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A filosofia metafórica de Nietzsche

Danilo Soares Rocha1

“O homem é a medida de todas as coisas”.


(Protágoras)

O presente estudo tem como objetivo facilitar o entendimento acerca do texto


“Introdução teorética sobre a verdade e a mentira no sentido extramoral”, escrito pelo filósofo
Friedrich Wilhelm Nietzsche, nascido na Prússia (atual Alemanha), redigido em 1873 e
publicado postumamente. Analisaremos os principais temas abordados pelo autor, tais como:
seu estilo de escrita, o surgimento da verdade e da linguagem, a crítica a tradição e
principalmente a valorização da metáfora.

Antes de explorar sua proposta, Nietzsche, com um certo tom de ironia e ficção, se
utiliza de uma linguagem em estilo de fábola para introduzir sua tese acerca do surgimento do
conhecimento. Para ele, o ser humano por ser tão frágil – “o mais desafortunado, mais frágil e
mais efêmero” (p. 64) – teve que inventar algo que o preservasse vivo, e foi assim que surgiu o
saber. Essa capacidade de “dissimulação”, isto é, de esconder suas fraquezas por meio da
aplicação de sua cognição, é o que lhe manteve e mantém vivo até hoje. Trazemos aqui um
exemplo para elucidar tal explanação: um ser humano está em uma floresta e de repente é
atacado por um urso. O seu instinto lhe impele a buscar algum meio que possibilite sua defesa,
pois sabe que jamais conseguiria sem tal ajuda. A esse instinto, Nietzsche denomina intelecto,
e ao uso de instrumentos para viabilizar sua defesa perante o urso, ele denomina dissimulação.

Em seguida, trata-se do surgimento da verdade. Para tanto, o autor inicia essa aclaração
partindo da necessidade do homem de se socializar, abandonando o pensamento de “todos
contra todos”, afinal, que socialização se fundaria sem que, ao menos, existisse algo tido como
“certo” e “errado” e sem que isso fosse conhecido e aceito por todos? Para Bourdieu
(GIRARDI, 2007), essa concepção é pressuposta, tanto de forma objetiva (científica) quanto de
forma subjetiva (pessoal). Nietzsche, de certa maneira, não foge a essa concepção. A partir
disso é que nasce o primeiro contato com o que poderia ser a verdade. Neste conceito primário,
entende-se, então, por verdade, o uso de designações válidas para demonstrar o real. A mentira,

1
Graduando do curso de Bacharelado em Filosofia – PUC-Rio.
por conseguinte, seria o inverso, ou seja, usar de designações válidas par fazer parecer real o
que é irreal.

A partir daqui, Nietzsche começa sua abordagem acerca do surgimento da linguagem.


Para ele, diferente de Aristóteles (Aristóteles apud FERRAZ, 2011), a metáfora está em caráter
primário e não secundário, afinal, o que concebemos de imediato não é o conceito, como a
tradição indica, mas uma metáfora como o próprio autor sugere: “primeiro uma excitação
nervosa para uma imagem” (p. 67) e depois a “imagem transformada em um som articulado”
(p. 67). Assim, ao contrário da teoria abordada por Platão (GUINSBURG, 2014) de que tudo o
que vemos são cópias de um conceito perfeito e inacessível, para Nietzsche, o conceito nasce
“da identificação do não-idêntico” (p. 68). Mas como assim? Seria um paradoxo? Isso significa
encontrar características comuns entre as coisas e agrupá-las. Nesse sentido, o conceito se cria
graças à capacidade do ser humano de esquecimento das características individuais das coisas.
Trazemos, finalmente, a definição de verdade segundo Nietzsche:

“Uma multiplicidade incessante de metáforas, de metonímias, de


antropomorfismos, em síntese, uma soma de relações humanas que foram
poética e retoricamente elevadas, transpostas, ornamentadas o que, após um
longo uso, parecem a um povo firmes, regulares e constrangedoras: as
verdades são ilusões cuja origem está esquecida [...]”. (p. 69)
E ainda compara-a com uma moeda que perde sua textura e se torna apenas um objeto metálico
sem valor, explicitando a perda do “valor sensível” da metáfora.

Vimos que, para o escritor, a linguagem se dá por uma excitação nervosa transformada
em imagem e em seguida em sons articulados, então o que nos diferencia de animais, visto que,
eles, também, têm a capacidade de executar esse processo? Como dito no início deste estudo, o
ser humano, por sorte, é dotado de intelecto, e com isso ele tem a faculdade, não somente da
realização do modo de linguagem, mas de “dissolver todas as imagens em um conceito” (p. 70).

Podemos, então, introduzir uma metáfora utilizada pelo autor: a metáfora da pirâmide.
Essa figura de linguagem é utilizada em diversos meios como forma de elucidação de uma tese,
por exemplo: dentro da biologia para demonstrar a pirâmide dos alimentos; dentro da sociologia
para demonstrar a pirâmide das classes. Mas, agora a utilizaremos em um sentido mais estrito,
nos limitando apenas ao seu formato. Nesse intuito, podemos tomar como exemplo, o grupo
dos mamíferos: na base da pirâmide estão todas as espécies de mamíferos e no topo o conceito
de mamífero, ou seja, partindo da base, quanto mais se aproxima do topo, mais se condensa e
se extrai o que é comum a esse grupo.
Posteriormente, Nietzsche dá seguimento a uma sequência estratégica de metáforas para
ilustrar sua tese. Discutiremos algumas delas, tentando abstrair de cada uma o sentido pelo qual
o autor as cita:

1) Metáfora do columbário romano. Para a entendermos, voltemo-nos para a metáfora da


pirâmide. Anteriormente eu a citei apenas em seu sentido geométrico, agora nos adentremos
em outro sentido: a mumificação do corpo. Na cultura egípcia acredita-se que o espírito depois
de julgado poderia voltar para retomar sua forma física, assim, esse povo inventou uma maneira
para que o corpo fosse preservado até o retorno à vida. Essa mumificação acontecia na base da
pirâmide. Para Nietzsche, os conceitos, como na pirâmide egípcia, são “mumificados” e assim
também “eternizados”, evocando uma comparação com a negação da verdade feita pelo
homem. De igual modo, o columbário romano, embora sendo de cultura distinta, também tem
a intenção de preservação dos restos mortais, mesmo que em forma de cinza, mas também
colocados em uma construção monumental;

2) Metáfora do dado. Embora não se referindo a um monumento arquitetônico, como nas


metáforas anteriores, Nietzsche nos induz, também, o sentido morto do conceito, pois o dado é
feito de osso, algo que já não tem mais vida. Outro entendimento, é a precisão matemática do
objeto, que se lançado aleatoriamente, nos dará um dos seis números nele contido. Da mesma
maneira é o conceito, que é concebido como algo lógico, preciso e imutável.

3) Metáfora da teia de aranha. A teia de uma aranha é onde ela vive, consegue seu alimento,
se defende de predadores e se abriga dos eventos da natureza. Mais resistente que um fio de
cabelo, “bastante fina para deslocar-se flutuando e bastante sólida para não se dispersar ao sopro
do menor vento” (p. 71). Do mesmo modo, é a rede de conceitos: resistente a ponto de perdurar
pelo tempo e adaptável a inúmeras situações. Não obstante, é percebido que na construção de
seu texto, o próprio Nietzsche se assemelha a essa metáfora, pois ele constrói seus argumentos,
não de forma reta e linear, mas os entrelaçam, se valendo, não somente de seus pensamentos
contraditórios à tradição, mas também, de autores pré-socráticos, como o Protágoras.

4) Metáfora da cera. A abelha recolhe das flores o material necessário para a fabricação de
sua cera e consequentemente para a construção de suas colmeias. Da mesma forma, o homem
constrói sua “colmeia” de conceitos, a diferença é que ele a constrói não pelo que encontrou,
mas pelo que ele próprio criou. Ele só consegue manter de pé sua construção, graças ao fato de,
como já mencionado no texto, poder esquecer e imaginar que tudo o que concebe é mais pura
verdade.
5) Metáfora da moita. Ligada à metáfora anterior, a moita, também, está relacionada com o
poder de esquecimento do homem. Exemplo: alguém esconde algo atrás de um arbusto, porém
esquece onde colocou tal coisa e começa a procura-la. De repente ele a encontra e se vangloria
por tal proeza. De igual modo é a verdade: o ser humano a escondeu em seu Logos e depois
procurando a encontrou e a trata como se fosse a “verdade em si”, mas se desconsiderarmos o
homem, esta verdade deixa de ter qualquer valor.

É instinto do homem formar metáforas, pois está em sua percepção primária. Se em


algum momento esse instinto lhe fosse tirado, o próprio homem seria abstraído. Para ele, criar
conceitos é uma forma de se manter seguro. Sua intenção é de “dar a este mundo presente do
homem desperto, uma forma plena de encanto e eternamente nova, tal como no mundo do
sonho” (p. 75), porém, se alguém fosse capaz de sonhar o mesmo sonho durante doze horas por
dia todos os dias, não lhe seria mais possível diferenciar o que é realidade e o que é ficção, pois
seus emaranhados de conceitos já teriam se misturados. O filme Inception (Estados Unidos,
2010) ilustra tal situação em que o personagem Cobb (Leonardo DiCaprio) e sua esposa Mal
(Marion Cotillard) ficam presos em um sonho e quando conseguem, finalmente, acordar, ela
não é capaz de distinguir se continua sonhando ou está acordada, e em seguida acaba se
matando, pois o que ela concebia como verdade havia mudado.

A discussão acerca do surgimento da linguagem e de ideias é bastante contraditória e


antiga. Neste estudo procuramos demonstrar de forma clara a concepção Nietzschiana para tal
assunto, explicitando sua crítica à tradição platônica e aristotélica, seu retorno aos pré-
socráticos e a “valorização estratégica da metáfora” (FERRAZ, 2011). Se por um lado ele
concebe a verdade como conceitos criados pelo homem, por outro lado Platão a concebe como
algo superior e inacessível de forma plena. A metáfora é valorizada como algo primário para a
comunicação e supera a desvalorização feita por Aristóteles. Entretanto, o assunto está longe
de ser esgotado e novas concepções e discussões acerca do tema são alvitradas a todo momento.
Afinal, para que serve a filosofia senão para questionar?
Referências bibliográficas
FERRAZ, M. C. (2011). Nove Variações sobre temas Nietzschianos. Rio de Janeiro: Sinergia -
Relume Dumará.

GIRARDI, L. J. (2007). Pierre Bourdieu - Questões de Sociologia e Comunicação. São Paulo:


Annablume.

GUINSBURG, J. (2014). A República de Platão. São Paulo: Perspectiva.

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