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.Sociedade:.

tolerância, confiança,.
amizade
O L G Á R I A M A T O S

OLGÁRIA MATOS
é professora de Filosofia
Política do
Departamento de
Filosofia da FFLCH-USP
e autora, entre outros,
de Os Arcanos do
Inteiramente Outro – A
Escola de Frankfurt, a
Melancolia, a Revolução
(Brasiliense).

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A
filosofia grega antiga concebeu para o Ocidente o ideal cos-

mopolita de um mundo sem fronteiras. Diógenes (séc. V e IV

a. C. ) reconhecia nelas convenções – separam os homens e os

isolam, produzem perseguições e as guerras em nome das quais

indivíduos ora se entre matam, ora trocam medalhas: “verdade

aquém, falsidade além dos Pirineus”, exclamaria Pascal. Experi-

ência do absurdo e da ambição dos homens, o “cidadão do mun-

do”, ao contrário, nasce de um generoso cosmopolitismo apátrida

que une os homens – seres expostos, vulneráveis, mortais. Tam-

bém o Humanismo da Renascença endossava a unidade do ho-

mem e da natureza, recepcionando-a agora pelo enlaçamento de

todos os viventes do Universo pela “alma do mundo”. Nesse

horizonte, inscreve-se, também, a visão internacionalista que

esperava do proletariado mundial a emancipação do gênero hu-

mano; herói libertador do atavismo da exploração e da dominação

reuniria, por sua ação criadora, poesia e revolução rumo a futuros

gloriosos, dissolvendo barreiras entre os homens e entre as na-

ções. Um princípio de reciprocidade entre culturas diversas espe-

rava uma harmonização do diverso e mesmo do oposto.

Humanismo renascentista e iluminismo marxista possuíam uma

determinada interpretação do homem e da sociedade, a partir da

qual procuravam formar o homem para o aperfeiçoamento de si,

de seus talentos e habilidades e para a concórdia na cidade.

A partir da Revolução Francesa e com a Declaração Uni-

versal dos Direitos Humanos, seus valores passaram a constituir

o ideário mais nobre do humanismo moderno. Sua transmissão se

faz, na alternância das gerações, pela educação formadora do

caráter na vida privada e da tolerância no espaço público. E-ducere


“Todo homem traz consigo significa “conduzir para fora de”, evocando a idéia de itinerário

a inteira humana e caminho de um ponto a outro ou de um ao Outro. Tolerare, por

sua vez, é levar, suportar e, também, combater. Neste caso, tolerar


condição” (Montaigne). é esforço para desfazer ortodoxias, revelar a dessemelhança no

que parece homogêneo, a fim de que um possa ir ao encontro do

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Outro. Se a tolerância é algo que se apren- homem para a santidade, e do Renas-
de e ensina, seu lugar preferencial é a cimento que buscava a geometria cósmi-
Escola. Com sua instituição no espaço ca, a ciênica moderna é essencialmente
público, modernidade veio a significar, mundana; dela derivam nossos bens úteis
entre outras coisas, ler pensadores clás- e materiais. A Ciência desenvolve-se em
sicos no original grego ou em latim, por- um universo que ignora o homem, en-
que ricos e pobres ocupavam os mesmos quanto o homem vive em um mundo que
bancos escolares. Em seu Emílio ou da ignora o universo. Colocando-se acima
Educação, Rousseau elaborou os princí- da humanidade, a ciência constrói um
pios que regem um coração virtuoso para sujeito abstrato, concebendo a natureza
o aperfeiçoamento dos costumes e da vida por triângulos, retas e planos. O mundo
em comum. Progresso só pode ser enten- natural passa a ser considerado segundo
dido nos termos segundo os quais há avan- regularidades quantificáveis, enquanto o
ços apenas quando ao desenvolvimento homem é incoerente e imprevisível.
econômico corresponde desenvolvimen- A predominância da racionalidade
to humano. Hoje, ao contrário, a idéia de tecnocientífica resolve-se, no nível polí-
progresso faz coincidir conquistas tico, em genocídio. A catástrofe não é da
tecnológicas e científicas e “evolução” ordem da natureza mas da cultura: “o ter-
da humanidade, dissimulando as regres- remoto de Lisboa”, escreve Adorno, “foi
sões da sociedade. Estas são considera- suficiente para curar Voltaire da teodicéia
das acidentes de percurso do que se leibniziana, e a catástrofe ainda compre-
convencionou designar por modernidade. ensível da natureza foi mínima confron-
Esta, por sua vez, passou a definir-se a tada com a segunda, social, que escapa à
partir da hegemonia da ciência e da téc- imaginação humana. Porque, nos cam-
nica. Neste sentido, Habermas (em A pos de concentração, não morria mais o
Ciência e a Técnica como Ideologia, indivíduo, mas o exemplar. O genocídio
Paris, Gallimard, 1978) refere-se à atitu- é a integração absoluta que se prepara
de positivista e também tecnicista que onde os homens são homogeneizados,
hipostasiam na ciência o equivalente a onde ‘acertam o passo’ como se diz em
uma nova fé, sendo considerada a fonte jargão militar” (Negative Dialektik,
por excelência das soluções para o con- Suhrkamp, 1980, pp. 326-7). Se o terre-
junto dos problemas da humanidade. moto de 1755 constituiu-se como um
Nosso século combinou de maneira acontecimento filosófico crucial , isso não
singular industrialismo e militarismo, ex- se deveu apenas a seus incontáveis mor-
pansão do capitalismo milionário e dissi- tos, às ruínas e à destruição da cidade.
pação do Estado-Nação, racismo e patri- Foi este o fato a recolocar no centro das
otismo em um misto praticamente investigações metafísicas a questão do
indiscernível entre Ciência e falsa cons- Mal na natureza, o que abalava os funda-
ciência, entre conformismo científico e o mentos da harmonia preestabelecida no
político. Sua gênese encontra-se na raci- mundo leibniziano e seu “melhor dos
onalidade que constitui o mundo moder- mundos possíveis”. Frente à catástrofe
no. Neste sentido, Hannah Arendt pôde atual, ela não mais se liga à história da
escrever ter sido Galileu um dos primei- natureza mas à história da cultura, que,
ros a realizar um gesto de alienação do por sua vez, pôs a nu a desordem estabe-
homem no mundo, ao transformar a ob- lecida tanto por Auschwitz quanto pela
servação a longa distância pela utiliza- razão ocidental, que dissolveu o mais
ção do telescópio, alienação esta que pro- inassimilável do humano no Totalitaris-
vocou uma separação entre o homem e o mo. Tão abstratos quanto os números são
universo (cf. A Condição Humana, Fo- os homens, quando reduzidos a conceito
rense Universitária). Diferentemente do ou sujeito, na indifereça entre o momen-
saber medieval que pretendia preparar o to lógico e o psicológico no conhecimen-

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to, passando a Ciência a ser indiferente a aprender da natureza é como aplicá-la
seus objetos de reflexão. A predominân- para dominá-la completamente e aos ho-
cia do cânone das ciências exatas faz da mens […]. Poder e conhecimento são si-
sociologia uma ciência sem sociedade. nônimos” (idem, ibidem).
Na razão científica Adorno descobre o O progresso não realizou por si só a
que torna possível a exclusão, a perse- felicidade dos homens. Quanto mais se
guição, o preconceito. O mundo acumulam métodos e instrumentos, me-
construído pela ciência resulta em sua nor é seu sentido. Mundo que determina
desertificação técnica, e seus procedi- todas as esferas da vida pelo fator econô-
mentos teóricos e metódicos “não pas- mico e científico identifica a totalidade
sam de práticas mágicas sublimadas”: “o dos bens com bens materiais. Ciência e
animismo animou o inanimado, o sociedade tecnocrática formam destros
indutrialismo reificou a alma” (Dialektik escultores, sem que jamais tenham ques-
der Aufkärung, Frankfurt, Fischer Verlag, tionado o que é o Belo; hábeis construto-
1980, p. 29). A conversão de todos os res que utilizam materiais de ponta mas
existentes à condição de coisas provém que desconhecem as nervuras do conhe-
ao mesmo tempo do mercado mundial e cimento; substituem a lei pela regra; em
da ciência planetária: “sem pretender seguida a regra pela simples fórmula para
aproximar-me minimamente do signifi- o funcionamento lógico do pensamento.
cado das causas econômicas da guerra”, Com exímios gestores financeiros não se
anota Benjamin, “podemos afirmar que a corre o risco de enfrentar o drama da con-
guerra imperialista, no que tem de mais dição do homem e do sentido da vida.
terrível e fatal, é co-determinada pelo O nazismo como emblema do Mal ra-
abismo entre os gigantescos meios da téc- dical questiona o otimismo científico pois
nica, por um lado, e sua exígua ilumina- o confronta às regressões da sociedade.
ção moral, de outro” (cf. W. Benjamin, Fanatismos, racismo, etnocentrismo e
Documentos de Cultura, Documentos de guerras ocorrem em meio a conquistas da
Barbárie, seleção e apresentação de Willi ciência – cujo desenvolvimento
Bolle, São Paulo, Cultrix/Universidade viabilizaria a passagem, não mais do “so-
de São Paulo, 1986, pp. 130-7). A asso- cialismo utópico ao socialismo científi-
ciação entre ciência e guerra dá-se no co”, e sim “do socialismo científico ao
apogeu do domínio humano da natureza. socialismo utópico”. Conhecer a razão
A humanidade, que renunciou ao científica é compreender o que torna pos-
milenarismo na história , adotou-o, não sível a exclusão, a perseguição, o pre-
obstante, em sua figura tecnocêntrica: “O conceito. A cultura fundada no princípio
saber que é poder não conhece limites. de identidade tem por aliado o de origem.
Serve aos empreendimentos de qualquer Havendo sempre algo de primeiro e uno,
um […]; na fábrica ou no campo de bata- cada grupo se vê como o verdadeiro her-
lha está a serviço de todos os fins da eco- deiro da origem, tão identitária quanto
nomia burguesa. […] A técnica é a es- sedentária. Não se pode, porém, reencon-
sência desse saber. Seu objetivo não são trar em um homem as características ge-
os conceitos ou imagens, nem a felicida- rais que permitam assimilá-lo a outros e
de da contemplação, mas o método, a ex- dizer: “sou grego, sou alemão”. Pense-
ploração do trabalho dos outros, o capital mos nas palavras de Nietzsche quando
(“O Conceito de Iluminismo’’, in Os Pen- analisa a palavra Entstehung (origem),
sadores, São Paulo, Abril Cultural, 1973, com o que o filósofo se dirige à história
p. 98). Assim fetichizado, o método ci- do século XIX europeu, “pátria de mistu-
entífico transforma o saber em instrumen- ras e bastardias, época do homem-mistu-
to: “o avião de combate é artilharia efi- ra”: “o europeu não sabe o que ele é, ig-
caz, o telecomando é bússola de maior nora que raças se misturam nele, procura
confiança. O que os homens querem o papel que poderia ter; não tem

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individualidade […]. Os alemães se pre- ver. A questão não se coloca diretamente
tendem a raça pura para dominar a confu- sobre o espetáculo, mas com o que lhe
são das raças de que são constituídos” sucede quando capturado, produzido e en-
(cf. Genealogía de la Moral, Aguilar, viado pelos meios de comunicação de
1949). Assim como Nietzsche aponta na massa” (Marilena Chauí, “Aula Inaugu-
cultura grega clássica o princípio apolíneo ral”, FFLCH-USP, 1992). Já no século
como negação interna de seu dionisismo, passado, Feuerbach escreveu: “sem dú-
o mesmo se passa nas guerras de seu tem- vida nosso tempo prefere a imagem à
po: “tal como os gregos se enfureciam no coisa. A ilusão é sagrada, a verdade pro-
sangue grego, assim agora o fazem os fana”. Isto significa a entronização do
europeus no sangue europeu”. A hybris divino em objetos inanimados, a
da identidade é a da ciência, da política e radicalização do fetichismo. Marx, por
a do mercado. Neutralidade da Ciência e sua vez, falava das “sutilezas metafísicas
lei da equivalência só reconhecem o po- e argúcias teológicas” que se inscrevem
der como princípio de todas as relações. nas mercadorias: “toda a vida das socie-
A associação entre indústria, guerra e dades nas quais reinam as modernas con-
ciência já está presente em Bacon que, dições de produção apresenta-se como um
em seu Novum Organum, vincula a ciên- imenso acúmulo de espetáculos” (Guy
cia ao desenvolvimento industrial agres- Debord, La Sociéle du Spectacle, Buchet-
sivo, sob auspícios expressamente mate- Chastel, 1967) Exposição ao olhar tem,
riais. Sua crítica pode ser encontrada nas simultaneamente, sentido hipnótico e po-
palavras de Alain quando trata da Pri- lítico, o que se revela no panóptico pro-
meira Guerra Mundial: “essa guerra é um jetado por Benthan, figura moderna da
erro do pensamento” (cf. Propos sur le gestão das massas. O Panóptico de
Bonheur, Seuil). Se o filósofo assim a Benthan, concebido para fins carcerários,
considera é por reconhecer nela um “en- manifesta intenções claras. Sua estrutura
gano” teórico e intelectual, uma vez que arquitetônica permite aos vigias ver sem,
na explosão sangrenta e na destruição há no entanto, serem vistos; quanto aos pri-
um fio condutor dirigindo os homens e as sioneiros, são a um só tempo visíveis e
armas: “a guerra não é a manifestação incapazes de ver. Há aqui um dispositivo
periódica da violência ou eclosão espon- visual que é, melhor dizendo, uma suges-
tânea da agressividade”. Ao contrário, tão de visão: o indivíduo se torna dócil,
implica organização, controle, auto- submetendo-se a uma vigilância tanto real
controle, subordinação e obediência, quer quanto virtual. O panóptico é um peque-
dizer, planejamento, disciplina, “educa- no teatro, onde cada detento aprende a
ção” para a guerra. Neste horizonte ins- desempenhar seu papel de prisioneiro
creve-se a experiência da “banalização para um público hipotético. Segundo
do Mal, da volatilização da culpa, mundo Foucault, sua fantasmagoria máxima
da equivalência, como o do mercado, da encontra-se nessa visão globalizante que
indiferença, como o da ciência. Indife- é a realização última do puro valor de
rença, ainda, do cidadão sujeito político exposição de indivíduos sem defesa. Ima-
– com respeito à vida pública – de cida- gem e exposição total possuem no mun-
dão se metamorfozeia em consumidor, do do fetichismo significados secretos:
da mesma fonna que o espaço público se ao mesmo tempo em que a imagem visí-
converte em imagem pública. vel dos governantes deve ser periodica-
De início, espetáculo e especulação mente trabalhada – tudo deve ser mostra-
possuem raiz comum: “de mesma origem, do a fim de torná-los próximos – já que
estão ligados à idéia de conhecimento tudo acompanhamos acerca de sua vida
como operação do olhar e da linguagem. privada – ao mesmo tempo, porém, há
A cultura está impregnada de seu próprio sempre nisto algo de inacessível, de
espetáculo, do fazer ver e do deixar-se impalpável e estranho. Em outras pala-

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vras, a imagem pública transforma-se em tes da civilização, de tal forma que os
mercadoria e se comporta como as leis conflitos sociais são considerados ilegí-
do mercado. A sociedade do direito vê-se timos, seus agentes, incompetentes soci-
sorvida pelo mundo anárquico da publi- ais, de modo a “não haver mais separa-
cidade e do capital. ção entre a posição dos dirigentes e o Po-
O mercado, já se disse, não reconhe- der, nem entre o poder do Estado e a so-
ce direitos. Em termos, pois vale a “lei do ciedade. A noção de sociedade civil apa-
mais forte”. Semelhante ao descrito por ga-se” (Lefort, in A Invenção Democrá-
Marx em Formações Econômicas Pré- tica). O Outro é sempre e só o provoca-
capitalistas, quando massas inteiras de dor a ser isolado e, no limite, considera-
servos da gleba foram arrancadas de seu do como desviante ou anti-social.
modo de vida, crenças e tradições e vio- Neste horizonte, mesmo anacrônicos,
lentamente lançadas na selva das cida- os ideais de respeito, tolerância e auto-
des, vindo a constituir, na Inglaterra, o nomia do pensamento podem constituir
proletariado moderno, o Estado mínimo uma reversão de dogmas que geram pre-
em curso, com a privatização sem crité- conceitos se a estes se contrapuser a prá-
rios do que é público e a associação do tica do diálogo. Noção das mais impor-
público ao privado, traz de volta, com a tantes, este encontra-se intimamente li-
flexibilização das leis trabalhistas, de- gado não somente à Filosofia mas ao pró-
semprego crescente, miséria material e prio ato de pensar. Diálogo supõe movi-
espiritual. As novas massas, analo- mentar-se num campo semântico e
gamente àquelas do século XIX, denun- conceitual que leva em conta o
ciam a ficção dos direitos civis. Elas cons- discernimento, a distinção, a diferença.
tituem os “novos bárbaros”, são o “es- O diálogo “é o fazer-se palavra da cons-
trangeiro” de todas as sociedades, o pro- ciência” (Mario Perniola, Transiti,
letariado sem pátria, sem tradição – to- Bologna Capellli, 1985, p. 140). A assim
dos os excluídos da modernidade. Direi- denominada “mundialização da cultura”
to, numa democracia, observa Lefort, não pela cultura média midiática produz uma
é aquilo de que se destituem cidadãos, inflação da linguagem, pois todos falam
mas o que se exerce em seu benefício, no de tudo, acabando-se por confundir tudo.
sentido de sua permanente ampliação O prefixo dia justaposto ao logos indica,
àqueles dele desprovidos. Direito signi- ao mesmo tempo, o que une e o que dis-
fica, também, invenção permanente de tingue os contrários.
novos direitos e, sobretudo, a represen- Para haver diálogo na sociedade, na
tação do direito a ter direitos. A destitui- política e entre culturas é preciso haver
ção de direitos trabalhistas visa a encontro – o que só ocorre com a condi-
superconcentração e acúmulo do capital. ção “de que duas culturas tenham esque-
A economia faz-se passar por um ciclo cido e abandonado para o esquecimento
fechado de fenômenos objetivos, quando a própria origem, e isto depende de que
é, melhor dizendo, política econômica. cada uma tenha já se tornado dupla com
Nela, os números se comportam como a respeito a si mesma” (Mario Perniola, op.
oratória nos comícios: não são portado- cit., p. 145). Ressoam aqui as palavras de
res de nenhuma objetividade irrefutável. Montaigne: “somos duplos em nós mes-
A economia, através de estatísticas, por- mos […]. Eu agora, eu depois, somos a
centagens e números, como única manei- bem dizer dois” (Essais, II, 16, III, 9, ed.
ra de pensar e de ser, é um poderoso re- Livre de Poche, 3 vol., 1972). Somos
dutor do pensamento. O futuro é visto constituídos de matéria tão informe e
como previsível e controlável e só é evo- diversa que “cada peça, cada momento
cado como justificativa do que se quer faz seu jogo. E há mais diferença de nós
fazer no presente. O discurso oficial dos a nós mesmos do que de nós a um outro”
governantes não reconhece os desconten- (idem, II, 2). Segue-se, em Montaigne,

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um respeito pela estranheza aparente do miliar que, em certas condições, mani-
Outro, que seria logo adiante compreen- festa-se como estranho. É o medo que
dida na naturalidade universal deste “eu- fixa o estranho fora de nós, revelando
país” ampliado que somos, diversificado naquilo que uma vez foi familiar algo po-
e tolerante: “tive, por longo período, um tencialmente “impregnado” do estranho,
homem comigo (um indígena vindo do no caso, o inconsciente (in O Sinistro,
Brasil a Rouen em 1556) que permane- São Paulo, Imago). Também nosso eu
ceu de dez a doze anos (entre nós). O primitivo, ainda não delimitado pelo mun-
novo mundo foi descoberto em nosso do externo, projeta para fora de si tudo o
século, no lugar em que Vilegaignon que experimenta como perigoso e assus-
aportou e denominou França Antártica. tador, constituindo, assim, um duplo –
A descoberta deste país infinito deve ser sendo estranho e inquietante justamente
levada em consideração […]. Estes ho- por conter a destrutividade de nosso pró-
mens estrangeiros e estranhos não conhe- prio eu. Face ao estrangeiro que recusa-
cem nenhuma forma de contrato” (idem, mos e com o qual nos identificamos sem o
I, 31). São frugais, diferentes dos euro- saber, perdem-se os limites entre o real e
peus, canibais em certas horas, mas de o imaginário de forma que o conflito se
forma alguma desprovidos de bom senso estabeleça entre a necessidade de identifi-
nesse mesmo rito, tendo talento poético cação com o outro (para que não permane-
em seu folclore. Montaigne hesita em ça desconhecido e ameaçador) e o medo
chamá-los bárbaros: “pode-se muito bem de consegui-la (e perder-se na alteridade).
tratá-los de bárbaros, de acordo com as leis Orientados pelas considerações
da razão, mas não em comparação conosco freudianas, Horkheimer e Adorno mos-
que os ultrapassamos em toda espécie de tram como procedem o preconceituoso
crueldade” (idem, I, 31). Montaigne criti- racista ou o fanático religioso: fusionando
ca o domínio colonial dos espanhóis e da representações verdadeiras acerca de si,
Igreja dizendo que os nativos da América atribuem-nas falsamente aos outros. Sua
nada têm a invejar nos europeus em habi- prática é a do “bode-expiatório”. O anti-
lidades e “quanto a sua devoção, obser- semita inveja secretamente o judeu por
vância das leis, bondade, generosidade, qualidades que ele lhe confere e não su-
sinceridade (franchise), nos foi muito útil porta a frustração de não as ter. Pratica,
não tê-las tanto quanto eles” (III, 6). Os por assim dizer, a identificação com um
massacres com os quais os colonos dizi- opressor imaginário para tornar-se, ele
maram homens no México e no Peru são próprio, “justificadamente” agora, o pró-
matanças, horríveis hostilidades e mise- prio opressor. Trata-se de um dispositivo
ráveis calamidades” (III, 6). Montaigne que os filósofos denominam “falsa
defende religiões e raças contra todos os mímesis”, adaptação, através da
excessos das religiões e das raças. tecnologia e da maquinaria social, a algo
Interrogar a intolerância é, pois, ques- tomado como inanimado: “é o medo que
tionar as relações do eu ao outro mas so- favorece a assimilação do diferente ao
bretudo de nós a nós mesmos. Ou, nos idêntico – a exorcização do perigo atra-
termos de Freud, este eu que nos é tão vés do talismã da identidade” (cf.
íntimo é, também, inquietantemente es- Dialektik der Aufkärung, op. cit.). Quan-
tranho. Partindo do estudo semântico do to mais fraco o ego, mais forte é sua an-
adjetivo heimlich (familiar) e de seu coragem ao idêntico. A mímesis é, neste
antônimo unheimilich (secreto, escondi- caso, projeção fóbica e destruidora.
do), Freud indica a coincidência final en- Reconhecer o estrangeiro em nós mes-
tre o conhecido e o desconhecido. Na pró- mos nos revela um país desconhecido
pria palavra inverte-se o mais conhecido onde fronteiras e alteridades são, perma-
em seu contrário, nessa enigmática pre- nentemente, construídas e desfeitas. Não
sença do estranho no mais familiar – fa- se trata, pois, de “integrar” o estrangeiro

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e, ainda menos, persegui-lo, mas acolhê-
lo neste “ inquietante estranhamento” que
é tanto o seu quanto o nosso: “somos Cris-
tãos”, anotou Montaigne, “a mesmo títu-
lo que somos perigordianos ou alemães”
(idem, II, 12). Trata-se de um
cosmopolitismo de tipo novo, transverso
a governos, economias e mercados –
aquele que instala em nós a diferença
como condição de nosso estar com os ou-
tros. Disto resulta a ampliação de nossa
identidade. Se os princípios de identida-
de e de não contradição determinam um
“terceiro excluído”, rever este “princí-
pio de Razão” significa apreender um
pensamento eclético e plural que recusa
a lógica binária das ortodoxias. “Razão
mestiça”, poderíamos dizer, porque mis-
ta e porque joga com descobertas, “com
plasticidade e metamorfose, destacando
um tercerio termo que, incluído, é o da
tolerância heterodoxa” (Maria Helena
Varela, O Heterólogo em Língua Portu-
guesa, Rio de Janeiro, Espaço e Tempo,
1996, p. 96). Algo semelhante pode ser
encontrado, para a compreensão das
hibridizações culturais, no conceito de
sincretismo, para além da restrição que
lhe confere o âmbito religioso. Na ori-
gem da palavra “há algo de enigmático e
de alusivo […]. Dizia-se, de fato, que os
cretenses, sempre dispostos a uma luta
entre si, se aliavam quando um inimigo
externo aparecia. Sincretismo é a união
dos cretenses, um conceito defensivo que
ultrapassa a fragmentação política inter-
na […]. Essa determinação em unir gru-
pos conflituais em busca de alianças entre
partes da própria Creta serviu para a pos-
terior migração do conceito: da política à
religião” (M. Canevacci, Sincretismos, Ex-
ploração das Hibridizações Culturais, São
Paulo, Studio Nobel, 1995, p. 15).
O sincretismo pode ser compreendi-
do como uma metodologia. Indica um
plano diferente daquele que se engaja em
uma verdade essencial, espécie de iden-
tidade eleata, garantidora de uma origem.
O sincretismo é um outro logos – que
atesta a crise das aculturações violentas e
corsárias. O sincretismo aparenta-se ao

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oxímoro: uma loucura (oxy) da lingua- têm em comum é serem todos suscetíveis
gem que coloca em desordem as frontei- a sofrimentos e decepções. O co-padeci-
ras das palavras para dar novos sentidos mento funda-se em nossa capacidade de
às coisas. Oxímoros, sincretismos, identificação no sentido em que “o cami-
heterólogos provêm de lógicas “ilegíti- nho mais curto de chegarmos a nós mes-
mas” e sem “coerência”, transitando em mos é aquele que dá volta ao mundo”.
assimetrias, contagiando significações Relativizando nossos costumes, compre-
consagradas, desviando-se de univer- ender-se-á que se ninguém possui a ver-
salismos intolerantes, indigenizando-se dade, todos têm o direito a ser compreen-
em mutações culturais. Disciplinado dido (Milan Kundera, Contingência, Iro-
numa síntese, o heterogêneo recai na uni- nia e Solidariedade, Lisboa, Presença,
versalidade homogênea, que tudo 1992). Em Heródoto encontramos indi-
reconverte à dimensão do mesmo: o su- cações sobre a exemplaridade de conhe-
jeito soberano. É preciso manter o passa- cer-se a si mesmo pela mediação do Ou-
do em sua dispersão, procurando demar- tro. Quando o historiador narra
car os ínfimos desvios ou mesmo com- detalhadamente e com admiração respei-
pletas reversões que lhe deram nascimen- tosa os costumes dos egípcios, é a pró-
to. O pensamento que presume ter encon- pria Grécia que se faz conhecer: “Entre
trado a verdade é falso justamente por su- os egípcios, as mulheres compram e ven-
bentender a pacificação entre o pensamen- dem, enquanto os homens ficam em casa
to e a coisa. Colocando o Eu em estado de a tecer […]. Os homens carregam os far-
questão, o heterólogos mestiço dá-se ple- dos em suas cabeças, mas as mulheres os
na liberdade de se contradizer, já que a carregam nos ombros […]. Nenhuma
insularidade do Eu não responde “à reali- mulher é consagrada ao serviço de divin-
dade do real”. Nas palavras de Pascal: dades, sejam estas masculinas ou femini-
“Tudo é um, tudo é diverso. Quantas na- nas. Os homens são os sacerdotes de to-
turezas na do homem” (Pensées, Paris, das as divindades. Os filhos não são com-
Garnier, 1964, p. 107). Nesse sentido, o pelidos contra sua vontade a sustentar
outro não é nosso limite externo, mas o seus pais, mas as filhas devem fazê-lo
que nos pluraliza e através de quem pode- mesmo sem o querer” (Histoires, Pléiade,
mos nos totalizar. Restritos a uma única livro II, 35). Conhecer o Outro é conhe-
identidade de origem, diminuímos em ser, cer melhor a si mesmo.
em realidade, em humanidade. Se o Outro é um nós mesmos invertido,
Viver é mais do que sobreviver. No podemos dele nos aproximar pelos laços
século XVI, La Boétie escrevia: “Não da confiança e da amizade. Horkheimer,
pode haver amizade onde há desconfian- por sua vez, escreveu enquanto ainda exis-
ça, deslealdade, injustiça. Entre os maus, tia o socialismo histórico, o do Leste Euro-
quando se reúnem, é um complô e não peu: “Os estudantes fugidos do Leste, nos
companhia. Eles não se entretêm, primeiros meses depois de sua chegada à
entretemem-se. Não são amigos mas cúm- Alemanha [Federal] são felizes porque há
plices” (Discurso da Servidão Voluntá- mais liberdade, mas logo se tornam melan-
ria, São Paulo, Brasiliense, 1982, p. 106). cólicos porque não há amizade alguma”
Sociedade que não se funda nos laços da (“Actualidad de Schopenhauer”, in
amizade e da fraternidade é, também, sem Sociologica, Madrid, Taurus, 1971, p. 194).
compaixão. Esta é uma “tristeza Um mundo no qual só conta a lei do valor
mimética” pela qual desejamos o fim do e a lógica do saber a ele associada não é o
sofrimento de um outro nós mesmos. Não mundo humano, mas o do capital. Socieda-
é algo que se descobre na reflexão ape- de sem espaço para a amizade e para a
nas, mas é criada com a ampliação de fraternidade “não merece o nome de cida-
nossa identidade e sensibilidade aos por- de mas antes o de solidão” (Espinosa, Tra-
menores da dor, pois o que os homens tado Político, Pléiade, NRF, v. I).

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. .A PALAVRA
DEMOCRÁTICA
A
Palavra Democrática foi um colóquio organizado, de 1o a 16

de abril de 1997, pelo prof. Renato Janine Ribeiro, no Centro

Universitário Maria Antonia, da USP, abrindo o programa de

Direitos Humanos que se estenderia até novembro daquele ano.

O primeiro artigo, a seguir, do coordenador, expõe os problemas

que seriam discutidos. Jurandir Freire Costa depois discute a

palavra na psicanálise e na democracia. José Teixeira Coelho

mostra como a palavra é um campo de batalha de distintas posi-

ções políticas e sociais. Newton Bignotto indaga se existirá, a

reverso da palavra enquanto veículo da democracia, uma palavra

própria do tirano. E finalmente Marcelo Leite examina o que é

discutir a palavra, a cada dia, na imprensa.

Este colóquio teve o patrocínio da Unesco, como por sinal

todo o programa de Direitos Humanos na rua Maria Antonia, e

além disso o apoio financeiro do CNPq, que viabilizou um denso

e rico seminário de discussões, em Atibaia, entre os participantes.

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