Você está na página 1de 12

Comunicação, Cultura e Subjetividade

Prof. Dr. Márcio Souza Gonçalves - Faculdade de Comunicação Social - UERJ


Tudo que interessa se passa na sombra, não sabemos nada
da verdadeira história dos homens
Céline1
A comunicação está no centro da grande mutação que parece se operar na cultura contemporânea. Ao
mesmo tempo, “a seu modo, a ‘comunicação’ prolonga a filosofia relançando as grandes questões tradicionais
sobre a verdade, o real, o vínculo social, o imaginário, a possibilidade do ensino, a justiça, o consenso, o belo
etc. com conceitos renovados (...)”2. Trataremos aqui de questões ligadas às mudanças culturais
contemporâneas e a temas caros à filosofia e à comunicação que a “prolonga”.
O horizonte maior de nosso trabalho é uma tentativa de se pensar a subjetividade sem fazer
simplesmente referência a uma suposta ruptura radical que separaria modernidade de pós-modernidade. Nossa
proposição é a de que precisamos operar uma distinção entre o conceito de sujeito, pensado pela filosofia, e as
práticas de subjetivação, efetivadas por todos os humanos no que agenciam elementos oferecidos pelo social
para construir um eu ou um si mesmo. Não tendo a pretensão de resolver a questão, apenas indicaremos
algumas linhas de pensamento que nos parecem mais frutíferas e que eventualmente talvez mereçam uma
exploração. Além disso, nos permitindo um desvio pelo campo filosófico, esperamos fornecer alguns subsídios
conceituais da filosofia para a discussão do problema da subjetividade dentro do campo da comunicação.
Um dos aspectos mais importantes da mutação cultural contemporânea é o que se refere ao problema da
subjetividade. A crer em diversos autores, a quem nos referiremos mais especificamente adiante, assistimos ao
surgimento de novas formas de subjetividade, de um novo sujeito. Esse novo sujeito ou essas novas formas de
subjetividade seriam tributários, entre outras coisas, das novas tecnologias de comunicação, mais
especificamente da Internet e dos computadores ligados em rede.
Discutiremos a seguir quatro pontos ligados a essa novidade cultural que é o surgimento de novas
formas de subjetividade atreladas sobretudo aos meios de comunicação.
Em primeiro lugar trata-se de discutir o sujeito enquanto categoria filosófica: seu surgimento, suas
funções, seus avatares dentro da cultura ocidental. Em suma, uma genealogia filosófica do sujeito.
Em seguida, nos referiremos a algo que chamaremos de práticas de subjetivação, operações concretas de
construção de uma subjetividade a partir de material oferecido pela cultura em determinado momento.
O terceiro ponto que nos interessa é o discurso que se constrói atualmente em torno do sujeito,
especialmente o discurso que opõe o sujeito moderno a outro dito pós-moderno.
Finalmente, esperamos que a genealogia filosófica do sujeito aliada à discussão das práticas de
subjetivação nos permitam uma análise crítica do que foi levantado imediatamente acima no terceiro ponto.
Trata-se aí de um trabalho essencialmente negativo de questionamento e problematização dos discursos (ou de
um padrão de discurso) sobre o sujeito. Procuraremos mostrar, em suma, a dificuldade de se sustentar
simplesmente a afirmação de um sujeito pós-moderno em oposição a um sujeito moderno.

1
Epígrafe “tomada emprestada” do último livro da Professora Nízia Villaça.
2
BOUGNOUX, Daniel. Introduction aux sciences de la communication. Paris: La Découverte, 1998, p. 7. A tradução é nossa.
2
Sujeito como conceito filosófico
O sujeito faz sua aparição filosófica com a época moderna. Para compreendermos essa aparição é
indispensável, contudo, compreendermos os devires da filosofia na época antiga e na medieval. Dado o pouco
espaço de que dispomos, seremos sumários.
Podemos caracterizar a filosofia antiga, grosso modo, como realista. O ser existe em si mesmo e por si
mesmo, independentemente do sujeito conhecedor. “ À pergunta: quem existe? (...) o realismo dá uma resposta
que é idêntica à resposta que o homem ingênuo, na sua propensão natural, dá a essa mesma pergunta. O
realismo afirma a existência do mundo, das coisas que constituem o mundo, e de nós, dentro desse mundo
como uma de tantas coisas” 3. Mas cabe ao humano um papel especial: ornado do logos, descobrir o caminho
correto (método) de acesso ao ser, caminho que leva igualmente à verdade. O que nos importa precisamente é
que o acesso ao ser e a verdade não passa por uma discussão ou análise do conhecedor ou do sujeito
cognoscente. O logos parece dotar o humano de um farol universal que o guia no acesso à verdade, eximindo-o,
o humano, de se questionar sobre o seu próprio estatuto.
Não estamos negando com isso que haja enormes diferenças entre Platão, Aristóteles, os estóicos,
epicuristas etc.. Procuramos apenas reduzir a diversidade ao traço comum que interessa à nossa discussão.
Essa ausência de uma filosofia do sujeito, ou do sujeito na filosofia, não implica em que não existam
processos e práticas de subjetivação, de invenção de subjetividade, tais como os que Foucault nos apresentou
belamente nos dois últimos volumes publicados de sua História da Sexualidade4.
A época medieval tampouco parece dar ensejo ao pleno surgimento do sujeito como conceito filosófico,
com a notável exceção, evidentemente, de Deus como O Sujeito, que para Fílon “cria o cosmo (...) a partir das
idéias em sua mente e não contemplando-as fora dele” 5. Pode-se encarar essa exceção divina como uma
preparação para a emergência moderna do sujeito.
É mesmo possível, a despeito do sujeito não aparecer totalmente em cena, recolher alguns indícios de
seu surgimento. Santo Agostinho, por exemplo, “pode ser considerado o primeiro pensador em nossa tradição a
desenvolver, possivelmente com base em concepções neoplatônicas e estóicas, uma noção de interioridade que
prenuncia o conceito de subjetividade do pensamento moderno” 6.
Mas apesar de a biografia dos filósofos ser absolutamente relevante para uma plena compreensão de
suas filosofias (as Confissões de Santo Agostinho são indispensáveis para se entender a Cidade de Deus),
apesar também de a Igreja ser inventora de diversas técnicas de exame de consciência, de introspecção que
constituirão um dos pontos centrais na construção de uma experiência ocidental da interioridade, apesar,
finalmente, de termos, por exemplo, em Agostinho, traços que apontam para o aparecimento do sujeito – apesar
de tudo isso a subjetividade terá de esperar a filosofia moderna e o idealismo, que se contrapõe ao realismo,
para vir à tona com toda a sua força. É na época moderna que “se manifestaram muito poderosas correntes de

3
GARCÍA MORENTE, Manuel. Fundamentos de Filosofia I: lições preliminares. São Paulo: Mestre Jou, 1980, p. 105.
4
Volume II, O Uso dos Prazeres. Rio de Janeiro: Graal, 1988 & Volume III, O Cuidado de Si. Rio de Janeiro: Graal, 1985.
5
MARCONDES, Danilo. Iniciação à filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p. 106.
6
Idem, ibidem, p. 112. Em todo o nosso trabalho os grifos são sempre dos autores citados.
3
tipo idealista como sucede em parte em Descartes, de um modo bastante acentuado em Kant e de um modo
decidido nos autores do chamado ‘idealismo alemão’” 7.
Descartes opera o grande corte que vai trazer o sujeito para a cena filosófica. Ele o faz na esteira das
questões céticas e ao mesmo tempo como resposta a elas, numa tentativa de reencontrar o pensamento reto e
verdadeiro que conduz à certeza luminosa da verdade.
A questão que se coloca para Descartes é a de encontrar o método “para bem conduzir a própria razão e
procurar a verdade nas ciências” 8. Ora, essa certeza será buscada não no mundo ou no logos, não num
existência transcendental fundamental (como no medievo), mas antes no próprio sujeito cognoscente, ou, no
caso, dubitante. O cogito ergo sum é o momento preciso em que o sujeito entra em cena como base ou certeza
primeira a permitir um conhecimento seguro e certo: “ (...) enquanto eu queria assim pensar que tudo era falso,
cumpria necessariamente que eu, que pensava, fosse alguma coisa. E, notando que esta verdade: eu penso, logo
existo, era tão firme e tão certa que todas as mais extravagantes suposições dos céticos não seriam capazes de a
abalar, julguei que podia aceitá-la, sem escrúpulo, como o primeiro princípio da Filosofia que procurava” 9.
Tomando o cogito, matéria pensante, como base, Descartes prossegue em suas deduções até chegar à
matéria extensa e à matéria divina de Deus.
O sujeito surge portanto satisfazendo um anseio epistemológico, surge para garantir a possibilidade da
filosofia verdadeira.
O passo seguinte em nossa breve e excessivamente resumida história filosófica do sujeito será dado por
Kant, “estimulado” por Hume.
Hume, radicalizando o caminho empirista e seguindo as pegadas de Locke e do bispo Berkeley, destrói
as certezas acerca do mundo, acerca do conhecimento, acerca da causalidade etc.: “(...) se todo o nosso
conhecimento provem de impressões sensíveis e da reflexão sobre nossas idéias, se essas impressões e idéias
são assim sempre variáveis, se a causalidade e a identidade do eu resultam apenas da regularidade, repetição,
costume e hábito, então, em conseqüência, jamais temos um conhecimento certo e definitivo (...)” 10. Mas esse
pensamento tem um efeito imprevisto: acordar Kant de seu sono dogmático, chamar a atenção de Kant para a
necessidade de uma refundação segura da filosofia e do conhecimento.
O gesto kantiano confere ao sujeito um lugar mais importante e fundamental do que o atribuído por
Descartes: o sujeito não é mais o primeiro momento no processo epistemológico de estabelecimento das
certezas; o sujeito passa a ser a condição mesma do conhecimento verdadeiro, das verdades sintéticas a priori,
forma kantiana da verdade absoluta. Kant ultrapassa Hume, concluindo que “o que há de absolutamente
necessário e de universal no conhecimento provém da própria razão, das suas estruturas próprias (...) condições
priori, transcendentais do conhecimento (...)” 11.
É no sujeito, em função do sujeito e de sua estruturação em Sensibilidade, Entendimento e Razão que a

7
MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1982, verbete Realismo, p. 346.
8
Continuação do Título do Discurso do Método in Os pensadores - Descartes. São Paulo: Nova Cultural, 1987, p. 25.
9
Os pensadores - Descartes. Op. cit., p. 46.
10
MARCONDES, Danilo. Op. cit., p. 184.
11
VANCOURT, Raymond. Kant. Lisboa: Edições 70, s.d., p. 20.
4
verdade, a ética e a estética (no duplo sentido de experiência e reflexão sobre o belo e o sublime) podem
existir. Assim como o sujeito “põe” o espaço e o tempo onde experienciamos o mundo (os a priori da
sensibilidade), “põe”, de um modo mais geral, as verdades que produz. “Se ultrapassamos o que nos é dado na
experiência [produzindo conhecimento], é em virtude de princípios que são nossos, princípios necessariamente
subjetivos. O dado não pode fundar a operação pela qual ultrapassamos o dado” 12, o dado não pode fundar o
conhecimento, apenas o sujeito pode fazê-lo.
O sujeito é fonte e sede da verdade que conhece. Instaura-se assim, paradoxalmente, uma radical
imanência entre os termos “verdade” e “sujeito”, que nem mesmo a crítica nietzschiana da verdade irá abalar.
Nietzsche é o próximo passo em nosso percurso, e para ligá-lo ao que o antecede tomaremos Heidegger
como guia de leitura. Seguindo a convincente interpretação que o segundo faz do primeiro, em seus seminários
dos anos 36-40 e em comentários posteriores desenvolvidos entre 40 e 46, podemos compreender a filosofia
nietzschiana como o avatar último da metafísica ocidental13. “O pensamento de Nietzsche é de ordem
metafísica em conformidade com todo o pensamento ocidental desde Platão” 14.
Nietzsche conduz o ego cogito a um ego volo e interpreta o velle a partir do querer no sentido da Vontade de
Potência que Nietzsche concebe enquanto caráter fundamental de ente em sua totalidade. Mas o que dizer se a
fixação desse caráter fundamental não se tornou possível de outro modo que não sobre o terreno da posição
fundamental de Descartes? (...) Nietzsche adota inteiramente a posição metafísica fundamental de Descartes,
contudo ele a faz entrar em linha de conta psicologicamente, ou seja, ele funda a certeza enquanto “Vontade de
Verdade” sobre a “Vontade de Potência” 15
O perspectivismo de Nietzsche nada mais seria do que a imanência entre sujeito e verdade proposta por
Kant, sobre a base cartesiana, levada ao extremo: se o sujeito põe a verdade, cada sujeito pode por a sua do
modo que quiser segundo sua vontade (de potência, no sentido nietzschiano). Temos então não verdades
universais mas perspectivas ou interpretações. Para Kant essa imanência está garantida contra o perspectivismo
pela existência de uma racionalidade absoluta e universal. Pode-se, seguindo essa via, amalgamar num mesmo
conjunto a idéia de que o sujeito põe as condições da verdade e a idéia de uma verdade absoluta: há uma
racionalidade comum a todos os sujeitos e essa racionalidade comum garante a existência de verdades
universais comuns. Nietzsche demole essa racionalidade universal e absoluta, permitindo assim que cada
sujeito coloque sua própria verdade, levando portanto a um forte perspectivismo (via Vontade de Potência).
Em Kant: o sujeito põe a verdade, mas há uma luz universal que a todos guia e que universaliza e
verdade; em Nietzsche o sujeito também põe a verdade, mas o faz sozinho, na escuridão, sem a luz universal da
razão: cada sujeito pode portanto pôr a sua própria “verdade”.
Assistimos portanto de Descartes e Kant a Nietzsche a uma radicalização do papel do sujeito. “Para
compreender a filosofia de Nietzsche enquanto metafísica e delimitar seu lugar na história da metafísica não é
suficiente explicar historicamente alguns de seus conceitos fundamentais como ‘metafísicos’. É preciso
compreender a filosofia de Nietzsche como metafísica da subjetividade” 16. Resta ainda como tarefa teórica, não

12
DELEUZE, Gilles. Para ler Kant. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976, p. 26.
13
Não temos a intenção de resumir nem aproximadamente o denso, difícil e longo texto de Heidegger. Os interessados devem se dirigir diretamente
ao texto do filósofo e suspender a surpresa da colocação de Nietzsche como metafísico para acompanhar os sólidos argumentos heideggerianos.
14
HEIDEGGER, Martin. Nietzsche – vol. II. Paris: Gallimard, 1971, p.207. A tradução é nossa.
15
Idem, ibidem, p.146 para a primeira parte e 149 para a segunda. A tradução é nossa.
16
Idem, ibidem, p. 160. A tradução é nossa.
5
decisiva para o presente texto e da qual por isso abriremos mão, a investigação do lugar de Hegel nesse
processo. Mas não devemos nos esquecer de que, em todo esse longo desenrolar histórico, o sujeito muda de
forma: não temos mais o sujeito universal racional, temos um sujeito que é em si Vontade de Potência.
Não podemos encerrar nosso percurso sem mencionar brevemente as contribuições da psicanálise.
Apesar de não ser filosofia (e de Lacan reivindicar para ela o estatuto de antifilosofia) a psicanálise traz
contribuições que podem perfeitamente bem ser incorporadas à discussão filosófica da questão da
subjetividade.
Freud desloca, na esteira de Nietzsche, o problema da subjetividade do campo da consciência para um
outro espaço, o inconsciente. Onde o segundo coloca a Vontade de Potência, o psicanalista vai instaurar o
inconsciente.
Pensar a subjetividade humana é então pensar além da consciência um inconsciente pulsional, repleto de
pulsões de conservação e sexuais (primeiro dualismo) e de pulsões de vida e de morte (segundo dualismo).
Temos assim um sujeito acentrado no sentido de que a consciência não funciona como centro fundamental; um
sujeito opaco, dado que incapaz de apreender a totalidade de seu próprio ser; um sujeito, finalmente, cujo livre
arbítrio da consciência é limitado pela força mesma das pulsões que o determinam.
Recapitulemos sucintamente nossa já sucinta história da noção de sujeito na filosofia e das contribuições
da psicanálise: aparecendo com Descartes e desempenhando a função de primeiro passo no processo de se
garantir a possibilidade de um conhecimento verdadeiro, o sujeito em Kant torna-se a totalidade das condições
de possibilidade de verdade, atrelado à idéia de uma racionalidade absoluta. Nietzsche radicaliza essa vertente
subjetivista liberando o sujeito da racionalidade e abrindo o caminho ao perspectivismo. Freud acrescenta a esse
campo o tema do inconsciente: o sujeito não é mais o de uma consciência transparente e livre, mas o de um
inconsciente pulsional.
Deixemos o campo do pensamento, o campo da teoria seja ela psicanalítica ou filosófica, para adentrar o
campo das práticas humanas de vida, o campo concreto da experiência. Trata-se de pensar a questão da
subjetividade não tentando estabelecer o que dela disseram pensadores ilustres, mas sim analisando casos
específicos onde podemos observar como o homem comum, o homem médio, constrói para si mesmo uma
subjetividade, como se faz sujeito. Nos servimos das palavras de Foucault: trata-se de “(...) analisar o que é
designado como ‘o sujeito’; (...) pesquisar quais são as formas e as modalidades de relação consigo através dos
quais o indivíduo se constitui e se reconhece como sujeito. (...) estudar os jogos de verdade na relação de si para
si e a constituição de si mesmo como sujeito (...)” 17.

Práticas de Subjetivação
Chamaremos esse processo de constituição de si mesmo como sujeito de práticas de subjetivação.
Entendemos por práticas de subjetivação as práticas concretas de agenciamento de elementos heterogêneos
disponibilizados pelo social no sentido de invenção de um eu ou de uma forma de si mesmo. Tais práticas

17
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade, Volume II, O Uso dos Prazeres. Op. cit., p. 11.
6
sempre põem em cena agentes concretos e por essa razão devem ser abordadas através de análises de casos
concretos.
Podemos citar alguns exemplos de abordagem dessas práticas de subjetivação: a análise de Foucault
sobre as técnicas de si no segundo e terceiro volumes de sua História da Sexualidade; o trabalho de Norbert
Elias sobre a constituição das boas maneiras em seu Processo Civilizador; trabalhos monográficos de
historiadores sobre pequenas regiões ou cidades tratando do cotidiano etc..
Nossa pesquisa estando em seu começo e sendo pequeno o espaço de que aqui dispomos, vamos
fornecer apenas um exemplo de abordagem dessas práticas de subjetivação, restringindo nossa análise a um
momento histórico curto e a uma pequena comunidade. Destacaremos, sumariamente, quais são as forças em
jogo com as quais as pessoas reais tinham que lidar e que serviam de material para a construção de si operada
por esses indivíduos: trata-se então de ver o que se agencia de que modo para dar origem a sujeitos concretos. O
interesse dessa investigação é estabelecer no campo concreto, longe das reflexões epistemológicas
especulativas da filosofia e da ciência, como se dão os processos reais de subjetivação e de invenção de si. É
especialmente importante que se evidencie a complexidade de elementos e forças em jogo e consequentemente
a complexidade das práticas de subjetivação envolvidas. O ideal cartesiano de um sujeito transparente é apenas
um ideal, do qual a realidade se distancia facilmente.
Nosso apoio é a magistral monografia escrita por Emmanuel Le Roy Ladurie intitulada Montaillou –
povoado occitânico, 1294-132418 e nosso objetivo é simplesmente alinhar a complexidade de elementos
envolvidos na construção da subjetividade de seus habitantes.
Montaillou é uma pequena aldeia de montanha acossada pela Inquisição na passagem do século XIII
para o seguinte. Ladurie se serviu dos detalhados arquivos inquisitoriais para reconstituir o cotidiano e a vida
comum dos habitantes do povoado. O que podemos reter desse alentado trabalho?
− A estrutura básica de existência social da aldeia é a domus, a casa familiar, entidade que sobrevive a seus
membros e cuja perenidade as famílias se ocupam de garantir;
− Uma tensão constante opõe, no interior de Montaillou, dois grupos religiosos heterogêneos, os cátaros
hereges e os católicos seguidores da Igreja Romana;
− De modo geral o conjunto da aldeia se opõe à prática eclesiástica de cobrança de tributos, dízimas etc., o
que certamente contribuiu para o florescimento da heresia;
− O grupo dos pastores forma um mundo à parte, de modo que ao sistema aldeão das domus se opõe todo um
modo de vida, de sociabilidade, toda uma mentalidade, ou, nas palavras de Ladurie, toda uma filosofia e uma
ética pastoris. Os pastores são seres nômades, desapegados, que desempenham acessoriamente a função de
correio, e nunca se ligam a nenhum lugar em oposição ao camponês sedentário;
− A salvação é uma preocupação constante, de modo que a crença religiosa é avaliada em termos de sua
capacidade de levar à salvação. Há diversos indivíduos que “jogam nos dois times”, o cátaro e o ortodoxo,
tentando obter a todo custo e através de todos os meios a garantia de uma salvação futura. Esse clima de

18
LE ROY LADURIE, Emmanuel. Montaillou, povoado occitânico, 1294-1324. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
7
religiosidade não deve ocultar a existência de diversos ateus ou materialistas: a crença de que a alma nada
mais é do que sangue é um exemplo desse materialismo selvagem de Montaillou;
− Uma coisa é a doutrina religiosa ou moral em teoria, outra bem diferente é a prática. Os preceitos são
“adaptados” e interpretados, mais ou menos livremente, de acordo com os interesses dos indivíduos em
questão: “O catarismo é livremente interpretado por alguns segundo a regra do ‘Já que tudo é proibido, nada é
proibido’ (ou, ainda: ‘Quando os limites são ultrapassados, não há mais limites’); ele leva certos crentes a
libertar-se das limitações habituais (...)” 19.
− Todos convivem com um mundo paralelo virtual, o dos mortos, cuja comunicação com o mundo dos vivos
é assegurada por alguns membros da comunidade viva.
Poderíamos prosseguir longamente em nossa enumeração, mas o essencial já se destaca a partir desses
poucos elementos: cada sujeito deve levar em conta domus, religião, tributos, interesses mundanos, sua posição
social, linhagem, profissão, afetividade, os mortos etc. na invenção de seu eu.
Esses elementos esparsos permitem apreender a complexidade de forças em jogo e dos processos de
subjetivação numa pequena aldeia medieval. Estamos longe da linearidade da dominância do religioso fixando
definitivamente os sentidos das existências de acordo com uma regra transcendental absoluta. O que vemos é,
no extremo oposto, a convivência de elementos heterogêneos, muitas vezes incompatíveis entre si teoricamente,
se compatibilizando na prática: oxímoros concretos.
Duas grandes figuras históricas do pequeno tubo de ensaio que é Montaillou nos permitem apreender a
complexidade das linhas de força envolvidas nos processos de subjetivação nessa comunidade e a originalidade
das soluções que os sujeitos individuais concretos dão ao problema de como se “inventar” operando com os
materiais disponíveis: o cura Pierre Clergue e o pastor Pierre Maury.
Pierre Clergue é um cura católico, adepto oculto do catarismo, sedutor tanto violento quanto delicado,
amado e adorado, representante maior da casa mais influente de Montaillou, incestuoso, cátaro mas serve
também à Inquisição, agente duplo...
Pierre Maury é o grande representante dos pastores errantes, homem afável, de fala solta e riso aberto,
bom vivant mas absolutamente desapegado das propriedades terrenas, catariza em suas andanças, serve-se do
compadrio para fazer amizades, sempre pronto a ajudar os amigos, provavelmente a figura mais doce (em
oposição a Pierre Clergue) em todo o relato de Ladurie, “despedia” seus patrões para partir em suas infindáveis
andanças, contrário ao casamento... assim como o cura, nosso pastor cairá nas garras da Inquisição.
Essas figuras complexas e tão diferentes se constituíram enquanto sujeitos, inventaram para si um eu,
uma perspectiva (no sentido nietzschiano) a partir dos elementos disponíveis em seu momento histórico e em
seu espaço social (que eram os mesmos!).
Longe de uma subjetividade homogênea centrada na figura de Deus e do pecado, longe de uma
simplicidade na ordenação das subjetividades em torno do discurso religioso, o que encontramos são
construções subjetivas heterogêneas, diversas, alinhavando forças religiosas, leigas, folclóricas, familiares,

19
Idem, ibidem, p. 229-30.
8
pessoais de modo original e instável. Subjetividades que poderíamos, em suma, classificar como pós-
modernas. Não há metanarrativa absoluta, a pratica sempre desmente os preceitos sejam eles morais ou
religiosos.
Curiosamente, o pós-moderno e o pré-moderno parecem se unir nessa nossa tentativa de demonstração
da complexidade dos processos de subjetivação, nessa tentativa de indicação de insuficiência de uma redução
teórica abusiva que às vezes opera servindo-se do termo pós-moderno.
Seria de grande interesse, mas não o faremos aqui, analisar processos concretos de subjetivação na
França no momento em que Descartes pronuncia o cogito ergo sum ou em Königsberg no momento de redação
da Crítica da Razão Pura. Certamente poderíamos nos dar conta da distância que separa o filósofo em suas
preocupações epistemológicas do homem da rua, preocupado em se inventar utilizando os elementos
disponíveis em seu espaço de vida. Veríamos que, sob a Modernidade, sobretudo em sua face burguesa, a vida
concreta fermenta sujeitos absolutamente heterogêneos. Além ou aquém do sujeito cartesiano, construção
teórica para dar conta de problemas teóricos, os homens operavam práticas de subjetivação cuja complexidade
nada deixa a dever à atualidade.
Nosso interesse em pegar especialmente a distante Montaillou, distante tanto no tempo quanto no
espaço, foi mostrar de que modo a subjetivação concreta é complexa, em oposição à simplicidade e vontade de
assepsia das operações conceituais envolvidas na fundação e no desenvolvimento do sujeito ao longo do
pensamento filosófico ocidental.

O sujeito pós-moderno
Há no campo da reflexão teórica sobre comunicação atual uma espécie de consenso difuso, mas
certamente não absoluto, acerca do estatuto do sujeito na atualidade ou na pós-modernidade. Podemos
apresentar esse consenso difuso da maneira como se segue.
O sujeito moderno se definiria por uma primazia da consciência, por uma centralidade e uma
transparência a si, por uma suposta liberdade, por uma univocidade de sentido e por uma oposição clara ao que
não é o si mesmo; o pós-moderno, por seu turno, inverte os atributos acima mencionados: sujeito que porta
indelevelmente seu inconsciente, acentrado, opaco, efeito de forças externas sejam elas pulsionais, sociais,
políticas, de consumo etc., sujeito plurívoco e híbrido, constantemente se misturando a seus outros. Ao sujeito
substância se teria substituído um sujeito processual e aberto.
Esse discurso não comparece tal qual especificamente definido em nenhum autor, mas se destaca do
conjunto de diversos textos que circulam no âmbito da teoria da comunicação dos quais aqui fornecemos uma
pequena amostra.
Referindo-se ao pós-modernismo em geral numa obra tratando da subjetividade, S. Turkle, que liga
fortemente as novas formas de sujeito às novas tecnologias de comunicação, assim se expressa:
Essas idéias [pós-modernismo] são difíceis de definir de modo simples, mas são caracterizadas por termos como
‘descentrado’, ‘fluido’, ‘não-linear’ e ‘opaco’. Elas contrastam com o modernismo, a clássica visão de mundo
que dominou o pensamento ocidental desde o Iluminismo. A visão de mundo modernista é caracterizada por
termos como ‘linear’, ‘lógico’, ‘hierárquico’, e por ter ‘profundidades’ onde podemos mergulhar e que podemos
entender. MUDS [espaços virtuais de convivência, comunidades virtuais] oferecem uma experiência das
9
20
abstratas idéias pós-modernas que me intrigaram e ainda assim me confundiram durante minha maturação intelectual .
De um lado o moderno, o linear etc. de outro o pós, descentrado, fluido etc.. É sintomático que Turkle
oponha a “visão de mundo modernista” à “experiência” dos MUDS: de um lado conceito modernista, de outro
experiência concreta contemporânea no computador. Ora, aparece então a subjetividade:
em meus mundos mediados por computador, o eu [self] é múltiplo, fluido, e constituído na interação como
conexões com máquina; é feito e transformado pela linguagem; o intercurso sexual é uma troca de significantes;
e a compreensão vem da navegação e da experimentação mais do que da análise. E nos mundos gerados por
máquina dos MUDs, encontro pessoas que me põem em uma nova relação com minha própria identidade21.
Uma subjetividade virtual portanto radicalmente distinta da subjetividade moderna.
No Brasil temos Muniz Sodré:
Mas não restam dúvidas de que, no bojo da crise dos paradigmas clássicos que vem apontar os novos modos de
estruturação da realidade, a subjetividade que vinha definindo o ser do homem moderno parece bastante afetada.
Dissolvem-se as características de rigidez do sujeito e do objeto sob pressão da extrema mobilidade e
aleatoriedade tanto dos novos modelos de funcionamento da vida social (postos sob a égide do capitalismo
financeiro) quanto da velocidade e ‘desrealização’ operadas pelas novas tecnologias da informação. O sujeito da
comunicação aparenta-se hoje, em muitos aspectos, a um mutante” 22. E ainda, tema conexo: “Mudar,
transformar-se, operar montagens diversas em torno da identidade são os termos conscientes ou inconscientes de
uma nova equação pessoal, em que a palavra ‘identificação’, por sugerir processo e alteração¸ é provavelmente
mais forte do que ‘identidade’, com seus traços de estabilidade e unidade. (...) Os múltiplos eus ou o
transformismo identitário do sujeito atual são aspectos de uma modulação existencial em que corpos tornam-se
vulneráveis à irradiação vital dos signos, e as identidades podem ser produzidas como um bem de mercado, ou
então como qualquer figuração delirante na realidade sintética do ciberespaço23.
Rogério Luz, num belíssimo livro sobre cinema e subjetividade assim se expressa:
O cinema nasce em meio a uma verdadeira mutação de paradigmas da sensibilidade, que processa um sujeito
qualquer: fragmentado, múltiplo e descentrado. Trata-se, na verdade, da abolição do sujeito unificador e
totalizador de representações conscientes. Um novo princípio de entendimento e efetivação do sujeito perpassa
diferentes séries culturais artísticas e não artísticas (...). O cinema, uma vez que é arte moderna, deu a ver um
devir múltiplo e aboliu o sujeito como aquele ponto central da representação exigida pela lógica identitária24.
Canclini, por sua vez, se refere ao problema da identidade:
Vamos nos afastando da época em que as identidades se definiam por essências a-históricas: atualmente
configuram-se no consumo, dependem daquilo que se possui, ou daquilo que se pode chegar a possuir. (...) O
processo que começamos a descrever como globalização pode ser resumido como a passagem das identidades
moderna a outras que poderíamos chamar, embora o termo seja cada vez mais incômodo, de pós-modernas. As
identidades modernas eram territoriais e quase sempre monolingüísitcas. (...) Por outro lado, as identidades
pós-modernas são transterritoriais e multilingüísticas25.
Stuart Hall, trabalhando três concepções de identidade, que na realidade são três diferentes conceitos de
sujeito (sujeito do Iluminismo, sociológico, pós-moderno), escreve:
O sujeito do Iluminismo estava baseado numa concepção da pessoa humana como um indivíduo totalmente
centrado, unificado, dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação, cujo ‘centro’ consistia num
núcleo interior, que emergia pela primeira vez quando o sujeito nascia e com ele se desenvolvia, ainda que
permanecendo essencialmente o mesmo – contínuo ou ‘idêntico’ a ele – ao longo da existência do indivíduo. O
centro essencial do eu era a identidade de uma pessoa. (...) [Na visão sociológica] O sujeito ainda tem um núcleo
ou essência interior que é o ‘eu real’, mas este é formado e modificado num diálogo contínuo com os mundos
culturais ‘exteriores’ e as identidades que esses mundos oferecem. (...) Argumenta-se, entretanto, que são
exatamente essas coisas que agora estão ‘mudando’. O sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade
unificada e estável, está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades,
algumas vezes contraditórias e não resolvidas. Correspondentemente, as identidades, que compunham as
paisagens sociais ‘lá fora’ e que asseguravam nossa conformidade subjetiva com as necessidades ‘objetivas’ da

20
TURKLE, Sherry. Life on the screen – Identity in the age of the Internet. New York: Touchstone, 1997, p. 17. A tradução é nossa.
21
Idem, ibidem, p. 15. A tradução é nossa.
22
SODRÉ, Muniz Reinventando a Cultura: a comunicação e seus produtos, Petrópolis, Vozes, 1996, p. 55-6.
23
Idem, ibidem, p. 179.
24
LUZ, Rogério. Filme e subjetividade. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2002, p. 113-4.
25
CANCLINI, Néstor García Consumidores e cidadãos – conflitos multiculturais da globalização, Rio de Janeiro, UFRJ, 1995, p. 15 para a primeira
frase e 35 para o resto.
10
cultura, estão entrando em colapso, como resultado de mudanças estruturais e institucionais. O próprio processo de
identificação, através do qual nos projetamos em nossas identidades culturais, tornou-se mais provisório,
variável e problemático. Esse processo produz o sujeito pós-moderno, conceptualizado como não tendo uma
identidade fixa, essencial ou permanente. A identidade torna-se uma ‘celebração móvel’: formada e transformada
continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que
nos rodeiam26.
Tomaz Tadeu da Silva:
A imagem da subjetividade humana que tem dominado o nosso pensamento é, como sabemos, aquela que nos foi
legada pelo cogito cartesiano: a existência do sujeito é idêntica a seu pensamento. Embora temperada pelas
diversas filosofias hegelianas, kantianas, fenomenológicas e existencialistas, foi a imagem de um sujeito
pensante, racional e reflexivo, considerado como a origem e o centro do pensamento e da ação¸ que esteve
subjacente, até recentemente, às principais teorias sociais e políticas ocidentais. Esse ‘sujeito’ é, na verdade, o
fundamento da idéia moderna e liberal de democracia. É ‘ele’, ainda, que está no centro da própria idéia moderna
de educação. (...) O ciborgue nos força a pensar não em termos de ‘sujeitos’, de mônadas, de átomos ou
indivíduos, mas em termos de fluxos e intensidades (...). O mundo não seria constituído, então, de unidades
(‘sujeitos’), de onde partiriam as ações sobre outras unidades, mas, inversamente, de correntes e circuitos que
encontram aquelas unidades em sua passagem. Primários são os fluxos e intensidades, relativamente aos quais os
indivíduos e os sujeitos são secundários, subsidiários27.
Desnecessário destacar que a comunicação, seja ela de massa ou mediada por comutador, desempenhou
e desempenha ainda um papel central na emergência dessas novas formas de subjetividade.
Podemos tomar esse discurso difuso sobre o sujeito e suas transformações por efeito das tecnologias de
comunicação – que não se encontra em nenhum dos autores acima citado mas que é o efeito geral desses e de
muitos outros textos correntes no campo da comunicação – como uma espécie de discurso standard acerca da
subjetividade da atualidade. É de uma análise desse discurso standard que devemos nos ocupar agora.

O discurso standard em questão


Desejamos nos ater a um ponto específico e importante: a simplificação que esse discurso opera pode
levar a uma confusão, nomeadamente a confusão entre o sujeito enquanto categoria filosófica e as práticas de
subjetivação concretas postas em ação pelos indivíduos ao longo da história do homem sobre o planeta. Tal
confusão pode levar a uma situação estranha, em que por exemplo podemos comparar o sujeito cartesiano
(sujeito como categoria filosófica) com a experiência de um usuário da Internet (prática de subjetivação) para
analisar as transformações da subjetividade.
É correto fazermos a oposição entre formas modernas de se conceber o sujeito e formas contemporâneas
(pós-modernas). Estamos aí nos restringindo ao campo dos modos de se pensar ou de se conceituar a
subjetividade. Mas mesmo essa oposição deve ser nuançada pois não existe sem que existam também traços de
continuidade. Mencionamos especialmente a demonstração de Heidegger do lugar de Nietzsche como último
metafísico e de sua filosofia da Vontade de Potência como mais um desdobramento de um processo que conta
entre outros com as figuras cartesiana e kantiana do sujeito.
Mas é abusivo, por outro lado, compararmos processos ou práticas de subjetivação contemporâneos a
formas modernas ou outras de se conceber o sujeito, pois estaremos aí misturando dois campos heterogêneos e
não equivalentes: o campo epistemológico das concepções acerca do sujeito ou dos diferentes conceitos de

26
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2002, p. 11-3.
27
SILVA, Tadeu Tomaz da. Nós, ciborgues: o corpo elétrico e a dissolução do humano. In SILVA, Tadeu Tomaz da (Org.). Antropologia do
ciborgue: as vertigens do pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica, 2000, p. 15-6.
11
sujeito propostos ao longo do desenvolvimento do pensamento ocidental e o campo concreto das práticas de
subjetivação efetivas. Não podemos comparar, retomando nosso exemplo, o sujeito cartesiano (categoria
epistemológica servindo a resolver problemas teóricos) aos sujeitos concretos contemporâneos que não se
definem mais por territorialidades nacionais e sim pela pertença a comunidades transnacionais de consumidores
ou à experiência que temos em mundos virtuais na Internet (práticas de subjetivação).
Seria legítimo, ainda por outro lado, compararmos as práticas de subjetivação atuais com outras
modernas ou anteriores (Montaillou por exemplo), pois aí estaríamos comparando elementos do mesmo campo,
o campo das práticas concretas de subjetivação. Resultados preliminares de nossas investigações nos levam a
crer que os recortes e as diferenças entre as práticas de subjetivação contemporâneas e outras anteriores não são
tão radicais, claros e definidores de campos estruturalmente distintos quanto podemos crer inicialmente.
Se nossas maneiras de pensar o sujeito mudaram bastante em relação ao que se chama Modernidade, os
problemas concretos com que se defrontam todos os indivíduos em sua invenção de um eu ou de um si mesmo
não parecem ter se modificado tanto, a despeito da diferença dos elementos com os quais esse eu ou esse si
mesmo devem ser produzidos. O problema da subjetivação sempre foi tomar elementos concretos e operar
alguma forma de síntese, nunca uma síntese totalitária e unívoca como a sugerida pela filosofia cartesiana ou
outra.

Sujeito e práticas de subjetivação


Podemos concluir destacando a necessidade, para o bem da clareza conceitual e da reflexão científica,
de se distinguir claramente, no campo da comunicação especificamente e no campo do pensamento em geral, os
dois elementos acima destacados: sujeito enquanto categoria filosófica e práticas de subjetivação. O problema
do que chamamos de discurso standard não está em operar recortes, mas em confundir níveis.
A discussão da categoria sujeito é uma discussão do modo como pensadores os mais diversos
conceberam a subjetividade, discussão de diferentes conceitos de sujeito, dos motivos por que foram
produzidos etc.. Um livro sobre o sujeito, nesse sentido, é um livro sobre livros falando do sujeito.
A discussão das práticas de subjetivação é uma discussão que remete, como seu horizonte, não ao
campo do pensamento, da teoria (filosófica ou outra) mas para a vida concreta de seres humanos lutando por
constituir um si mesmo, uma interioridade subjetiva, um sentido de si a partir de elementos sempre
heterogêneos e múltiplos. O exemplo de Montaillou é precioso no sentido de mostrar que mesmo em situações
aparentemente simples há linhas de força bastante complexas agindo e sendo tomadas como elementos nos
processos e práticas de subjetivação. Fica evidente, a partir do que dissemos anteriormente, que a discussão
dessas práticas por parte dos teóricos da comunicação – seja, ligando-as a comunicação de massa seja
atrelando-as às novas tecnologias – tem muito a ganhar com a troca com outras disciplinas tais como a história,
a sociologia, a antropologia etc..
Resta ainda como objeto de pesquisa interessante tentar verificar que tipo de relação pode existir entre o
modo como uma época concebe o sujeito em sua filosofia e o modo como nessa mesma época se agenciam
práticas de subjetivação.
12
Finalizamos invocando Amin Maalouf, cristão libanês, cristão cuja língua materna é o árabe e que
trocou o Líbano pela França, escritor que escreve em francês, cuja própria identidade é moldada, como ele
mesmo diz a partir dessas múltiplas pertenças. Maalouf propõe uma bela noção de identidade, que pode servir
de base para uma compreensão mais geral das práticas de subjetivação.
A identidade por é ele encarada como singular, única, cada uma sendo diferente de cada outra. “Minha
identidade é o que faz com que eu não seja idêntico a nenhuma outra pessoa” 28. O porque dessa especificidade
deve ser buscado no fato de que cada ser humano tem uma história única, cada um é uma mistura específica de
diversos traços. Entre os traços determinantes das identidades de todos contamos religião, língua, família, além
de tudo aquilo que constitui a vida de todos nós. Ainda que algum desses traços, num momento dado, possa se
sobrepujar a algum outro, não há, de modo absoluto, nenhum traço que seja mais importante do que os outros.
Toda identidade é complexa, e evidentemente dinâmica. “A identidade não é dada de uma vez por todas,
ela se constrói e se transforma durante toda a nossa existência” 29.
Amin Maalouf, se referindo a si mesmo a é à sua genealogia contraditória e múltipla diz: “Meu objetivo
não é – deve ter sido entendido – encontrar em mim mesmo alguma pertença ‘essencial’ não qual possa me
reconhecer, é a atitude inversa que adoto: reviro minha memória para revelar o maior número de elementos de
minha identidade, eu os agrupo, os alinho, não nego nenhum” 30.
Mas essas sínteses de contraditórios e de múltiplos, se tomadas individualmente, não deixam de fazer
uma unidade: “Eu insisti constantemente até aqui sobre o fato de que a identidade é feita de múltiplas pertenças;
mas é indispensável insistir do mesmo modo sobre o fato de que ela é uma, e que nós a vivemos como um
todo” 31. Nesse sentido toda subjetividade é ao mesmo tempo plural, una e dinâmica, sem que isso implique uma
essência verdadeira. Cada um tendo uma identidade feita de múltiplas composições, “é justamente isso que
caracteriza a identidade de todos: complexa, única, insubstituível, não se confundindo com nenhuma outra” 32.

Referências Bibliográficas
BOUGNOUX, Daniel. Introduction aux sciences de la communication. Paris: La Découverte, 1998
CANCLINI, Néstor García. Consumidores e cidadãos – conflitos multiculturais da globalização. Rio de Janeiro: UFRJ, 1995
DELEUZE, Gilles. Para ler Kant. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976
DESCARTES, Rene. Coleção Os pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1987
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade, Volume II, O Uso dos Prazeres. Rio de Janeiro: Graal, 1988
GARCÍA MORENTE, Manuel. Fundamentos de Filosofia I: lições preliminares. São Paulo: Mestre Jou, 1980
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2002
HEIDEGGER, Martin. Nietzsche – vol. II. Paris: Gallimard, 1971
LE ROY LADURIE, Emmanuel. Montaillou, povoado occitânico, 1294-1324. São Paulo: Companhia das Letras, 1997
LUZ, Rogério. Filme e subjetividade. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2002
MAALOUF, Amin. Les identités meurtirères. Paris: Grasset, 1998
MARCONDES, Danilo. Iniciação à filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001
MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1982
SILVA, Tadeu Tomaz da (Org.). Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica, 2000
SODRÉ, Muniz. Reinventando a Cultura: a comunicação e seus produtos. Petrópolis: Vozes, 1996
TURKLE, Sherry. Life on the screen – Identity in the age of the Internet. New York: Touchstone, 1997
VANCOURT, Raymond. Kant. Lisboa: Edições 70, s.d.

28
MAALOUF, A. Les identités meurtirères, Paris, Grasset, 1998, p. 18. A tradução é nossa.
29
Idem, ibidem, p. 33. A tradução é nossa.
30
Idem, ibidem, p. 25. A tradução é nossa.
31
Idem, ibidem, p. 36. A tradução é nossa.
32
Idem, ibidem, p. 30. A tradução é nossa.

Você também pode gostar