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FRAGMENTOS DE NIETZSCHE E BENJAMIN FRENTE AO COLAPSO


CULTURAL - POSSIBILIDADES DE RUPTURA.

Sérgio de Oliveira Santos


Unesp – Rio Claro

Soterrado pelas exigências de um sistema econômico desmedidamente


bárbaro e seduzido pelo “canto da sereia” do que hoje se tem como cultura, o
homem contemporâneo sofre a formatação de “seu” desejo, o que o torna inábil para
expressar os seus conflitos e anseios segundo um determinado vocabulário criativo
e emancipador que lhe poderia proporcionar um mínimo de dignidade para
reconhecer-se e reconhecer ao outro como sujeito. Neste panorama, como diria
Walter Benjamim, há um “empobrecimento das experiências formativas e
comunicáveis”, ficando o ser humano desamparado e a mercê da racionalidade
técnica e dos meios de comunicação, dando margem a um universo de idéias que o
sobrepõe, assim como preconizam Theodor Adorno e Max Horkheimer na obra “A
Dialética do Esclarecimento”, em especial na primeira parte desta - “Indústria
Cultural: o esclarecimento como mistificação das massas”.

A Indústria Cultural (meios de comunicação, entretenimento, indústrias


alimentícia, fonográfica, cinematográfica, editorial etc.) oferece diversos produtos
aos seus consumidores a fim de atender suas necessidades mais urgentes,
exprimindo assim uma idéia de harmonia entre as partes – produtor e consumidor.
Porém, seus amplos meios de atuação denotam que além do lucro, a indústria da
cultura obtém um controle social, apropriando-se do “esquematismo” das pessoas1,
influindo no modo como estas percebem a realidade sensível. É ela quem dita o que
é bom, o que é verdadeiro e o que é belo.

Neste contexto, ergue-se o não-homem que se inverte no contrário de homem:


em vez de ser proprietário das coisas, dos bens materiais, estas que o têm como
propriedade; em vez de fazer uso das coisas, estas que o usam. O homem torna-se
ferramenta, produto e consumidor passivo, dócil e feliz do sistema. A sociedade é
cúmplice daquilo que a destrói enquanto entorpece sua dor.

Nietzsche denomina tal homem como o “último homem”, e sobre ele diz:

O último homem simboliza a modernidade, que considera a si mesma o ponto mais


avançado do desenvolvimento histórico da humanidade, acreditando que a
finalidade dessa história consistia precisamente na chegada do moderno. Orgulhoso
de sua cultura e formação, que o elevaria acima de todo o passado, o último homem
crê na onipotência de seu saber e de seu agir. [...] O bem supremo almejado pelo

1
Segundo Duarte o “esquematismo é um termo cunhado por Kant para designar o procedimento mental de
referir nossas percepções sensíveis a conceitos fundamentais, os quais chamava de categorias”.
2

último homem - sua concepção de felicidade – é uma combinação de mediocridade,


2
conforto, bem-estar, ausência de sofrimento e grandeza ”.

A Indústria Cultural é vívida e astuta. Todas as manifestações que vão contra


seu legado acabam sendo cooptadas ou deturpadas. Nem mesmo a escola escapa
de sua sagacidade. A educação, enquanto finalidade primeira da escola passa a
estar a serviço dos mecanismos desta indústria que, nesse caso, age
insidiosamente sobre a padronização dos eventos culturais e sobre a racionalização
de sua distribuição.

A escola (...) que mantinha uma certa autonomia em relação à produção material e
por isso podia pensá-la e negá-la como sendo a principal esfera da vida, à medida
que adquire a função de produzir e reproduzir a mão-de-obra, diminuindo o seu
interesse pela formação individual, colabora com a eliminação da possibilidade de
formar alunos que possam refletir sobre as condições atuais de vida3.

A formação cultural, que conforme Adorno (1996), deveria possibilitar


condições aos indivíduos para se realizarem com autonomia e liberdade de espírito,
sob o ideário neoliberal, resume-se a uma semiformação que aniquila a
possibilidade do pensar humano, conduzindo-o ao domínio da heteronomia.

Diante do exposto até o presente momento e na perspectiva de minimizar o


caos educacional e o colapso cultural instaurados em nossa sociedade, faz-se a
seguinte questão: há alguma prática individual ou institucional que possa romper ou
se esquivar das armadilhas da Indústria Cultural?

Na intenção de lançar novos olhares sobre a problemática proposta, o


presente trabalho, originado de um projeto de pesquisa, semeia algumas
considerações de Walter Benjamin e Friedrich Nietzsche sobre educação e cultura.
No tocante à concepção de homem de que nos valemos um terceiro autor é
chamado para o diálogo – Sigmund Freud.

As obras de Nietzsche e Freud influenciaram sobremaneira o pensamento


filosófico contemporâneo e com isso lançaram grandes discussões sobre a noção de
sujeito apreendidas desde então. No estudo de tais pensamentos encontramos
algumas similaridades que serão ligeiramente apontadas, pois o que muito nos
interessa, é destacar a importância de seus trabalhos no rompimento com a
supremacia da consciência (razão) vigente desde René Descartes.

2
GIACOIA, O. 2000, p.56
3
CROCHIK, L. 1998, p. 17.
3

“Há uma necessidade em se controlar as paixões”, essa é a “moral” posta por


Descartes na obra O Discurso do Método. Segundo o próprio autor, os sentidos e os
juízos nos induzem ao erro, e é através de uma percepção clara e distinta, obtida via
dúvida hiperbólica e embasada em uma lógica matemática que o sujeito pode
estabelecer uma verdade. Esses preceitos remetem a uma primazia da razão. Em
decorrência, uma noção de homem que se faz e se sustenta na racionalidade, na
consciência.

A dúvida hiperbólica conduz Descartes às suas concepções metafísicas, quando


trata da prova da existência de Deus; há que se duvidar de tudo que existe, pois o
eu, enquanto ser pensante e, pelo próprio pensamento, é certo que existe. Cogito,
ergo sum. Contudo, se confiarmos nos sentidos, podemos incorrer no engano;
podemos não atingir uma percepção clara e distinta. A possibilidade do engano
sugere a possibilidade do não-engano; o poder enganar-se é idéia de imperfeição.
Logo, se há a imperfeição, deve existir a perfeição – o não-engano. Esta idéia
remete à de um ser perfeito, que não se engana nunca, onipresente – é a prova
ontológica que Descartes apresenta da existência de Deus4.

“Deus está morto”; disse Nietzsche. “O homem já não é mais senhor dentro
de sua própria casa”; disse Freud. O mundo cartesiano fundado na razão, na posse
da verdade, na consciência, começa a ruir. A existência humana não se encontra
mais apenas no simples fato de pensar, vejamos porquê.

Sem entrar nos méritos do ateísmo nietzscheano, por não ser ele objeto desta
discussão, sua afirmação da morte de Deus não significa um pensamento
“anticristista”, ou niilista por definição, mas sim, uma forma de incorrer sobre a não
possibilidade de se atingir uma verdade absoluta; de demonstrar a inópia humana de
necessitar de verdades absolutas retiradas dos sofismas da linguagem - verdades
estas que escravizam o homem. Nietzsche propõe uma nova concepção de saber,
tendo em vista que, para Descartes, Deus era a prova da possibilidade de uma
verdade absoluta. “As verdades são ilusões que nós esquecemos que o são” 5 ,
preconiza Nietzsche.

Para Nietzsche o “eu” é apenas uma ilusão, uma convenção, uma construção
humana. O seu pensar é efeito das relações que estabelece com o outro e consigo
próprio: “O nosso corpo não é senão uma coletividade de muitas ‘almas’”6, muitas
forças se relacionando, onde se domina ou se é dominado (vontade de poder).
Assim se faz o devir humano, e é na filosofia pré-socrática, junto a Dionísio e Apolo,
que Nietzsche encontrará respaldo para seu pensamento.

4
FARIA, N. J. 1996, p.22.
5
NIETZSCHE, F. Sobre a verdade e a mentira no sentido extra-moral. Apud FARIA, 1996, p. 26.
6
Para Além do Bem e do Mal #19.
4

Apolo apresenta o lado luminoso da existência, o impulso para gerar as formas


puras, a majestade dos traços, a precisão das linhas e limites, a nobreza das figuras.
Ele é o deus do princípio de individuação, da sobriedade, da temperança, da justa
medida, o deus do sonho e das belas visões. Dionísio, por sua vez, simboliza o
fundo tenebroso e informe, a desmedida, a destruição de toda figura determinada e
7
a transgressão de todos os limites, o êxtase da embriagues .

Segundo Nietzsche o apolíneo e o dionisíaco são impulsos, forças, princípios


que habitam o ser humano agindo e reagindo, entre conflitos e reconciliações. Assim,
quando o apolíneo cerra-se em suas perspectivas o dionisíaco descerra-se noutras.
Destarte, surgem as infinitas possibilidades e perspectivas da existência humana -
sua cognição, volição e produção.

A metapsicologia freudiana, no que tange à apreensão do sujeito, pode ser


descrita em três partes, que gradualmente se complementam: concepção
topográfica (formulação de um aparato psíquico a partir de conhecimentos de
fisiologia e física); primeira tópica (formulação de um aparato psíquico subdividido
em três áreas: Inconsciente, Pré-Consciente/Consciente e Consciente); segunda
tópica (complemento da primeira tópica – psique constituída por três instâncias
psíquicas: id, ego e superego). Para o presente trabalho faz-se necessário uma
melhor explanação acerca da segunda tópica, vejamos então.

O id é uma instância psíquica inconsciente, morada de Thânatos (pulsão de


morte), fonte de todos os desejos e regida pelo princípio do prazer, o qual reclama a
satisfação imediata dos desejos que ali se originam. O ego é uma outra instância
psíquica, que em grande parte também é inconsciente. Regida pelo princípio da
realidade, tem como função conciliar, mediar, reprimir ou adiar os desejos oriundos
do id e as forças repressoras do superego, sendo as formações de compromissos
(tais como os sintomas) fruto dessas conciliações. De outro lado, o superego é um
desdobramento do Ego (ideal) por ser constituído principalmente por desígnios
sócio-culturais provenientes do meio com o qual, ou com os quais, o sujeito se
relaciona. Assim, o superego é considerado o herdeiro do Complexo de Édipo:
“limite dado pela realidade social, que leva a criança a se identificar com o pai do
mesmo sexo, introjetando, assim, valores e normas morais, sociais, religiosas etc.”8
Esta instância faz-se basicamente consciente, mas também possui aspectos
inconscientes.

De acordo com os pressupostos freudianos, o homem é mobilizado em seus


pensamentos e ações por desejos inconscientes dos quais não tem nenhum
conhecimento. Sendo assim, a primazia da consciência vem por terra, por ser esta
regida pelo processo secundário (princípio da realidade), processo este em que a

7
GIACOIA, O. 2000, p. 34.
8
FARIA, N. J. 1996, p.39.
5

satisfação do desejo é adiada e/ou arranjada – maquiada -, permitindo experiências


mentais que põem à prova os diferentes caminhos possíveis de satisfação.

Neste ponto faz-se possível a percepção da similaridade entre o


pensamento de Freud e de Nietzsche no que tange as bases (processos) sobre as
quais se edificam as ações humanas. “Se na psicanálise o Id é regido pelo princípio
do prazer e o Ego pelo da realidade, no pensamento nietzscheano o mesmo
acontece com Dionísio – a embriaguez e a alegria – e com Apolo – a perfeição e a
moderação” tal como aponta FARIA9.

De acordo com Nietzsche e Freud a consciência não é a única instância


psíquica do sujeito. Ela é apenas a superfície do aparato psíquico deste, através da
qual se expressam simbolicamente os desejos inconscientes. Cumpre resgatar, no
presente momento, que o ser humano não se constitui apenas através de desígnios
inconscientes, mas também se faz na relação com o outro, com a cultura. Assim, é
como ser relacional, que o sujeito se constrói e é construído; produz cultura e é
afetado por ela. Justamente nesse ponto surgem as tensões entre os interesses
individuais e sociais, os benefícios e malefícios (im)pensados e materializados pelo
ser humano.

No decorrer dos tempos e espaços o homem deu origem a diversos


movimentos e ideologias que nortearam suas ações. O Iluminismo é exemplo disto.
Tal movimento surgiu no século XVII e teve seu apogeu no século seguinte que ficou
conhecido como o “século das luzes”, afinal, na perspectiva de seus principais
filósofos, o domínio da razão iria banir a escuridão que recaiu por sobre a
humanidade na Idade Média através das crenças religiosas e do misticismo.

A razão vem novamente à baila com o intento de auxiliar o homem em seu


processo emancipatório, posta a serviço de sua liberdade e autonomia. Porém, o
que se viu em sua trajetória foi um escamoteamento de seus propósitos o que deu
margem a razão instrumental.

Se Kant ainda podia acreditar que a razão humana permitiria emancipar os homens
dos seus entraves, auxiliando-os a dominar e controlar a natureza externa e interna,
temos de reconhecer hoje que essa razão iluminista foi abortada. A razão que hoje
se manifesta na ciência e na técnica é uma razão instrumental, repressiva. Enquanto
o mito original se transformava em iluminismo, a natureza se convertia em cega
objetividade10.

A sociedade guiada pela razão foi ganhando contornos e características que


desembocaram na dicotomia entre o mundo das artes, das idéias, dos sentimentos

9
Idem.
10
FREITAG, B. 1988, p. 35.
6

elevados e o mundo da reprodução material. E foi justamente nessa dicotomia que o


ideário burguês se consumou legitimando a exploração e a alienação da maioria da
população. Reforçando na cultura os valores espirituais, à dignidade da pobreza, a
felicidade metafísica fechava os olhos do sujeito para a condição de miserabilidade
em que encontrava.

Os bens culturais materializados nas obras de arte, nas obras literárias, nos
sistemas filosóficos não permaneceram por muito acessível apenas a uma minoria.
Quando a falácia alienante da pobreza material em favor de uma riqueza espiritual
tornou-se insuficiente para manter a submissão e a docilidade do trabalhador frente
ao novo sistema de produção, este, por intermédio do avanço tecnológico-industrial,
massificou os bens culturais transformando-os em mercadoria. Dessa forma a
cultura deixou de ser cultura para ser um produto, um valor (de troca pelo produtor,
de uso pelo consumidor) destinado à massa, dando origem ao que Adorno e
Horkheimer chamaram de Indústria Cultural.

A nova produção cultural tem a função de ocupar o espaço do lazer que resta ao
operário e ao trabalhador assalariado depois de um longo dia de trabalho, a fim de
recompor suas forças para voltar a trabalhar no dia seguinte, sem lhe dar trégua
para pensar sobre a realidade miserável em que vive. A indústria cultural, além disso,
cria a ilusão de que a felicidade não precisa ser adiada para o futuro, por já estar
concretizada no presente(...) E, finalmente, ela elimina a dimensão crítica ainda
presente na cultura burguesa, fazendo as massas que consomem o novo produto da
11
indústria cultural esquecerem sua realidade alienada .

Os ardis da indústria da cultura - da cultura que não é cultura, da arte que não
é arte, da razão instrumental, dos valores de troca - roubam do sujeito a capacidade
intelecto-crítica de ler, compreender e agir nas relações sociais (de exploração) de
forma a culminar em um sujeito emancipado, livre, criativo e ativo em sua existência
errante. Ao contrário, a indústria cultural transforma os sujeitos em algo amorfo,
sugestionável, no qual incute seu ideário, qual seja, o consumo como forma de
realização pessoal e o progresso científico-tecnológico como o ápice da realização
humana.

Mas é justo destacar que, mesmo em tempos como estes de deturpação das
consciências, formatação de desejo e atrofia da capacidade crítica, algo, alguém,
algumas práticas escapam a esse determinismo miserável. Talvez seja uma fantasia
compensatória tal afirmação, mas diante de algumas constatações empíricas (que
não virão à baila no presente momento) e de consistentes contribuições de autores
como Nietzsche e Benjamim, encontramos subsídios para delinear possíveis formas
de ruptura para tal cenário. Vejamos então, alguns fragmentos da obra de tais
autores.
11
Ibid, p. 73.
7

Nietzsche

Nietzsche condena a redução do ensino à domesticação frente aos interesses


do Estado mediocrizando os alunos. Considera que é preciso procurar elevados
modelos que possam tornar-se guias dos alunos (bons professores). No entanto é
enfático ao dizer que estes (os professores) “devem começar por educar a si
próprios” para que possam assim ser exemplo aos alunos. Os bons modelos para
Nietzsche são os gregos.

É claro que na contemporaneidade o que voga no ensino é muito mais que os


interesses do Estado. Há interesses e ideologias múltiplas no contexto educacional,
inclusive o sentimento de zelo, de simpatia, de reciprocidade entre professor e aluno.
É evidente que o bom professor do qual Nietzsche nos faz referência seja
massacrado pelo capitalismo. Mas há que se destacar que tal maceramento não
ocorre apenas com os professores, ocorre com todos os profissionais que não
rezam conforme a cartilha capitalista neoliberal. “Não é o hábito que faz o monge”,
não é um título, não é o simples fato de ter freqüentado um curso ou um banco
acadêmico que faz um bom professor, um bom advogado, um bom médico, um bom
psicólogo. Talvez um dos grandes convites de Nietzsche seja uma genealogia da
moral, dos valores que nos constituem possibilitando uma apreensão de nós
mesmos, mesmo que limitada, mas nossa própria versão de nós mesmos.

De acordo com Dias:

Educação e cultura são, para Nietzsche, inseparáveis. Não existe cultura sem um
projeto educativo, nem educação sem uma cultura que a apóie. (...) Para o filósofo,
cultura e educação são sinônimos de ‘adestramento seletivo’ e ‘formação de si’; para
a existência de uma cultura, é necessário que os indivíduos aprendam determinadas
regras, adquiram certos hábitos e comecem a educar-se a si mesmos e contra si
12
mesmos, ou melhor, contra a educação que lhes foi inoculada” .

Em tal citação a autora nos mostra que Nietzsche é enfático ao dizer da


necessidade da apreensão de um conteúdo historicamente manifesto (regras,
hábitos e conhecimentos) pelo aluno. Porém, na mesma proporção, enfatiza que
simultaneamente deve haver um processo que permita ao aluno questionar-se e
questionar o ensinamento ministrado, com a finalidade de caminhar com seus
próprios passos e crescer por si mesmo, em busca de uma personalidade
harmoniosamente amadurecida e desenvolvida.

Em suas conferências “Sobre o Futuro de nossos Estabelecimentos”


Nietzsche critica o estilo pobre da escrita jornalística de sua época e também as

12
DIAS, R. 2001 p. 34
8

expressões e palavras utilizadas por maus romancistas. Diz que a escola de alta
qualidade deve levar o aluno a estudar seriamente sua língua a fim de sentir certo
asco ao se deparar com estilos, palavras e expressões que firam a riqueza e a
respeitabilidade da língua.

Como complementação e moderação do estudo científico que tudo quer


domar e se apropriar, Nietzsche propõe o conhecimento artístico (a arte) que
reafirma a vida, que é libertador e nos abre precedentes para experienciar a
realidade. Além do mais, afirma que a arte seria capaz de: “contestar a pretensão
científica de tudo conhecer conduzindo o conhecimento de modo a fazê-lo servir a
uma melhor forma de vida; devolver à vida as ilusões que lhe foram confiscadas;
restituir à arte o direito de continuar a cobrir a vida com os véus que a embelezam”13.

Poderíamos inferir que a beleza de tal ciência não estaria na descoberta, mas
no ato, no processo de descobrir. Quem sabe diante desta ação poderíamos romper
com o terrível ciclo vicioso que consiste na produção de um saber pelo poder, que
outrora legitima e serve como base para tal poder. Nietzsche clama por instituições
de ensino voltadas à cultura, que não priorizem a formação do “pequeno-burguês”,
mas que criem “cidadãos realmente cultos, formados a partir da necessidade interna
da fusão entre a vida e a cultura e capazes de exercer toda potencialidade de seu
espírito”14.

Além dos trabalhos empreendidos por Nietzsche entre 1870 e 1874 que
explicitam sua compreensão sobre educação e cultura – com ênfase no fragmento
Schopenhauer como Educador -, podemos nos apropriar de diversos conceitos em
sua rica obra que se fazem alicerce para pensarmos e agirmos com a finalidade de
superar a crise na educação que atravessamos hoje. Dentre as obras destaca-se
“Assim falou Zaratustra” que traz consigo talvez os principais conceitos
estabelecidos pelo filósofo/psicólogo Nietzsche, sendo eles: vontade de poder, o
eterno retorno e o além-do-homem, que combinados tornam-se a antítese do último-
homem.

A vocação pedagógica desta obra contextualizando-a na temática aqui


apresentada pode ser explicitada no seguinte fragmento:

Meu irmão! Queres caminhar para a solidão? Procurar o caminho que conduz a ti
mesmo? Detém-te um pouco e escuta-me. Aquele que procura, facilmente se perde
a si mesmo. Todo partir para a solidão é culpa – assim fala o rebanho. E tu fizeste
parte do rebanho durante muito tempo. A voz do rebanho continuará ressoando
dentro de ti. Queres, porém, percorrer o caminho da tua tribulação, que é o caminho
para ti mesmo? Mostra-me, então, teu direito e tua força para fazê-lo.

13
Ibid., p.37.
14
Ibid., p.40.
9

Nietzsche destaca que a superação do último-homem (e o que lhe faz assim)


só será possível através da renúncia ao conformismo de sua situação, de sua
mediocridade e auto-satisfação na/da vida do rebanho (a sociedade de massas). A
vontade de poder, o criar além de si mesmo, dará condições para que o homem
rompa os grilhões que o estagnam. Porém, isso apenas ocorrerá quando o
sofrimento não for mais tido como uma objeção contra a vida e as três
transformações do espírito (camelo, leão e criança) possa ocorrer.

Benjamin

A importância da obra de Walter Benjamin está em sua posição de ruptura, de


transgressão com o que está posto, com o que é tido como óbvio. Ele (Benjamin), o
narrador, nos conduz sem dizer aonde iremos chegar. Na leitura de sua obra nos
deparamos com surpresas que nos deixam perplexos. Os momentos de silêncio (de
reflexão) que a obra incita são sinais de conceitos e categorias que estão implícitos
nas definições ocultas, nas explicações subentendidas, na genialidade de apreensão
do real pelo autor.

Tal forma de escrita propicia ao espírito humano um movimento que ocorre do


particular ao universal e vice-versa, para que este possa apreender uma tal
problemática de vários ângulos e com velocidade reduzida, permitindo que haja o
aprofundar, o vivenciar e o experienciar um determinado momento ou situação.
A questão da experiência é tratada com imensa propriedade por Benjamin no
texto Experiência e Pobreza. Nela, um velho pai, no leito de morte, revela a seus
filhos que há um tesouro escondido no vinhedo da família. À procura de tal tesouro,
os filhos cavam sem nada encontrar. Mas no outono, o vinhedo produziu uma infinita
quantidade da fruta e, neste momento os filhos perceberam o que seu pai quisera
dizer: “a felicidade não está no ouro, mas no trabalho”.

O que o pai transmite a seus filhos é, segundo Benjamim “uma certa


experiência”. A experiência é aqui comunicada sob a forma de parábola e, em outras
ocasiões, sob a forma de profecia, de conselho, de narrativa. Ela pressupõe,
portanto, que a experiência seja partilhada por uma coletividade, é a Erfahrung
(experiência que se acumula), contraposta a Erlebnis (a vivência particular e privada
- assimilada às pressas). Para Benjamin é essa capacidade de partilhar experiências
que gradualmente está se perdendo em toda humanidade. A experiência convida o
ouvinte a pensar.

Na obra O Narrador Benjamin retoma algumas idéias apresentadas em


Experiência e pobreza, ressaltando a desvalorização da experiência e a degradação
da figura do narrador. Entretanto, Benjamin não lamenta algo dantesco, mas anuncia
a “nova barbárie”, que pode estar contida na atividade do narrador, que traz para si
uma missão: a retomada do passado; “a história ‘a contrapelo’: não aquela dos
10

vencedores, mas aquela que poderia ter sido outra, que foi sufocada, mas deixou
interrogações, lacunas, brancos que são tantos sinais de alteridade e de
resistência”15.

Outro texto importante de Benjamin é A Escrivaninha. Nela ele fala da


importância daquele local para seus estudos e manutenção de sua saúde frente às
imposições da cultura e da educação. Um aspecto importante a se destacar é que a
escrivaninha era campo propício para a liberação e vivência da fantasia do jovem
Benjamin. Naquele espaço ele podia ser ele mesmo e ir além do que era.

A obra benjaminiana traz alternativas para que o homem contemporâneo


consiga lutar contra as forças que objetivam sua cristalização, sua estagnação,
através de uma retomada e uma análise de seu passado, buscando revigorar
potencialidades que não se cumpriram.

Nietzsche e Benjamin

Como se pode perceber há vários aspectos em comum na obra dos dois


autores. Ambos destacam a importância de haver um processo educacional que
propicie o surgimento do homem como sujeito histórico, vivo, autônomo e universal.
Professores, alunos e instituições são convidados a uma relação de diálogos, de
completude, de pesquisa, de experiências comunicáveis e cumulativas. Afirmam que
se deve haver um vasculhar na gênese dos valores que determinam as condutas
humanas em sociedade, e a partir de então engravidar a realidade com outros
olhares e fazer nascer novas perspectivas dinâmicas e criativas capazes de romper
com o ideário escravagista e despotencializador que assola a contemporaneidade.

É claro que há outras semelhanças entre os dois autores, porém não se faz
possível expressa-las nesse momento. No entanto, o que deve ser discriminado até
o presente momento, é que os dois autores vislumbram possibilidades ao sujeito e a
sociedade de romper com uma realidade opressora que impossibilita uma formação
crítico-formativa. Fica aqui a expectativa de em um próximo trabalho expressar um
pouco mais das obras dos autores e principalmente relaciona-los com dados
empíricos. Desde já o convite está feito para darmos continuidade a este diálogo.

15
Gagnebin. J.M. 2006. p.53.
11

BIBLIOGRAFIA

BENJAMIN, W. O narrador. In: Magia, técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura, e
história da cultura. Obras escolhidas v. 1. São Paulo, Brasiliense, 1996.

BENJAMIN, W. Sobre o conceito de história. In: Magia, técnica, arte e política. Ensaios
sobre literatura, e história da cultura. Obras escolhidas v. 1. São Paulo, Brasiliense, 1996.

BENJAMIN, W. Experiência e pobreza. In: Magia, técnica, arte e política. Ensaios sobre
literatura, e história da cultura. Obras escolhidas v. 1. São Paulo, Brasiliense, 1996.

CROCHIK, J.L. O Computador no Ensino e a Limitação da Consciência. Psicologia e


Educação. (Org. Lino de Macedo). São Paulo: Casa do Psicólogo, 1998.

DIAS, R. M. Nietzsche educador. São Paulo: Scipione, 1991.

DUARTE, R. Adorno/Horkheimer & A Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge


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FARIA, N. J. A tragédia da consciência. Ética, Psicologia e Identidade Humana. Piracicaba:


Editora Unimep, 1996.

FREITAG, B. A teoria crítica ontem e hoje. 2ª ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988.

GAGNEBIN, J.M. História e narração em W. Benjamin. São Paulo/Campinas, Fapesp/


Perspectiva/Editora da Unicamp, 1994.

GIACOIA JUNIOR, W. Nietzsche. 1ª ed. São Paulo: Publifolha, 2000. p. 56.

HORKHEIMER, M. e ADORNO, T. Dialética do Esclarecimento. Tradução: Guido Antônio


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NIETZSCHE, F. Assim Falou Zaratustra. Martin Claret. São Paulo: 2005.

NIETZSCHE, F. Humano, Demasiado Humano: um livro para espíritos livres. Tradução,


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NIETZSCHE, F. A Gaia Ciência. Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza. São
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NIETZSCHE, F. Além do Bem e do Mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. Tradução, notas
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SOBRINHO, N. C.M. Escritos sobre Educação. Friedrich Nietzsche. Rio de Janeiro:


PUC/Loyola, 2003.

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