancro, foi eproduzido na coletanes: A cinza do Purgatéio, Riode Janciro, Casa do Estudante o Brasil, 1942, p. 15-26. ‘um estudante: 0 sébio inabordavel falava na intimidade odialeto rude, quase humoristico, dos suigos, regalava 0 seu convidado com bons vinhos, explicava as suas colegdes artisticas, tocava 20 piano o seu querido Mozart, para enfim queixar-se dos seus criados. Oh! que velho epicurista, esse professor de historia, esse historiador de segunda ordem! Até faz rir: ele teria, no seu auditério, chorado lagrimas de crocodilo, ao recordar as obras perdidas da Antiguidade, destruidas pelos barbaros; nio sera isso um anacronismo, no nosso século iluminado? Um dia o bom velho foi encontrado morto, bem ‘morto. Mas atentai: ele voltara. Alguns anos depois da sua morte voltava, por uma segunda edigao surpreendente, 0 grande historiador da Cultura do Renasci- ‘mento na Italia. O livto, quase despercebido quando seu autor estava vivo, esse livro imenso, reconstrugao integral de um século, de uma civilizagao desaparecida, esse livro ¢ uma primeira revelaga0 e ria 0 primeiro desses mal-entendidos que fazem uma gloria. O livro provoca uma moda européia, o culto do Renascimento, a adoragao dos grandes animais ferozes de génio artistico. O burgués de dinheiro, ansioso por uma arvore genealdgica, acredita reconhecer-se nesses |homens geniais que devem tudo asi mesmos. Hoje, nos palicios e nas ‘casas burguesas da Europa os méveis a Renascenca, tipo 1890, sao obstaculos a circularao, colecionadores de poeira. Mas os filhos desses burgueses ainda nao se despiram do costume renascentista dos seus pais: misturando o fraco poema de Gobineau e as visdes de ‘Spengler, esses seforitos, para empregar a expresso de Ortega y Gasset, fazem-se confirmar pelo professor de seus pais, confirmam os seus proprios principios maquiavélicos e desumanos, para se tornar, cada um deles, 0 seu proprio condortiere. Seria necessario fechareste livro, grande e perigaso, e escrever na sua capa: E proibido citd-lo! ‘Nao se queria do Burckhardt morto senao Renascimento, Mas alguns discipulos fiéis no paravam de pesquisar nos seus manus- critos. Apareceu enfim a Histéria da civilizacdo grega. Mais uma ‘vez, uma revelagao, Esti definitivamente destruido 0 idilio dos anacreénticos, o mundo ideal da alegria olimpica; e acha-se desco- berto 0 bas-fond da alma helénica, o pessimismo de um Séfocles, 0 desespero de um Tucidides, a angistia de um Platao. A arte grega nao € sendo um grito de dor transfigurado em marmore, E certo que esse mundo helénico, visto através de um tempera- ‘mento schopenhaueriano, esta impregnado da consciéncia civica de Burckhardt, cidadao-patricio de uma pequena repiblica medieval, agora radicalmente democratizada. O mistério do pessimismo antigo, de acordo com Burckhardt, € 0 martirio da polis, da cidade, T desaristocratizada, despida dos seus fundamentos religiosos, apos- tata, vitima da tirania demagégica. Se bem que nao chegando a compreensio dum Fustel de Coulanges, Burckhardt fornece 0 primeiro exemplo de sociologia religiosa, logo mal compreendido ‘como programa de renovacao politica e cultural, sobre as bases de uma nova religiao. O autor desse makentendido niio ¢ outro senao Nietzsche, jovem colega de Burckhardt na Universidade de Basiléia Durante toda a sua vida Nietzsche tentou basear as suas doutrinas nas idéias de Burckhardt: durante toda a sua vida Nietzsche tentou con- seguir a amizade do velho professor. Tudo em vio. A iiltima carta do fildsofo, ja louco, é dirigida a Burckhardt: “Agora, vocé é, tu és 0 mestre!” Esse “tu” nunca foi retribuido. Mas a falsa interpretagio ficou, Por fim a heranga de manuscritos inéditos devolve o tesouro mais precioso: as Consideragdes sobre a historia universal. E 0 manuscrito de um curso universitario feito sob a impressio da guerra de 1870, sob a impressdo da queda da civilizagao francesa e do advento do império militar dos alemaes. Contam que, ouvindo durante a aula o falso boato de que o Louvre havia sido incendiado com todos os seus tesouros artisticos, Burckhardt chorou diante dos seus alunos indolentes, Nao seriam coisas impossiveis na nossa época ilustrada? Esperem! Daqui a alguns anos aparecera um livro sobre a ‘guerra, sobre as grandes crises, sobre a felicidade e sobre a desgraga na historia, sobre a verdadeira e a falsa grandeza humana, um livro que sera o brevidrio e o consolo de uma geragdo sem esperanga: a nossa geragao. Sobretudo, algumas passagens quase proféticas fizeram deste livro o titimo apoio espiritual de mithares de intelectuais da Europa Central Burckhardt nao queria profetizar. Procurou somente as reagdes invariveis dos homens diante dos seus destinos historicos. Fixados (s tragos, acontece que reaparecerao num mundo que Burckhardt, para sua felicidade, nao chegou a ver. Quando nos consola dizendo que os males da historia sio sempre maiores que os nossos, ao mesmo tempo desfaz. benefica- mente as nossas ilusdes de progresso, Acha a guerra inevitavel; mas “o que nao é certo é que a uma guerra ou a qualquer invasio suceda necessariamente uma renovagdo, uma ressurreigdo. O nosso planeta é talvez bem velho; nao se prevé como grandes povos, petrificados nas suas civilizagées, recomecariam as suas vidas; assim povos desapa- receram ¢ outros desaparecerao... Muitas vezes, a defesa mais justa toma-se inutile jé é muito se Roma concorre para celebrara gloria de Numancia e se 0 vencedor se ressente da grandeza do vencido.” Sente-se Marco Aurélio nestas palavras. ‘A guerra & 0 auge dessas convulsées que’ sacodem periodi- camente a humanidade: as crises. Burckhardt é sobretudo 0 criador da nogdo moderna de crise, & qual se subordinardo todas as teorias posteriores. ‘A crise é a passagem das massas por um perfodo de soberania; ‘massas incapazes de compreender e de conservar o que foi, incapazes de conceber ede construiro que sera. A crise é uma fase intermediaria entre a democracia nascente e a democracia abolida, tinica época da democracia realizada; segue-se-lhe 0 despotismo, que restabelece a ordem, a ordem dos cemitérios, cemitério daquilo que nao voltara nunca. Foi Burckhardt quem primeiro descreveu @ hora decisiva, quando a crise explode: “ Subitamente o processo subterraneo evolve com terrivel rapidez; evoluedes que levariam, em outro caso, séculos a se realizarem, cumprem-se num més, numa semana, como fantas- mas. Soa a hora, e a infeogao se espalha num instante, sobre centenas de milhas e sobre as populagdes mais diversas, que nao se conhecem ‘umas as outras... Ads protestos acumulados contra o passado juntam- se terrores imaginarios, e & vontade de tido mudar se junta a vontade de vingar-se dos vivos, em lugar dos mortos, os inicos inacessiveis.” Evitando os psicologismos féceis, Burckhardt nao se presta as generalizagdes de um Le Bon, como também a sua superior erudigao historica evita as teorias ciclicas de um Sorel. Burckhardt nem louva nem censura: comprova; mas notar-se-a nas suas palavras sobre 08 ‘mortos, inacessiveis aos terrores do futuro, um suspiro de alivio. Burckhardt conhece, pois, o terrivel cardter das crises, incom- preensiveis no século estipido” do" progresso irresistivel”. “Existe ‘ainda uma oposigao conservadora: todas as instituigdes estabelecidas tomadas direitos, tomnadas 0 proprio direito, indissoluvelmente ligadas a tudo o que era, até entao, morale cvilizagao; e depois todos 6s individuos que as representam, a elas ligados pelos deveres e pelas vantagens. Dal é que vem a gravidade dessas lutas, o desprendimento do pathos, de um lado e de outro. Cada partido defende o seu ‘mais sagrado’, aqui um dever e uma religiao, ali uma nova teoria do mundo, Dai é que vem a indiferenga pelos meios, a mudanca até das armas € das atitudes, de modo que o reacionario faz o papel de democrata ¢ 0 demagogo representa 0 ditador.” que se eleva sobre essas terriveis baixezas € a meditagao acerca do grande homem; ele nao é, absolutamente, 0 exemplo, 0 modelo: é a excesao, a ultima ratio da historia. “Ninguém é insubstituivel” — diz 0 proverbio. - “Mas aqueles que ninguém pode ssubstituir, esses sto grandes.” Burckhardt nao cai no hero-worship de ‘um Carlyle. Poderia subscrever a frase de Luis XVIII: “Quand le grand homme apparait, sauve qui peut!” “Pois ratissima é a grandeza alma pronta a renunciar as vaidades criminosas, a grande tentagao dos poderosos: o poder pelo poder. E por esta razao que 0 poder nao ‘melhora os homens.” Surge a velha desconfianga do calvinista contra © poder temporal: nao existe poder temporal de direito divino; mais depressa sera de direito satanico. “O mal, como mal, domina freqtientemente sobre a terra, e por muito tempo, ¢ a doutrina verdadeiramente crista chama Lucifer de principe deste mundo.” Sobretudo ‘todo poder é mau”. “Todo poder é mau.” Aqui esta centro da doutrina burckhardtiana, muito impregnada de Schopen- hauer € do seu pessimismo anti-historico, muito impregnada do fatalismo dos estdicos; heranca, afinal, dos antepassados, calvinistas € cidadaos livres da repiblica medieval de Basiléia, e da sua desconfianca dos poderes temporais. As obras da civilizacdo neces- sitam de ordem, é verdade. Mas 0 estado florescente da arte, sob a cordem dos déspotas, no passa de uma razio atenuante, boa para fazer reaparecer os tempos longinquos, sob a luz de uma falsa transfiguracao. “Uma ilusao de éptica nos engana sobre a felicidade ‘em certas épocas, em relacdo a certos povos. Mas essas épocas eram também, para outros, épocas de destruigo e de escravatura; tais pocas sao consideradas felizes, porque nao se leva em conta, et pour cause, aeuforia dos vencedores.” A felicidade nao ésendo uma ilusao de dptica dos historiadores. Nas suas Consideragdes sobre a histéria universal, Burckhardt nao disse tudo. © comentério indispensével é a sua correspondéncia, Aqui aristocrata reservado, 0 sabio timido, abre-se em confidéncias ‘40s seus raros amigos e lhes comunica os seus receios apocalipticos. Addverte e adverte: "Um terrivel despertar esta reservado aos homens de bem que, em vista dos grandes inconvenientes reais, participaram do jogo da oposicao; eles verdo, horrorizados, surgirem aqueles de quem eram ciimplices.” (26 de janeiro de 1846). Cedo ele desanima: “Nada espero do futuro. E possivel que alguns lustros passavelmente suportaveis nos estejam ainda reservados, maneira dos imperadores adotivos de Roma; porém nada mais.” (14 de setembro de 1849). “De ha muito sei que o mundo esta sendo levado para a alternativa, entre a democracia perfeita e o despotismo perfeito; mas este no mais sera exercido pelas dinastias, demasiado fracas, mas por destacamentos militares soi-disant republicanos.” (13 de abril de 1882). “Um pressentimento, hoje considerado louco, diz-me: 0 Estado militar serd um grande industrial; as massas, nas cidades enas, uusinas, nao serdo mais deixadas na misériae livres nos seus desejos; lum certo grau de miséria, fixado e controlado pela autoridade, iniciado encerrado cada dia com o rufar dos tambores: € 0 que devera advir de acordo com a logica.” (26 de abril de 1872). E se ‘quiséssemos opor a esta logica cruel? Uma anotagio, inédita durante muito tempo, responde: “Os povos transformaram-se em um velho ‘muro, onde no se pode mais fixar um prego, pois néo fica seguro, E esta arazio por que, no agradavel século XX, a Autoridade reerguerd a cabeca, ¢ seré uma cabega terrivel.” Terminou a profecia E privilégio dos profetas serem mal compreendidos. Burck- hardt, depois de ter sido confundido com Gobineau, com Nietzsche, com Le Bon, foi confundido com Spengler. Julga-se ter sido Burck hardt o profeta da Decadéncia do Ocidente; fazem-no confessor dos intelectuais desesperados, que desesperam do mundo e de si proprios. ‘Mas a verdade é outra, a doutrina é muito mais profunda, Burckhardt ¢ formado na civilizacdo da velha Europa luxem- bburgo-borgonhesa entre a Itilia e a Bélgica, os paises de sua predilegio; vemo-lo hoje a luz dos seus ‘irmaos no espirito’, Jan Huizinga e Benedetto Croce. Como eles, @ patricio e burgués a0 ‘mesmo tempo, & conservador e humanista ao mesmo tempo; 0 intelectual que fez parte per se stesso. Burckhardt era um prototipo do intelectual, ¢ ele o sabia: “Pereceremos todos; mas queria 20 menos fazer a minha escolha, escolher a coisa pela qual perecerei: a civilizagao da velha Europa.” (5 de margode 1846). Diz, porém, essa verdade pessoal quase a sorrir. Nao desespera, opde-se: “Espero crises terriveis; mas nenhuma revolugao anulara a minha sinceridade, a minha verdade interior. Antes de tudo, sera preciso ser sincero, sempre sincero.” (13 de junho de 1842). Ele era um homem. Era um homem, no sentido dos estéicos. ‘Si fractus illabatur orbis, Impavidum ferient ruinae. Eis por que todas as suas simpatias eram para os vencidos: Victrix causa Diis placuit, sed victa Catoni. E a frase-epigrafe invisivel de toda a sua obra, Este estoicismo sofreu a aco de vinte séculos de cristianismo. O resultado foi essa atitude, que, reconhecendo embora a pequenez do homem, 0 colocava no centro do Universo, Burckhardt, no seu xiii auditorio, em meio & luta encarnigada dos imperialismos das classes, falava, pela ultima vez, nao de politica, nao de economia, mas sim do homem. Sobre o fundo trémulo de um mundo revolvido, ele permanecia o que seus pais basileenses haviam sido: um humanista Burckhardt é o tihtimo dos humanistas. O que significa: formara- se, apoliticamente, no mundo do cristianismo secularizado, mundo da adoragdo da civilizagao e da arte, da cultura intelectual e artistica, ‘mundo acima da politica, formado pela Italia da Renascenca, pela Franga de Luis XIV, pela Inglaterra das universidades aristocraticas e pela Alemanha de Weimar. Esse cardter apolitico da sua cultura 0 preservava da trahison des clercs; e é 0 fundamento de toda a sua ‘obra, que gira, inteiramente, em torno da politica. Amando ao mesmo tempo o seu Olimpo, reconheceu, com um olho inexoravel, a fragilidade do seu mundo ilusorio, neste mundo material e materia- lista, afragilidade do homem num mundo sem Deus. Por isso, mesmo sendo um humanista nao deixou de ser um cristio. Sendo um intelectual nao deixou de ser um patricio. velho professor fez uma estranha figura no traje burgués do século XIX; muitos, desde Nietzsche, imaginavam outra coisa atrés ‘da modesta casaca: talvez os instintos selvagens das “bestas geniais’ da Renascenga. Mas Burckhardt era bem burgués; burgués, porém, 1no sentido de cidadio das pequenas repiblicas livres da Idade Média, herdeiro altivo da liberdade feudal. Burckhardt era burgués como os burgueses de Antuérpia, de Florenca e de Basiléia; nao era burgués como os burgueses da burguesia, A sua substincia, em nada burguesa, tomava-o capaz de revelar o mundo da Renascenca florentina. A sua substancia, em nada burguesa, tornava-o capaz de desvendar o enigma da Cidade Antiga. Ele proprio era um ‘cidadao’. Filho e cidadao de Basiléia, velha cidade humanista; cidade do Concilio que se revoltou contra o papa; cidade de Erasmo, que defendew o livre-arbitrio catolico, contra Lutero; cidade de Holbein, que gravou na sua madeira a danca macabra da Idade Média e de todos os tempos. Essa cidade, ultimo reduto do humanismo, conservava a sua liberdade patricia, contra bispos e heresiarcas, contra imperadores tribunos. Ali ainda se podia estar bem, enquanto fora, fuori le mura, nas estradas de Paris, de Milao, de Antuérpia e de Colonia, as grandes poténcias deste mundo se debatiam no campo de batalha, Era-se fraco demais para se tomar partido nisso; mas cada um tinha as suas simpatias. Tremia-se, com viva emogio, sobre os telhados e sobre as torres, observando as grandes batalhas. Era este observatério que Burck- hhardt nao queria abandonar jamais, se bem que as agitagdes demagogicas Ihe tivessem feito perder 0 gosto da vida. Nessas agitagbes reconheceu os furores da Cidade Antiga que perdera o seu deus. Burckhardt era, pois, conservador. “Eu tinha a coragem de ser conservador e de nao ceder” — disse orgulhosamente. Eraum homem. Conservador, acreditava, como Maquiavel, na constancia da substincia humana, em todos os tempos e em todos os povos. Iss0 0 tomava pe , € todo pessimista tem em si a matéria de um profeta Humanista, acreditava na superioridade do espirito em relagao a todas as agitagdes da matéria. Isto o fazia incorruptive, inflexive, modelo supremo do intelectual. Intelectual, enfim, tocouno problema talvez mais grave dos nossos tempos: a natureza dos deveres do espirito. Karl Marx, que nao queria interpretar o mundo, e sim transformé-lo, € o inspirador de toda ‘critica de agao’, tanto da esquerda como da direita. Hine nostrae lacrimae. No paraiso das suas ilusbes 05 intelectuais reencontraram, de repente, a besta apocaliptica. Decepeao que os fez compreender, no dizer de Ortega y Gasset, “su esplendor y su miseria, su virtud y su limitacion”. Os intelectuais nao tém a obrigacao de transformar 0 mundo; o seu dever ¢ transfiguré-lo pela criacdo, a criagao artistica. Ninguém poderia dizé-lo melhor do que Burckhardt nas tltimas palavras das suas Consideragoes: “Seria um espetaculo maravilhoso seguir o espirito da humani- dade, quando ele se constréi um novo edifcio, ligado a todos esses fendmenos exteriores e portanto @ eles infinitamente superior. Quem disso tivesse uma idéia, fosse ela como uma sombra, esqueceria toda felicidade ¢ desgraca, para viver somente cheio do desejo desse conhecimento.” E assim foi: “Minha vida foi um outono, Mas 0 outono também tem o seu encanto ~ uma luz muito nobre.” A CULTURA DO RENASCIMENTO NA ITALIA: UM ENSAIO PARTE I O ESTADO COMO OBRA DE ARTE INTRODUGAO Esta obra tem o titulo de ensaio, no sentido mais estrito da palavra. Ninguém esté mais consciente do que 0 autor quanto & limitagao dos meios e da energia que dedicou @ uma tarefa tao ardua, E, mesmo que pudesse ter mais confianca na sua propria pesquisa, no se sentiria mais seguro da aprovacio dos juizes competentes. Para cada um, os contornos de uma dada época cultural podem apresentar um quadro diferente; e, ao estudar uma civilizagao que éa mie da nossa, e cuja influéncia ainda esta ativa entre nds, € inevitavel que o julgamento e o sentimento individual atuem a todo momento. tanto no autor como no leitor. Nesse amplo oceano no qual nos aventuramos, so muitos os meios e diregdes possiveis; ¢ 0s mesmos estudos que serviram para esta obra poderiam facilmente, noutras ‘ios, nao s6 receber tratamento e aplicagao totalmente diferentes como levar a conclusées essencialmente diversas. Tamanha é a importancia do assunto que ele ainda solicita novas investigagdes, e pode ser proveitosamente estudado sob os pontos de vista mais variados. Enquanto isso, estaremos felizes se nos for concedida uma paciente aten¢ao, e se este livro for tomado e julgado como um todo. A dificuldade mais séria da historia da cultura reside no fato de ‘que um grande processo intelectual precisa ser dividido em categorias, isoladas, muitas vezes de modo que parece arbitrario, a fim de que possa ser de algum modo compreensivel. Nossa inten¢ao original era preencher os claros deste livro com uma obra especial sobre a “Arte do Renascimento” ~ intengo, porém, que so em parte pudemos realizar. ‘A luta entre os papas e os Hohenstaufen deixou a Italia numa situagao politica que diferia essencialmente da de outros paises do 4 cob Burckhardt Ocidente. Enquanto na Franea, na Espanha ena Inglaterrao sistema feudal era tao organizado que ao terminar se transformara natural- mente numa monarquia unificada, e enquanto na Alemanha ajudou a ‘manter, pelo menos externamente, a unidade do império, a Italia livrara-se dele quase por completo, Mesmo nos casos mais favoraveis os imperadores do século XIV nao eram recebidos e respeitados como senhores feudais, mas sim como possiveis lideres e defensores de poderes ja existentes; enquanto isso 0 papado, com seus prepostos aliados, era forte o suficiente para prejudicar a futura unidade nacional, mas néo para alcangar essa unidade. Entre ambos havia ‘muitos agentes politicos ~ republicas e déspotas — alguns, antigos, ‘outros, de origem recente, cuja existéncia se fundamentava apenas no seu poder de manter aquela unidade!. Neles detectamos pela primeira vez 0 modemo espirito politico da Europa, entregue livremente a seus proprios instintos, revelando muitas vezes as piores feigées de um egoismo desabrido, ultrajante a todos os direitos, e matando cada zgerme de uma cultura mais saudivel. Mas, sempre que essa tendéncia malefica era superada, ou de alguma forma compensada, um fato novo aparecia na historia — Estado resultante da reflexao e do calculo, 0 Estado como obra de arte. Esta nova vida se manifesta ‘numa centena de formas, tanto nos Estados republicanos como nos despoticos, e determina sua constituigao interna, nai menos que sua politica exterior. Limitar-nos-emos a consideragao do tipo mais ‘completo e mais claramente definido: 0 dos Estados despoticos. A situagao interna dos Estados governados despoticamente tinha um paralelo memoravel no Império Normando da Baixa Itdliae da Sicilia, depois das transformagGes efetuadas pelo Imperador Frederico Il. Criado entre traigdes e perigos, nas vizinhangas dos sarracenos, Frederico, o primeiro governante de tipo moderno a sentar-se num trono, desde cedo se acostumara a tratar os assuntos do Estado de forma totalmente objetiva. Seu conhecimento da situagao interna e da administracdo dos Estados sarracenos era proximo e intimo; e a luta mortal na qual se empenhou contra 0 papado 0 impelia, nao menos que a seus adversarios, a utilizar todos os recursos ‘sua disposigdo. As medidas tomadas por Frederico (especialmente depois do ano de 1231) visavam & completa destruigao do Estado feudal, & transformagao do povo numa multidao destituida de vontade © meios de resisténcia, mas lucrativa ao maximo para os cofres ilblicos. Ele centralizou toda a administragdo politica e judicial, de 0s sovernantes e seus dependentes eram chamados em corjunto fo Stato e esse ‘ome adguitiu mais tarde o significado da existincia coletva de um teritero. ‘A Cultura do Renascimentona Italia: Um Ensaio 5 forma até entao desconhecida no Ocidente. Dai por diante nenhum cargo deveria ser preenchido mediante eleicdo popular, sob pena de ser devastado 0 distrito ofensor ¢ serem escravizados 0s seus habitantes. Os impostos, baseados em avaliacdo abrangente, ¢ istribuidos de acordo com as praticas maometanas, eram coletados, ‘mediante aqueles métodos crueis e inrtantes sem os quais, na verdade, é impossivel retirar qualquer dinheiro dos orientais. No Império Normando da Baixa Italia e da Sicilia, em resumo, encon- {ramos nao um povo, mas uma multidao de stiditos disciplinados. Eram proibidos, por exemplo, de se casarem fora do pais sem permissao especial, e em nenhuma circunstancia recebiam permissio para estudar no estrangeiro. Pelo que sabemos a Universidade de Napoles foi a primeira arestringira liberdade de estudo, enquanto que 1no Oriente, pelo menos neste particular, os jovens eram deixados livres. Baseando-se nos exemplos das leis maometanas, Frederico passou a comerciar por conta propria em todas as partes do Mediterraneo, reservando-se o monopolio de muitas mercadorias, ¢ restringindo de varias formas 0 comércio para seus siditos. Os califas fatimitas, com toda sua descrenca esotérica, pelo menos na fase inicial da sua historia, eram tolerantes a todas as diferencas na fé religiosa de seu povo; Frederico, por outro lado, coroou seu sistema de governo com uma inquisi¢ao religiosa, que ira parecer ainda mais repreensivel quando nos lembrarmos de que perseguiu como hereges (5 representantes da liberdade municipal. Finalmente, a policia interna e © corpo principal do exército empregado no servigo cestrangeiro eram compostos por sarracenos, trazidos da Sicilia para ‘Nocera e Lucera— homens surdos aos gritos da miséria ¢ desatentos 08 vetos da Igreja. Num perfodo posterior, 0s stiditos, que ha muito se haviam esquecido do uso das armas, foram testemunhas passivas da queda de Manfredo e da tomada do governo por Carlos de Anjou; este continuou a usar o sistema que ja encontrou em andamento. ‘Ao lado do monarca centralizador apareceu um usurpador da espécie mais peculiar ~ seu genro e substituto, Ezzelino da Romano. Ele se projeta nao como representante de um sistema de governo ou administragao, pois toda sua atividade se perdia em lutas pela supremacia na parte oriental da Itélia Superior; contudo, como tipo politico foi uma figura de nao menor importancia para o futuro do que seu protetor imperial, Frederico. As conquistas e usurpagdes que até entao haviam ocorrido na Idade Média baseavam-se em heranga real ou pretendida e outras reivindicacdes desse tipo, ou entao eram levantadas contra incréus e excomungados. Aqui, pela primeira vez, houve uma tentativa clara de fundar uma monarquia através do 6 Jacob Burckhardt assassinio em massa e barbaridades infindas, pela adogo, em suma, de quaisquer meios com vistas a finalidade ambicionada. Nenhum de seus sucessores, nem mesmo Cesare Borgia, chegou a rivalizarcom a culpa colossal de Ezzelino, mas o exemplo, uma vez estabelecido, no foi mais esquecido, e sua queda nao levou a uma volta dajustica entre as nagdes, nem serviu de aviso para futuros transgressores. De nada adiantou, nessa época, que So Tomas de Aquino ~ sidito nato de Frederico ~ criasse a teoria da monarquia constitucio- nal, na qual o principe deveria ser apoiado por uma assembléia superior, nomeada por ele mesmo, e por um corpo de representantes eleito pelo povo. Teorias como essa nfo encontravam ressondncia alguma fora das salas de conferéncias, e Frederico e Ezzelino foram e permaneceram para a Itdlia 0 grande fendmeno politico do século XIIL. A personalidade de ambos, ja meio legendaria, forma o tema mais importante das Cento novelle antiche (ed. 1525), cuja compo- sigdo original recai certamente dentro desse século, Nelas fala-se de Ezzelino com aquela reveréncia que todas as impressdes poderosas ddeixam como rastro. Sua pessoa tomou-se o centro de toda uma li ratura, desde a crdnica de testemunhas oculares a tragédia semimito- logica dos poetas posteriores. DESPOTAS DO SECULO XIV AAs grandes e pequenas tiranias do século XIV dio provas constantes de que exemplos como esse nao devem ser deixados de Jado, Seus malfetos s4o gritantes e foram contados de mancira cireunstanciada pelos historiadores. Como Estados dependentes s6 de si mesmos, e organizados cientificamente com vistas a seu objetivo, para nds eles ttm interesse maior do que oda mera narrativa A adaptacio deliberada dos meios aos fins, dos quais nenhum principe fora da Italia chegara a ter sequeridéia aquela epoca, unida a ‘um poder quase absoluto dentro dos limites do Estado, produziu entre 0s déspotas homens e meios de vida de caracteristcas peculiares. O principal segredo de governo nas mos do governante. prudente consiste em manter a incidéncia da tributagdoo mais perto possivel de onde a encontrou ou a arranjou em primeiro lugar. As princip fontes de renda eram: um imposto sobre terras, baseado ha valor? 2agio; taxas definidas sobre artigos de consumo e tarfas sobre as ‘mercadorias importadas e exportadas; juntamente com a fortuna particular da familia governante, O inico aumento possivel derivave do crescimento dos negocios e da prosperidade geral. Empréstimos, ‘A Cultura do Renascimentona tia: Um Ensaio 7 tais como encontramos nas cidades livres, eram desconhecidos; tomo meio de levantar dinheiro considerava-se preferivel um con- fisco bem planejado, desde que nao abalasse o crédito publico— uma finalidade conseguida, por exemplo, pela pratica verdadeiramente oriental de depor o responsavel pelas finangas ¢ confiscar seus bens. ‘Com essas rendas pagavam-se as despesas da pequena corte, dos guarda-costas, das tropas mercenarias ¢ dos prédios publicos, assim como as dos artistas e dos homens de talento ineluidos entre os atendentes particulares do principe. A ilegitimidade desta regra jsolava 0 tirano e o cercava de perigo constante; a alianga mais honrosa que ele podia fazer era com o mérito intelectual, sem considerar sua origem. A liberalidade dos principes setentrionais do século XIII ficava restrita aos cavaleiros, a nobreza que 0s servia ¢ Jouvava. As coisas eram outras no caso do déspota italiano. Com sua Jansia de fama e sua paixdo pelas obras monumentais, era do talento, ¢ rio do nascimento que ele precisava. Na companhia do poeta e do sabio sentia-se numa nova posigéo, quase na posse de uma nova legitimidade. Sob este aspecto nenhum principe foi mais famoso que 0 governante de Verona, Can Grande della Scala, que contava com representantes de toda a Italia entre os exilados ilustres que recebia fem sua corte. Os homens de letras nao eram ingratos. Petrarca, cujas visitas &s cortes de governantes dessa espécie foram tio severamente censuradas, tracou o retrato ideal de um principe do século XIV. Ele exige prandes coisas de seu protetor, o Senhor de Padua, mas de maneira tal que o considera capaz delas. “Vos niio deveis ser 0 amo, mas sim o pai de vossos suditos, e deveis ama-los como vossos filhos;, ‘sim, como membros de vosso corpo. Armas, guardas e soldados vés podeis empregar contra o inimigo — com vossos stiditos basta a boa- vontade. Por cidadios, naturalmente, eu me refiro aqueles que amam ‘existéncia da ordem; pois aqueles que desejam mudancas cada dia sto rebeldes e traidores, e contra eles uma justiga severa deve seguir seu caminho.” ‘Aqui se segue, elaborada em detalhes, a ficedo puramente modema da onipoténcia do Estado. O principe deve tomar tudo a seu cuidado, mantere restaurarigrejas e prédios piblicos, provera policia ‘municipal, drenaros pantanos, cuidar dosestoques de vinho e cereais; distribuir os impostos de tal modo que o povo possa reconhecer sua necessidade; deve sustentar os doentes e os incapazes, ¢ dar sua protegao e companhia aos sbios famosos, dos quais dependera sua fama nas eras futuras. Mas fossem quais fossem os lados brilhantes do sistema, € 05 8 Jacob Burckhardt méritos dos govemantes individusis, ainda assim os século XIV ndo estavam destituidos de uma conscienis nan 2° menos distinta da brevidade e incerteza do mandato da maioria desse: déspotas. As instituigdes poiticas desse tipo gozam de wos cone ranga proporeinal ao tamanho do terra que ccupane acing principados maiores se sentiam constantemente tentados a engolir os menores. Houve verdadeiras hecatombes de Pequenos greran nessa epoca, sacifcados a Visconti. Como resultado esse peveg, extemo, ocorria incessante fermentacdo interna, e os efeitos de ‘al situagio sobre o carater do governante eram, de manci sora Imai snstos.O poder absolito, com todas suas temagbesde eta © egoismo sem peias, bem como os perigos aos quais 0 ‘governante estava exposto por parte de conspiradorese inimigos, tomavam:ne -quase inevitavelmente um tirano ~ no pior sentido dda palavra, Bom ie ele se pudesse confiar nos parentes mais proximos! Mas, onde tudo er ilestimo, nd poiahave li eulares sobre os defo eranea, tanto para a sucess4o quanto para a dvisho dos bene do foverans Por consequine,o herds se incompetent ou menor idace, podia ser suplantado, no proprio interesse daamilia tioouun primo decardtermas esolto Oreconhsemene ee ‘so de bastardos era fonte caudalosa de ‘conflitos, ¢ a maioria di stan oh lias ea acossada por uma mulidao de parentesdescontentes¢vngs ‘vos Tal ireunstancia davaorgem aconnuas closes de algae cael ae de derramamento de sangue. As vezes, os vivam exil ‘No estrangeiro, is q exes de pescado ay de Caria coouurnma nates com paciente indiferenga. Quando ‘mens " seit i Berguntou quand ecomo pmo vohara ike iene aa oes ‘mas s6 oe que seus crimes cado pelos parents, para salvar a familia dada a conncionciepableg de au tinha cometdo ulrajes em deans, Beata ublcn fovemose encontravanas mis detoda mami, ou goverante linava a seguir seus conselhos; em " list gto de roped de enc porcini accede lo esse sistema excitava o édio profun ersis 7 esertres Norentinos da épocs, AU & pompues ostonncser nem oy gus dso ler pease gen pope ees ae lo que impressionar a imaginacao popular, despertavam nesses eseritores o sarcasmo mais agudo. Ai do aventureiro que he cance nes MAos, como 0 novo-rico Doge Agnello de Pisa (1364), que costu- ‘mava sair do palacio com um cetro de ouro, eexibia-se jancla de sua ‘A Cultura do Renatcimento ne Ilia: Um Ensaio casa “como sto exibidas as reliquias”, reclinado sobre almofadas ¢ Cortinados, servido por empregados de joelhos, como se fosse um papa ou imperador. Mas freqiientemente 0s antigos florentinos tratam fesse tema com elevada seriedade. Dante viu e caracterizou bem & vulgaridade e o lugar-comum que mareavam a ambi¢ao dos novos principes. “Que mais querem dizer seus clarins e sinos, suas buzinas.e flautas, se nao ‘venham, carrascos — venham, abutres!” Retratado pela mentalidade popular o castelo do tirano ¢ elevado e solitario, ‘cheio de calabousos e orificios de escuta, o lar da crueldade ¢ da tristeza. Prevé-se o infortinio para todos 08 que entram no servigo do despota, que chega a ser objeto de pena: é o inimigo de todo homem ‘bom e honesto; nao pode confiar em ninguém, e Ié no rosto dos siditos 1 expectativa de sua queda. “Como o despotismo surge, cresce ¢ se consolida, da mesma forma cresce em seu meio elemento oculto que produziré necessariamente sua dissolugao e ruina.” Contudo, arazo mais profunda dessa rejeigio ainda nao foi mencionada: Florenga era cenirio do mais rico desenvolvimento da individualidade humana, ‘mas para o déspota nenhuma outra individualidade poderia vicejar sendo a sua propria e a de seus dependentes mais préximos. O controle do individuo era efetuado com o maximo rigor, chegando & criagao de um sistema de passaportes. ‘As superstigdes astrologicas e a descrenga religiosa de muitos tiranos davam um colorido peculiar & sua detestavel existéncia, amaldigoada por Deus. Quando 0 iiltimo Carrara néo podia mais defender as murathas e os portdes de Padua, assolada pela peste, ‘cercada por todos os lados pelos venezianos (1405), os soldados da guarda 0 ouviram chamar o diabo para que “viesse e 0 matasse”, tipo mais rematado e mais ilustrativo das tiranias do século XIV pode ser encontrado, sem diivida alguma, entre os Visconti de Mildo, a partirda morte do Arcebispo Giovanni (1354). A parecenga familiar entre Bernabo e o pior dos imperadores romanos € inquestio~ navel; a mais importante fungdo publica era a cacada de javali pelo principe; quem interferisse com a mesma era condenado & morte sob torturas, o povo aterrorizado era forgado a manter cinco mil ces para 1 caca do javali, sendo responsavel por sua satide ¢ seguranca Extorquiam-se impostos com todos os artificios; sete filhas do principe receberam um dote de cem mil florins de ouro cada uma; € ‘um tesouro importante foi coletado, Na morte de sua esposa (1384), {oi ordenado aos siditos que compartilhassem de sua tristeza, como no passado haviam compartilhado de sua alegria, ¢ usassem luto por 10 Jacob Burckhardt tum ano. O coup de main (1385) pelo qual seu sobrinho Giangaleazzo © subjugou — um daqueles complos brilhantes que fazem bater mais depressa até mesmo o coraeao de historiadores bem mais modernos ~ foi marcadamente caracteristico do homem. Em Giangaleazzo a paixio pelo colossal, comum a maioria dos déspotas, evidencia-se na maior das escalas. Ele tomou a seu cargo, 0 custo de trezentos mil florins de ouro, a construgao de diques gigantescos, a fim de desviar, em caso de necessidade, de Mantua o Mincio, e de Padua o Brenta, tornando assim tais cidades indefensa- veis. Nao é impossivel que a idéia de drenar todas as lagunas de ‘Veneza lhe tivesse passado pela cabega. Fundou 0 mais maravilhoso dos conventos, a Certosa de Pavia, ¢ a Catedral de Mildo, “que cexcede em tamanho e esplendor todas as igrejas da Cristandade”. O Palacio de Pavia, que seu pai Galeazzo iniciara, e ele mesmo terminou, era provavelmente, de longe, a mais magnifica de todas as, residéncias principescas da Europa. Para la transferiu sua famosa biblioteca e a grande colegao de reliquias de santos, na qual depositava uma fé peculiar. Teria sido realmente estranho que um principe com tais caracteristicas nao abrigasse também as mais, celevadas ambicdes politicas. O Rei Venceslau o fez duque (1395); ele esperava nada menos que o reino da Itélia, ou a coroa imperial, quando adoeceu e morreu( 1402). Dizem que todos os seus teritérios Ihe pagaram num s6 ano, além da contribuigao regular de 1 milhao e 200 mil florins de ouro, nada menos que oitocentos mil a mais em Subsidios extraordinarios. Depois de sua morte, os dominios que reunira mediante toda espécie de violéncia se despedaaram e, pot algum tempo, até mesmo o miicleo original s6 com dificuldade pode ser mantido por seus sucessores. Nao se pode dizer o que teria acontecido a seus filhos, Giovanni Maria (morto em 1412) Filippo Maria (falecido em 1447), caso tivessem vivido num pais diferente e ‘com ontras tradigdes. Mas, como herdeiros de sua casa, receberam ppor heranga aquele monstruoso capital de crueldade ¢ covardia que vinha se acumulando de geracéo em geracio. Giovanni Maria também é famoso por seus caes, que nao eram ‘mais usados para cacar, e sim para despedacar corpos humanos. A tradigao preservou seus nomes, assim como os dos ursos do Impera- dor Valentiniano I. Em maio de 1409, quando a guerra estava em andamento, ¢ a populacao faminta gritava pelas ruas Pace! Pace! ele soltou seus mercenérios, e duzentas vidas foram sacrificadas; sob pena de prisio foi proibido que se pronunciassem as palavras pace ¢ guerra, ¢ até mesmo os padres receberam ordens de dizer tranguilli- tatem, em vez de dona nobis pacem! Finalmente, um bando de ‘A Cultura do Renascimento na Tis: Um Ensaio a conspiradores se aproveitou do momento em que Facino Cane, 0 ‘condottiere chefe do governante louco, caiu doente em Pavia para ‘atentar contra Giovanni Maria na igreja de Sao Gotardo em Milao: ‘no mesmo dia o moribundo Facino fez.com que seus oficiaisjurassem ficar do lado do herdeito Filippo Maria, ao qual ele mesmo ordenou que sua mulher tomasse por segundo marido. A esposa, Beatrice di ‘Tenda, seguiu o conselho. Teremos ocasiao de falar de Filippo Maria ‘mais tarde. E em tempos como esse Cola di Rienzi sonhava fundar, com ‘base no minguado entusiasmo da populayao corrupta de Roma, um novo Estado, compreendendo toda a Italia. Ao lado de governantes ‘como 0s que descrevemos ele parece um pobre tolo iludido, DESPOTAS DO SECULO XV (0s despotismos do século XV tém carater diverso. Muitos dos, tiranos de menor importancia, e alguns mais importantes, como Scala fe Carrara, haviam desaparecido, enquanto os mais poderosos, engrandecidos pelas conquistas, haviam, cada um, dado a seu sistema tum desenvolvimento proprio. Napoles, por exemplo, recebew im- ppulso novo e mais vigoroso a partir da nova dinastia aragonesa. Uma Feigao marcante dessa época é a tentativados condortieri de fundarem dinastias independentes. Os fatos e as relagdes reais entre as coisas, fora das estimativas tradicionais, so considerados por si mesmos; 0 talento © a audicia ganham os grandes prémios. Os pequenos déspotas, a fim de se valerem de um apoio confidvel, comegam a servir aos Estados maiores, e tornamse eles mesmos condottieri, recebendo, como pagamento por seus servigos, dinheiroe imunidades para seus malfeitos, se ndo um aumento de territorio. Todos, pequenos ou grandes, precisam esforcar-se mais, agir com maior cautela célculo, e tém de aprender a conter-se ante barbaridades em grande escala; a opiniao pilblica s6 permite 0 mal necessério aos fins 2 serem atingidos, algo que o observador imparcial certamente nao considera errado, Nao se vem quaisquer resquicios daquela lealdade semi-religiosa com que no Ocidente os principes legitimos eram servidos; a popularidade pessoal é o que mais se aproxima dela. O talento ¢ 0 caleulo séo os tnicos meios de progresso. Um cariter como ode Carlos, o Temeratio, que se exauriu na busca apaixonada de objetivos pouco praticos, constituia um enigma para os italianos. “Os suigos eram apenas camponeses, e, se fossem todos mortos, isso ni daria satisfagao aos nobres da Borgonha que poderiam tombar na 2 Jacob Burckhardt guerra. Se o duque obtivesse a posse de toda a Suica sem lutas, suas rendas nao aumentariam em cinco mil ducados.” Os tragos medievais no cardter de Carlos, suas aspirardes e ideais cavalheirescos, ha muito se tinham tomado incompreensiveis para os italianos. Os representantes diplomaticos dos Estados do Sul o deram por perdido quando 0 viram bater em seus oficiais e manté-los a seu servico, ‘maltratar os soldados, para puni-los de uma derrota, e depois por a culpa em seus conselheiros, na presenca dos mesmos soldados. Por outro lado, Luis XI, cuja politica sobrepujava a dos principes italianos com seu estilo proprio, e que era admirador declarado de Francesco Sforza, em tudo o que se refere & cultura e refinamento, deve ser colocado em posigao muito inferior a esses governantes. Nos Estados italianos do século XV 0 bem e o mal estao estranhamente misturados. A personalidade do governante ¢ téo altamente desenvolvida, muitas vezes tem significagdo tao profunda e caracteristicas tao envolvidas com as condigdes e necessidades da epoca que no € uma tarefa facil arriscar um julgamento moral adequado. As bases do sistema eram e permaneceram ilegitimas, e nada podia remover a maldicao lancada sobre elas. A aprovado ou investidura imperial nao fazia a menor diferenga, ja que © povo considerava de quase nenhum valor 0 fato de o déspota comprar um pergaminho num pais estrangeiro, ou a algum estranho que ppassava por seu territorio. Se o imperador servisse para alguma coisa — essa era a ldgica do senso comum acritico ~ nunca teria deixado 0 tirano se erguer. Desde a expedicao romana de Carlos IV, 03 imperadores nao haviam feito nada mais na Italia do que sancionar tiranias surgidas sem sua ajuda; sé podiam dar-Ihes a autoridade pratica que emanava de um alvara imperial. A conduta de Carlos na lia foi toda ela uma escandalosa comédia politica. Matteo Villani conta como os Visconti o escoltaram através de seu territétio, depois fora dele; como seguia adiante como um faledo, vendendo favores (privilégios, ete.) em troca de dinheiro; que apresentago mesquinha fizera em Roma, ¢ como, no final, sem sequer sacar a espada, atravessou de volta os Alpes com os cofres repletos. Sigismundo veio, ao menos a primeira vez (1414), coma boa intengao de persuadir Joao XXIII a participar do seu conselho; foi nessa viagem, quando o papa e o imperador estavam admirando o pano- rama da Lombardia, do alto da torre de Cremona, que seu anfitriéo, 0 tirano Gabrino Fondolo, foi tomado pelo desejo de jogar os dois la de ‘cima. Na segunda visita, Sigismundo veio como mero aventureiro; por mais de meio ano permaneceu trancado em Siena, como um ‘A Caltura do Renascimento na Italia: Um Ensaio a devedor na prisdo, ¢ so com dificuldade conseguiu mais tarde ser coroado em Roma. E que pensar de Frederico III? Suas viagens @ Italia parecem viagens de ferias, excursoes de lazer feitas aS custas daqueles que desejavam que ele confirmasse suas prerrogativas, ou a cuja vaidade lisonjeava divertir um imperador. Foi o caso de Alfonso de Napoles, que pagou 150 mil florins pela honra de uma visita imperial, Em Ferrara, na sua segunda volta de Roma (1469), Frederico passou um dia sem sair do quarto, distribuindo nada menos que oitenta titulos; criou cavalheiros, condes, doutores, tabelides~na verdade, os condes eram de graus diferentes; por exemplo, condes palatinos, condes com o direito de criar doutores até o total de cinco, condes com o direito de legitimar bastardos, de nomear tabelides, € dai por diante. O chanceler, porém, esperava, em retribuicdo dessas patentes, uma retribuigdo que em Ferrara foi considerada excessive Nio se conhece a opiniao de Borso, ele proprio feito Duque de ‘Modena e Reggio, em troca de um pagamento anual de quatro mil florins de ouro, quando seu protetor imperial distribuia titulos diplomas aos cortesdos de menor importincia. Os humanistas, principais porta-vozes da época, estavam divididos de acordo com seus interesses pessoais; alguns recebiam o imperador com as aclamagdes convencionais dos poetas na Roma imperial, Poggio confessava nao saber mais 0 significado da coroagao; nos velhos ‘tempos apenas 0 imperador vitorioso era coroado, ¢ eta coroado com louros. ‘Com Maximiliano I comeca nao apenas a intervencao geral das rages estrangeiras, mas uma nova politica imperial em relacao & Italia. O primeiro passo ~ a investidura de Ludovico, 0 Mouro, no ducado de Miao, ¢ a exclusdo de seu infeliz sobrinho— nao podia dar ‘bons frutos. De acordo com a moderna teoria da interveneao, quando dois partidos esto dividindo um pais em pedagos, pode surgir um terceiro e tomar a sua parte, e o império agiu com base em tal principio. Mas ndo se podia mais invocarodireito e ajustica. Quando Luis XII era esperado em Génova (1502), € a aguia imperial foi removida das paredes do palicio ducal ¢ substituida por lirios pintados, o historiador Senarega perguntou qual, afinal de contas, era significado da éguia que tinha sido poupada por tantas revolugdes,¢ que direitos tinha o império sobre Génova. Ninguém sabia sobre assunto mais do que a velha frase dizendo que Génova era uma camera imperii. Na verdade, ninguém na Ttélia seria capaz de responder claramente a uma pergunta desse tipo, Enquanto Carlos V manteve unidos 0 império e a Espanha, ele pode, com as forcas cespanholas, fazer valer 05 direitos imperiais; mas € notério que o que 4 Jacob Burckhardt Conseguiu com isso foi vantajoso nao para o Império, mas para a monarquia espanhola. Intimamente ligada & ilegitimidade politica das dinastias do séoulo XV, a indiferenca publica ao nascimento legitimo era algo que paras estrangeiros - para Commynes, por exemplo- parecia notavel As duas coisas seguiam naturalmente lado a lado. Nos paises setentrionais, como na Borgonha, a prole ilegitima era agraciada com um tipo distinto de apanagios,tais como bispados, etc.; em Portugal, Juma linhagem ilegitima s6 se manteve no trono com esforgos constantes; na Itélia, pelo contrario, nao havia uma casa principesca nna qual, mesmo na linha direta de sucessio, os bastardos ni fossem tolerados com paciéncia. Os monarcas aragoneses de Napoles pertenciam a linhagem ilegitima, 0 proprio Aragdo tendo a mesma sorte do irmao de Alfonso I. O grande Federigo de Urbino talvez no fosse, afinal, um Montefeltro. Quando Pio II estava a caminho do Congresso de Mantua (1459), oito bastardos da casa de Este foram encontré-lo em Ferrara, entre eles Borso, 0 proprio duque reinante, ¢ dois filhos ilegitimos de seu irmao e antecessor ilegitimo, Lionello. Este tivera também uma esposa legal, ela propria filha ilegitima de ‘Alfonso I de Napoles com uma mulher africana. Muitas vezes os bbastardos eram admitidos na linha sucessoria quando os filhos legitimos eram menores, ¢ a sucesso era perigosa; reconhecia-se centao uma regra de precedéncia sem levar em conta se 0 sangue era puro ou impuro. A aptidéo do individuo, seu valor e capacidade pesavam muito mais do que em todas as leis ¢ costumes prevalecentes noutros lugares no Ocidente, Na verdade, estévamos na épocaem que filhos de papas fundavam dinastias. No século XVI, com a influéncia de idéias estrangeiras e da contra-reforma que comecava, a questo passou a ser julgada de modo mais estrito: Varchi descobre que a sucessao dos filhos legitimos “é ordenada pela razao, e é a vontade dos céus desde a etemnidade”. © Cardeal Ippolito de Medici baseou sua reivindicagao do governo de Florenga no fato de ser possivel- ‘mente o fruto de um casamento legal, e, de qualquer modo, filho de ‘uma mulher de familia e nfo, como no caso do Duque Alessandro, de uma criada. Nessa época tiveram inicio aqueles casamentos morga~ naticos de afeigdo, que, no século XV, ndo teriam tido o menor sentido, em termos de politica ou de moralidade. ‘A forma mais elevada e mais admirada de ilegitimidade no século XV era a do condoitiere, que, fosse qual fosse sua origem, ‘A Cultura do Renascimento na tia: Um Ensaio Is clevavase @ posig#o de governante independente. No fundo, a ‘ocupacao da Baixa Itilia pelos normandos, no século XI, foi desse tipo. Tentativas como essa comegavam agora a manter a peninsula em cconstante agitacao. Era possivel a um condottiere transformar-se em senhor de um distrito sem usurpaco, quando seu empregador, carente de dinheiro ‘ou de soldados, pagava seus servigos de tal forma; de qualquer maneira, mesmo dispensando por algum tempo o grosso de suas tropas, 0 condottiere precisava de um lugar seguro onde pudesse estabelecer seu alojamento no inverno ¢ armazenar equipamentos e provisdes. O primeiro exemplo de um capitio assim aquinhoado ¢ 0 de John Hawkwood, investido por Gregério XI com 0 dominio de Bagnacavallo e Cotignola, Quando, com Alberigo da Barbiano, os exércitos e lideres italianos apareceram no cenario, melhoraram as possibilidades de fundar um principado, ou de aumentar um ja ‘adquitido, O primeiro grande eclodir orgidstico de ambigao militar aconteceu no ducado de Milo, depois da morte de Giangaleazzo (1402). A politica de seus dois filhos dirigia-se principalmente para a destruigao dos novos despotismos fundados pelos condowtieri; e, ‘comegando com o mais importante, Facino Cane, a casa de Visconti herdou, juntamente com sua vitiva, uma longa lista de cidades ‘quatrocentos mil florins de ouro, sem falar nos soldados de seu primeiro marido, que Beatrice di Tenda trouxera consigo. Dai por diante aquela relagdo totalmente imoral entre os governos e seus condottieri, caracteristica do século XV, tornou-se cada vez mais comum. Uma velha historia ~ dessas que so ¢ nao séo verdadeiras, em toda a parte e lugar algum — relata o seguinte: 0s cidadaos de uma certa cidade (Siena, ao que parece) tiveram um oficial a seu servigo {que os havia libertado da agressao estrangeira; diariamente procura- vam saber como recompensi-lo, € chegaram concluséo de que nenhuma recompensa a seu alcance seria suficiente, ainda que 0 fizessem senhor da cidade, Finalmente alguém se levantou ¢ disse: “Vamos mata-lo e depois adoré-lo como nosso santo padroeiro.”” E assim fizeram, seguindo 0 exemplo dado pelo senado romano com Romulo. Na verdade os condoztieri tinham bons motivos para nao temer ninguém tanto quanto a seus empregadores: se tivessem ‘sucesso, tornavam-se perigosos, e eram afastados, como aconteceu com Roberto Malatesta logo apos a vitéria obtida para Sisto TV (1482); se falhassem, a vinganca dos venezianos em Carmagnola demonstrava os riscos a que estavam expostos (1432). E algo caracteristico do aspecto moral da situacao o fato de que os condottieri muitas vezes tinham de entregar esposa e filhos como 6 Jacob burckhardt reféns, ¢ nem por isso sentiam ou inspiravam maior confianga. Deviam ser herdis da abnegacdo, naturezas como a do préptio Belisario, para nao serem corrompidos pelo ddio ou amargura, pois s6 fa mais perfeita bondade 0s poderia salvar da mais monstruosa iniqiidade, Nao é de espantar, entao, que os encontremos cheios de desprezo por todas as coisas sacras, cruéise traicoeiros para com seus companheiros ~ homens que nao se importavam em nada de morrer banides pela Igreja. Ao mesmo tempo, e por forga das mesmas condigdes, 0 génio e a capacidade de muitos dentre eles tiveram maior desenvolvimento concebivel, granjeando-Ihes a admiragéo devotada dos seguidores; seus exércitos foram os primeiros na histéria moderna a ter a imagem pessoal do lider como inica forga motriz, Um exemplo brilhante nos & dado pela vida de Francesco Sforza: preconceito algum de nascimento foi capaz de impedir que ele ganhasse e utilizasse, quando dela necessitava, a devogdo ilimitada de cada individuo com 0 qual precisasse lidar; mais de uma vez aconteceu que seus inimigos depuseram as armas s6 a0 vé-lo, saudando-o reverentemente, a cabeea descoberta, homenageando-o como “0 pai comum dos homens de armas”. A raga dos Sforza presenta esse interesse especial: o fato de que, desde o inicio da sua historia, podemos identificar os esforgos que fizeram em busca da coroa. As bases de sua fortuna estio fundamentadas na notavel fertilidade da familia; o pai de Francesco, Jacopo, ele proprio um hhomem famoso, tinha vinte irmaos eirmas, todos criados sem uxos em Cotignola, perto de Faenza, entre os perigos de uma das infindaveis vendette da Romagna, entre sua familia e a dos Pasolini. A sede familiar era um arsenal, uma fortaleza; a mie e as filhas eram tio guerreiras quanto seus parentes masculinos. Aos 13 anos de idade, Jacopo fugiu de casa, indo para Panicale, a fim de juntar-se as forcas do condottiere papal Boldrino ~ 0 chefe que, mesmo na morte, continuow a liderar suas tropas, a palavra de ordem partindo da tenda embandeirada onde jazia o corpo embalsamado, até que finalmente fosse encontrado um lider capaz de sucedé-lo. Quando conseguit ganhar nome a servigo de diferentes condottieri, Jacopo mandou buscar a familia e com ela obieve as mesmas vantagens que um principe obtém de dinastia numerosa. Foram esses parentes que mantiveram 0 exército unido quando esteve no cativeiro no Castel dell'Uovo, em Napoles; sua irma aprisionou pessoalmente os envia- dos reais e assim salvou-o da morte. Uma indicago da amplitude dos seus planos esta no fato de que em matéria de dinheiro Jacopo era inteiramente digno de confianga; por isso, até mesmo em suas derrotas conseguia crédito com os banqueiros. Habitualmente pro- ‘A Cultura do Renascimento na Iti: Um Ensaio 7 tegia 0s camponeses contra os abusos de seus soldados, e com relutancia destruia ou danificava uma cidade conquistada. Deu Lucia, sua amante, a mae de Francesco, em casamento a um outro, @ fim de se liberar para uma alianea principesca. Até os casamentos de seus parentes eram arranjados com planos definidos. Mantinha-se Jonge da vida impia e devassa de seus contemporaneos, ¢ criou Francesco, o filho, seguindo trés regras: “Deixe as mulheres de ‘outros em paz; nao bata em nenhum de seus seguidores, ou, caso 0 faga, mande o homem ofendido para bem longe; no monte um cavalo de boca dura e nem outro que largue as ferraduras.” Contudo, a fonte mais importante de sua influéncia estava nas qualidades, se nao de grande general, pelo menos de grande soldado. Tinha muita forca fisica, desenvolvida com todos os tipos de exercicios; seu rosto e 08 modos francos de camponés ganhavam popularidade geral; sua meméria era maravilhosa; anos depois conseguia lembrar-se donome de seus seguidores, o niimero de seus cavalos e seu soldo. Sua educagto era puramente italiana: devotava o tempo vago ao estudode historia e mandava traduzir autores gregos ¢ latinos para seu uso. Francesco, seu filho ainda mais famoso, desde o principio pos na cabeca que iria fundar um Estado poderoso, e através de um brilhante ‘generalato e de uma falta de escripulos que o tornava incapaz de hesitar diante de qualquer coisa conseguiu apossar-se da grande cidade de Mildo (1450). ‘Seu exemplo foi contagioso. Aineas Sylvius escreveu sobre esse periodo: “Na nossa Italia amante de mudancas, onde nada perma- rece firme, e onde nfo existem dinastias antigas, um criado pode facilmente se tornar rei.” Um homem em particular, intitulando-se ‘o ‘homem do destino’, encheu a imaginacdo de todo o pais: Giacomo Piccinino, filho de Niccolo. Uma questio importante na Italia daquela época era se ele também teria éxito ao fundar uma casa principesca, Os maiores Estados tinham interesse Obvio em preju- dicé-lo, e até mesmo Francesco Sforza achava que seria muito melhor se a lista de soberanos autoproclamados nao aumentasse. Contudo, {as tropas e capities er viados contra Giacomo, como por exemplo na epoca em que visava ao dominio de Siena, reconheciam o interesse {que havia em apoié-lo: “Se acabarmos com ele, precisaremos voltar para casa e dedicar-nos a trabalhar nossos campos.” Mesmo ‘enquanto o assediavam em Orbetello, forneciam-Ihe suprimentos, ¢ assim ele escapou dos problemas com honra. Finalmente, o destino foi mais forte: a Italia toda apostava no resultado do seu encontro com o Rei Ferrante, em Napoles (1465), depois de uma visita aos Sforza 18 Jcob Burckhardt fem Milao. Apesar dos juramentos feitos, e de seu relacionamento com pessoas de alta posicao, foi assassinado em Castel dell'Uovo. Mesmo os condottieri que tinham obtido seus dominios através de herangas nunca se sentiam seguros. Quando Roberto Malatesta e Federigo de Urbino morreram no mesmodia (1482), umem Romaeo outro em Bolonha, descobriu-se que cada um deles havia reco- mendado seu Estado aos cuidados do outro. Tudo era considerado permissivel para uma classe de homens que nao se continha diante de nada. Quando jovem, Francesco Sforza casara-se com uma rica herdeira calabresa, Polissena Rutfo, Condessa de Montalto, que Ihe dew uma filha; uma tia envenenou a mae e a crianga, abocanhando a heranga. ‘partir da morte de Piccinino a fundagao de novos Estados por condottieri tomou-se um escdndalo que nao podia ser tolerado. Os quatro grandes poderes - Napoles, Milo, o papado e Veneza formavam entre si um equilibrio politico que rejeitava qualquer distirbio, Nos Estados da Iereja, pululando de pequenos tiranos, em parte condottieri ou antigos condottier, desde os tempos de Sisto TV 68 sobrinhos dos papas monopolizavam o direito a tais empreendi- mentos. Mas, ao primeiro sinal de crise politica, surgiam novamente 108 ‘soldados do destino’ . Sob a infeliz administrag2o de Inocéncio VIII lum certo Boccalino, que servira antes no exército da Borgonha, quase se entregou e a cidade de Osimo, da qual era senhor, nas maos das forcas turcas; felizmente, gracas a interven¢ao de Lorenzo, 0 Magnifico, ele aceitou uma recompensa em dinheiro para se afastar. No ano de 1495, quando as guerras de Carlos VIII tinham virado a Italia de cabeca para baixo, 0 condottiere Vidovero, de Brescia, ‘experimentou suas forgas; j& havia tomado a cidade de Cesena e assassinado muitos dos nobres e burgueses, mas a cidadela se man- teve, e foi forcado a se retirar. Depois, comandando um bando em- prestado por outro desordeiro, Pandolfo Malatesta, de Rimini, filho do ja mencionado Roberto, e condottiere veneziano, arrancou forga, do arcebispo de Ravenna, a cidade de Castel dell'Uovo. Sentindo que o pior estava por vir, e também forgados pelo papa, os venezianos ordenaram a Pandolfo, “com as melhores intenges”, que Se aproveitasse de uma oportunidade para prender seu bom amigo; foi feita a pristo, embora “com um grande pesar”, e em seguida vieram ‘ordens de levar o prisioneiro a orca. Pandolfo teve a consideragao de estrangulé-lo na prisdo, e depois exibir 0 cadaver em piblico. O tltimo exemplo notavel de tais usurpadores € o famoso castelio de ‘Musso que, durante a confusto no territério milanés, que se seguiu & batalha de Pavia (1525), improvisou um reinado no lago de Como. 'A Cultura do Renascimento na Italia: Um Ensaio 19 OS PEQUENOS DESPOTISMOS De maneira geral pode-se dizer dos despotismos do século XV que os maiores crimes foram mais frequentes nos Estados menores, esses, sempre que a familia principesca era numerosa, com todos os ‘membros desejando viver de maneira adequada a sua posicéo, eram inevitaveis as disputas com relagao a herangas. Bernardo Verano, de ‘Camerino (1434), matou dois de seus irmaos, para dividir suas propriedades entre os filhos. Se o governante de uma cidade era famoso pelo governo moderado, sabio humano e pelo zelo com relagao & cultura, em geral era membro ou dependia politicamente de alguma grande familia. Era 0 caso, por exemplo, de Alessandro ‘Sforza, Principe de Pesaro, irmao do grande Francesco, e padrastode Federigo de Urbino (falecido em 1473), Prudente na administragao, Justo e afavel no governo, gozou, depois de anos de guerras, de um reinado trangiilo, reunindo uma nobre biblioteca ¢ pasando o tempo livre em conversas eruditas ou religiosas. Da mesma espécie foi Giovanni II Bentivoglio, de Bolonha (1463-1508), cuja politica era determinada pelas familias Este e Sforza. Por outro lado, quanta ferocidade e sede de sangue vamos encontrar entre os Varani, de ‘Camerino, os Malatesta, de Rimini, 0s Manfreddi, de Faenza, ¢, cima de todos, entre os Baglioni, de Perugia. Temos, ao final do século XV, um retrato notavel dos acontecimentos na ultima familia citada, nas notaveis narrativas historicas de Graziani e Matarazzo. ‘Os Baglioni foram uma dessas familias cujo dominio jamais assumiu a forma de despotismo declarado. Era mais uma lideranca, por intermédio de sua vasta riqueza e da influéncia que exercia na escolha de pessoas para cargos publicos. Dentro da familia um homem era reconhecido como chefe, mas prevalecia entre os membros dos diferentes ramos um citime secreto e profundo. Em ‘oposi¢ao aos Baglioni levantava-se outro partido aristocratico, lide rado pela familia dos Oddi. Em 1487 a cidade foi transformada em campo de batalha e as casas dos chefes politicos foram assoladas por bandidos; cenas de violéncia eram acontecimento diario. No enterro de um estudante alemao, que morrera assassinado, dois colegas enfrentaram-se com armas; a8 vezes 08 antogonistas de familias di- ferentes armavam verdadeiras batalhas na praca publica, Em vao reclamavam os comerciantes e artesdos; 0s governantes papais ¢ os nipoti continham lingua, ou retiravam-se na primeira oportunidade. Finalmente os Oddi foram forgados a abandonat Perugia, e a ci dade tomou-se uma fortaleza sitiada, sob 0 despotismo absoluto dos Baglioni, que usaram até a catedral como alojamento de sol 2 Jacob Burckhardt dados. Complés e atentados eram respondidos com vingangas ‘eruéis; no ano de 1491, depois de mortos e enforcados no Palazzo Comunale 130 conspiradores que haviam entrado a forga na cidade, foram erguidos trinta e cinco altares na praca, e por trés dias rezadas missas ¢ realizadas procissées para afastar a maldigdo que pesava sobre o local. Um nipote de Inocéneio VIII levou uma corrida pelas ruas, em pleno dia, Enviado para ajeitar as coisas, um nipote de Alexandre VI foi dispensado, com desprezo piblico. Durante todo esse tempo os dois lideres da casa governante, Guido e Ridolfo, mantinham fregiientes entrevistas com soror Colomba de Rieti, uma freira dominicana de santa reputagdo e poderes miraculosos. Sob pena de um grande desastre, ela Ihes ordenou que fizessem as pazes— em vao, naturalmente. Nao obstante, a cronica aproveita a oportuni- dade para observar a devogio e piedade dos melhores homens de Perugia durante esse reinado do terror. Quando, em 1494, Carlos VIII se aproximava, 05 Baglioni de Perugia e os exilados acampados em Assis combateram com tal ferocidade que as casas do vale foram niveladas ao rés do chao. Os campos ficaram sem arar, os campo- neses transformados em selvagens assassinos e saqueadores, os bosques novos povoados de lobos e cavalos, e os animais selvagens engordavam com a came dos mortos, a chamada ‘carne de cristo’ Quando Alexandre VI se retirou (1495) para a Umbria, antes de Carlos VITI (que voltava entao de Napolés), ocorreu-Ihe que poderia agora, em Perugia, livrar-se dos Baglioni de uma vez por todas, propds entdo a Guido uma festa, torneio ou outra fungao do género capaz de reunir toda a familia, Guido, porém, opinou que “o espetaculo mais impressionante de todos seria ver toda a forga militar de Perugia reunida num s6 corpo”, o que levou o papa a abandonar 0 projeto. Logo apés os exilados efetuaram novo ataque, em que 0 heroismo pessoal dos Baglioni lhes garantiu a vitéria. Foi quando Simonetto Baglione, um rapaz que mal tinha completado dezoito ‘anos, Iutou na praga com um punhado de seguidores contra centenas de inimigos; finalmente tombou, com mais de vinte ferimentos, mas Fecuperou-se quando Astorre Baglione veio em sua ajuda e, mon- tado a cavalo, a armadura dourada, um falcio no elmo, “parecia Marte, paramentado, entrando na luta”. Naquela época Rafael, um menino de 12 anos de idade, estudava com Pietro Perugino. As impressdes desses dias esti imortalizadas nas primeiras pinturas de Sao Miguel e Sao Jorge: pode ser que alguma coisa delas viva eternamente no grande quadro de Sio Miguel; e, se Astorre Baglione deve encontrar sua apoteose em algum lugar, é na figura do cavaleiro celestial, no “Heliodoro”, ‘A Cultura do Renascimento na lia: Um Ensaio a (Os oponentes dos Baglioni foram em parte destruidos, em parte desbaratados pelo terror, e dai por diante tornaram-se ineapazes de outro empreendimento do mesmo tipo. Depois de algum tempo, hhouve uma reconciliagao parcial, ¢ alguns dos exilados receberam permissio de voltar. Mas nem por isso Perugia se tornou mais segura fu tranqiila: as discordiasinternas da familia governante explodiram fem excessos pavorosos. Formou-se uma oposi¢ao contra Guido, Ridolfo e seus filhos - Gianpaolo, Simonetto, Astorre, Gismondo, Gentile, Marcantonio ¢ outros — por parte de dois sobrinhos-netos, Grifone e Carlo Barciglia; 0 segundo dos dois era também sobrinho de Varano, Principe de Camerino, e cunhado de um dos antigos cexilados, Gerolamo della Penna. Acautelado por um pressentimento sinistro, em vao Simonetto tentou, de joelhos diante do tio, que Guido Ihe permitisse matar Penna. O compl6 amadureceu de repente, por cocasido do casamento de Astorre com Lavinia Colonna, nos festejos de meados do verdo de 1500. A festa durou diversos dias, entre pressentimentos sombrios, cujos efeitos profundos séo descritos notavelmente por Matarazzo. O proprio Varano os encorajava, com antficios diabolicos: agia sobre Grifone, falando acerca da perspec tiva de uma autoridade no dividida, e contando uma intriga imaginaria de sua esposa Zenobia com Gianpaolo. Finalmente, cada uum dos conspiradores foi provido de uma vitima. (Os Baglioni moravam todos em casas separadas, a maioria na regio do castelo tual.) Cada um recebeu quinze dos rufides a sua disposicao, ¢ 0s demais foram colocados de vigia. Na noite de 15 de julho as portas foram forgadas e Guido, Astorre, Simonetto ¢ Gismondo foram assassinados; os demais conseguiram escapar. Enquanto o corpo de Astorre jazia na rua, junto ao de Simonetto, os espectadores “e especialmente os estudantes estran- geiros” o comparavam a um antigo romano, tao nobre e imponente seu aspecto, Nas feigoes de Simonetto ainda se podia ler a audaciaeo desafio que a propria morte no domara. Os vitoriosos fizeram uma visita aos amigos da familia, fazendo o possivel para causar boa mpressao; encontraram todos em lagrimas, preparando a fuga para o ‘campo. Enquanto isso os Baglioni que tinham escapado reuniam forgas fora da cidade, e, no dia seguinte, forearam sua entrada. Com Gianpaolo na lideranga, rapidamente encontram aderentes entre aqueles @ quem os Barciglia vinham ameagando de morte. Quando Grifone caiu em suas maos, perto de SantErolo, Gianpaclo ntregou-o a seus seguidores, para a execucdo, Barciglia e Penna buscaram refgio junto a Varano, o principal responsavel pela tragé- dia, em Camerino; num momento, quase sem perdas de vida, Gian- 2 Jacob Burckhardt paolo se assenhoreou da cidade. ‘Atalanta, a bela e ainda jovem mae de Grifone, que na véspera se havia retirado para o campo, junto com Zenobia, a esposa do falecido, e mais dois filhos de Gianpaolo (e mais de uma vez tinha repelido ofilho com uma maldi¢ao de mae), voltava agora com anora em busca do moribundo. Todos se afastaram & aproximacao das duas mulheres, cada homem temiendo ser reconhecido como o assassino, temeroso da maldic2o materna, Estavam enganados, porém: ela propria rogou ao lho que perdoasse aquele que Ihe dera golpe fatal, e Grifone morreu com sua béncao. Os olhos da multidao seguiram as duas mulheres com reveréncia enquanto elas cru- zavam a praca, os trajes sujos de sangue. Foi para Atalanta que Rafael mais tarde pintou a mundialmente famosa “Deposigao”, na qual as'tristezas matemnas sao postas aos pés de um softimento ainda maior e mais santo. ‘A catedral, em cuja vizinhanga se passara a maior parte desta tragédia, foi lavada com vinho e novamente consagrada. O arco do ‘triunfo erguido para o casamento ainda estava de pé, pintado com os feitos de Astorre e com versos laudatorios do narrador desses acontecimentos, 0 valoroso Matarazzo. Uma histéria legendaria, simples reflexo dessas atrocidades, apareceu nos primeiros dias dos Baglioni. Segundo se dizia, todos os membros dessa familia haviam morrido de morte violenta— vinte e sete deles juntos em uma ocasiao; dizia-se que suas casas tinham sido derrubadas e as ruas de Perugia calgadas com os tjolos ~ e outras coisas do mesmo teor. Sob Paulo III a destruigio de seus palicios realmente aconteceu. or algum tempo eles pareciam ter adotado boas resolucdes, organizado 0 proprio partido para assegurar a ordem, protegendo os servidores piblicos dos atos arbitrarios da nobreza. Mas a antiga maldigao irrompeu outra vez. Em 1520 Gianpaolo foi atraido a Roma, sob Leao X, e lé decapitado; um de seus filhos, Orazio, que governou Perugia apenas por curto periodo pelos meios mais violentos, como partidario do Duque de Urbino (este mesmo ameagado pelo papa), mais uma vez. repetiu na propria familia os horrores do passado. Seu tio e trés primos foram assassinados, ‘momento em que o duque mandou avisar que jéfizerao bastante. Seu irmao, Malatesta Baglione, o general florentino, tomnou-se imortal gracas a traigao de 1530; e Ridolfo, o filho de Malatesta, ultimo membro da familia, fez, mediante o assassinio do legado e dos magistrados, no ano de 1534, um breve e sanguinario governo. ‘Vamos tornar a encontrar os nomes dos governantes de Rimini. ‘A Cultura do Renascimento ne hlia: Um Ensaio 23 A falta de escrapulos, a impiedade, a pericia militare a grande cultura raramente se combinam num sé individuo como ocorreu com Sigismondo Malatesta (falecido em 1467). No entanto, os crimes acumulados de uma familia desse género devem, finalmente, ter ‘superado todo o seu talento, por grande que fosse, arrastando o tirano para o abismo. Pandolfo, sobrinho de Sigismondo, de quem jé falamos, conseguiu manter seu territorio pelo tinico motivo de que os vvenezianos se recusaram a abandonar seu condottiere, fossem quais fossem as acusagdes que Ihe imputassem; quando seus suditos (em 1497), depois de ampla provocacao, bombardearam-no em seu castelo de Rimini, e mais tarde Ihe permitiram a fuga, um comissério veneziano o trouxe de volta, marcado como estava pelo fratricidio e todas as outras abominagées. Trinta anos mais tarde os Malatesta se haviam transformado em exilados sem um centavo. No ano de 1527, ‘como na época de Cesare Borgia, uma especie de epidemia caiu sobre ‘05 pequenos tiranos; poucos deles sobreviveram depois dessa data, © nenhum deles para seu proprio bem. Em Mirandola, governada pelos principes insignificantes da casa de Pico, vivia no ano de 1533 um ‘sabio pobre, Lilio Gregorio Giraldi, que tinha fugido do saque de Roma para 0 lar hospitaleiro do idoso Giovanni Francesco Pico, sobrinho do famoso Giovanni; as discussdes sobre 0 monumento sepulcral que o principe estava construindo para si deram origem a um tratado, cuja dedicatoria ostenta a data de abril daquele ano. O pos-escrito € bem triste - “Em outubro do mesmo ano o infeliz principe foi atacado durante a noite e roubado da vida e do trono pelo filho de seu irmao; eu mesmo escapei por pouco, e agora me encontro ‘na mais profunda miséria.” ‘A forma de despotismo, sem moral ou principios, tal como 0 exercido por Pandolfo Petrucci a partir de 1490 em Siena (entao dividida em facgdes) néo merece uma consideracéo mais profunda. Insignificante e malévolo, governou com a ajuda de um professor de jurisprudéncia e de um astrélogo, apavorando seu povo com algum ‘assassinio ocasional. Seu passatempo, nos meses de verdo, era rolar blocos de pedra retirados do alto do monte Amiata, sem se importar ‘com o que ou quem viessem atingir. Depois de ter éxito onde os mais prudentes haviam falhado, escapar dos artificios de Cesare Borgia, finalmente morreu, abandonado ¢ desprezado, Depois disso, seus filhos mantiveram uma supremacia qualificada durante muitos anos. AS GRANDES DINASTIAS Ao tratar das principais dinastias da Italia, ¢ conveniente 4 Jacob Burckhardt discutiros aragoneses, por causa de seu cardter especial, diferente dos demais, O sistema feudal, que havia sobrevivido desde os dias dos normandos, sob a forma de supremacia territorial dos bardes, dava um colorido caracteristico & constituigao politica de Napoles. Em todos os outros lugares na Italia ~ exceto na parte sul do dominio eclesiastico e em alguns outros distritos — prevalecia um dominio de posse direta da terra, e por lei no se permitiam quaisquer poderes hereditarfos. O grande Alfonso, que reinou em Napoles de 1435 em diante (falecendo em 1458), foi um homem diferente de seus descendentes reais ou supostos. Brilhante durante toda a vida, sem ‘medo de se misturar 4s pessoas, digno e afavel de convivio, admirado ‘a0 invés de criticado mesmo em sua paixao senil por Lucrezia Alagno, s6 pecava por um defeito~a extravagancia, aqual, porém, ‘tinha as conseqléncias naturais. Financistas inescrupulosos ha muito eram onipotentes na corte, até que o rei falido os roubasse dos despojos; pregou-se uma cruzada como pretexto para se taxar 0 clero; quando houve um grande terremoto nos Abruzzi, os sobreviventes foram compelidos a contribuir em nome dos mortos. Com esses meios Alfonso era capaz de receber héspedes distintos com um esplendor sem rival; comprazia-se em gastos sem fim, mesmo para o beneficio de inimigos, ¢ nfo conhecia limites ao recompensar as obras literarias. Poggio recebeu 500 pegas de ouro para traduzir a Cyro- paedeia, de Xenofonte, para o latim. Ferrante, que o sucedeu, passava por seu filho ilegitimo com uma dama espanhola, mas nao era improvavel que fosse filho de um mouro mestico de Valenca. Se foram os complés contra sua vide planejados pelos barbes, ou seu proprio sangue, o que amargurava e ensombrecia sua natureza, certo é que nao foi igualado em ferocidade por nenhum dentre os principes de seu tempo. Ativo e inquieto, reconhecido como uma das mentes politicas mais poderosas de seus dias, e isento dos vicios da devassidio, concentrava todos seus poderes, entre os quais a dissimulacao profunda e um irreconciliavel espirito de vinganga, na destruigdo de oponentes. Fora ferido em todos os pontos nos quais um governante esta aberto & ofensa, pois os Iideres dos bardes, embora aparentados a ele pelo casamento, assim mesmo eram aliados de seus inimigos estrangeiros. Medidas extre- ‘mas tomaram-se parte de sua politica diaria. Os meios para essa luta ‘com seus bares e para suas guerras externas eram arrancados da ‘mesma maneira maometana inaugurada por Frederico II; so 0 ‘governo podia fazer 0 comércio de dleo e cereais; todo 0 comércio do pais foi colocado por Ferrante nas mos de um rico mercador, Francesco Coppola, que controlava 0s portos e dividia os lucros com, ‘A Cultura do Renascimento na ltlia: Um Ensaio 2 o ei. Os deficits eram compensados através de empréstimos compul- sorios, execugses e confiscos, pela simonia aberta e por contribuigdes impostas as corporagées eclesidsticas. Além da caga, que praticava ‘sem respeitar quaisquer direitos de propriedade, seus prazeres eram de duas espécies: gostava de ter os oponentes junto a si, vivos em prisdes bem guardadas, ou mortos e embalsamados, vestidos nos trajes que haviam usado em vida. Divertia-se a0 falar dos cativos com (08 amigos, e nao fazia qualquer segredo de seu museu de mimias. Suas vitimas eram, em sua maioria, homens de quem se havia apoderado pela traigio; alguns chegaram a ser presos enquanto comiam como convidados & mesa real. Sua conduta para com 0 primeiro-ministro ‘Antonello Petrucci, que ficara grisalho e doente a seu servigo, e de cujo crescente medo da morte ele ia extorquindo “presente pos presente”, era literalmente diabolica. Finalmente, uma suspeita de ‘cumplicidade com a ultima conspiragao dos bardes forneceu o pretexto para sua prisio e execugto, Com ele morreu Coppola. A. ‘maneira como tudo iss0 nos é narrado por Caracciolo e Porzio deixa- nos de cabelos em pé. ‘0 mais velho dos filhos do rei, Alfonso, Duque de Calibria, gozou, anos mais tarde, de uma co-regéncia junto ao pai. Era um devasso selvagem e brutal, que so levava uma vantagem sobre Ferrante, a franqueza, e declarava abertamente seu desprezo pela religiioe suas praticas. As caracteristicas melhores e mais nobres dos dlespotismos italianos no sio encontradas entre os principes dessa linha; tudo o que possuiam da arte e da cultura da época servia para luxo ou exibigdo. Até mesmo os espanhois legitimos parecem ter ‘quase sempre degenerado na Italia; mas o final dessa casa de sangue rmisto (1494 e 1503) dé-nos uma clara prova de sua mé qualidade. Ferrante morreu de problemas mentais e preocupagdes; Alfonso acusou de traigao 0 irmao Federigo, a dnica pessoa honesta da familia, insultando-o da forma mais baixa. Finalmente, embora até entdo passasse por um dos generais mais capazes da Italia, perdeu a cabega e fugiu para a Sicilia, deixando seu filho, o Ferrante mais, Jovem, como presa facil para os franceses.ea traigao domestica. Uma dinastia que havia governado como esta fizera deveria pelo menos ter vendido caro a propria vida, se algum dia seus filhos devessem esperar por uma volta ao poder. Mas, segundo Commynes observoude ‘um ponto de vista particular, assim mesmo com todo direito: Jamais homme cruel ne fut hardi. (Nunca houve um homem mais cruel.) (O despotismo dos duques de Mildo, cujo governo desde a época jacob Burekbardt sé Jacob Bi a eae cone Sarit tain do século XV. 0 a dos Visconti, Filippo Maria (1412- 1447), cad eee .culiar interesse ¢ do qual, Por sorte, nos uma sete St oo an ct Fee ie eg, levado psa paix do medo- Todos ok Posigd et Estado foram devotados a tinica finalidade de assegurar ree nanga pessoal, embora, por sorte, seu egoismo cruel no a ade J sngue Vivian edaelt de Milo enn eee nagnios Jardins, ‘bosques gramados. Por anos a fio eae na cidade, fazendo suas ‘excursdes apenas no campo, no PSO ee ses espendos cases lth due 1xada pelos: ‘cavalos mais rapidos, o levava aos mesos, a0) eae Canals ‘construidos para esse fim, era. arranjada de forma aon a oda ata Oca peti ea 8 era ober. ef ofessem pasados sais parafor. Todos aatels Janes para ue aanistentespesoais do prncipeeram submetidos 8 1a serie de exames dos mais restritos, uma vez ae er an ‘encarregados ‘tanto dos assuntos diplomaticos mais a los Reed dos servigos pessoais mais ‘humildes, considerados Larry re dns eros eh gr coi pan ea li i Ts epics panes mp e cada dia enviava plenipotenciarios @ todas as partes a dos seguranga residia no fato de que nenhum de seus ee square eran iid «on st pr ose Sn nuinorecn vivian intends ¢, pacar, pelo equem de junta un Romem honesto a um canalha. Seu carater se apoiava em. Cs cae ae fees sm ca cnc «ml extn, sored, 2, mepig como ay Rts a see: Srlasim enoee home Ue ANA os at Age ee ane se mencingsgmovios do castel, paraquat sombre caisse sobre a moradia da felic idade, apressou dele adage. propria morte fechando uma ferida e recusando-se ‘Morreu, finalmente, com dignidade e graga. . "eps wot $45 29-9 ‘A.Coltura do Renassimento a It it Um Ensaio 2 Seu genro e sucessor, 0 afortunado condottiere Francesco ‘Sforza(1450-1466), foi talvez, entre todos os italianos doséculo XV, ‘ohomem mais representativo do espirito de sua era. Nunca o triunfo de um génio e sua forga individual foram exibidos com mais brilho que nele, e aqueles que ndo reconhecem seu mérito sao foreados, pelo ‘menos, a maravilhar-se perante ele como 0 filho mimado do destino, (Os milaneses afirmavam abertamente ser uma honra serem gover- rnados por mestre tao distinto; quando entrou na cidade, a multidao exaltada levou-o, em seu cavalo, para dentro da catedral, sem the dar tempo de desmontar. Vamos ouvir a folha corrida de sua vida, na estimativa do Papa Pio II, drbitro em tais assuntos: “No anode 1459, ‘quando o duque chegou para o congresso em Mantua, estava com 60 (na verdade eram 58) anos de idade; montado a cavalo parecia um rapaz; de estatura ereta e imponente, com feigdes sérias, calmo e afével na conversa, principesco no porte, com uma combinagao de dons corporais ¢ intelectuais sem rival emnossa era, invictono campo de batalha — um homem que foi capaz de se elevar de uma posi¢ao hhumilde ao controle de um império. Sua esposa era bela e virtuosa, seus filhos semelhantes a anjos do céu; raramente adoecia, ¢ seus principais desejos sempre se realizavam. Assim mesmo, nao Ihe faltaram infortinios. Por ciimes, sua esposa matou-lhe a amante; Troilo e Brunoro, seus velhos camaradas e amigos, abandonaram-no passaram-se para 0 Rei Alfonso; viu-se forgado a mandar enforcar ‘um outro, Ciarpollone, por traicao; teve de suportar que seu irmao ‘Alessandro mandasse os franceses contra ele:‘que um de seus filhos 0 vitimasse com intrigas e precisasse ser aprisionado; as fronteiras de ‘Ancona, que ganhara na guerra, perdeu outra vez da mesma manera Homem algum goza de um destino to limpido que nao se veja, em algum ponto, forgado a lutar contra a adversidade. Feliz daquele que tem poucos problemas.” E com esta definicao negativa da felicidade {que o letrado papa dispensa o leitor. Se tivesse sido capaz.de prever 0 futuro, ou se se dispusesse a parar e discutir as conseqdéncias de um despotismo incontrolavel, um fato inquestiondvel nao teria escapado 1a seus olhos — a auséncia de qualquer garantia quanto ao futuro. ‘Agquelas eriangas, belas como anjos, educadas cuidadosa e comple tamente, cairam vitimas, quando cresceram, da corrupgio e do egoismo desmedido. Galeazzo Maria (1466-1476), solicito apenas para efeito externo, orgulhava-se da beleza das préprias maos, dos altos saldrios que pagava, do crédito financeiro de que gozava, de seu tesouro, de suas mil pecas de ouro, das pessoas famosas que 0 cercavam, de seu exército e de suas aves de cetraria. Gostava do som da propria voz, efalava bem, mais fluentemente, talvez, quando 8 JJ8cob Burckhardt tinha a oportunidade de insultar algum embaixador veneziano. Era sujeito a caprichos. tais como mandar decorar um quarto numa noite; , 0 que era pior, a ataques de devassidao sem sentido e de revoltante ‘crueldade para com os amigos mais proximos. A um punhado de centusiastas parecia um tirano ruim demais para viver, assassinaram- no ¢ entregaram o Estado a seus irmaos, um dos quais— Ludovico, 0 ‘Mouro~ jogou o sobrinho na prisdo e tomou o governo nas préprias mos. A essa usurpacao seguiu-se a intervengao francesa e os desastres que se abateram sobre toda a Itélia Ludovico Sforza, cognominado 1/ Moro, o Mouro, 60 tipo mais perfeito do déspota daquela época e, como uma espécie de produtoda hhatureze, quase desarma nosso julgamento moral. Apesar da pro- funda imoralidade dos meios que empregava, usava-os com a mais perfeita ingenuidade; talvez ninguém ficasse mais espantado do que ‘le ao saber que um ser humano é moralmente responsavel tanto pela escolha dos meios como pelos fins; é possivel que preferisse manter ‘como uma virtude singular 0 fato de que, até onde possivel, abstinha- se do uso generalizado da pena de morte. Aceitava como algo mais do que merecido o respeito quase fabuloso que os italianos sentiam por seu genio politico. Em 1496, gabou-se de que o Papa Alexandre era seu capelio, o Imperador Maximiliano seu condottiere, Veneza sua camareira, e 0 rei da Franga seu mensageiro, precisando ir e vir &s suas ordens. Com maravilhosa presenca de espirito foi capaz de avaliar, mesmo na hora extrema (1499), todos os meios de fuga possiveis, decidindo-se finalmente pela propria honra, e confiando na’ bondade da natureza humana; rejeitou a proposta do irmao, o Cardeal Ascanio, que desejava permanecer na cidadela de Milao, com base numa antiga contenda. “Monsenhor, mio me leve a mal, mas no confio na sua pessoa, irmao como possa ser”, e nomeou para o comando do castelo, “como garantia de seu retorno”, um homem a quem sempre fizera o bem, mas que assim mesmo o traiu. Em casa o Mouro foi um bom governante, e até o final gozou de popularidade, tanto em Miléo quanto em Como. Nos tltimos anos (depois de 1496) abusou dos recursos do Estado e, em Cremona, ordenou, por puro expediente, que um cidadao de respeito, que falara contra os novos impostos, fosse estrangulado em surdina. Desde essa época, ao dar audiéncias mantinha os visitantes afastados por meio de uma barra, de modo que, ao conversar com ele, fossem forgados a usar a capacidade maxima de suas vozes. Em sua corte, a mais brilhante da Europa desde que ade Borgonha tinha deixado de existr, prevalecia a imoralidade da pior espécie: a filha era vendida pelo pai, aesposa pelo marido, a irma pelo irmao. O proprio principe mantinha atividade ‘A Cultura do Renascimento na Italia: Um Ensaio 2 incessante e, como era filho de seus proprios feitos, alegava paren- tesco com todos aqueles que, como ele, sobressaiam pelos préprios méritos ~ sAbios, poetas, artistas e misicos. A academia que fundou servia mais aos seus proprios fins do que & instrugao dos estudiosos; ¢ nem era pela fama dos homens de distingo que o rodeavam que tinha interesse, mas por sua companhia e seus servigos. E verdade que Bramante foi a principio miseravelmente pago; Leonardo, por outro lado, teve remuneracao adequada até 1496 - além disso, o que o ‘mantinha na corte, se nfo sua propria vontade? O mundo abria-se diante dele, talvez como para nenhum outro mortal da época; ¢ se faltassem provas do elemento mais elevado na natureza de Ludovico, © Mouro, iriamos encontré-las na longa estada do enigmético mestre em sua corte. O fato de mais tarde Leonardo ter passado a prestar servigos a Cesare Borgia e Francisco I deveu-se provavelmente a0 interesse que sentia pelo cardter marcante desses dois homens. Depois da queda do Mouro, seus filhos, vivendo entre es- tranhos, nao foram bem criados. O mais velho, Massimiliano, néo se parecia nada com ele; ao mais jovem, Francesco, pelo menos no faltava espirito. Mildo, que naquela época mudava de governantes com tanta freqléncia, softendo inenarravelmente com essas mu-

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