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OLGÁRIA MATOS
por excelência nobre. Atividade pacien- contra seus clientes para que suas cria-
te e concentrada é experiência que tra- ções deixassem de ser tratadas como
balha nossos medos e nossas esperan- mero produto avaliadas pelo espaço
ças e necessita do tempo, à distância da da superfície pintada e pelo preço das
temporalidade, acelerado, hegemônico tintas empregadas , até hoje, a cultura
no Ocidente, o tempo dito real. tem sido uma resistência para impedir
Proust, em À sombra das raparigas em flor, que a lógica da compra e da venda co-
narra como, progressivamente, foi-se mandasse os bens culturais. Reintroduzir
constituindo para ele a sonata de o reino financeiro em universos que se
Venteuil, cujos compassos acompa- foram constituindo contra ele é colocar
nham toda a Recherche: em risco as mais altas realizações da
humanidade em seus esforços humani-
(...) esse tempo de que necessita um in- zadores a arte, a literatura, a ciência,
divíduo para ingressar em uma obra a filosofia, isto é, os bens culturais. Nes-
profunda é como o resultado e sím- se sentido, o historiador da cultura suí-
bolo dos anos e, por vezes, séculos que
ço, Burckhardt, escreveu serem grandes
devem transcorrer até que o público
possa apreciá-la verdadeiramente [...]. Platão, Píndaro, Sófocles, Solon,
Foram os próprios quartetos de Galileu, Michelângelo, Rafael, mas não
Beethoven que levaram cinqüenta anos os grandes navegadores, porque a Amé-
para dar vida e número ao público de rica teria sido descoberta, mesmo se
suas composições, realizando o que se- Colombo tivesse morrido recém-nasci-
ria impossível encontrar quando a obra- do. Mas a pintura A transfiguração, de
prima apareceu, isto é, criaturas capa- Rafael, não teria sido realizada se ele
zes de amá-la. não a tivesse feito. Grandes são aqueles
sem os quais o mundo seria incompleto.
As obras de pensamento representam
Humanismo, educação, transformação
partes inteiras de uma vida e de toda
significam: a civilização dos costumes,
uma existência construída de parado-
o abranda-mento das tendências
xos, enganos e liberdade. É preciso ge-
destrutivas na sociedade e as boas lei-
rações para recebê-las e interpretá-las
turas que conduzem à afabilidade, à
para decifrar a serenidade de Sócrates
amizade, à sociabilidade.
no momento de sua morte, os êxtases
O escritor Jean Paul escreveu serem
de Plotino, as noites atormentadas
os livros cartas, decerto longas, que se
das meditações metafísicas de Descar-
endereçam aos amigos. São eles
tes. Além disso, todas as obras consi-
propiciadores de uma amizade realiza-
deradas universais no campo da cultu-
da a distância por meio da escrita. Di-
ra são o resultado de universos que, aos
ferentemente das amizades da
poucos, superando as leis do mundo co-
Internet que pode ter sua importân-
mum e, sobretudo, a lógica do lucro,
cia na democratização das informações
foram se consolidando. Dos pintores do
e das associações entre lugares espaci-
Quattrocento, que precisavam lutar
almente afastados a cultura encontra-
amizade. Tanto na acepção grega clás- (...) a natureza, primeiro agente de Deus,
sica quanto em La Boétie, no benfeitora dos homens, criou-os todos
Renascimento, o tirano é o mais infeliz do mesmo modo e, de certa maneira,
de todos os homens porque não tem verteu-os todos na mesma fôrma, para
mostrar-nos que somos todos iguais, ou
amigo nem colaborador fiel e vive no
melhor, todos irmãos [...]. A natureza
medo, tanto no que inflige a seus súdi- deu a todos o belo presente da voz e da
tos quanto naquele que sente, pela des- fala para que nos abordássemos e nos
confiança com respeito àqueles que o confraternizássemos e, através da comu-
cercam. O tirano é obrigado a viezar, nicação e da troca de nossos pensamen-
dissimular suas verdadeiras ações e in- tos, fôssemos levados à comunidade das
tenções para enganar os homens; aque- idéias e de vontades.8
les que o cercam devem, por sua vez,
adulá-lo, simular lealdade, conspirar Natureza, amizade, sociedade cons-
contra os demais, para conseguir os fa- tituem o eixo em torno do qual se arti-
vores do tirano: cula o pensamento sobre a igualdade e
a fraternidade, por um lado, o da servi-
(...) os favoritos de um tirano nunca se dão, da deslealdade, da traição, por
podem garantir contra sua opressão, outro. A amizade é aquela relação
porque eles mesmos ensinaram-lhe que tecida no bem-querer e no bem-fazer,
ele tudo pode, que não há direito nem em que os amigos suprem reciproca-
dever que o obrigue [...]. Que sofrimen- mente as limitações uns dos outros e
to, que martírio, Deus do céu! Estar noite
formam uma companhia de homens li-
e dia querendo agradar um homem e,
vres. Diferentemente da comunidade
no entanto, desconfiar dele mais do que
qualquer outro no mundo; ter os olhos política, sujeita às contingências e às in-
sempre à espreita, os ouvidos à escuta, certezas da fortuna, temporalidade in-
para espiar de onde virá o golpe, para constante, instável e caprichosa, a ami-
descobrir as emboscadas, as tramóias, zade não sucumbe ao poderio do for-
para denunciar quem trai o senhor; rir tuito; ao contrário, só ela tem a força
para cada um, temer a todos sempre, para impedir que as diferenças de pos-
não ter inimigo reconhecido nem ami- ses, fama, glória e honras dividam e se-
go certo; mostrar sempre um rosto sor- parem os amigos, pois o que é de cada
ridente e ter o coração transido; não po-
um é de todos e são todos que agem
der ser alegre e não ousar ser triste.7
para que cada um seja o que é e tenha o
Chama-se a isso viver?, exclama La Boétie. que tem. Passa-se o contrário entre os
Para La Boétie, liberdade e amiza- maus, que,
de encontram-se na natureza e em tudo
(...) quando se reúnem, é um complô e
são opostas à servidão e à injustiça: não companhia; não se entretêm, eles se
entre-temem. Não são amigos; são
cúmplices.
7. LA BOÉTIE, É. (1984) Discurso da servidão vo-
luntária. São Paulo, Brasiliense, p. 107. 8. Ibid.
Recebido em 23/5/2003
Aprovado em 30/5/2003