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Organizações e Modelos de Homens: a

Exclusão do Sujeito nas Teorias Administrativas

Organizations and Models of Men: The Exclusion


of the Subject in Administrative Theories
K E T L L E D U A R T E PA E S

A N A PA U L A PA E S D E PA U L A

Resumo
O objetivo desse artigo é fazer algumas considerações sobre a
concepção de sujeito, para os estudos organizacionais, tendo
em vista o avanço dos estudos sobre o tema nesse campo. Para
isso, na primeira parte, abordamos os modelos de homem nas
teorias administrativas - Econômico, Social, Administrativo, Or-
ganizacional, Funcional e Complexo – evidenciando como essas
abstrações se distanciam de uma concepção de sujeito, para, na
seção seguinte, recorrer à constructos da filosofia e da psicanálise
lacaniana para esboça-la. Na terceira parte, abordamos o conceito
de sujeito falta-a-ser lacaniano, apresentando o mesmo como
um sujeito político, fundamental para a inserção de mudanças
na sociedade, nos grupos e nas organizações. Na quarta parte,
à guisa de conclusão, abordamos uma perplexidade: o sujeito
político tem como motor a pulsão anarquista, que resulta de uma
separação do corpo social, trazendo a difícil questão de como o
impulso de mudança e transformação do sujeito é reconduzindo
para o campo coletivo. Nessa operação, observamos a tendência
dos sujeitos se reduzirem a indivíduos, integrando-se ao amor
ideológico, rendendo-se à fantasia dos modelos de homem, que
tende a excluir a noção de sujeito das teorias administrativas.
Palavras-chave: Teorias Administrativas; Estudos Organizacio-
nais; Sujeito; Psicanálise; Modelos de Homens

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Abstract
The objective of this article is to make some considerations about
the concept of subject, for organizational studies, in view of ad-
vancement of studies on the subject in this field. For that, in the
first part, we approach the models of man in the administrative
theories – Economic, Social, Administrative, Organizational,
Functional and Complex – showing how these abstractions are
distant from a concept of subject, to, in the next section, resort
to constructs of the philosophy and Lacanian psychoanalysis to
outline it. In the third part, we approach the concept of Lacanian
lack-to-be subject, presenting it as a political subject, fundamental
for the insertion of changes in society, groups and organizations.
In the fourth part, by way of conclusion, we address a perplexity:
the political subject is driven by the anarchist drive, which results
from a separation from the social body, bringing up the difficult
question of how the impulse for change and transformation of
the subject is leading back to the question of the collective field.
In this operation, we observe the tendency of subjects to reduce
themselves to individual, integrating themselves with ideological
love, surrendering to the fantasy of models of man, which tends
to exclude the notion of subject from administrative theories.
Key-words: Administrative Theories; Organizational Studies;
Subject; Psychoanalysis; Models of Men

Introdução
O que é o homem? Essa é uma pergunta que mexe com o ima-
ginário do Ocidente desde os tempos dos gregos pré-socráticos.
Um exemplo marcante dessa curiosidade se consubstancia na fa-
mosa frase do sofista Protágoras (490 a.c. a 420 a. C.) “o homem é
a medida de todas as coisas”, para quem interessava refletir sobre
a verdade das coisas, a partir da experiência pessoal. Além disso,
outra consideração importante sobre o homem vem de Aristóteles
(384 a.c. a 322 a. c.) que legou para a posteridade a ideia de que o
homem é um animal racional e político, portanto, construído por
uma substancia universal que o define e o qualifica – a razão.
Na modernidade, pode-se acrescentar outros significantes para
essa pergunta: o que é o indivíduo, o agente, o ator, a pessoa, etc.?
Mas, afinal, o que é esse ente especial (Heidegger, 2006)? Porque, em

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pleno século XXI, ainda é importante se indagar sobre ele? Talvez,


porque como esclareceu Foucault (1999), esse ente especial é um
duplo empírico-transcendental que, a partir de Kant passou a inte-
ressar como sujeito e objeto do conhecimento. Entretanto, importa
destacar que esse ente somente ganha a denominação de sujeito
com a modernidade, mais precisamente no contexto do pensamento
cartesiano, a partir de suas reflexões sobre ser e pensamento, e, se
consolida como tal no pensamento transcendental kantiano.
Para Kant (2008), o ser humano é marcado por uma dualidade: é,
por um lado, um ser sensível, isto é, um ser da natureza, condiciona-
do pelas suas disposições naturais, que o levam à procura do prazer
e à fuga da dor. Por outro lado, é um ser racional, isto é, alguém
capaz de se regular por leis que impõe a si mesmo. Tais leis revelam
a sua autonomia, tendo a sua sede na razão. Nesse sentido, a razão
torna-se o elemento essencial que define o homem como sujeito na
modernidade. A noção de sujeito racional foi apropriada e refinada
pelas correntes do pensamento filosófico ocidental, servindo, de base
para a emergência da epistemologia sobre o sujeito em ciências sociais
em geral e em ciências da administração em particular.
Nesse momento, cabe observar que o entendimento que se tem
de sujeito (homem, indivíduo, pessoa, ator, etc.) herdado pelo pen-
samento filosófico ocidental, o visualiza, a partir da ideia de uma
substância – a razão – que o caracteriza como um ser completo,
universal, e, sobretudo, como o fundamento de todo o conhecimento
possível. Essa visão de sujeito está diretamente conectada ao que
Derrida (2009) nomeia como metafísica da presença, que ao longo
da história do Ocidente foi substituindo o centro da estrutura social
por outros significantes (homem, deus, razão, sujeito, dinheiro) sem
romper com o jogo que sustenta as estruturas e que coloca esses
significantes como completos e idênticos a si mesmo. Essa ideia de
completude, própria da metafísica da presença (pensamento da iden-
tidade), demanda dos sujeitos a construção de um amor ideológico
(ZALTZMAN, 1993) capaz de sustentar, por exemplo, a ideia dos
modelos de homem das teorias administrativas.
É contra esse pensamento da identidade que esse trabalho se
coloca ao propor a problematização do entendimento hegemônico
da ideia de homem nas teorias administrativas. Do ponto de vista

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desse trabalho, as teorias administrativas tradicionais com seus


respectivos modelos de homens - Econômico, Social, Administrati-
vo, Organizacional, Funcional e Complexo - seguem a tradição do
pensamento ocidental ao atribuir a esse ente uma substância fixa,
cristalizando-o como um dado a priori. Essa forma de ver o homem
se coaduna com a ilusão metafísica da modernidade que entende
esse ente como completo, transparente e universal. Ainda em nossa
visão, seguindo a Sigmund Freud (1856-1939) e a Jacques Lacan
(1901-1981), essa visão moderna de sujeito como um ser completo,
transparente e racional não passa de uma fantasia imaginária e de
um sonho idílico onde o Eu se configura como o senhor absoluto de
si mesmo. Sobre isso Sigmund Freud é bem explicito quando afirma
que infligiu a humanidade sua terceira ferida narcísica, juntamente
com Copérnico e Darwin, qual seja, a de mostrar que o Eu não é
senhor em sua própria morada.
Diante do exposto, fica evidente que a noção de sujeito é central
nesse artigo e se propõe aqui a questionar os pressupostos episte-
mológicos que fundamentam a ideia de homem nas abordagens das
teorias administrativas, tributárias da tradição filosófica ocidental
que entende o homem/sujeito como uma substância fixa, cristali-
zado na noção de razão. Para fazer essa reflexão nos apoiamos na
epistemologia pós-estruturalista e na psicanálise lacaniana da qual
advém a ideia de sujeito descentrado da noção de razão. Nesse sen-
tido, a premissa aqui é que, a visão que se tem de sujeito, se reflete
na forma como se teorizam e se organizam as práticas sociais de
maneira geral e, as práticas organizacionais, de maneira particular.
Isso implica afirmar que, a maneira como as teorias administrativas
tradicionais definem seus modelos de homem, excluem o sujeito
de suas abordagens e colocam em seu lugar noções essencialistas,
pré-discursivas e universais de homem. (WOZNIAK, 2010; PAES;
DELLAGNELO, 2015; PAES DE PAULA, 2012; SOUZA et al, 2013;
SOUZA, 2012; 2016).
Desse modo, considerando que o objetivo desse artigo é fazer
algumas considerações sobre a concepção de sujeito, fundamentada
na filosofia e na psicanálise, para os estudos organizacionais, tendo
em vista o avanço dos estudos sobre o tema nesse campo. Para isso,
na primeira parte, abordamos os modelos de homem nas teorias

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nal, Funcional e Complexo – evidenciando como essas abstrações
se distanciam de uma concepção de sujeito, para, na seção seguinte,
recorrer à constructos da filosofia e da psicanálise lacaniana, com a
finalidade de esboça-la. Na terceira parte, abordamos o conceito de
sujeito falta-a-ser lacaniano, apresentando o mesmo como um sujeito
político, fundamental para a inserção de mudanças na sociedade,
nos grupos e nas organizações.
Na quarta parte, à guisa de conclusão, discorremos sobre uma
perplexidade: o sujeito político tem como motor a pulsão anar-
quista (ZALTZMAN, 1993), que consiste na busca de uma saída
vital quando situações críticas se fecham sobre o sujeito, mas esta
pulsão resulta de uma separação do corpo social, de uma atitude
singular, trazendo a difícil questão de como o impulso de mudança
e transformação do sujeito é reconduzindo para o campo coletivo.
E nessa operação, observamos a tendência dos sujeitos se reduzi-
rem a indivíduos, integrando-se ao amor ideológico, rendendo-se
à fantasia dos modelos de homem, que tende a excluir a noção de
sujeito das teorias administrativas.

1. Modelos de Homem na Teoria das Organizações


O campo dos estudos organizacionais é interdisciplinar, apoian-
do-se no conhecimento de outras disciplinas à compreensão do
fenômeno organizacional. Essa interdisciplinaridade enriquece a
análise, mas, também, dificulta um consenso sobre o campo (CLEGG;
HARDY; NORD, 2012; FARIA, 2009; ALCADIPANI; TURETA, 2009;
MISOCZKY, 2010; PAES DE PAULA, 2008). Nesse campo disciplinar
historicamente contestado (REED, 2012), há vários modos de clas-
sificar as correntes de pensamento que formam o corpo de teorias
próprias da área de organizações. Importa esclarecer que temos cons-
ciência de que toda classificação e categorização é problemática e o
que se faz aqui não esgota todas as possíveis discussões, no entanto
nos ajuda estabelecer algumas questões marcantes do pensamento
nos estudos organizacionais sobre o indivíduo.
Examinando as principais correntes da teoria geral da adminis-
tração, o que constatamos é que essa área não possui uma concep-
ção de sujeito, mas uma noção de indivíduo e modelos de homem,

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que enfatizam o seu funcionamento nas organizações. Em seguida,


abordaremos essa questão, discorrendo sobre as teorias adminis-
trativas e seus respectivos modelos de homem: Econômico, Social,
Administrativo, Organizacional, Funcional e Complexo.
No início do século XX se conheceu a consolidação da adminis-
tração enquanto conhecimento sistematizado e científico. Os princi-
pais nomes desse período foram Taylor, Fayol e Ford, surgindo, por
meio deles, a noção de Homem Econômico. Essa ideia de homem
encontra sustentação na Teoria Econômica Clássica, significando
um ser calculista, racional, previsível e voltado a recompensas ma-
teriais. Este modelo de homem, também conhecido como homem
operacional (RAMOS, 1984), era considerado um mero recurso
organizacional, implicando um estilo de liderança autoritário e
uma política de treinamento de cunho comportamental (MOTTA;
VASCONCELOS, 2006).
Fonseca e Machado-da-Silva (2010) corroboram essa visão, ob-
servando que o conceito de homem econômico nos estudos organi-
zacionais se coaduna à ideia de que os indivíduos são calculistas e
motivados ao trabalho pela necessidade de obtenção de recompensas
econômicas. A eficiência no desempenho das tarefas para o cumpri-
mento dos objetivos organizacionais é enfatizada, e os desvios de
comportamento são considerados uma restrição a ser superada, por
meio da adoção de algumas ferramentas e procedimentos, tais como
reestruturação de funções, modificação dos sistemas de incentivo
e de treinamento.
Apesar de seu sucesso no início do século, as práticas organi-
zacionais propaladas pelos pensadores da escola científica da admi-
nistração logo mostraram seus limites. Assim, constatou-se que tais
práticas em nada contribuíam para eliminar os chamados desvios de
comportamento dos funcionários e o questionamento das relações
de trabalho, abrindo espaço para contestações ao sistema produtivo
imposto (PAES DE PAULA, 2002). Como resposta a esses conflitos,
emerge a escola das relações humanas que, segundo Tragtenberg
(2006), se por um lado conseguiu responder intelectualmente aos
conflitos trabalhistas, solucionando as falhas da escola clássica, por
outro seguiu dando continuidade à ideologia da harmonia admi-
nistrativa (PAES DE PAULA, 2002).

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Assim, com a escola de relações humanas, surge a ideia de


Homem Social. O foco desta escola era o de compreender o com-
portamento do indivíduo dentro dos grupos na organização, de
modo a identificar oportunidades do aumento da produtividade.
Segundo Ramos (1984), os expoentes desta escola diferiam, em parte,
dos anteriores, uma vez que conheciam a natureza da motivação
humana, dando importância aos valores, sentimentos e atitudes no
processo produtivo.
Por essa abordagem, o ser humano é visto como um ser passi-
vo, reagindo de forma padronizada aos estímulos organizacionais
(MOTTA; VASCONCELOS, 2006). Para Ramos, (1984, p. 4) o
homem social era visto como um “homem reativo”, facilmente
ajustável ao contexto de trabalho. Importa destacar, conforme
Paes de Paula (2002), que Tragtenberg em seus estudos constatou
ser o positivismo a base da lógica cooperativa e integradora que
permeia a escola das relações humanas. Segundo a autora, o cará-
ter ideológico da tal escola vem à tona na medida em que busca
dissimular a dominação por intermédio de práticas participativas,
desviando a atenção de seu objetivo central, que é o de manter a
produtividade nas organizações.
Outro ponto para o qual a autora chama a atenção é que, em-
bora Tragtenberg tenha realizado seus estudos se dirigindo à esco-
la das relações humanas e à psicologia social, ele também estava
se referindo à escola comportamentalista e a seus representantes,
Abraham Maslow, Frederick Herzberg, Douglas McGregor, Rensis
Likert e Chester Barnard. Assim, a Escola comportamentalista, ao
utilizar as técnicas como a dinâmica de grupo, a liderança não di-
retiva e o aconselhamento, legitimou a ideologia da participação
(PAES DE PAULA, 2002).
Com a escola comportamentalista emerge a ideia de Homem
Administrativo. Essa escola defendia a valorização do trabalhador
em empreendimentos baseado na cooperação, buscando subsídios
para tais estudos em outros campos da ciência, tais como a antro-
pologia, a psicologia e a sociologia. Adaptando à administração
conceitos originalmente elaborados dentro dessas ciências, a escola
comportamentalista, propunha-se fornecer uma visão mais ampla
da motivação e do comportamento humano.

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Segundo Fonseca e Machado-da-Silva (2010), subjacente à de-


finição de Homem Administrativo, encontra-se a ideia de que os
indivíduos não são movidos no trabalho, predominantemente, por
incentivos econômicos, mas se contentam com as possibilidades
ao seu alcance. Eles interagem, compartilham valores e interesses,
assumindo objetivos da organização. Conforme os autores, o gestor,
sob a ótica do comportamentalismo, não dispõe de todas as infor-
mações necessárias e tampouco detém capacidade intelectual para
lidar, simultaneamente, com grande quantidade delas. Desse modo,
ao contrário do que se preconiza na visão de Homem Econômico,
o Homem Administrativo efetua escolhas sem condições de anali-
sar todas as alternativas possíveis, configurando assim a chamada
racionalidade limitada defendida por Herbert Simon (FONSECA;
MACHADO-DA-SILVA, 2010).
Com a teoria estruturalista, na década de 1950, surge um mo-
delo chamado de Homem Organizacional, um indivíduo tolerante
às frustrações, capaz de adiar as recompensas, conformado com as
condições e condicionado pelas regras do ambiente organizacional
(MOTTA; VASCONCELOS, 2006). Este homem, por depender das
organizações para nascer, viver e morrer (ETZIONI, 1976) tornou-
-se adaptado a mudanças contínuas. O Homem Organizacional
responde aos pressupostos da Teoria da Burocracia que surgiu na
década de 1940, a partir dos trabalhos de Max Weber. O modelo
burocrático surge como uma proposta eficiente de estrutura admi-
nistrativa para organizações complexas, reguladas pelas normas e
inflexibilidade hierárquica.
Nos anos 50 e 60, a teoria de sistemas foi recebida com ani-
mação pelo campo dos estudos organizacionais, já que se presumia
que essa teoria forneceria os novos fundamentos epistemológicos à
ciência social (REED, 2012). Katz e Khan (1976), autores importantes
da abordagem sistêmica, entendem as organizações passam a ser
vistas como sistemas sociotécnicos, incluindo desde as relações so-
ciais, grupos informais, cultura e motivação, até os recursos físicos e
operacionais, tais como divisão do trabalho, tecnologia, instalações,
procedimentos (MOTTA; VASCONCELOS, 2006).
Com esse tipo de sistema, emerge a noção de Homem Funcio-
nal, à medida que desempenhava diversos papéis e sofria, em ter-

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mos emocionais e interpessoais, com conflitos sobre as expectativas


diversas com as quais devia lidar (KATZ; KAHN, 1976). O Homem
Funcional se caracterizava pelo profissionalismo e pela capacidade de
compreensão sistêmica dos processos. Sua flexibilidade para a mu-
dança e a adaptação a novos fatores se mostraram importantes para
o desenvolvimento organizacional (MOTTA; VASCONCELOS, 2006).
Com a emergência da Teoria Contingencial surge a figura do
Homem Complexo. Essa abordagem aparece com o objetivo de estu-
dar a relação entre a organização e ambiente. Nesse recorte teórico,
a contingência significa incerteza, eventualidade, possibilidade de
um fato acontecer ou não. Logo, a abordagem contingencial propõe
que a eficácia organizacional só é atingida após o uso de variados
modelos, pois não há forma única de um determinado objetivo ser
atingido (MOTTA; VASCONCELOS, 2006). O Homem Complexo,
um prolongamento do homem social é um indivíduo com múltiplas
necessidades, ligadas ao desenvolvimento pessoal, aprendizagem
e autorrealização no trabalho. Não obstante, o homem complexo
constrói a sua identidade a partir do sentido que atribui à sua ação
no ambiente organizacional.
Essas abstrações de homem apresentadas se distanciam muito
de uma concepção de sujeito, sendo que tal característica das teorias
administrativas foi criticada por diversos autores no campo das
organizações (TRAGTENBERG, 2006; RAMOS, 1989; FARIA, 2003;
ADLER et al, 2007; PAES DE PAULA, 2008; MISOCZKY, 2013). Na
próxima seção, buscamos trazer uma contribuição para essa discus-
são abordando a concepção de sujeito na filosofia e na psicanálise.

2. A concepção de sujeito: uma abordagem a partir da


filosofia e da psicanálise
A concepção de sujeito é uma problemática que se coloca peran-
te diversas disciplinas, tais como a educação, o direito, a psicologia,
a pedagogia, a administração e a psicanálise, assumindo sentidos
diferentes conforme as tradições teóricas nas quais esteja referencia-
do. Na tradição aristotélica, o homem é tomado como um ser que
possui qualidades fixas definidas a priori, cristalizadas, sobretudo
na ideia de razão. O homem foi definido por Aristóteles como Zoon
logikon, um animal racional que fala e pensa. Para Aristóteles, o

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homem é complexo e tão capaz de desejos quanto de razão. O ho-


mem é o único Zoon com capacidade para agir orientado por uma
moral, de modo que suas ações e juízos resultam ora em vício, ora
em virtude (JAEGER, 2010). Nessa tradição, o sujeito é o ente ao
qual se atribuem predicados, ou seja, qualidades e determinações.
A ideia do sujeito como substância permaneceu inalterada, por
meio de uma longa tradição que passa por Descartes, Hobbes, Locke,
Hume, Leibniz, Espinosa. Entretanto, cabe sublinhar que, embora
possamos encontrar uma ideia de homem desde a antiguidade fi-
losófica grega, o homem, enquanto fundamento do conhecimento
é algo recente na história da humanidade e emerge das reflexões
de Descartes sobre o cogito ( JAEGER, 2010; LIMA VAZ, 1991).
Contudo, se a preocupação dos antigos era desvendar a origem e
as transformações da natureza, o problema que se impôs à filosofia
moderna ocidental foi o de indagar sobre o sujeito do conhecimento.
É com a modernidade que valores como racionalismo, humanismo
e liberdade se tornam essenciais e a razão torna-se o centro e o
fundamento das coisas (FOUCAULT, 1999).
Nietzsche (2006) observa que a história do pensamento ocidental
se configura como uma busca por um fundamento, por uma expli-
cação sobre as coisas do mundo. O pensamento ocidental, desde
Sócrates, Platão e Aristóteles até os filósofos modernos Kant e Hegel,
foi a história de uma ilusão que produziu a crença na identidade, na
essência do ser e na verdade. Esta crença é o produto da necessidade
humana de duração e apoia o anseio metafísico por um fundamento
sobre as coisas. Embora Nietzsche (2006) não acreditasse nos ideais
iluministas de progresso humano, nem na relação causa/efeito, nem
que a história seja uma sequência de fatos em evolução, esses são
valores por excelência do mundo moderno e, portanto, as bases
sobre as quais se assentam o conhecimento sobre o homem.
Para Nietzsche (2006), a história da filosofia moderna configu-
ra-se na cristalização da ideia de substância. Assim, o que sustenta
a busca pelo conhecimento é a crença de que existe uma verdade
irredutível a ser alcançada. Entretanto, o autor adverte que a exis-
tência de uma essência do mundo é uma ficção, já que no mundo, ao
contrário da unidade/identidade, impera a multiplicidade, impera o
devir. Conforme assinala Mosé (2011), a crítica da ideia de sujeito é

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central no pensamento crítico nietzschiano, uma vez que é a crença de


que somos sujeito, de que somos unidade e, sobretudo, de que somos
a origem do conhecimento e os depositários da razão, que permite a
produção do mundo como substância, como essência, como unidade
e como universalidade. Dito isso, Mosé (2011, p. 169) afirma que a
essencialidade do sujeito não é, para Nietzsche, “[...] mais uma ficção
que adquiriu valor de verdade; ao contrário, é a crença no sujeito
pleno que permite a substancialização da realidade”.
Nietzsche, em A gaia ciência, revela que a ideia do homem
como o centro do universo é um empreendimento moderno. Assim,
a metafísica moderna que impõe um conhecimento sobre o mundo
com base em regularidades estáveis e de unidades de sentido só
foi possível por meio da produção da ideia de sujeito. Na visão
de Nietzsche, extraímos a noção de unidade do nosso conceito do
“eu”, uma interioridade ativa, autônoma e causa das coisas. Essa
crítica de Nietzsche, retomada depois pelos chamados filósofos
pós-estruturalistas, é dirigida à filosofia da consciência/sujeito, ins-
pirada, sobretudo, no pensamento cartesiano/kantiano. Assim, em
termos epistemológicos, o sujeito moderno nasce das reflexões de
Descartes e se consolida como sujeito do conhecimento com Kant
(FOUCAULT, 1999). Para o cartesianismo, o fundamento de todo o
conhecimento sobre a realidade encontra-se no intelecto. O sujeito
chega ao conhecimento por meio de uma faculdade que lhe é pró-
pria, o pensamento fundado na razão. É próprio da razão não apenas
fazer aceder o conhecimento, mas também impedir que fiquemos à
mercê dos impulsos e das paixões que se mostram danosos à nossa
existência (HESSEN, 2003).
O sujeito cartesiano apresenta-se, sobretudo, como um ser dota-
do de consciência e razão, instrumentos que lhe conferem a capaci-
dade de conhecer o mundo e a si mesmo. Sua existência é deduzida
do fato de ele pensar e constituir as bases de todo conhecimento
possível. A subjetividade consciente realiza-se como atividade do
entendimento e confere ao homem a capacidade de conhecer a si
mesmo e as coisas que o circundam (HESSEN, 2003). Diante disso,
importa observar que a noção de sujeito pleno, autoconsciente e
autônomo posta em cena pela filosofia da consciência/sujeito é a
base que sustenta a maioria das abordagens em ciências sociais

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e, consequentemente, em ciências da administração. Entretanto, a


concepção de sujeito da modernidade foi posta em xeque a partir
do século XIX pelos chamados filósofos da suspeita: Marx, Nietzsche
e Freud, que mobilizaram respectivamente a materialidade da his-
tória, o devir, e o inconsciente para abalar as bases do pensamento
moderno e sua ideia de sujeito (RICOEUR, 1977).
Se o questionamento da ideia de sujeito encontra solo fértil
entre os filósofos da suspeita, não podemos deixar de falar do mo-
vimento que decretou a morte do sujeito, o estruturalismo. Para
Merquior (1991), o estruturalismo foi uma corrente de pensamento
na ala humanista que nasceu da linguística moderna, cujo auge
deu-se na França, na década de 60. Em seu apogeu, as estrelas do
estruturalismo francês foram Lévi-Strauss, Barthes, Foucault, Lacan e
Althusser. Cabe observar aqui que esses pensadores foram rotulados
de estruturalistas em razão da apropriação que fizeram da linguística
saussuriana para formularem suas teses. O fato é que as aborda-
gens desses intelectuais simbolizaram, para os jovens pensadores
do começo da década de 1960, o elo perdido entre a linguística de
Ferdinand Saussure e as críticas ao humanismo e à fenomenologia.
Contudo, o movimento estruturalista sofreu uma crise interna
com o questionamento de alguns de seus pressupostos, o que le-
vou ao que se chamou de pós-estruturalismo, cuja principal tarefa
era a reelaboração da noção de sujeito fora da conotação ontoló-
gica, implicando alternativa entre o sujeito da liberdade radical
do humanismo filosófico ou a morte do sujeito do estruturalismo.
Desse modo, em virtude dessa virada crítica do estruturalismo em
pós-estruturalismo, alguns dos pensadores que foram rotulados de
estruturalistas passaram a ser classificados de pós-estruturalistas.
Assim, no âmbito desde trabalho, tanto Foucault quanto Lacan são
vistos como pós-estruturalistas, embora nenhum deles tenha reco-
nhecido este rótulo.
O estruturalismo, apesar dos pontos de contato entre as teorias
dos seus fundadores, não é um movimento, nem mesmo uma escola;
é no máximo, como nomeou Barthes, uma atividade. Dosse (2007, p.
12) compartilha da ideia de Foucault de que o estruturalismo “[...]
não é um método novo, ele é a consciência despertada e inquieta do
saber moderno”, não sendo possível pensar o estruturalismo apenas

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como recurso metodológico a ser utilizado em tal ou qual pesquisa,


ele é antes “[...] um movimento de pensamento, uma nova forma de
relação com o mundo”. Dosse (2007) e Merquior (1991) concordam
que o estruturalismo se colocou, notadamente, contra o modo de
pensar associado ao existencialismo sartriano. O estruturalismo se
opunha à centralidade do sujeito defendida pelo existencialismo,
uma versão contemporânea da filosofia do cogito de Descartes. Além
disso, essa corrente, de acordo com Merquior, também fez oposição
ao historicismo, à ideia de que existe uma verdade a ser alcançada
e à crença na lógica da história e do progresso.
É comum, entre os críticos do pensamento estruturalista, a
acusação de que este decretou a morte do sujeito. Sendo assim,
por esse viés, o sujeito nada mais é do que um apêndice estrutural.
Nesse sentido, o sujeito para o estruturalismo é determinado
pela estrutura, ou seja, pelo discurso, o que ocasiona o seu
desaparecimento enquanto sujeito da ação. Contudo, há que se
lembrar que essa visão encontra algum fundamento quando se
fala da abordagem althusseriana (FERRY; RENAULT, 1985) ou le-
vi-straussiana (RICOUER, 1977). Entretanto, o mesmo não se pode
dizer a respeito das perspectivas teóricas de Foucault e Lacan, por
exemplo. Aqui importa observar que, embora Foucault e Lacan se-
jam rotulados de estruturalistas, isso se deve ao contexto em que o
movimento aconteceu. Alinhado à linguística estrutural, Foucault,
assim como Lacan, rompe com o sujeito do cogito cartesiano para
pôr em seu lugar o sujeito descentrado, desenvolvendo, para tanto,
a noção de posições de sujeito. Isso porque, de acordo com o autor,
um sujeito pode ocupar múltiplas posições no espaço social, tais
como o de: mulher, negra, médica, operária, professora, homosse-
xual, etc. Foucault estudou os modos de subjetivação relacionados
aos temas do saber/poder e da verdade/sujeito.
Lacan, por sua vez, realiza uma operação inversa à de Ferdi-
nand Saussure com relação ao sujeito. De acordo com Jorge (2011),
Saussure, com base na arbitrariedade do signo, busca escapar de
uma correspondência psicológica e, com isso, exclui o sujeito de sua
teoria. Lacan, ao contrário, recorre ao mesmo processo exatamente
para inserir a questão do sujeito em sua reflexão, desenvolvendo,
assim, a noção de sujeito como falta-a-ser. Lacan – do qual, se

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tomará, aqui, a noção de sujeito –, assim como outros autores pós-


-estruturalistas, enfatiza que o significado é uma construção ativa,
radicalmente dependente do contexto. Esses pensadores questio-
nam, portanto, a suposta universalidade das chamadas asserções
de verdade. Assim, seguindo o pensamento nietzschiano, todos eles
questionam o sujeito cartesiano autônomo, livre e autoconsciente,
que é tradicionalmente visto como a fonte de todo o conhecimento.
A retomada da noção de sujeito, entre outros, foi o ponto de
inflexão que fez emergir o chamado pensamento pós-estruturalista.
O pós-estruturalismo é, por certo, uma tentativa de superação da
ideia de sujeito pressuposta da modernidade no que diz respeito às
suas dimensões de sujeito universal ou como indivíduo. Assim, a
ideia que preenche parcialmente o significante pós-estruturalismo
pretende sugerir o esgotamento do pensamento filosófico moderno,
sobretudo, em relação a esse aspecto central, o sujeito. Não obs-
tante, juntamente com o questionamento do conceito de sujeito, o
pós-estruturalismo busca romper com as falsas dicotomias sujeito/
objeto, teoria/prática, estrutura/ação. Muitos dos pensadores críticos
à filosofia da consciência/sujeito adotam como referencial filosófico
o pensamento nietzschiano contra a racionalidade moderna. Há, en-
tretanto, que se observar que não só os pensadores rotulados de pós-
-estruturalistas (Foucault, Derrida, Deleuze, Lacan, etc.) lançaram-se
na crítica ao sujeito da filosofia da consciência. Outros pensadores,
como os frankfurtianos Adorno, Horkheimer, Benjamin, por exem-
plo, também se dedicaram a essa empreitada (GALLO, 2012).
Peters (2000) destaca que os pensadores do pós-estruturalismo,
ao seguirem a crítica nietzscheana da metafísica ocidental, baseiam-
-se em uma noção de sujeito imerso em toda sua complexidade histó-
rica e cultural. Emerge, então, daí a ideia de um sujeito descentrado
e dependente do sistema linguístico, um sujeito discursivamente
constituído e posicionado, constituído pela interseção de forças
libidinais e de práticas socioculturais. Assim, a problemática do
sujeito como o elo que liga as reflexões de todos os estruturalismos
da década de 60 foi também uma preocupação foucaultiana, a ponto
de Foucault, em uma entrevista a Dreyfus e Rabinow (2010, p. 273),
mencionar que “[...] não é a questão do poder, mas sim o sujeito que
constitui o tema principal de minhas pesquisas”. Cabe destacar que,

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além de Lacan e Foucault, outros expoentes da segunda geração de


pensadores do movimento pós-estruturalista, Júlia Kristeva, Alain
Baudiou, Felix Guattari, Suely Rolnik, também se aventuraram pelas
questões do sujeito com base no pensamento freudiano e lacaniano.

3. O sujeito falta-a-ser lacaniano como sujeito político


Na perspectiva de Stavrakakis (2007), a abordagem lacaniana
sobre o sujeito é relevante para a análise política contemporânea em
razão de sua concepção da falta constitutiva permitir compreender a
relação sujeito e objeto fora do determinismo e do voluntarismo. Isso
porque a perspectiva lacaniana se baseia em premissas em expresso
contraste com os pressupostos do pensamento moderno. Portanto, a
noção de sujeito em Lacan se opõe ao sujeito essencialista e racional
da tradição filosófica humanista, que inclui nessa categoria o sujeito
cartesiano, o sujeito kantiano e o sujeito marxista.
Para Lacan (1998), a descoberta freudiana do inconsciente é
mais radical que as revoluções copernicana e darwiniana já que
estas últimas deixam intacta a crença na racionalidade do sujeito.
A perspectiva freudiana põe em xeque a compreensão de sujeito
consciente e racional, colocando em seu lugar a ideia de um sujeito
dividido entre o consciente e inconsciente, sendo este último uma
instância que escapa totalmente a este círculo de certezas no qual
o homem se reconhece como um eu (Lacan, 2008).
De acordo com Fink (1998), o advento do sujeito em Lacan
está relacionado como dois processos psíquicos: a alienação e a
separação. No que se refere à alienação, a criança de certa forma se
coloca como “... tendo escolhido a sujeição à linguagem, como tendo
concordado em expressar suas necessidades através de um meio
distorcido ou da camisa-de-força da linguagem e como tendo per-
mitido ser representada por palavras” (FINK, 1998, p.72) Em termos
lacanianos, isso que dizer que a criança se aliena no grande Outro,
corporificado na mãe, mas que representa a linguagem e a cultura,
escolhe “falar”, assujeitando-se. Quanto à separação, segundo Fink
(1998), é mais um confronto da criança, que dessa vem não é com
a linguagem trazida pelo Outro, mas com o desejo do Outro. Isso
significa que a criança precisa admitir que não é o único interesse
da mãe, uma vez que essa mãe deseja algo mais. Assim, a criança

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“deseja-ser” e ao mesmo temo “fracassa-em-ser” o único objeto de


desejo do Outro.
O processo de alienação é fundamental para ascender à subjeti-
vidade e envolve uma escolha forçada: o próprio desaparecimento.
O conceito lacaniano de sujeito como falta-a-ser está implicado nessa
escolha, pois o sujeito fracassa em se desenvolver como um alguém,
como um ser específico; no sentido mais radical é não-ser. No en-
tanto, essa é uma “perda” necessária, pois somente a alienação dá
origem a uma possibilidade de ser, pois o vislumbre de um sujeito
é justamente essa falta, o lugar onde ainda não há sujeito nenhum e
que o desafia a se constituir. A alienação institui a ordem simbólica
indispensável para situar o sujeito no social enquanto um ser que
fala (L A C A N , 1998).
O processo de separação, por sua vez, dá origem ao ser, mas
esse ser é eminentemente evanescente. Se na alienação, o sujeito
desaparece, na separação o Outro também, pois ela implica na
exclusão tanto do próprio sujeito quanto do Outro, de modo que
ocorre uma justaposição/superposição ou coincidência de duas fal-
tas - a do sujeito e a do Outro. A criança se esforça para preencher
a falta da mãe e suprir seu desejo, mas isso é irrealizável, pois não
há como monopolizar por completo o desejo dela. O sujeito tenta
fazer sua falta e a falta da mãe - o desejo de ambos - coincidirem,
mas isso está fadado ao fracasso. É nesse ponto que emerge a função
paterna, o terceiro elemento que se insere na relação dual a fim de
neutralizar o desejo do Outro, permitindo que se abra um espaço
próprio para que a criança se torne desejante e emerja como sujeito
dividido (LACAN, 1998).
De um modo geral, o que apreendemos é que o sujeito precisa
da palavra para existir e para dizer-se (LACAN, 1998). Por outro
lado, a falta constitutiva do sujeito afeta suas identificações, pois
uma vez que precisa simbolizar para se constituir, esse processo
é interminável e uma identidade plena, impossível. Mas isso é
necessário, pois o sujeito da falta emerge em virtude do fracasso
de constituir uma identidade plena. Essa noção de identificação
foi trabalhada por Freud e refere-se ao processo mediante o qual
o sujeito assimila parcialmente aspectos do outro produzindo com
isso sua própria subjetividade. De acordo com Stavrakakis (2007),

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o processo de identificação é importante para a análise política em


virtude de que os objetos de identificação da vida dos sujeitos in-
cluem as ideologias e outros objetos da cultura.
Nesse sentido, a ideia de sujeito como falta-a-ser não pode se
separar do reconhecimento do fato de que o sujeito sempre tenta
recobrir essa falta constitutiva por meio de contínuos atos de iden-
tificação. O sujeito encontra a falta ali onde busca a completude e
identidade. Desse modo, uma concepção não reducionista da sub-
jetividade abre caminho para a confluência entre a teoria lacaniana
e a análise do político. A constituição de toda subjetividade ocorre
mediante processos de identificação com construções discursivas
socialmente disponíveis como as ideologias, por exemplo. Isso
porque o social constitui o reservatório dos discursos utilizados
pelos sujeitos, ou seja, é o lugar por meio do qual se originam os
objetos de identificação oferecidos pela cultura. A teoria lacaniana
do sujeito permite a análise do político porque a falta que marca o
sujeito também está presente na ordem simbólica (LACAN, 1998).
Importa destacar, que essa falta é como um gozo mítico perdi-
do para sempre, uma parte de nós mesmos que é castrada quando
entramos na linguagem. Diante da falta constitutiva, o sujeito se em-
penha em uma aventura constante na busca por recobrir essa falta,
servindo-se diversos objetos/ideias substitutos desse gozo mítico.
Porém, essa busca por completude é sempre falida, pois nenhum
objeto pode suturar plenamente essa falta e devolver ao sujeito o
gozo perdido. Desse modo, a repetição do fracasso na busca pela
completude é o que sustenta o desejo como uma promessa para
alcançar o gozo mítico. Essa promessa encontra substrato naquilo
que Lacan (1998) chama de fantasia (STAVRAKAKIS, 2010).
De acordo com Jorge (2012), a fantasia é um elemento que
se instaura para a criança como uma verdadeira contrapartida ao
gozo que ela perdeu, a fantasia se dá, essencialmente, como uma
fantasia de completude. Em virtude da falta constitutiva, da perda
do gozo mítico, sujeito vai buscar tamponar essa falta formando
uma fantasia. Assim, nesse primeiro momento, a fantasia não é mais
do que a representação imaginária do objeto perdido. Esse objeto
que serve de suporte à fantasia é então o objeto que causa e coloca
em movimento o desejo do sujeito. A fantasia é também a matriz

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dos desejos atuais. Por meio da fantasia, toda a realidade do sujei-


to vai ser atravessada pelo desejo, pois ela enquadra, emoldura a
realidade, bem como emoldura a correlação do sujeito com o gozo.
Dito de outro modo, a fantasia tem uma função organizadora da
realidade humana e, enquanto tal, a fantasia não é somente uma
função puramente imaginária, mas também uma função simbólica
(JORGE, 2012).
A relação entre o sujeito falta-a-ser, a fantasia e os objetos com
os quais constrói sua identidade/subjetividade se produz por meio
do discurso. Para compreender o que é o discurso, o referencial te-
órico de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe (1987) traz um caminho
que possibilita conferir o nome de sujeito político ao sujeito falta-
-a-ser da psicanálise lacaniana. Isso porque na perspectiva desses
autores, o político é uma categoria ontológica, sendo que há política
porque há subversão e deslocamento do social, de modo que todo
sujeito, por estar em contínuo processo de constituição e mudança,
tem vocação política.

4. À guisa de conclusão: Da pulsão anarquista


ao amor ideológico - a exclusão do sujeito no
discurso organizacional
Considerando o sujeito nas organizações como um sujeito po-
lítico, falta-a-ser, no sentido lacaniano, que edifica sua existência
no discurso, questionamos como esse sujeito transforma seu modo
de vida e as instituições que o circundam. A perplexidade que se
apresentou para nós, é que no jogo alienação-separação, explorado
na psicanálise entre a mãe e o bebê, que constitui o sujeito, a ca-
pacidade de invenção e mudança se relaciona com a separação e o
afastamento do laço social. Para evidenciar isso, vamos explorar o
conceito de pulsão anarquista e a experiência de situações-limite.
No seu texto sobre a pulsão anarquista, Nathalie Zaltzman
(1993), chama atenção para existência de sujeitos irredutíveis, que
fazem diferença no contexto social. Poetas-aventureiros ou defenso-
res de causas idealistas que os destinam à repressão, esses sujeitos
atravessam a vida em empreitadas arriscadas, exorcizando a sombra
da morte. Nas palavras da autora (ZALTZMAN, 1993, pp. 33-34)

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Estas pessoas não possuem estes antolhos elementares que permitem


aos mortais comuns ignorar que cada dia pode se apostar na cara ou
na coroa, na vida e na morte. Suas vidas são pontuadas por mudan-
ças de identidade, de cultura, variações extremas de status sócio-
econômico, como se eles dispusessem de muitas vidas, marcadas por
rupturas, lances teatrais, encontros fulminantes e determinantes, com
um apetite sempre renovado por situações dramáticas e traumáticas.

O que marca nelas o enfrentamento da morte, de Thanatos, é


uma carga afetiva que “...induz ou acompanha o gosto pela mudan-
ça, pela errância, pela marginalidade; é o valor da luta que estas
mudanças têm contra organizações de vida aprisionantes” (ZALTZ-
MAN, 1993, p. 34). Por outro lado, elas sofrem ao mesmo tempo de
um desencantamento e uma extrema lucidez que não lhes permitem
encontrar abrigo em nenhum laço estabelecido, em suas atividades,
ou nas posses materiais e espirituais das quais muitos procuram se
cercar para se proteger da solidão e da morte.
Nenhuma relação de posse contenta esses sujeitos irredutíveis
e nômades. Além disso, falta neles zelo pelas convenções sociais e
isso se manifesta em uma inquietude e gosto por ideias e causas
que mobilizam formas de censura social, intelectual e mundana.
Eles também conhecem, representam e lembram o lugar ativo da
morte na vida deles e de cada um, fato escandaloso que os rotu-
la como sujeitos que dizem a verdade a quem não quer ouvi-la.
Fundamentalmente “... não se ocupam em proteger as razões que
os prendem; o que os ocupa é verificar se estão livres de qualquer
amarra” (ZALTZMAN, 1993, p. 36).
De acordo com Zaltzman (1993, p. 61-62), nesses sujeitos se
encontra ativa uma outra pulsão de morte, ou destino para essa
pulsão que não se seja mortífero: trata-se de uma pulsão anarquista
que “... tem como objetivo abrir uma saída vital onde uma situação
crítica fecha-se sobre um sujeito e o destina à morte”. Os sujeitos
irredutíveis procuram ativamente esse tipo de situação, mas muitos
vivenciam isso em experiências-limite. Trata-se de uma situação em
que se estabelece uma relação entre o indestrutível e o perecível,
da qual o sujeito não tem meios de se libertar e nem poder para

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modifica-la, mas não quer sucumbir a ela, de modo que essa proxi-
midade com a morte exacerba sua vontade de viver.
Alguns sujeitos resistem a esse tipo de situação enquanto outros
sucumbem e para Zaltzman (1993, p. 64), a fonte de energia no caso
do enfrentamento é a própria pulsão de morte, na sua modalidade
anarquista: “Chamo a esse fluxo de pulsão de morte mais individua-
lista, mais libertário, de pulsão anarquista. A pulsão anarquista guarda
uma condição fundamental da manutenção em vida do ser humano: a
manutenção para ele de possibilidade de uma escolha mesmo quando
a experiência-limite anula ou parece anular toda escolha possível”.
Trata-se de uma escolha pela vida e de um levante libertário indi-
vidual contras as formas sociais repressivas, ímpeto libertário que é
trazido pela energia dissociativa da própria pulsão de morte.
Essa escolha pela vida implica em um rompimento com o
laço social, em um desobrigar-se da ordem e em uma revolta
contra a pressão exercida pela civilização. Zaltzman (1993, p. 66)
reconhece que o ímpeto libertário é uma atividade anti-social,
“... uma última força de resistência contra o domínio unificador,
ilusioriamente idílico, dulcificante e nivelante do amor ideológi-
co”. Em outras palavras, a saída para a dominação ideológica é a
pulsão anarquista, que surge quando toda forma possível de vida
desmorona e se busca na pulsão de morte forças para combater a
própria aniquilação.
Acreditamos, que vale destacar, no entanto, que esse rompi-
mento com o laço social emerge no domínio totalitário que ameaça
a vida, da experiência-limite, ou seja, a partir do estado de barbárie
e não de civilização propriamente dito. Nesse contexto, os sujeitos
irredutíveis são aqueles que diligentemente respondem aos excessos
civilizacionais que ameaçam a pulsão da vida. Em outras palavras,
é o que Meireles (2004, p. 76) alerta citando Merton (1970, p. 201):
“... algumas estruturas sociais exercem uma pressão definida sobre
certas pessoas na sociedade, para que sigam conduta de rebeldia,
ao invés de trilharem o caminho do conformismo”.
Importante frisar também que essa resistência anarquista se sus-
tenta na lucidez e não na ilusão. Trata-se ainda, segundo a autora,
de uma resistência a todo tipo de desumanização e um investimento
no registro da sobrevivência e da necessidade antes do desejo. Co-

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mentando sobre as experiências-limite nos campos de extermínio,


Zaltzman (1993, p. 87) afirma:

Poder resistir à morte é antes de mais nada reconhecer sua presença e


renunciar aos subterfúgios. O espírito humano empresta às pulsões an-
arquistas a força para não se refugiar na recusa, na ilusão, na denega-
ção. Esta forma de lucidez é o traço comum a toda experiência-limite.
A autoconservação depende da rapidez pela qual um ser humano,
submetido ao risco de destruição, é capas de captar que a destruição
obedece a leis próprias, que somente a ela pertencem

De acordo com Palumbo e Cabral (2016, p. 86), o anarquismo é


uma resistência da subjetividade frente às experiências totalitárias,
especialmente verificadas em situações-limites que são responsáveis
por “...instaurar a luta pela sobrevivência quando as garantias míni-
mas se desmancharam por terra, quando os desmandos totalitários
ameaçam tanto as vidas individuais quanto, paradoxalmente, até
mesmo a continuidade da coletividade”.
Assim, de um modo geral, no mencionado jogo de alienação-
-separação que constitui o sujeito, a rebeldia e a transformação se
manifestam no polo da separação, do afastamento do laço social.
Considerando a sociedade e as organizações, a pergunta que emerge
é qual é o fio condutor que reconduz essa rebeldia do sujeito para
o campo coletivo? Como o sujeito constrói um discurso que o traz
de volta à coletividade a partir da experiência de situações-limite?
E como os sujeitos irredutíveis se fazem tornam portadores de um
discurso coletivo?
É nesse ponto que recuperamos o conceito de sujeito político,
falta-a-ser: o impulso libertário é um ato eminentemente subjetivo e
individual, mas a mudança política é um ato consciente e coletivo.
Algo na operação de alienação engloba os sujeitos no amor ideológi-
co, de modo que a falta-a-ser deixa de se colocar, pois esses sujeitos
passam a se sentir plenos e integrados ao grupo: desaparecem para
dar lugar ao social, assumindo a posição de indivíduos. Paradoxal-
mente, ao tentar suprir a falta constitutiva por atos de identificação,
o sujeito se afasta do motor que é justamente essa falta. Movimento
necessário, que, no entanto, ao manter todos mergulhados no corpo

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organizacional, sustenta a posição alienada, sendo que, para ocor-


rer um novo momento de mudança, é preciso reencontrar a falta e
realizar mais um movimento de separação.
Assim, no que se refere à teoria das organizações, os modelos
de homem anteriormente apresentados - Econômico, Social, Admi-
nistrativo, Organizacional, Funcional e Complexo – são fantasias,
reconstituições do gozo mítico, manifestações de como o sujeito é
eclipsado para dar lugar ao indivíduo englobado pelo amor ideo-
lógico nos grupos e organizações. O que causa perplexidade é que
a necessidade de se alienar à organização, constituir o corpo social,
implica para abrir mão de a condição de sujeito e da atuação política,
o que nos possibilita especular que talvez seja esse um dos motivos
da noção de sujeito se manter excluída das teorias administrativas.
Nossa dificuldade em apreender esse fenômeno e responder às ques-
tões que ele suscita evidencia porque ainda não compreendemos o
motivo dos ideais libertários e revolucionários se perderem quando
essa incorporação acontece.

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Recebido em: 18-2-2020


Aprovado em: 10-10-2022
Avaliado pelo sistema double blind review.
Disponível em http://mjs.metodista.br/index.php/roc

26 Organizações em contexto, São Bernardo do Campo, ISSNe 1982-8756 • Vol. 19, n. 38, jul.-dez. 2023
Fordismo, pós-fordismo e ciberfordismo:
os (des)caminhos da Indústria 4.0
Ana Paula Paes de Paula ¹
Ketlle Duarte Paes 2
¹ Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte – MG, Brasil
² Universidade Federal de Rio Grande (FURG), Rio Grande – RS, Brasil

Resumo
O objetivo deste artigo é abordar a Indústria 4.0 como o cerne de um novo paradigma de produção – o ciberfordismo – que emergiu no
bojo do estágio ultraneoliberal do capitalismo. Primeiramente, apresentamos as características da Indústria 4.0 para evidenciar como ela
radicaliza os processos de automação da produção e de inserção da inteligência artificial nos processos decisórios. Em seguida, retomamos
os contornos dos paradigmas fordistas e pós-fordistas de produção, demarcando a continuidade entre estes e o ciberfordismo, bem como
apontando a desconstrução do compromisso fordista e do Estado de bem-estar em sua transição para os modelos de flexibilização pós-fordistas
e neoliberais. Discutimos também as características do paradigma ciberfordista, que maximiza os propósitos do fordismo clássico, uma vez
que tende a tornar prescindíveis a mão de obra qualificada e até mesmo os próprios gerentes. Na conclusão, destacamos as contribuições
do artigo e recomendações para futuras pesquisas.
Palavras-chave: Fordismo. Pós-fordismo. Ciberfordismo. Indústria 4.0.

Fordism, post-fordism, and cyberfordism: the paths and detours of Industry 4.0
Abstract
This article approaches Industry 4.0 as the core of cyberfordism, a new production paradigm that emerged amid the ultra-neoliberal stage
of capitalism. The first part of the study presents the characteristics of Industry 4.0, showing how it radicalizes production automation and
inserts artificial intelligence in decision-making processes. The second part returns to the Fordist and post-Fordist production paradigms,
demarcating the continuity between them and cyberfordism. We point out the deconstruction of the Fordist commitment and the welfare state
during the transition to post-Fordist and neoliberal flexibilization models. In the third part, we discuss the characteristics of the cyberfordist
paradigm, which maximizes the purposes of classic Fordism since it tends to make skilled labor and managers unnecessary. In the conclusion,
we highlight the contributions and recommendations for future research.
Keywords: Fordism. Post-Fordism. Cyberfordism. Industry 4.0.

Fordismo, posfordismo y ciberfordismo: los (des)caminos de la Industria 4.0


Resumen
El propósito de este artículo es abordar la Industria 4.0 como el núcleo de un nuevo paradigma de producción, el ciberfordismo, que surgió en
medio de la etapa ultraneoliberal del capitalismo. En la primera parte, presentamos las características de la Industria 4.0 para mostrar cómo
radicaliza los procesos de automatización de la producción y de inserción de inteligencia artificial en los procesos de toma de decisiones. En
la segunda parte, volvemos a los contornos de los paradigmas de producción fordista y posfordista, delimitando la continuidad entre estos y
el ciberfordismo, y señalando la deconstrucción del compromiso fordista y el estado de bienestar en su transición a modelos de flexibilización
posfordistas y neoliberales. En la tercera parte, discutimos las características del paradigma ciberfordista, que maximiza los propósitos del
fordismo clásico, ya que tiende a hacer innecesaria la mano de obra calificada e incluso los propios gerentes. En las conclusiones destacamos
los aportes del artículo y las recomendaciones para futuras investigaciones.
Palabras clave: Fordismo. Posfordismo. Ciberfordismo. Industria 4.0.

7401

Artigo submetido em 28 de janeiro de 2021 e aceito para publicação em 12 de julho de 2021.


DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1679-395120210011

Cad. EBAPE.BR, v. 19, nº 4, Rio de Janeiro, Out./Dez. 2021. ISSN 1679-3951 1047-1058
Fordismo, pós-fordismo e ciberfordismo: os (des)caminhos da Indústria 4.0 Ana Paula Paes de Paula
Ketlle Duarte Paes

INTRODUÇÃO

Nos últimos anos, a indústria 4.0 emergiu como uma espécie de panaceia no mundo industrial e corporativo, dando
origem a expectativas de uma revolução no campo produtivo e também a derivados como a Gestão 4.0, a Produção 4.0, a
Qualidade 4.0, a Economia 4.0, entre outros. Em linhas gerais, a Indústria 4.0 (Oesterreich & Teuteberg, 2016; Zawadzki &
Żywicki, 2016) busca transformar a comunicação entre homens e máquinas e entre as próprias máquinas, utilizando informações
para otimizar os processos produtivos, a fim de alcançar um maior grau de uso das tecnologias digitais e da automação,
recorrendo à inteligência artificial, big data e machine learning, de modo a tornar a produção mais ágil, econômica e autônoma.
O fenômeno pode ser considerado como mais uma representação do processo da Revolução Industrial, iniciado no final do
século XVIII, que marcou a transição dos métodos de produção artesanais para processos de produção mecanizados. Essas
mudanças progressivas revolucionaram não só a vida cotidiana das pessoas, mas a economia, com o aumento da produtividade.
Desde então, as sociedades modernas têm passado por diversos ciclos de transformação, tanto em sistemas econômicos,
quanto de produção e de gestão. Segundo Hermann, Pentek e Otto (2016), passamos por quatro revoluções industriais; a
última é marcada pela Indústria 4.0.
Constatamos, tanto em nossa pesquisa, como nas escassas investigações encontradas, que na literatura ainda são raras as
análises sobre o fenômeno da Indústria 4.0 no campo da Teoria da Administração e das organizações, pois suas atividades e
características são estudadas principalmente nas áreas de Engenharia, Administração da Produção e Ciência da Computação.
A ascensão do tema, no entanto, vem gerando muitos questionamentos por parte de discentes em sala de aula, na graduação
e pós-graduação, sobre como a Indústria 4.0 enquadra-se nos modelos de organização e produção, de modo que a ausência
de uma abordagem e literatura específicas vem criando dificuldades didáticas e pedagógicas para os docentes da área.
Neste artigo, nosso objetivo é tentar suprir essa lacuna, abordando a Indústria 4.0 como manifestação de um novo paradigma
de produção, que emergiu no bojo do estágio ultraliberal do capitalismo e que denominaremos ciberfordismo. Dessa forma,
mais que um potencial novo “modismo gerencial”, a Indústria 4.0 representa uma nova forma de organizar e otimizar o
trabalho, fruto de uma visão de mundo econômica, social e política específica, inserida em um novo ciclo de “revolução
industrial e tecnológica”.
Tendo em vista o propósito de teorização do ciberfordismo, este artigo foi estruturado da seguinte maneira: na segunda
seção, tomamos como ponto de partida um levantamento bibliográfico, para, então, discutir as características da Indústria
4.0, com o intuito de evidenciar como ela radicaliza os processos de automação da produção e de inserção da inteligência
artificial nos processos decisórios. Na terceira, retomamos na literatura os contornos dos paradigmas fordistas e pós-fordistas
de produção para demarcar a continuidade entre estes e o ciberfordismo e apontar a desconstrução do compromisso fordista
e do Estado de bem-estar em sua transição para os modelos de flexibilização pós-fordistas e neoliberais, que afetam tanto
processos produtivos como as feições da condução econômica, social e política das sociedades. Na quarta seção, discutimos as
características do que estamos denominando paradigma ciberfordista, o qual se manifesta no contexto do ultraneoliberalismo,
maximizando os propósitos do fordismo clássico, uma vez que tende a tornar prescindíveis a mão de obra qualificada e
até mesmo os próprios gerentes. Além disso, elaboramos um quadro comparativo dos paradigmas fordista, pós-fordista
e ciberfordista, de modo a evidenciar as diferenças e continuidades entre eles. Finalizando, trazemos as conclusões do artigo,
destacando suas contribuições e recomendações para futuras pesquisas.

SOBRE A INDÚSTRIA 4.0

O levantamento bibliográfico realizado na internet e nos bancos de periódicos (Portal Capes, Google Acadêmico, Ebsco,
Scopus-Elsevier) com a palavra-chave ‘Indústria 4.0’ teve como propósito localizar os principais artigos e pesquisas sobre
o tema e, com isso, estabelecer um ponto de partida para a discussão pretendida. Importante destacar que não tivemos
como propósito realizar estatísticas, revisões sistemáticas, ou bibliometrias, mas enfatizar os trabalhos mais relevantes e
referenciados pelos próprios pesquisadores. Essa delimitação bibliográfica tem um caráter didático, considerando as lacunas
existentes na literatura para a discussão do tema em sala de aula, em um sentido pedagógico, pois busca responder também
as indagações básicas dos discentes sobre o conceito e escopo da Indústria 4.0 no contexto de disciplinas como teoria da
administração e das organizações.

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Fordismo, pós-fordismo e ciberfordismo: os (des)caminhos da Indústria 4.0 Ana Paula Paes de Paula
Ketlle Duarte Paes

Efetuando essas buscas, encontramos artigos-chave utilizados pela maioria dos pesquisadores – principalmente em domínios em
que a presença da Indústria 4.0 se faz sentir, como na engenharia e administração da produção e na ciência da computação –,
bem como alguns artigos que trazem sistematizações da literatura sobre o tema. São, portanto, raras as referências ao campo da
Teoria da Administração e Organizações. Assim, apesar de haver um grande número de publicações sobre o tema Indústria 4.0,
mesmo internacionalmente elas estão dispersas em revistas de diferentes qualificações e níveis de impacto e em várias áreas.
A pesquisa feita por Piccarozzi, Aquilani e Gatti (2018), que realizaram uma revisão sistemática da literatura sobre a Indústria
4.0 na área da Administração, por meio de um levantamento em três bases de dados científicas (Scopus-Elsevier, Web of Science
e JStor) e uma ferramenta de busca (Google Scholar) com a palavra-chave ‘industry 4.0’ confirmam nossas constatações. Em
apenas 68 artigos encontrados, nenhum se dedica aos aspectos gerenciais e organizacionais da Indústria 4.0, predominam
aspectos técnicos e do campo da Engenharia, o que reafirma que se trata de um tema emergente e pouco explorado na área
de Administração. Sigahi e Andrade (2017), por exemplo, ratificam tal constatação, pois ao realizarem uma bibliometria para
verificar artigos publicados entre 2011 (ano de surgimento da expressão “indústria 4.0” na Alemanha) e 2016 no ENEGEP
(Encontro Nacional de Engenharia da Produção) e no SIMPEP (Simpósio de Engenharia da Produção), constataram que 72%
dos artigos concentravam-se nas áreas de Gestão da Produção, Gestão do Conhecimento Organizacional, Gestão do Produto
e Pesquisa Operacional, e que 70% dos artigos abordavam principalmente temas afeitos à ciência da computação, como
inteligência artificial, computação em nuvem e internet das coisas.
Já o levantamento realizado por Assad, Pereira, Drozda e Santos (2018), que realizaram uma revisão integrativa do tema
Indústria 4.0 na base Scopus-Elsevier, mostra uma liderança da Alemanha na produção acadêmica – o que condiz com o fato
de o fenômeno ter surgido neste país –, seguida no ranking pelos Estados Unidos e pela China. Além disso, os pesquisadores
concluíram que há ainda uma imprecisão na definição científica de Indústria 4.0, que ainda não constituiu uma identidade
mais sólida, o que dificulta também a delimitação de um “estado da arte” sobre o tema. Tessarini e Saltorato (2018), por
sua vez, procederam a uma revisão sistemática da literatura sobre o impacto da Indústria 4.0 na organização do trabalho,
concluindo que, de um modo geral, as pesquisas enfatizam muito mais suas inovações tecnológicas do que suas implicações
nas relações de trabalho. Dessa forma, o que a literatura consultada evidencia é que os estudos encontram-se em um estado
inicial: trata-se de um campo em construção, que ainda busca descrição e definição do fenômeno. Em seguida, com intuito
de cumprir o aspecto didático deste texto, bem como situar os conceitos fundamentais do tema tratado, apresentamos, de
forma sintética, as principais características da Indústria 4.0 e algumas de suas repercussões no setor industrial, tendo como
base os artigos-chave examinados.
Segundo Anderl (2014) e Silva e Santos e Miyagi (2015), a Indústria 4.0 busca a integração de humanos e máquinas, afetando
toda a cadeia organizacional, uma vez que atinge a manufatura, o projeto, os produtos e as operações por meio de sistemas
que acessam dados em tempo real para realizar ações autônomas. Objeto de estudos recentes (Gentner, 2016; Qin, Liu &
Grosvenor, 2016; Roblek, Mesko & Krapez, 2016), constitui um campo de conhecimento que abrange Administração, Engenharia
e Ciência da Computação, entre outros, representando, de acordo com Bitkom, Vdma e Zvei (2016), Drath e Horch (2014),
Hermann, Pentek e Otto (2015), Kubinger e Sommer (2016) e Schwab (2016), uma Quarta Revolução Industrial, que emergiu
na Alemanha apoiada pelo governo federal.
Schwab (2016) caracteriza a Quarta Revolução Industrial como uma nova era tecnológica que implicará a robotização da
humanidade, transformando fontes tradicionais de significado como trabalho, família, comunidade e identidade. Para o
autor, os efeitos distributivos disso podem favorecer o capital, mas ele questiona se realmente interessará à humanidade um
mundo do “precariado”, que resultaria em uma grande fonte de agitação social e política. Antunes (2019) é menos otimista,
afirma que, no bojo dessa Quarta Revolução Industrial, emergiu a Indústria 4.0, que tende a realizar uma imbricação entre a
financeirização da economia e um neoliberalismo exacerbado, intensificando as tecnologias digitais no mundo da produção
nessa nova fase do capitalismo, na qual as formas de controle social serão reacomodadas.
Apresentando um ponto de vista técnico, Santos, Alberto, Lima e Charrua-Santos afirmam que (2018, p. 115) “[...] a Indústria 4.0
representa uma evolução natural dos sistemas industriais anteriores, de desde a mecanização do trabalho ocorrida no século
XVIII até a automação da produção nos dias atuais.” Com a evolução da automação e dos sistemas de informação por meio
do ERP (Enterprise Resource Planning) e do MES (Manufacturing Execution System), a produtividade nas fábricas melhorou
significativamente, mas ainda há uma lacuna na comunicação entre o nível ERP e o chão de fábrica, cuja solução pode estar
no aprimoramento da tomada de decisão em tempo real proporcionada pela Indústria 4.0, que promete (Kargermann, 2014;

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Ketlle Duarte Paes

Kargermann, Wahstler & Helbig, 2013) maior eficácia operacional e ganhos de produtividade, crescimento e competividade,
além do desenvolvimento de novos modelos de negócios, serviços e produtos.
De acordo com Hermann, Penteck e Otto (2016), a Indústria 4.0 é composta por:
• Sistemas Ciberfísicos (Cyber-Physical Systems [CPS]): integram os objetos físicos e seus modelos, representados em
redes, bem como serviços baseados nos dados disponíveis;
• Internet das Coisas (Internet of Things [IOT]): constrói uma rede de comunicação entre pessoas e dispositivos,
utilizando objetos de nosso cotidiano a fim de tornar a internet ubíqua;
• Internet de Serviços (Internet of Services [IOS]): utiliza a estrutura da internet para possibilitar a oferta e a demanda
de serviços;
• Fábricas Inteligentes: baseiam-se na conectividade da IOT e na disponibilização da IOS, gerenciando sistemas
complexos que integram máquinas e humanos em uma rede, cujas plantas têm suas demandas realizadas pelos
CPSs e se comunicam pela IOT.

Dessa forma, a Indústria 4.0 mobiliza conceitos como auto-organização, novos sistemas de distribuição e aquisição, novos
sistemas de desenvolvimento de produtos e serviços, adaptação das necessidades humanas e da responsabilidade social da
corporação (Lasi, Fettke, Kemper, Feld & Hoffmann, 2014). A Indústria 4.0 exigirá transformações na organização do trabalho
no que tange à flexibilização da produção para customização e redução de custos, bem como nas habilidades dos trabalhadores
diante das novas interfaces homem-máquina, que exigem reconhecimento de voz e gestos (Khan & Turowski, 2016).
Além disso, a Indústria 4.0 sustenta-se por nove pilares tecnológicos (Rübmann et al., 2015):
• Big data e análise de dados (obtidos, em massa, de diversas fontes e utilizados para decisões em tempo real);
• Robôs autônomos trabalhando ao lado de humanos;
• Simulação para tomada de decisão;
• Integração horizontal e vertical de sistemas que facilitam redes intercompanhias e automação;
• IOT mobilizada para obtenção de respostas em tempo real;
• Segurança cibernética;
• Nuvem;
• Fabricação de aditivos (produtos customizados e utilização de impressoras 3D); e
• Realidade aumentada, na qual a tomada de decisão e os procedimentos são auxiliados por uma grande variedade
de sistemas atuando conjuntamente.
Segundo Pereira e Simonetto (2018), uma publicação da Firjan (Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro
[Firjan], 2016) evidenciou que o Brasil ainda se encontra entre a Segunda e Terceira Revolução Industrial – o setor automotivo
é o mais adiantado em relação à Indústria 4.0. Os desafios para a sua implantação no Brasil envolvem políticas e incentivos
governamentais estratégicos, postura proativa de empresários e gestores, além do desenvolvimento de tecnologias e
capacitação de profissionais alinhados com essa visão de indústria (Vermulm, 2018). Para Kupfer (2016), embora no Brasil o
debate ainda seja tímido e haja poucas iniciativas, além de a indústria nacional ainda se encontrar principalmente no estágio
2.0, a Indústria 4.0 é mais simples de ser implementada do que parece, porque se trata mais de escalagem e massificação do
uso de integração de tecnologias já disponíveis, e menos de desenvolvimento inovativo propriamente dito.
Do ponto de vista do desempenho operacional da Indústria 4.0, Tortorella, Fetterman, Giglio e Borges (2018) evidenciam
que, para pesquisadores como Marodin e Saurin (2013), Shah e Ward (2003), Jasti e Kodali (2016), as práticas enxutas e
sobrepostas aplicadas na organização e em sua cadeia de suprimentos trariam melhorias. No entanto, Tortorella et al. (2018)
examinam em sua pesquisa a relação entre a implementação de práticas de produção enxuta e da Indústria 4.0 para verificar
sua influência no desempenho operacional organizacional. Os autores concluem que ainda não é possível constatar uma
melhoria relevante, talvez devido a falhas de implementação e variáveis contextuais negativas. Assim, essa integração entre

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as práticas de produção enxuta e as tecnologias da Indústria 4.0, que teoricamente possibilita maior flexibilidade e fluxo
de informações e vem sendo denominada “automação enxuta”, ainda precisa ser mais explorada, conforme afirmam Erol,
Schumacher e Sihn (2016) e Sanders, Elangeswaran e Wulfsberg (2016).
Por outro lado, Saltiél & Nunes (2017) evidenciam que a automação é uma forma de minimizar a dependência em relação aos
trabalhadores em um contexto no qual as relações capital e trabalho mostram-se cada vez mais instáveis, além de dispensar
suas habilidades. A Indústria 4.0 firma-se, dessa forma, como uma nova revolução industrial, uma vez que mobiliza três
elementos principais – rede de produção e de produto, ciclo de vida do produto e sistemas ciberfísicos –, resultando em ciclos
cada vez menores, que podem ser gerenciados técnica e economicamente.
Tessarini e Salltorato (2018) estudam a discussão na literatura dos impactos da Indústria 4.0 na organização do trabalho e
constatam o aumento do desemprego tecnológico, apontando a necessidade de novas competências para que sejam mantidas
as condições de empregabilidade. Além disso, verificam um aumento na interação homem e máquina, bem como transformações
nas relações socioprofissionais. Os pesquisadores apontam, ainda, baseados em Caruso (2018), que a tendência é de que o
poder de decisão e a autonomia dos trabalhadores diminuam, intensificando-se a redução da força de trabalho, a redução
dos direitos e garantias dos trabalhadores, bem como a concentração do capital e o monopólio das forças de produção, com
a crescente precarização das relações de trabalho e o aumento da hegemonia das máquinas.
Em síntese, podemos afirmar que a Indústria 4.0 representa:
• Uma manifestação da Quarta Revolução Industrial, que estabelece mudanças tecnológicas mediadas pela robotização
e inteligência artificial, implicando grandes transformações no campo produtivo e do trabalho, desdobrando-se, ainda,
em reelaboração dos efeitos distributivos nas sociedades, que reforçam um novo ciclo do capitalismo;
• Uma integração entre os sistemas ciberfísicos e a internet das coisas e de serviços, que promove um salto tecnológico
para habilitar a rede de operação de fábricas inteligentes, utilizando robôs autônomos e simuladores de decisão,
prescindindo cada vez mais da mão de obra humana;
• Um desafio em promover nos vários países, incluindo o Brasil, uma conexão entre os sistemas automatizados e
digitais da Indústria 3.0, que engendram a “automação enxuta” e as mediações da internet trazidas pela Indústria
4.0, promotoras de novas formas de produção e distribuição de produtos e serviços, bem como novos modelos de
negócios.

FORDISMO E PÓSFORDISMO

Ainda que o tema não tenha sido suficientemente explorado no campo da Teoria da Administração e Organizações, uma
vez que, como anteriormente mencionado, os estudos encontrados são predominantemente da área de Engenharia e
Administração da Produção e Ciência da Computação, alguns pesquisadores já começam a designar a Indústria 4.0 como um
“novo paradigma de produção” (Lima & Pinto, 2019; Silva et al., 2015), ou seja, uma nova lógica de produção, que recorre a
novas tecnologias e formas de organização.
No levantamento bibliográfico, destaca-se um artigo emblemático para a área de organizações, de Wood (1992), que comparou
os paradigmas clássicos de produção baseando-se na indústria automobilística: o fordismo, o toyotismo e o volvismo. Em geral,
o toyotismo, alicerçado no modelo japonês de administração, é considerado na literatura um modelo pós-fordista ou neofordista
de produção. Alves, Marx e Zilbovicius (1992), por exemplo, questionavam em sua época se as transformações introduzidas
nas linhas de produção industrial seriam de fato uma transformação radical do paradigma fordista ou se representariam
uma evolução gradual do mesmo paradigma. De acordo com Kupfer (2016), é possível fazer uma analogia entre a Indústria
4.0 com o que nos anos 1980 denominamos pós-fordismo, toyotismo, produção enxuta ou qualidade total – tecnologias
organizacionais que dizem respeito à forma como se produz. Para Tenório e Valle (2012), há um continuum entre fordismo e
pós-fordismo que abriga várias possibilidades e combinações tecnológicas, alternando rigidez e flexibilidade, de modo que
mais do que antítese, temos entre eles uma síntese, como evidenciam os autores utilizando como exemplo a “fábrica de
software”. Dessa forma, com base na literatura, podemos afirmar que, para além da ideia de inovação e transformação
de paradigmas, há uma espécie de continuum entre o fordismo, o pós-fordismo e a Indústria 4.0.

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Fordismo, pós-fordismo e ciberfordismo: os (des)caminhos da Indústria 4.0 Ana Paula Paes de Paula
Ketlle Duarte Paes

A emergência do fordismo tem estreitos laços com os princípios do taylorismo, que estabeleceu a clássica separação entre
planejamento e execução, bem como uma detalhada divisão do trabalho, para que houvesse ganhos de eficiência e produtividade
nas fábricas. Esses princípios obedecem a uma forte padronização de tempos e movimentos, a uma rigorosa separação entre
o trabalho manual e intelectual e ao controle de tempo de cada operação, dentre outras técnicas e processos de trabalho.
Esse modelo de produção estabeleceu-se como hegemônico até os anos 1970, tendo como ambiente para o seu desenvolvimento
o suporte das políticas macroeconômicas do keynesianismo. O fordismo, sobretudo, após a Segunda Guerra Mundial, garantiu
um dos mais longos períodos de crescimento estável do sistema capitalista, cuja duração foi de aproximadamente 30 anos,
quando, então, o modelo começou a dar sinais de esgotamento. Cabe observar ainda que, durante o período de expansão
do fordismo, os ganhos de produtividade do modelo foram, em boa parte, repassados para os assalariados, tanto de forma
direta, como aumento dos salários, quanto indireta, por meio do Estado do bem-estar social keynesiano (Lipietz, 1991).
Como já mencionamos, o modelo de gestão do fordismo também foi alvo de estudos no campo da Administração por trazer
inovações importantes para os ganhos de produtividade (Wood, 1992). Essas inovações permitiram reduzir o esforço humano
na montagem, aumentar a produtividade e diminuir os custos. Além disso, o modelo conseguiu reduzir drasticamente o tempo
de preparação das máquinas, possibilitando que elas executassem apenas uma tarefa por vez, pois eram colocadas em uma
sequência lógica; seu principal problema era a falta de flexibilidade. O fordismo, na visão de Harvey (1993), obteve êxito por
reconhecer que a produção de massa significava consumo de massa e gerou um novo tipo de organização do trabalho e da
sociedade.
Conforme apontamos, o sistema produtivo fordista começa a apresentar sinais de esgotamento a partir dos anos 1970. Na
visão de Antunes (1995), tratou-se de uma crise estrutural que se caracterizou pela queda na taxa de lucros, pelo desemprego
estrutural causado por uma retração do consumo e pela crise do Estado do bem-estar social. Tal crise ocorreu como
desdobramento da crise fiscal do Estado capitalista, que engendra o ideário de Estado mínimo neoliberal. Assim, a década de
1980 presenciou profundas transformações na estrutura produtiva com a inserção de novas tecnologias, como a automação,
a robótica e a microeletrônica. Trata-se de uma época de grande experimentação no mundo do trabalho, no qual o fordismo
e o taylorismo já não são únicos e misturam-se com outros processos produtivos chamados pós-fordistas.
Segundo Lipietz (1991), o modelo de produção pós-fordista, mais especificamente, o toyotismo, surgiu ao final da década de
1970, com a eclosão da chamada Terceira Revolução Industrial, implementada com a chegada ao poder de Margareth Thatcher,
na Inglaterra, e Ronald Reagan, nos Estados Unidos. Ambos preparam o terreno para o estabelecimento do Estado mínimo,
circundado por processos de privatização, terceirizações e ajustes fiscais. Este novo paradigma de produção apoiou-se sobre
os ombros do fordismo em crise, para dar vazão a uma revolução tecnológica no âmbito dos processos produtivos.
De um modo geral, Antunes (1995) relata que o toyotismo é um modelo de organização do trabalho que nasce na fábrica Toyota,
no Japão, e que se expandiu pelo Ocidente capitalista, tanto nos países avançados, quanto naqueles em desenvolvimento.
Seguindo essa lógica de argumentação, o modelo toyotista representou uma oposição à rigidez do modelo fordista, adotando
a especialização flexível na busca por novos padrões de produtividade, por novas formas de adequação da produção à lógica
do mercado. Como consequência, tem-se também a emergência de novas formas de gestão da força de trabalho, dentre
as quais os Círculos de Controle de Qualidade e a dita gestão participativa são expressões visíveis não só no Japão, mas em
vários países do mundo ocidental.
A expansão do pós-fordismo é acompanhada não somente da chamada especialização flexível na esfera da produção, mas
também do fim do Estado de bem-estar social e da busca frenética por flexibilização das relações de trabalho mediante práticas
de austeridade econômica neoliberais. Assim, no que diz respeito aos direitos trabalhistas, ocorre uma desregulamentação
objetivando uma adequação aos novos modos de organização do trabalho. Direitos e conquistas históricas dos trabalhadores
são substituídos e eliminados do mundo da produção.
Importa observar, aqui, que os modelos produtivos fordistas e pós-fordistas possuem íntima conexão com os avanços tecnológicos
ligados às chamadas Segunda e Terceira Revoluções Industriais (Lipietz, 1991), nos quais o uso dos recursos tecnológicos em
escala geométrica tem se transformado na própria força produtiva, em um patamar que busca cada vez mais a dispensa da
atividade humana. Como consequência, observa-se o aparecimento do desemprego estrutural, que extirpa postos de trabalho
e funções em favor da automação nos processos de trabalho.

Cad. EBAPE.BR, v. 19, nº 4, Rio de Janeiro, Out./Dez. 2021. 1052-1058


Fordismo, pós-fordismo e ciberfordismo: os (des)caminhos da Indústria 4.0 Ana Paula Paes de Paula
Ketlle Duarte Paes

Desse modo, conforme observa Antunes (1995, p. 26), para suprir as demandas mais individualizadas de mercado foi preciso
que a produção se sustentasse num processo produtivo flexível, que permitisse “[...] a um operário operar com várias
máquinas (em média cinco máquinas, na Toyota), rompendo-se com a relação de um homem/uma máquina que fundamenta
o fordismo”. Essa relação homem-máquina e o amplo uso da tecnologia, típica do fordismo e do pós-fordismo, encontra seu
ápice no que vem sendo estudado como Quarta Revolução Industrial, que faz emergir a Indústria 4.0, na qual a interação que
importa, em grande medida, é a “máquina-máquina” (M2M). Essa dinâmica M2M segue na direção do que chamaremos,
neste artigo, de ciberfordismo.

EMERGE UM NOVO PARADIGMA DE PRODUÇÃO: O CIBERFORDISMO

Considerando que há um continuum entre o fordismo, o pós-fordismo e a Indústria 4.0, procuramos caracterizar esta última
como manifestação de um novo paradigma de produção, que também emerge na indústria automobilística e denominaremos
ciberfordismo. Nosso intuito é discutir o ciberfordismo como um modelo “ultrafordista” de produção, no qual os preceitos
do fordismo são maximizados com o auxílio da automação, da cibernética e de outras características próprias da emergente
Indústria 4.0. Do ponto de vista econômico e social, conforme destaca Antunes (2020a), emerge uma nova morfologia do
trabalho, caracterizada por sua “invisibilidade”, implicando precarização dos vínculos e de novas formas de exploração
potencializadas pelo estágio ultraneoliberal do capitalismo.
Denominamos esse como o estágio ultraneoliberal do capitalismo, pois, de acordo com Dardot e Laval (2016), entre a década de
1980 e o momento atual, o neoliberalismo adquiriu novas facetas, extrapolando a política e a economia neoliberal para fundar
uma “sociedade neoliberal” que afeta radicalmente os sistemas de produção. O neoliberalismo, uma decantação do “novo
liberalismo” surgido na década de 1930, em sua fase “ultra” é fruto da consolidação de uma racionalidade que se desenvolveu
entre as décadas de 1980 e 1990 e fez emergir uma nova racionalidade governamental e empresarial, fundada nos seguintes
princípios para o Estado, que se torna um guardião do mercado: estabilidade da política econômica, estabilidade monetária,
mercados abertos e concorrência, propriedade privada, liberdade de contratos e responsabilidade dos agentes econômicos.
Surge assim o que Dardot e Laval (2016, p. 140) denominam “economia social de mercado”, oposta ao Estado de bem-estar,
na medida que responsabiliza individualmente os cidadãos por seu status social e incentiva o empreendedorismo. Assim, o
“[...] mercado é concebido [...] como um processo de autoformação do sujeito econômico, um processo subjetivo autoeducador
e autodisciplinador, pelo qual o indivíduo aprende a se conduzir”. Faz-se também uma passagem do capitalismo neoliberal
para o capitalismo financeiro, abrindo espaço para um “capitalismo improdutivo”, como assinala Dowbor (2017), cuja base
está na “financeirização da economia”, ou seja, em um capital “parado”, que, apesar de não ser utilizado nas redes produtivas,
acumula rendimentos por aplicações especulativas nos mercados de ações.
Recapitulando, de acordo com Wood (1992), o modelo fordista de produção, ao introduzir a linha de montagem, reduziu
o esforço humano empregado, aumentou a produtividade e diminuiu os custos, mas resultou na superespecialização do
trabalhador. Era um modelo de produção baseado nos princípios tayloristas e na ideia de mecanização, com uma interação
precisa entre homem e máquina, verticalização da produção e sistema de controle burocratizado.
Já o pós-fordismo envolve uma série de inovações técnicas que resultavam em uma dramática redução no tempo demandado
para alteração dos equipamentos de moldagem, possibilitando a relação entre “homem” e “várias máquinas”, bem como a
“flexibilização” da produção e o atendimento de um mercado consumidor que buscava diferenciação de produtos – por exemplo:
tornou mais barato produzir pequenos lotes de peças estampadas, diferentes entre si, do que grandes lotes homogêneos.
Além disso, reduziu custos de inventários (sistema just-in-time), possibilitou melhorias contínuas na produção e eliminou
problemas de qualidade, exigindo, no entanto, operários bem treinados e motivados. Na rede de suprimentos, ocorreu uma
horizontalização e descentralização, na medida em que eram utilizados muitos fornecedores em uma relação de parceria.
O que estamos denominando ciberfordismo, que parte da Indústria 4.0, é um modelo de produção que preserva as características
de flexibilização e busca de qualidade, bem como redução de custos, que exige, no entanto, novas interfaces entre homem-
máquina e máquina-máquina, retomando um padrão clássico fordista, uma vez que reduzem a necessidade do trabalho
qualificado e mesmo do próprio trabalho humano. Conforme aponta Toni (2019), no contexto da Indústria 4.0, com o uso de
processos altamente informatizados e robóticos e de sistemas de controle que centralizam os processos de gerenciamento,

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Fordismo, pós-fordismo e ciberfordismo: os (des)caminhos da Indústria 4.0 Ana Paula Paes de Paula
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as organizações podem passar a prescindir não só daqueles que realizam tarefas desqualificadas, mas mesmo daqueles que
têm um papel mais especializado. É como se o ideal mecanicista fordista pudesse, enfim, ser plenamente realizado com o
uso de robôs autônomos e simuladores de decisões.
Na visão de Kupfer (2016), esse ideal não está tão distante das organizações, já que não se trata de um desenvolvimento
inovativo, mas de escalagem da massificação da integração de tecnologias já disponíveis oriundas dos modelos pós-fordistas
de produção, que culminaram na Indústria 4.0. Saltiél e Nunes, por sua vez, também admitem que os sistemas ciberfísicos
minimizam a participação do trabalhador, que passa a realizar funções mais simples, o que é uma vantagem, uma vez que
não está sendo possível extrair voluntariamente o rendimento máximo da força de trabalho. O filme “Indústria Americana”,
documentário ganhador do Oscar 2020, produzido por Jeff Reichert e Julie Parker Benello e dirigido por Steven Bognar e Julia
Reichert (2019), evidencia isso com clareza ao mostrar que, na impossibilidade de obter dos trabalhadores estadunidenses o
mesmo rendimento que conseguiam com os chineses, os executivos da Fuyao passam a substituí-los por robôs autônomos.
De acordo com o que sugerem Hermann, Penteck e Otto (2016), as “fábricas inteligentes” recorrem à conectividade da IOT
e à disponibilidade da IOS para gerenciar sistemas complexos, que integram em rede máquinas e humanos por meio dos
CPSs. A palavra cyber, originária do termo cybernetics, significa uma “grande concentração de tecnologia avançada”, que
sintetiza o mote em torno desse novo paradigma de produção, denominado por nós como ciberfordismo, que simboliza
uma efetivação do intento último de mecanicismo fordista e representa um novo estágio do continuum dos paradigmas de
produção: o ultrafordismo.
São ainda praticamente inexistentes as referências ao ciberfordismo na literatura acadêmica, de modo que estamos nos
arriscando a inseri-lo no debate e caracterizá-lo. Nossa pesquisa na internet e nos bancos bibliográficos com a palavra-chave
“ciberfordismo” (Portal Capes, Google Acadêmico, Ebsco, Scopus Elsevier) resultou em um único trabalho que usa esse
termo: a resenha de Toni (2019) – uma análise do livro de Astrologo, Suborne e Terna (2019) – utiliza o termo em um sentido
similar ao que estamos apresentando. Seu argumento é de que, por um lado, a Indústria 4.0 abandona o clássico modelo
taylorista-fordista com base na hierarquia e na superespecialização de tarefas; mas, por outro, maximiza a memória de Taylor
com um modelo ciberfordista que implica o uso da inteligência artificial para realizar esse controle hierárquico e da cadeia
de decisão com grande eficiência e drástica redução dos custos de mão de obra.
O diferencial dos sistemas de inteligência artificial, próprios da Indústria 4.0, está no uso de máquinas inteligentes que podem
reorganizar a força de trabalho material e intelectual até mesmo substituindo os seres humanos em tarefas mais complexas. Nesse
contexto, Astrologo, Suborne e Terna (2019) preveem a emergência de um subproletariado destinado a trabalhos ocasionais e
desqualificados, que não podem ser realizados por máquinas, e a substituição de técnicos e trabalhadores que desempenhavam
funções de gerenciamento e tarefas especializadas por máquinas inteligentes e sistemas de controle generalizados.
Assim, do compromisso fordista com viés keynesiano conectando a produção e o consumo em massa com apoio do Estado de
bem-estar social, cujo auge ocorreu na década de 1960, passamos pelo pós-fordismo de inspiração neoliberal, envolvendo a
flexibilização da produção e intensa terceirização dos processos de trabalho, com desmonte do aparato estatal previdenciário
nos países ocidentais para alcançar o estágio ultraneoliberal ciberfordista, delimitado pela Indústria 4.0. Este estágio mobiliza,
como apontou Antunes (2020a), um proletariado fabril e de serviços precarizados, de período parcial e vínculo temporário,
bem como um proletariado informal – um segmento de trabalhadores conhecidos hoje como “uberizados” (por exemplo,
entregadores de produtos, motoristas de aplicativos). Ambos são afetados pelos seguintes elementos formativos: a ideologia
neoliberal, que destrói a legislação protetora trabalhista, privilegiando o mercado, e uma revolução tecnológica voltada para
o capital e não para a humanidade.
Dessa forma, o ideário da Indústria 4.0 atinge tanto o setor industrial quanto o de serviços, alcançando os trabalhadores no
home office e também os prestadores de serviços precarizados gerenciados pelas “plataformas digitais”. No caso brasileiro,
a despeito dos avanços no setor industrial, as pesquisas demonstram que permanecem ainda os paradigmas 2.0 e 3.0. No
entanto, tal ideário vem se enraizando de forma acelerada no setor de serviços com as novas tecnologias de informação e
comunicação. Antunes (2020b) denomina essa fase como de hegemonia informacional-digital e ciberindustrial, permeada
por um discurso de “empreendedorismo” que está edificando uma nova engenharia social para reduzir ao máximo o trabalho
humano necessário à produção e substituí-lo por novas tecnologias digitais que engendram a “internet das coisas”, o big data
e a inteligência artificial, promovendo uma “desantropormofização do trabalho”, na medida em que subordina o trabalho
real à “máquina-ferramenta-informacional”.

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Em síntese, é possível apresentar o seguinte comparativo dos paradigmas de produção (Quadro 1) – fordismo, pós-fordismo
e ciberfordismo –, para auxiliar na visualização das diferenças e continuidades entre eles.

Quadro 1
Comparativo: fordismo, pós-fordismo e ciberfordismo
Fordismo Pós-Fordismo Ciberfordismo
Homem-Máquina Homem-Máquinas Máquina-Máquina
Nível de mecanicismo
Rigidez Flexibilidade Integração Sistêmica
Superespecialização da
Nível da mão de obra Especialização da mão de obra Automação da mão de obra
mão-de-obra
Relação entre operários Separação entre trabalho Conexão entre trabalho manual/ Conexão entre trabalho
e gerentes manual e trabalho intelectual automatizado e trabalho intelectual automatizado e inteligência artificial
Relação capital-trabalho Regulamentação do trabalho Desregulamentação do trabalho Pós-trabalho
Paradigma industrial Indústria 1.0 e 2.0 Indústria 3.0 Indústria 4.0
Keynesianismo Neoliberalismo Ultraneoliberalismo
Paradigma econômico
Estado do bem-estar social Estado mínimo Estado guardião do mercado
Fonte: Elaborado pelos autores.

Ao apontar uma transição da “desregulamentação do trabalho” para o “pós-trabalho”, estamos demarcando um momento
em que a terceirização, a informalidade, a flexibilidade, a intermitência e a precarização atingem seu ápice, descaracterizando
a noção clássica de trabalho assalariado e regulado pela proteção social do Estado, para dar lugar ao que Antunes (2020b)
conceitua como uma “subsunção real do trabalho ao capital”. Nesse contexto, o ultraneoliberalimo estabelece-se e busca
promover uma quase desaparição do Estado, que não atua mais como um regulador para manutenção do bem-estar social,
mas como um guardião assumido dos interesses do mercado, como apontam Dardot e Laval (2016).
Assim, apesar de cada paradigma apresentar características peculiares, é possível notar um continuum entre o fordismo,
o pós-fordismo e o ciberfordismo, pois fica evidente que cada um representa um estágio do processo de aceleração da
Revolução Industrial na direção de uma maior mecanização e desregulamentação do trabalho, sempre de acordo com
as novas faces do capitalismo e do paradigma industrial e econômico vigente. Recordando Tragtenberg (1974) e Paes de
Paula (2002), as inexoráveis harmonias administrativas seguem seu curso na teoria e prática da gestão, pois, independentemente
do paradigma de produção, perpetuam-se os mecanismos diretos e indiretos de controle social, que garantem a produtividade
e a ordem nas relações no mundo do trabalho.

CONCLUSÕES

Neste artigo, nosso objetivo foi abordar a Indústria 4.0 como manifestação de um novo paradigma de produção, o ciberfordismo,
destacando suas características e seu alinhamento com o estágio ultraneoliberal do capitalismo. Para isso, delimitamos o
que é a Indústria 4.0, ressaltando suas relações com a aceleração da automação industrial e da utilização da internet e
inteligência artificial nos processos decisórios. Também debatemos como ocorreu a evolução do fordismo e do pós-fordismo,
que se entrelaçam, respectivamente, com o compromisso keynesiano e a flexibilização neoliberal, objetivando demarcar o
ciberfordismo como manifestação do estágio ultraneoliberal do capitalismo. Discutimos, então, o paradigma ciberfordista
como uma vanguarda renovada do pensamento taylorista-fordista, que, ao maximizar seus propósitos, alcança a realização
do sonho mecanicista: tornar dispensáveis tanto a mão de obra fabril, quanto a intervenção gerencial.
Apresentando um quadro sintético com as características do fordismo, do pós-fordismo e do ciberfordismo, evidenciamos que
há um continnum entre esses paradigmas de produção, na medida em que representam fases da aceleração dos processos de
mecanização e da própria desregulamentação do trabalho. Além disso, os paradigmas de produção refletem visões de mundo
que se desdobram em dinâmicas sociais, econômicas e políticas próprias de suas épocas, sem romper com o pressuposto das
ideologias e harmonias administrativas responsáveis pelo controle social do trabalho e de sua inserção no contexto produtivo,
como demarca o pensamento tragtenberguiano.

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Podemos ainda concluir que o ciberfordismo também é uma manifestação das visões de como se disseminam as novas
tecnologias que substituem o trabalho humano, as quais Toni (2019) denomina como tecno-otimistas ou tecno-pessimistas.
De um modo geral, o progresso social e econômico tem como justificativa melhorar as condições de vida dos seres humanos,
fazendo referência à visão utópica de que a evolução das relações de produção e das tecnologias poderiam levar a uma
liberação do trabalho e à emancipação dos sujeitos. No entanto, da forma como atualmente se apresenta, conjugado ao
ultraneoliberalismo, o ciberfordismo parece contribuir muito mais para a eliminação de empregos e a precarização das relações
de trabalho, sem que ocorra uma contrapartida de liberação da mão de obra fabril e gerencial para outras ocupações, sejam
elas produtivas, sociais, políticas e artísticas, que correspondam a uma remuneração necessária a uma sobrevivência digna.
Notamos que, especificamente no caso brasileiro, conforme constatamos na literatura, há muitos desafios para que se
alcancem os níveis esperados da Indústria 4.0, pois ainda nos encontramos em estágios anteriores da Revolução Industrial.
Embora alguns pesquisadores acreditem que as condições de automação e integração de sistemas já existam, sendo uma
questão de articulação e planejamento, o fato é que nossa indústria ainda não apresentou plenamente, em vários casos, os
ganhos de produtividade esperados das transformações tecnológicas. Apesar disso, no setor de serviços, esse ideário vem se
estabelecendo. No campo das relações de trabalho, observamos a preparação do terreno para uma abordagem ultraneoliberal
nos discursos e ações governamentais, assim como nos setores industriais, que estão resultando em reformas cujo resultado
foram desregulamentação dos contratos de trabalho e redução de postos de emprego.
No momento em que elaboramos esse texto, o mundo está enfrentando a pandemia causada pelo coronavírus, resultando em
isolamento e afastamento social, bem como longos períodos de quarentena para diminuir o ritmo das infecções. O fenômeno
nos colocou diante do desafio de implementar de forma acelerada o teletrabalho, o ensino à distância e todos os formatos
remotos de atividades que se utilizam de tecnologias de informação como maneira de evitar o contato entre as pessoas. As
consequências da pandemia ainda são imprevisíveis, mas é possível especular que contribua para engendrar os processos
típicos da Indústria 4.0, em especial a automação e o uso da inteligência artificial nas decisões.
Consideramos que este trabalho, por se tratar de um artigo teórico, alcançou seu objetivo. Discutimos o que foi proposto: as
características de um novo paradigma de produção – o ciberfordismo – e suas repercussões nas esferas produtivas, econômicas
e sociais no domínio do ultraneoliberalismo. Além disso, este artigo também cumpre o papel proposto de suprir uma lacuna
didática e pedagógica, auxiliando os docentes que atuam em disciplinas de teoria da administração e das organizações em
suas discussões em sala de aula; este é o principal público para o qual endereçamos o presente texto.
Ainda são escassos os estudos sobre o assunto, conforme constatamos na literatura e na investigação realizada, de modo que,
para futuras pesquisas, recomendamos aos investigadores debates em trabalhos sobre nossas proposições, tanto teóricos
quanto empíricos, abordando indústrias e organizações de prestação de serviços; bem como centros de investigação nas
universidades e pesquisadores voltados ao tema. A Indústria 4.0 traz mais benefícios que prejuízos? Trata-se realmente de
uma nova revolução industrial? O ciberfordismo é, de fato, um novo paradigma de produção? Dirigimos, aqui, tais questões
à comunidade acadêmica da área, que pode prosseguir esse debate e apresentar suas possíveis divergências.

AGRADECIMENTOS

Ao CNPQ, pelo apoio financeiro e bolsa produtividade concedida à Profa. Ana Paula Paes de Paula, que viabilizou a pesquisa
que originou esse artigo.

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Ana Paula Paes de Paula


ORCID 0000-0001-8035-472X
Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP); Professora Titular da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
E-mail: appp.ufmg@gmail.com

Ketlle Duarte Paes


ORCID: 0000-0003-4231-0990
Doutora em Administração pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); Professora adjunta da Universidade Federal de Rio Grande (FURG).
E-mail: ketllep@yahoo.com.br

Cad. EBAPE.BR, v. 19, nº 4, Rio de Janeiro, Out./Dez. 2021. 1058-1058


Brazilian Journal of Development 45693
ISSN: 2525-8761

Os desafios enfrentados pelas mulheres negras empreendedoras na


cidade de Rio Grande-RS

The challenges faced by black women entrepreneurs in Rio Grande-RS


DOI:10.34117/bjdv7n5-132

Recebimento dos originais: 07/04/2021


Aceitação para publicação: 03/05/2021

Simone Silva Porto Machado


Bacharela em Administração
Universidade Federal do Rio Grande-FURG
Av. Itália, KM 08, Carreiros, Rio Grande/RS.
E-mail: simoneh_1993@hotmail.com

Ketlle Duarte Paes


Doutora em Administração
Universidade Federal do Rio Grande-FURG
Av. Itália, KM 08, Carreiros, Rio Grande/RS.
E-mail: Ketllep@yahoo.com.br

RESUMO
Partindo de um contexto histórico, se pode observar que a luta das mulheres por igualdade
de direitos com os homens ficou conhecido como feminismo. Esse movimento em seus
primórdios não englobavam as mulheres negras que viram seus interesses serem levados
em consideração somente quando o movimento feminista negro ganhou proeminência em
meados do século XX. (PINTO, 2010). Outra pauta de luta das mulheres diz respeito a
maior participação e mais direitos no mercado de trabalho, onde as mulheres buscam,
entre outras coisas, equiparar seus salários aos dos homens. Em sua luta pela
sobrevivência e em tempos de crise financeira, o empreendedorismo pode ser uma saída
para o sustento de muitas famílias. A pesquisa visa contribuir para a compreensão dos
desafios enfrentados pela mulher negra na economia de Rio Grande, bem como busca dar
visibilidade a essa parcela da população historicamente excluída das políticas públicas.
Nessa pesquisa, verificou-se que as mulheres aqui entrevistadas enfrentam diversas
dificuldades para abris e manter seus negócios. Dificuldades tais como: falta de recursos
financeiros para investir, ter que abrir mão de acompanhar o crescimento dos filhos em
função do excesso de trabalho, sofrer preconceito dos clientes em função dos estereótipos
a que estão sujeitas na sociedade, etc.

Palavras-chave: Mulheres Negras, Empreendedorismo, Desafios Sociais e econômicos

ABSTRACT
Starting from a historical context, it can be observed that women's fight for equal rights
with men became known as feminism. This movement in its early days did not include
black women, whose interests were only taken into consideration when the black feminist
movement gained prominence in the mid-twentieth century. (PINTO, 2010). Another
struggle of women concerns greater participation and more rights in the labor market,
where women seek, among other things, to equalize their wages to those of men. In their
struggle for survival and in times of financial crisis, entrepreneurship can be a way out

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for the sustenance of many families. The research aims to contribute to the understanding
of the challenges faced by black women in the economy of Rio Grande, as well as to give
visibility to this part of the population historically excluded from public policies. In this
research, it was verified that the women interviewed here face several difficulties in
opening and maintaining their businesses. Difficulties such as: lack of financial resources
to invest, having to give up following the growth of their children due to excessive work,
suffering prejudice from clients due to the stereotypes they are subject to in society, etc.

Keywords: Black Women, Entrepreneurship, Social and Economic Challenges.

1 INTRODUÇÃO
As mulheres há tempos lutam para conquistar seus espaços em lugares que antes
eram exclusivamente ocupados por homens. As reinvindicações das mulheres por
igualdades de direitos têm como um importante marco a luta pelo sufrágio universal, ou
seja, a luta pelo direito de votar e poder escolher seus representantes (PINTO, 2010).
Essas lutas históricas das mulheres oportunizou o surgimento do chamado feminismo.
Esse movimento começou a ser disseminado por volta de 1920 não acolhia as mulheres
negras (ANUNCIADA, 2015), as mesmas puderam ver seus interesses serem levados em
consideração somente quando o movimento negro ganhou proeminência em meados do
século XX. (DOMINGUES, 2007).
Outra pauta de luta das mulheres diz respeito à igualdade de direitos no mercado
de trabalho, onde buscam equiparar seus salários aos dos homens. Em sua caminhada pela
sobrevivência e em tempos de crise econômica e política como o Brasil vive atualmente
o empreendedorismo pode ser uma saída para o sustento de muitas famílias. Segundo
Hirish e Peters (2004), o empreendedorismo é uma maneira de conceber alguma coisa
nova se conscientizando dos riscos inerentes aos esforços para gerar riqueza, promovendo
e agregando valor a algum serviço ou produto.
De acordo com Davis (2016), as mulheres negras, historicamente, por não serem
absorvidas pelo mercado de trabalho necessitavam buscar formas de subsistência
oferecendo serviços de lavagem de roupas, de vendas de comidas, de cabelereiras, de
costureiras, etc. Essa condição de exclusão dos postos formais de trabalho pressionaram
as mulheres negras a empreenderem pequenos negócios para o sustento da família. Isso
porque, conforme a autora, tradicionalmente muitas famílias negras são sustentadas por
mulheres já que era muito comum o abandono da família pelo homem. A mulher negra,
de acordo com a literatura especializada, abarca em si mesma, várias formas de
identidades de minorias sociais por meio da denominada interseccionalidade. Esse

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conceito fica evidente ao pensarmos que a mulher negra carrega consigo outras categorias
como gênero, raça e classe, configurando na matriz: mulher/negra/pobre conforme o
entendimento de Cardoso (2012).
Diante do exposto, a presente pesquisa tem como propósito analisar os desafios
sociais e econômicos enfrentados pelas mulheres negras empreendedoras na cidade de
Rio Grande.
Esse trabalho pretende contribuir para os estudos sobre gênero e raça no campo
disciplinar dos estudos organizacionais. Isso posto, em uma pesquisa realizada em alguns
dos principais periódicos da área de administração: Revista de Administração
Contemporânea (RAC), Organização e Sociedade (O&S), Revista de Administração de
Empresas (RAE), Revista de Administração da USP, Cadernos Ebape, Brazilian Journal
of Development; com as palavras-chave: mulher negra e estudos organizacionais;
mulheres negras empreendedoras obtivemos como o retorno de 23 artigos, dos quais
apenas dois abordam diretamente a temática de raça e gênero.
Não obstante, no contexto dos estudos brasileiros, destacam-se algumas
importantes pesquisas no que diz respeito às identidades de raça e classe (NUNES et al,
2021 e TEIXEIRA et al., 2016); gênero e sexualidade (CERQUEIRA; SOUZA, 2015;
SOUZA, 2009); gênero, raça e classe (TEIXEIRA; SARAIVA; CARRIERI, 2015).
Depreende-se disso, com a ajuda de Conceição (2009), que os estudos sobre mulheres
negras ainda são muito escassos nos estudos organizacionais. Assim, partindo dessas
considerações justifica-se a importância desse trabalho que pretende trazer reflexões
sobre o tema para o ambiente acadêmico da área de administração. Além disso, busca
um diálogo com as mulheres negras empreendedoras, no intuito de lhes dar voz e
visibilidade, bem como auxiliá-las na compreensão de sua realidade.

2 REFERENCIAL TEÓRICO
2.1 FEMINISMO NEGRO
As mulheres negras empreendem seus próprios negócios desde o fim do período
da escravização em meados do século XIX. Em muitas situações essas mulheres não
conseguiram espaço no mercado de trabalho devido à discriminação e a invisibilidade a
qual eram submetidas, sobrando para elas, em consequência, os serviços de empregadas
domésticas. Desse modo, quando não arranjavam empregos formais utilizavam formas
criativas de subsistência para o sustento da família, vendendo comida de porta em porta

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ou em bancas improvisadas na rua, eram costureiras e ofereciam serviços de lavagem de


roupas para fora. (ARMAN, 2015).
O ativismo das mulheres negras se deu pelo afastamento dos movimentos negro e
feminista por entender que para esses movimentos não as representavam em suas
demandas. Nas palavras de Andrade Fernandes (2016 p. 697):

De um lado, as mulheres negras foram pressionadas a aceitar uma posição


secundária no movimento negro, já que a luta por igualdade racial não tinha
como bandeira o rompimento dos direitos estabelecidos no sistema patriarcal.
(...). De outro lado, as mulheres negras tiveram suas experiências ignoradas no
movimento de mulheres em nome de uma homogeneização da vivência
feminina.

Pode-se compreender com este fragmento, o quanto as mulheres negras


batalharam para serem ouvidas dentro dos movimentos negros, mesmo desempenhando
um papel crucial na manutenção destes movimentos atuando nas organizações de eventos
para angariar fundos, por exemplo. (DOMINGUES, 2007). No que tange ao movimento
feminista, percebe-se também, pela literatura especializada, sobre as reinvindicações das
mulheres naquele contexto dizia respeito a ter a propriedade do próprio corpo, a ter
autonomia financeira e a ter liberdade sexual. (FERNANDES, 2016).
Contudo, observa-se, segundo Ribeiro (2008), que as mulheres negras precisavam
romper também com os estereótipos associados a cor de sua pele. Um exemplo trazido
pelo autor referencia a expressão “mãe-preta” uma expressão remetente aos tempos que
as mulheres negras eram obrigadas a amamentar os filhos das mulheres brancas. Ao se
politizarem essas mulheres compreenderam que não poderiam possibilitar a continuidade
desse preconceito de maneira a lutar para desconstrução dos padrões e das relações de
poder que insistem em retroalimentar o racismo e o machismo, agindo como limitadores
das ações politicas voltadas para esse grupo. (FERNANDES, 2016).
De acordo com Fernandes (2016, p. 701), o feminismo negro utilizou-se "da força
semântica do termo 'feminismo'”, ampliando suas reinvindicações para temas como,
combate a pobreza, criação de politicas públicas especificas e o acesso à educação. Na
visão Sueli Carneiro, a base do movimento feminista tradicional não faz sentido para a
realidade das mulheres negras, principalmente as mulheres negras brasileiras que já
trabalhavam fora de casa desde os tempos da escravização. Sendo que no período pós-
colonial obtiveram papéis de mantenedoras de suas famílias já que seus companheiros
foram substituídos pela mão-de-obra estrangeira, e essas mulheres acabaram se inserindo
nos mercados tanto formais quanto informal de trabalho.

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Quando se fala em feminismo negro há de se pensar sobre o impacto de temas


raciais e sua vinculação com o gênero. O feminismo negro deve dar devida atenção a uma
paridade politica complexa e as diversas variáveis que se interseccionam. (FERNANDES,
2016). Na visão de Lélia Gonzales (2016), a mulher negra precisa assumir seu papel de
protagonista na luta contra o machismo e o racismo e também resistir a pressão contra o
embranquecimento e a submissão que historicamente se espera do mundo feminino.
Perante o palco de invisibilização e silenciamento, o feminismo negro deve se unir
na razão de viabilizar espaços de fala para as mulheres negras (FERNANDES, 2016) e
esses espaços começam pelos encontros e congressos voltados especificamente para esse
público. No ano de 1988 é realizado no Brasil o I Encontro Nacional de Mulheres Negras
(IEMN) que reivindicava a inclusão dessas mulheres que não eram amparadas pelas
políticas sociais, tanto nacionalmente quanto internacionalmente. As mulheres negras
contribuem para o surgimento da Rede de Mulheres Afro-latino-americana, Afro-
caribenhas e da Diáspora, realizando encontros nos anos 1998, 1992 e no ano
2001(RIBEIRO, 2008 p. 991). A Conferência Nacional dos Direitos das Mulheres teve
suas edições nos anos de 2004 e 2007, reuniu cerca de 200 mil participantes, aonde
aconteceram às eleições e elegeram em torno de 1700 representantes para participar do
evento nacionalmente (RIBEIRO, 2008, p.994).
Matilde Ribeiro (2008) no artigo sobre mulheres negras, a autora traz em sua obra
a discussão sobre a forma como o gênero e raça são incluídos nas politicas públicas
brasileiras. As primeiras politicas com variáveis gênero e raça foram inclusas nos
orçamentos participativos no estado do Rio de Janeiro entre os anos 1997 e 1999.
(RIBEIRO, 2008). A conferência de Durban em 2001 possibilitou a criação e inclusão
dos seguintes programas: Programa Nacional de Ações Afirmativas e o Conselho
Nacional de Combate a Discriminação em 2002. (RIBEIRO, 2008). No ano de 2003 no
mandato do Luís Inácio Lula da Silva é instaurada a Secretaria de Políticas e Igualdade
Racial, abrindo espaços Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial e o Conselho
Nacional de Promoção de Igualdade Racial. (RIBEIRO, 2008).
O estudo da autora também expõe sobre a parcela de jovens negras trabalhando
como empregadas domésticas entre as idades de 16 a 29 anos. Outro dado
socioeconômico chama atenção da condição da mulher negra, conforme relato de Arman
(2015, p. 69):
Até 1995, a grande maioria das mulheres negras eram chefes de família que
tinham como característica uma vida solitária, na qual não existia a presença masculina

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do marido ou companheiro. Quase 70% dessas famílias naquele momento eram mães,
18% mulheres sozinhas, 10% mulheres sem filhos que coabitavam com outra pessoa. A
maior parte dessas famílias - 56,2% - conserva uma renda total de menos de um salário
mínimo, ocasionando as piores condições de renda entre as famílias chefiadas por
mulheres.
Em 2009, no Brasil, a categoria de serviços domésticos era composta cerca de
90% por mulheres (COSTA, 2013, 471), “destas 61,6% eram negras e 38,4% eram
brancas”. Esta forma de trabalho tem sido lembrada pelo desamparo legal e pelas
deficientes condições de trabalho, com cerca de “3/4 das empregadas domésticas não
dispõem de carteira assinada, um direito conquistado em 1972” (COSTA, 2013 p.472).
Quando o mercado de trabalho não acolhe a mulher negra para os serviços
domésticos, muitas dessas mulheres precisam sustentar suas famílias e veem a saída no
empreendedorismo(MACHADO, 2017 p.6). Ainda nos dias de hoje no quesito salário as
mulheres negras recebem valores inferiores aos homens negros apontando tal disparidade
é notável a discriminação tanto de gênero quanto de raça independente da classe
econômica. Essas mulheres abrem seus empreendimentos com o intuito de satisfazer as
necessidades dos clientes no nicho de mercado no qual pretendem explorar. Em alguns
casos as empreendedoras exploram linhas de produtos voltados suas etnias com o enfoque
a afirmação da identidade enquanto mulher negra (ARMAN, 2015).

2.2 EMPREENDEDORISMO NA PERSPECTIVA DO TRABALHO INFORMAL E


DO MICROEEMPREENDEDOR INDIVIDUAL
O trabalho informal é composto por pessoas que estão fora do mercado de trabalho
formalizado e afastados da assistência do Estado (CASTRO; NUNES, 2014), ou seja,
trabalhadores que não trabalham de carteira assinada, mas trabalham de maneira
autônoma. Salienta Druck e Oliveira (2008, P. 4): “A informalidade é sinônimo de
flexibilidade e precarização do trabalho” e essa informalidade do trabalho é consequente
das mudanças relacionadas e dependentes do meio econômico e do meio politico da
sociedade brasileira. Quando esses trabalhadores ingressam no mercado informal se
adaptam aos princípios distintos do mercado de trabalho formal, “que obriga os sujeitos
a aceitarem tal condição como a mais plausível de ser vivida em um contexto de
desemprego e precarização do trabalho”. (DRUCKER; OLIVEIRA, 2008 P.10).
No início a utilização do trabalho informal direcionado ao trabalho ocasionou
resistência tanto dos governantes quanto dos pesquisadores sobre o tema. Este tipo de

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trabalho passou a ser um problema para o poder público brasileiro, pois a informalidade
terminou se associando a marginalidade. O conceito de trabalho informal é explicado
partindo de duas teorias a primeira teoria era a teoria da modernização ao qual acreditava
sobre a acumulação de capitais dos países em desenvolvimento fornecia uma base
empregatícia relevantemente instável, sendo que essa instabilidade era percebida como
transitória. Corroborando com a teoria da modernização é apresentada a teoria sobre o
trabalho informal sendo sinônimo de marginalização, pois “enfatizando as consequências
do processo de modernização das economias dos países em desenvolvimento acarretavam
uma estratificação social”. (DRUCK; OLIVEIRA, 2008 P.2).
Salienta-se a respeito da ideia passada pelo poder publico sobre os trabalhadores
informais estariam predestinados a casos de trabalhos marginalizados no futuro, pois os
optantes do trabalho informal, não desempenhariam um papel relevante na sociedade,
logo não poderiam favorecer o poder público. (DRUCK; OLIVEIRA, 2008). Nos anos
1980 aconteceram mudanças na maneira de pensar informalidade no âmbito do trabalho.
Os autores explicam sobre a crise do fordismo ser o estopim para a reflexão sobre
trabalho informal, discutidos de maneira inicial em âmbito internacional para depois ser
pensado aqui no Brasil. Deixando de ser um problema restrito aos quesitos
socioeconômicos dos países em desenvolvimento. (DRUCK; OLIVEIRA, 2008). Dessa
maneira há uma expansão do trabalho informal com sua ampliação em diversos nichos de
mercado, sendo crescente o número de adeptos a essa forma de ocupação oferecida no
mercado de trabalho. Portanto, o “trabalho informal é a expressão máxima do trabalho
flexível, cuja única chance de estabilidade para o trabalhador é a sua própria
“empregabilidade” (DRUCK; OLIVEIRA, 2008 P. 6) a forma do individuo poder gerar
meios de subsistência em uma realidade incerta e em um mercado de trabalho incerto.
O empreendedorismo entra como solução de um problema financeiro e de
sobrevivência atuando forma imediata aos desempregados, trabalhadores que estão na
informalidade, mas também os trabalhadores que estão nos subempregos logo
trabalhadores sujeitos ao processo de precarização do trabalho (CASTRO; NUNES,
2014).
O empreendedorismo na visão de Castro e Nunes (2014, P. 131), vai ao encontro
dos anseios do capitalismo quando busca sustentar o discurso oficial de que o
"empreendedorismo consiste em ótima oportunidade que o trabalhador tem para tornar-
se empresário, como forma de solucionar três questões ao mesmo tempo: seu desemprego,
sua exclusão e sua cidadania perdida".

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Conforme os autores explicam, essa ideia é disseminada passando a


responsabilidade para os indivíduos e justificando as falhas do estado reafirmando a
imagem de que sozinhos os mesmos conseguem se libertar de problemas aos quais são
sujeitos. Estas pessoas terminam por laborar de forma precária, com poucos direitos
assistidos e quase sem perspectiva de futuro, por exemplo, direito a aposentadoria, pois
nem todos os cidadãos que laboram da maneira informal possuem dinheiro para pagar a
previdência social (DRUCK; OLIVEIRA, 2008).
Siede (1994) salienta que a informalidade é uma resposta a acontecimentos tais
como os baixos salários dos empregos formais, quando não existem as condições exigidas
por tais empregos nos níveis em que a remuneração é atraente para o trabalhador. Além
do mais, de acordo com o autor, também é uma maneira de o trabalhador não ser
subordinado a um chefe, buscando remunerações maiores comparadas as que são
oferecidas no trabalho formal.
Já no campo do empreendedorismo formal, temos a microempresa que é uma
pessoa jurídica regulamentada pela Lei complementar nº 123/ 2006. Por essa lei também
é normatizado o Simples Nacional tratando-se de um sistema compartilhado de tributação
com intuito de fiscalizar, arrecadar e cobrar impostos voltados para as Microempresas
tornando mais simples a arrecadação de tributos da pessoa jurídica listados em um único
documento, tais como: Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), Imposto de Renda
sobre Pessoa Jurídica (IRPJ), Contribuição Social sobre o Lucro Liquido (CSLL),
Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (COFINS), Contribuição
Patronal Previdenciária (CPP) e Contribuição para o Programa de Integração Social e o
Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Publico (PIS/PASEP) (DUARTE,
2011).
A Lei Complementar nº 139/2011 normatizou os requisitos para o devido
enquadramento dentro desta lei do microempreendedor individual a partir da mesma é
necessário a empresa faturar R$: 5.000,00 reais mensais ou R$: 60.000,00 reais anuais, o
microempreendedor não pode ser sócio e nem dono de outra empresa somente é permitido
o mesmo ter apenas um empregado recebendo o piso da categoria ou um salário mínimo
(SEBRAE, 2017). Com a criação da lei complementar 147/2014 ao qual ocorre a mudança
da primeira lei em seu art. 4º traz a resolução com a publicação passa a ser o de forma
gratuita os seguintes tramites: a abertura e fechamento das microempresas, a expedição
de alvarás, a alteração cadastral, etc. (PLANALTO, 2014).

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Para o Microempreendedor não são exigidos registros em livros fiscais isentando-


o da contabilidade formalizada. É obrigatória a entrega do relatório mensal e ter acesso
ao endereço eletrônico por meio da internet para os devidos procedimentos:
credenciamento como microempreendedor, acesso às guias de recolhimento de impostos,
à declaração do faturamento anual. Atualmente o registro no MEI é realizado através do
Portal do Empreendedor, ao acessar este portal o próprio microempreendedor pode abrir/
fechar sua empresa e emitir suas declarações de impostos sem sair de casa. (DUARTE,
2011).

3 METODOLOGIA
De acordo com Lakatos e Marconi (2015), os procedimentos metodológicos
representam o conjunto de atividades racionais e sistemáticas que permitem alcançar com
maior segurança o objetivo de pesquisa. Assim, este estudo, do ponto de vista teórico e
metodológico é uma pesquisa qualitativa, de corte temporal transversal, pois se abordou
o universo de pesquisa em um determinado contexto sócio histórico em um dado período
de tempo. No caso aqui proposto, o campo empírico foi a cidade de Rio Grande (Rio
Grande do Sul) no ano de 2017.
Denzin e Lincoln (2006, p. 17), observam que a pesquisa qualitativa é um campo
de investigação, que envolve a coleta de uma variedade de materiais empíricos e dessa
maneira tende a não privilegiar uma única prática metodológica em relação a outra. Para
as autoras “a pesquisa qualitativa é uma atividade situada que localiza o observador no
mundo”. Assim, a pesquisa qualitativa, não se baseia em critérios numéricos para garantir
sua representatividade, sendo o critério mais importante, nesse tipo de pesquisa, a
compreensão dos diferentes pontos de vista que se encontram demarcados em um
contexto.
Os dados de pesquisa foram coletados no período de agosto a novembro de 2017.
Esse processo ocorreu por meio de entrevistas semiestruturadas com três mulheres negras
empreendedoras em diferentes dias, respeitando a disponibilidade das entrevistadas. As
entrevistas foram gravadas na integra com o consentimento das pesquisadas e duraram
em média 20 minutos; na sequência elas foram transcritas de forma literal. As entrevistas
tiveram como objetivo compreender a história de vida dessas mulheres, bem como poder
identificas os desafios sociais e econômicos enfrentados por elas ao empreenderem seus
negócios.

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A análise dos dados, em consonância com a perspectiva qualitativa, foi


interpretativa e ocorreu ao longo e depois da coleta de dados. De acordo com Godoy
(2006), esse tipo de análise é coerente com o estudo de caso qualitativo, devendo ser
desenvolvido de modo concomitante com a coleta de dados. As reflexões que
apresentamos a seguir são o resultado desse processo, de maneira que a teoria e a prática
dialogam, procurando oferecer uma visão mais abrangente do fenômeno em estudo.
Assim, as categorias que nortearão a pesquisa para a análise dos dados são aquelas
advindas do referencial teórico. Nesse sentido, compreender os desafios sociais e
econômicos enfrentados pelas mulheres negras ao empreenderem seus negócios, torna-se
o objetivo central desse trabalho, uma vez que a literatura sobre o tema apontou que
historicamente há diversos marcadores sociais de subordinação, tais como o racismo,
opressão de classe e de gênero que se relacionam e atuam na promoção das desigualdades
sociais, sobre tudo, em relação às questões de gênero e raça (DAVIS, 2017).

4 OS DESAFIOS SOCIAIS E ECONÔMICOS ENFREENTADOS PELAS


MULHERES NEGRAS EMPREENDEDORAS NA CIDADE DE RIO GRANDE
A proposta deste trabalho é identificar os desafios sociais e econômicos
enfrentados pelas mulheres negras empreendedoras na cidade de Rio Grande. Para tanto,
buscou-se nesse trabalho ouvir algumas mulheres negras que se encontram na situação de
empreendedoras. Na sequência apresentamos as entrevistadas com o objetivo de verificar
em sua história de vida e de empreendimento quais os desafios sociais e econômicos
enfrentados por elas ao empreenderem seus negócios.

4.1 CAMILA
Camila tem 46 anos, é casada e atua no ramo da costura há 23 anos. Teve
experiências de trabalhos anteriores como empregada doméstica e em uma empresa de
pescados sendo que anos depois encontrou no ramo da costura sua profissão. O interesse
pela área de costura, relata Camila, ocorreu quando a mesma foi morar na cidade de
Florianópolis-SC, onde encontrou um mercado de trabalho restrito em termos de
oportunidades de emprego.
Com o decorrer do tempo, Camila se matriculou em um curso profissionalizante
na área de corte e costura no qual encontrou uma alternativa para vencer o desemprego.
O curso teve a duração de um ano, porém antes do término do curso a mesma conseguiu
um emprego em um atelier de costura. Nas palavras de Camila: "em seguida comecei a

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trabalhar no atelier de costura lá... já né com experiência né de três meses aí o dono do


atelier gostou do meu trabalho (...)". Camila relata ainda que ficou um ano trabalhando
formalmente neste atelier e após esse período pediu demissão em função do nascimento
de seu primeiro filho.
Após isso, ela retornou para cidade de Rio Grande e poucos anos depois decidiu
voltar a costurar. Para tanto, voltou a realizar cursos especializados buscando se
aperfeiçoar cada vez mais. Alguns cursos que ela frequentou foram ofertados
gratuitamente pela Prefeitura. No entanto, Camila também buscou aulas particulares com
uma professora especialista em alta costura, com a qual Camila pode se aprofundar na
confecção de vestidos para festas, conforme Camila (2017):

Ainda tem o curso dela eu fiquei lá durante muito tempo lá que eu fui me
aperfeiçoando mais eu fui fazer o curso de costura. É uma área muito grande
né, tu faz curso de malha para costurar malha, tu faz curso para costurar roupa
de vestido de festa.

Camila acredita que ser costureira representa um grande avanço em sua carreira
profissional, pois em suas profissões anteriores a mesma conta sobre exposições a
diversos tipos de preconceitos e ainda complementa:

Como é que eu vou te dizer, uma melhora profissional, nas fábricas de peixes
era serviços gerais, depois empregada doméstica. Infelizmente a gente ainda
sofre muito preconceito né por ser empregada doméstica. E, costureira eu faço
o que eu gosto. Aprendi a gostar da profissão e a gente sofre um pouco menos
de preconceito do que ser empregada doméstica.

A fala acima nos possibilita perceber o que Crenshaw (2002) explica sobre as
desigualdades promovidas entre as diversas estruturas de classe em nossa sociedade,
fazendo com que se retroalimentem diferentes discriminações em um único indivíduo,
por exemplo, a mulher negra sofre racismo, preconceito de gênero e a desigualdade social
ao mesmo tempo. O relato de Camila lança luz as diversas formas de discriminações que
ela sofreu, principalmente quando atuou como empregada doméstica. Os preconceitos
continuaram quando ela se tornou costureira, diminuindo somente, segundo sua
percepção, no momento em que ela passou a administrar seu próprio atelier.
Nos contextos sociais onde o mercado de trabalho é restrito para as mulheres
negras, as mesmas veem como única alternativa o trabalho doméstico e quando não
conseguem criam outros meios de se sustentarem. (ARMAN, 2015). No caso de Camila
ela não quis ser mais doméstica e buscou aprender uma profissão.

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Camila relata também, que entre as inúmeras dificuldades que enfrentou, uma
delas era manter seus filhos na escolinha, pois com a abertura do seu atelier foi necessário
coloca-los na escolinha e isso representou para ela um sofrimento no momento em que se
tornou muito difícil acompanhar o crescimento deles, ela ressalta: "a família me ajudou
a cuidar deles. Foi complicado, mas não tem o que se fazer tem que trabalhar e ajudar no
sustento da família".
No ano de 2008, ela inaugurou seu atelier onde contou com o apoio de alguns
integrantes da família: o marido ajudou na compra dos equipamentos e o sogro na
cedência da casa, com isso o seu tão sonhado atelier estava se tornando realidade e assim
reconheceu que os esforços de todos foram essenciais, frisando: "sem ajuda tu não
consegue abrir seu próprio negócio, né. Meu atelier de costura praticamente meu marido
e meu sogro que me apoiaram no início. Nunca pedi nenhum tipo de crédito".
Mesmo com as dificuldades financeiras iniciais Camila não abriu mão de
registrar-se como microempreendedora com o intuito de formalizar seu empreendimento.
Com o atelier em funcionamento hoje ela consegue colaborar com a renda da família, ou
seja, o empreendedorismo entra como um recurso para determinadas questões financeiras.
(CASTRO; NUNES, 2014).
Ao lidar diretamente com desafios sociais e a discriminação racial em sua
profissão, Camila relata que algumas clientes quando chegavam em seu ateliê pediam
para ela chamar a costureira:

Eu sou jovem e negra (...) e as pessoas ainda tem a mentalidade de que


costureira é uma velhinha branca, então muita gente chegou na porta do meu
atelier e me pediu para me chamar a costureira né e aí eu dizia: sou eu mesma
a costureira. A gente via que aquilo era discriminação.

A luta pela desconstrução dos estereótipos e padrões impostos pela a sociedade


dentro das relações de classe é bastante complicado e penoso. As mulheres negras lutam
contra a perpetuação desses estereótipos que são os principais condicionantes para a
reprodução e perpetuação do racismo. (FERNANDES, 2016).
Em alguns momentos, relata Camila, há por parte de seus clientes, a falta de
reconhecimento de seu trabalho e, muitas vezes, o questionamento de seus preços acaba
desvalorizando seus serviços. Com todos esses percalços, Camila diz haver possibilidades
de explorar mais seu empreendimento na cidade de Rio Grande. Em sua opinião a solução
seria a venda de roupas prontas e almeja em seus planos futuros o investimento na compra
de tecido em maior volume para a realização desse sonho. Camila expõe que para o futuro

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pretende ir buscar tecidos em outras cidades para fabricar roupas em maior quantidade e
tê-las a pronta entrega, relata ainda: "o que me falta é fontes de financiamento para
aumentar o meu negócio, mas tem possibilidade...". Atualmente, a demanda de trabalho
para Camila em seu atelier são as reformas de roupas usadas e a confecção de vestimentas
voltadas para as religiões de matriz africana.
Nos dias atuais há um crescimento do número de consumidoras reafirmando sua
identidade étnico-afro e isso abre inúmeras possibilidades para essas empreendedoras
explorarem suas oportunidades dentro dos nichos de mercados aos quais estão inseridas
(ARMAN, 2015).

4.2 EDNA
Edna é microempresária, proprietária de uma escola de educação infantil, é
solteira, tem 48 anos de idade e atua nesse ramo há seis anos. Antes de começar o
empreendimento ela foi diretora de uma escola do Sesi. Esse empreendimento era um
sonho de infância, ela fez graduação em pedagogia na área de educação infantil e tinha o
desejo de ser educadora, ela salienta: “a profissão está dentro da minha área de formação,
desde criança eu sempre quis ser professora de educação infantil na época chamava-se
jardim, professora Jardineira e eu dizia isso que queria ser professora de jardim”.
Atualmente a escola é o centro das atenções de Edna e motivo de grande orgulho
e de imensa satisfação, contudo Edna se diz surpresa com o rumo que sua vida tomou:

Agora se me perguntassem há seis anos atrás se eu gostaria de


trabalhar numa escola de educação infantil eu acharia que estava
totalmente fora da minha realidade. Hoje eu aguardo concluir meu
período de trabalho meu tempo profissional dentro da área como
pedagoga na escola que eu criei.

Do planejamento até a abertura do negócio Edna não teve dificuldades, pois na


empresa anterior trabalhou durante 12 anos e neste tempo ela adquiriu experiências nas
questões de empreendedorismo, sendo que neste emprego ela ofertava cursos voltados
para área, assim todos os procedimentos em sua empresa ela estava somente colocando
em prática os conhecimentos adquiridos. Ao sair da empresa ela recebeu a indenização
referente aos 12 anos de trabalho, após esse período ela planejou e investiu em sua própria
escola . Edna explica:

Eu tinha uma bagagem sobre à questão empreendedora. Eu trabalhava antes


com isso, então coloquei em prática aquilo que eu passava para os outros. Eu

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não aceitaria errar nisso (risos) uma pessoa que dava cursos como administrar
uma empresa, como empreender o próprio, então eu não podia falhar nisso
(risos).

Com o total apoio de sua família, os quais cederam uma casa para ela abrir o
empreendimento, Edna não precisou pagar aluguel. Havia um planejamento prévio da
viabilidade do negócio e assim ela montou sua escola dentro dos recursos que tinha,
conforme explica:

Eu fiz uma escola simples dentro do valor que eu tinha. Claro que eu gostaria
de ter mais coisas, de ter investido mais, mas eu sempre pensava: bom vou
fazendo devagarinho conforme o que for entrando e com o retorno que for
dando eu vou melhorando.

Já no início do seu empreendimento, Edna procurou o SEBRAE e se cadastrou,


ela sabia do suporte que essa instituição oferecia para os microempreendedores. Então
assistiu palestras e cursos, porém notou poucas ações voltadas para a área da educação.
Suas principais incertezas eram em relação ao marketing da empresa e como se adequar
à legislação vigente do seu negócio. Nas palavras de Edna:

Até cobrei o pessoal do SEBRAE porque eu vi que eles não focam muito na
área da educação e eles trabalham muito mais com a questão de investimentos
financeiros e, como eu comentei anteriormente, esse não era o meu principal
problema. Na verdade, o meu problema era saber como fazer as coisas dentro
do que a lei exigia.

Atualmente quem almeja ser microempreendedor pode fazer os trâmites como a


legalização de sua empresa dentro da sua própria casa, só é preciso ter acesso à internet e
acessar o Portal do Empreendedor, de acordo com os estudos de Duarte (2011).
Edna tem como preocupação principal respeitar a legislação que a secretaria de
educação municipal exige. Ela também é membro do Conselho Municipal de Educação
com o objetivo de representar as escolas particulares, discutindo pautas sobre escolas do
mesmo ramo que são abertas de maneira informal e que não cumprem as legislações
vigentes, e, que, portanto, funcionam de maneira ilegal, prejudicando o setor e a
sociedade.
Um momento inesquecível, relata Edna, foi a festa de abertura de sua escola, na
qual ela viu sua família e amigos felizes por sua conquista: “Eu vi assim ó quantos meus
amigos meus familiares estavam contentes com esse meu empreendimento e que eu sabia
que se eu me apertasse eu poderia contar com a ajuda deles”. E, quando a escola
começou a funcionar uma das irmãs de Edna que é professora de inglês se ofereceu para

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dar aulas e a madrasta dela que é pedagoga aposentada também se colocou a disposição.
Além disso, as irmãs de Edna também trabalham na escola cuidando das crianças do
berçário.
Sobre os desafios enfrentados por empreender, Edna, em tom de desabafo fala do
quanto é árduo o trabalho para ser reconhecida como profissional e proprietária da escola
em função dos preconceitos existentes na sociedade de maneira geral:

Quando batem na porta da escola e, eu atendo, e pedem para falar com a


diretora (...) principalmente na hora de entregar currículo pedem para falar com
o responsável pela escola. Até coloco nas minhas camisetas escrito diretora,
mas nem assim percebem que eu sou a diretora. O racismo é forte, mesmos nos
dias de hoje com toda hipocrisia daqueles que dizem que isso é coisa da cabeça
do próprio negro, que é ilusão e que temos mania de perseguição.

Diante desse relato de Edna, é possível perceber com a ajuda de Arman (2015), as
pressões a que Edna está sujeita nos processos de silenciamento e estereotipia, pois as
pessoas que procuram sua escola não a enxergam como proprietária e diretora, num
primeiro momento, ela é inferiorizada e estereotipada como mulher negra no extrato
social (RIBEIRO, 2008). Edna acredita que explorar seu empreendimento na cidade
seja dificultoso, pois há uma gama de escolas na informalidade, custos altos e pressão da
concorrência que é acirrada. Na prefeitura criaram uma associação dentro do Conselho
de educação para se defenderem desta forma de abrir escola e a mesma explica:

Nós criamos uma associação para nos defendermos porque as leis têm muitas
exigências, os impostos são muito altos, a qualificação é obrigatória para que
se possa trabalhar dentro de uma escola de educação infantil, porém assim
como em todas as áreas existem muitas escolas que não são regularizadas.
Então desta maneira elas podem dar algumas facilidades que para nós que
somos registrados nós não podemos.

Edna também relata outro problema recorrente em sua área de atuação, qual seja,
os pais nem sempre se interessam em saber se a escola de seu filho está nos dentro dos
parâmetros legais. Infelizmente, a variável, muitas vezes, que mais importa é o preço da
mensalidade e quanto tempo a criança pode ficar na escola. Tal fato, não deixa de ter
relação com o preconceito que as professoras enfrentam ao serem vistas, com frequência,
como cuidadoras de crianças ou babás, não sendo levado em conta toda a carreira
acadêmica e cursos de qualificação que foram indispensáveis para que elas possam ter a
formação para atuarem no maternal e no jardim. Essa desvalorização se remete a Butler
(1998) quando se fala em submissão das mulheres, vemos que no caso da
microempresária não é diferente, pois quando os pais as veem como cuidadoras e não

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educadoras estão, no fundo, reproduzindo as relações de gênero oriundas das instituições


sociais. (SCOTT, 1995).

4.3 HELENA
Helena tem 46 anos, é casada e atua no ramo da beleza como cabelereira há 30
anos. Passou por outras profissões antes de abrir o próprio salão de beleza de maneira
informal, ou seja, sem registro legal. Antes, porém a entrevistada foi faxineira, trabalhou
em uma loja de calçados, foi balconista e também auxiliar em salão de beleza nos fins de
semana. Ela iniciou a carreira com dupla jornada de trabalho em dois empregos, aprendeu
sua profissão praticando ao cuidar do seu próprio cabelo e viu a possibilidade de ser
cabelereira, ela frisa:

Eu aprendi a mexer no cabelo com meu próprio cabelo. Eu vi que levava muito
jeito e eu gostava do meu trabalho. Também vi que eu tinha possibilidade de
ter meu próprio negócio ligado a beleza e assim tudo começou e eu trabalhava
em dois salões ao mesmo tempo.

As mulheres negras há muito tempo criam formas de sobrevivência e se sujeitam


a longas jornadas de trabalho e muitas situações em mais de um emprego para sustentar
a família. (Arman, 2015). Como é o caso de Helena que trabalhou em dois empregos ao
mesmo tempo para amenizar as dificuldades econômicas.
Helena traz uma reflexão sobre a escolha da profissão, a ideia era ter uma profissão
e ter dinheiro objetivando ajudar a mãe em casa de forma a contribuir na renda familiar.
Os cursos de aperfeiçoamento eram muito caros na época então ela procurou trabalhar
em vários salões de beleza para aprender o ofício. A empreendedora conta sobre a decisão
de abrir seu próprio salão e ao relembrar do momento em que ela começou se a se
aperfeiçoar na profissão:

Ah eu vou tentar e não tinha dinheiro nem para comprar os produtos para
começar, aí o que eu fiz, eu olhei para o shampoo de casa, olhei para tesoura
que eu ganhei de uma irmã de religião na época e ela começou a me dar alguns
cursinhos básicos porque eu queria sempre aprimorar, eu não tinha dinheiro
para curso e ela disse que ia me ensinar.

Helena, relata também sobre a dificuldade enfrentada por mulheres como ela, para
ter oportunidades no mercado de trabalho:

Eu vejo que a menina de hoje mesmo com toda essa tecnologia que temos nas
mãos, eu vejo que ainda existe essa mesma carência, essa dificuldade de não

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ter oportunidade. Eu vejo que ainda frustra e principalmente nós mulheres


negras ainda continuamos mesmo com essa liberdade de expressão, mas ainda
continuamos sendo limitadas principalmente dentro do mercado de trabalho.

Para ela a profissão que escolheu e sua atuação como cabelereira étnica-afro lhe
traz muita satisfação, pois ao abrir um salão (informal) especializado em cabelo afro
ofereceu um diferencial para a cidade de Rio Grande uma vez que até então esse tipo de
serviço não era oferecido da cidade. Helena, explica assim, seu pioneirismo:

Eu consegui dentro do meu trabalho e da minha profissão fazer algo que na


minha época não tinha (...) não tínhamos salões afros (...) étnicos afro, na
verdade (...), então eu consegui ficar satisfeita porque eu consegui fazer um
salão aonde principalmente nós, mulheres negras, meninas e mulheres negras
e o próprio negro em si, conseguiu se ver.

Helena denomina de resistência suas passagens com êxito pelos obstáculos que
enfrentou para manter o negócio e sustentar a família, pois com o passar dos anos houve
um aumento no preço dos aluguéis de imóveis e salas comerciais no centro de Rio Grande
inviabilizando sua permanência nestes espaços. Atualmente transferiu o salão para a sua
residência, ou seja, não paga mais aluguel e colabora com a renda vinda de seu trabalho.
Helena explica:

Como faltou reconhecimento (...) como falta para toda empreendedora negra,
principalmente. A gente vive uma resistência todos dias, uma dificuldade que
tu tem que matar um leão por dia. Então é difícil se manter, mas eu me mantive,
com essa profissão, por 30 anos. Por isso, eu chamo de resistência porque eu
consegui me manter com todas essas dificuldades e com essas crises todas.

Helena relata também como foi difícil acompanhar o crescimento dos filhos e
administrar seu próprio negócio. Helena se considera com sorte de ter podido contar com
a ajuda da mãe na educação dos filhos, pois suas jornadas de trabalho ultrapassavam com
facilidade as oito horas diárias, por isso foi importante contar com o apoio da família e
assim não ter "(...) perdido meus filhos para a vida”, nas palavras de Helena.
Os que trabalham de maneira informal terminam por se deparar com a
precarização do trabalho, muitos não têm recursos para pagar a previdência e poder ter a
devida aposentadoria. (DRUCK e OLIVEIRA, 2008; CASTRO e NUNES, 2014). Essa
realidade de precariedade do trabalho faz parte da vida de Helena, pois ela enfrenta uma
jornada de trabalho que chega, com frequência, a mais 12 horas corridas, o que dificulta
o cuidado com a própria saúde e, dificulta também, conforme relata a entrevistada, o
acompanhamento do crescimento de seus filhos.

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Esses e outros desafios são relatados por Helena. No que se refere aos desafios
econômicas, a entrevistada é enfática ao observar que:

A realidade das mulheres que não tem poder aquisitivo nenhum e tiveram que
começar de alguma forma seus negócios é muito difícil. Então, foi pedindo
fiado mesmo (...) não pedi dinheiro porque nem tinha na época a quem pedir e
o estabelecimento a qual eu aluguei foi uma pessoa conhecida que me cedeu
um espaço não mais que 3 metros quadrados (...).

Helena também falou da discriminação que sofreu em alguns momentos em sua


profissão e relata acontecimentos que a deixaram muito triste:

Complicado porque as pessoas às vezes quando chegavam na porta do meu


estabelecimento perguntavam: Ah! Você só trabalha com esse tipo de cabelo?
E eu disse: não nós não trabalhamos só com este tipo de cabelo nós trabalhamos
com qualquer tipo de cabelo, mas nossa especialização é étnicos-afro, mas nós
trabalhamos com qualquer um, tanto é que eu corto o cabelo de qualquer pessoa
independente de ela ser branca, preta, amarela. Na verdade pra nós não tem
diferença cabelo é cabelo.

A cabelereira está inserida dentro de um contexto de múltiplas identidades


propostas por Crenshaw (2009), a exposição acontece em diversos eixos de opressão por
ser mulher, por ser negra e por ser pobre. Quando acontece dela ser dona do próprio
negócio, continua a luta em relação à discriminação racial de gênero e de classe
reafirmando sua capacidade a todo o momento de poder ser cabelereira perante ao público
que entra em seu estabelecimento.
Essas situações inquietavam Helena, diversas vezes, além de ser preconceituosos,
o público não reconhecia o valor do trabalho dela:

A gente não pode ter um preço que na verdade nem era absurdo. Nesse ponto,
nem sempre tive meu trabalho valorizado como deveria né. Porque tu te manter
na sociedade e principalmente nesse meio do comércio todo esse tempo sem
nenhum investimento por fora, não é fácil ainda mais as pessoas reclamando
do preço.

Para Helena uma questão importante era ser reconhecida enquanto profissional
especialista em cabelos étnicos-afro. Ela acredita que há oportunidade de explorar o
mercado, mas tem que ter persistência e resistência:

Tô falando, mas visando a forma como nós negros vimos o valor da


vida, o valor da luta diária. Eu acho que tem sim como manter o
negócio, mas tendo em mente que nada é muito fácil. A gente sabe
disso, mas para nós negras empreendedoras temos que ter consciência
que não é fácil nós lutamos todos os dias para se manter dentro daquele
padrão que na verdade não é nosso.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante da pesquisa realizada, entende-se que foi alcançado o objetivo da pesquisa
que é analisar os desafios sociais e econômicos das mulheres negras empreendedoras na
cidade de Rio Grande. Assim, ao analisar os dados da pesquisa, percebeu-se as
entrevistadas Camila, Edna e Helena precisaram superar uma série de dificuldades para
conseguirem abrir e manter seus negócios. Por exemplo, Camila e Helena tiveram que
deixar seus filhos com parentes para poderem trabalhar e manter seus empreendimentos,
Edna e Camila são microempreendedoras registradas e tiveram seus espaços cedidos pela
família e Helena e Camila trabalham dentro dos seus ramos com aspectos da etnia afros.
As três entrevistas possuem pontos em comum: o apoio familiar, reafirmação da
identidade enquanto mulher negra e a discriminação racial sofrida no qual se constatou
como desafio social, nos casos de Edna e Camila na forma de invisibilidade e estereotipia
e no caso de Helena criticas ao cabelo afro, as três se reconhecem enquanto mulheres
empreendedoras. (DE ANDRADE FERNANDES, 2016).
Essas mulheres lutam diariamente pela permanência em seus espaços, a forma
com que tentam se sobressair em situações de racismo se soma a busca de um
reconhecimento e satisfação profissional. A mulher ainda é vista na condição de
submissão (BUTLER, 1998) (DAVIS, 2016) no caso das mulheres negras ainda há
agravantes, pois o significado de emancipação para elas aconteceu de maneira diferente
já que as mesmas lidam com diversos eixos de opressão (Crenshaw, 2002) salientando
que as mulheres objetos deste estudo são expostas ao racismo, ao machismo e as
desigualdade sociais tendo que viver nessas condições e em diversas situações são
inviabilizadas e silenciadas pela sociedade, vivendo em um ambiente hostil. (DAVIS,
2016).
Já os desafios econômicos identificados pela autora Arman(2015) onde traz a
realidade sobre as mulheres serem em diversas situações provedoras de suas famílias; e
por outros indicadores, por exemplo, acesso a linhas de credito, apoio da família na renda,
etc. Os desafios econômicos encontrados nos relatos são: Camila e Edna tiveram o apoio
da família em relação a cedência de imóveis para elas começarem os negócios, Helena
começou seu empreendimento pagando um aluguel simbólico de um espaço para uma
prima. As três tiveram prévio planejamento para abrir o negócio. No caso de Edna com a
indenização trabalhista ela começou a pensar na escolinha. No caso de Camila o marido
fez a aquisição das máquinas de costura para a abertura do atelier. No caso de Helena
economicamente no início foi árduo a mesma relata de não ter dinheiro para comprar os

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produtos para o salão, inicialmente não tendo outra opção a não ser pedir fiado, pois não
tinha acesso a linhas de crédito. Todas as entrevistadas relataram se tivessem mais
dinheiro fariam ainda mais melhorias em seus negócios.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
Faculdade de Ciências Econômicas
Departamento de Ciências Administrativas
Centro de Pós-Graduação e Pesquisas em Administração

PROJETO DE PESQUISA
A Afetividade Ético-Política e a Gestão de Práticas Participativas
nas Organizações: a Experiência da Gabinetona da Câmara
Municipal de Belo Horizonte

Pesquisadora: Ana Paula Paes de Paula

Belo Horizonte

2022

1
1. Resumo.............................................................................................................. p. 3

2. Antecedentes que geraram o novo problema de pesquisa e seus objetivos. p. 4

2.1 Antecedentes e Problema de pesquisa.......................................................... p. 4


2.2. Objetivo Geral............................................................................................... p. 7
2.3. Objetivos Específicos..................................................................................... p. 7

3. Metodologia da Pesquisa.................................................................................. p. 8

4. Resultados Esperados, Plano de Trabalho e Cronograma de Atividades... p. 11

4.1. Resultados Esperados.................................................................................... p. 11


4.2. Plano de Trabalho......................................................................................... p. 11
4.3. Cronograma de Atividades........................................................................... p. 13
4.4. Equipe e Parcerias......................................................................................... p. 13

5. Relevância e Impacto do Projeto para o Desenvolvimento Científico


Tecnológico ou de Inovação................................................................................. p. 13

6. Referências Bibliográficas............................................................................... p. 15

7. Anexo 1: Termo de Consentimento Livre e Esclarecido................................ p. 22

8. Anexo 2: Roteiro Preliminar de Entrevista.................................................... p. 23

2
1. RESUMO
O problema de pesquisa a ser abordado é como aspectos da afetividade ético-política
influenciam a gestão de práticas participativas nas organizações, tendo como objeto teórico
esse conceito enquanto elemento que dinamiza a intersubjetividade e a alteridade, buscando,
em Brandão (2012), em Habermas (2012a; 2012b) e nos aportes da psicanálise, subsídios para
refletir sobre o aprimoramento da ação comunicativa. O objetivo geral é validar e consolidar
aportes teóricos que possibilitem a investigação da influência de aspectos da afetividade ético-
política na gestão de práticas participativas nas organizações, de modo a fazer recomendações
para seu aprimoramento e para a incorporação de tecnologias sociais. Os objetivos específicos
são: consolidar o conceito de afetividade ético-política proposto por Brandão (2012),
desenvolvido por meio de aportes habermasianos e psicanalíticos para abordar sua influência
na gestão das práticas participativas nas organizações; investigar, validando os aportes teóricos
construídos, como aspectos da afetividade ética-política podem influenciar a gestão de práticas
participativas, por meio de uma experiência exemplar - a Gabinetona da Câmara Municipal de
Belo Horizonte; apontar recomendações para o aprimoramento da gestão de práticas
participativas, bem como para a incorporação de tecnologias sociais; e, paralelamente,
disseminar o conhecimento produzido por meio de participações em eventos científicos, além
da produção de artigos e de uma proposta de livro sobre a temática. Do ponto de vista
metodológico, a primeira parte da pesquisa proposta tem cunho eminentemente teórico, pois
se dedica à reconstrução de teorias, conceitos e ideias, bem como quadros de referências e
condições explicativas da realidade, buscando rigor conceitual, análises acuradas e
argumentação diversificada. Na segunda parte da pesquisa, pretendemos realizar uma
investigação qualitativa, envolvendo levantamento documental e entrevistas semi-estruturadas
com as representantes da Gabinetona da Câmara Municipal de Belo Horizonte, sendo que os
dados serão submetidos à análise de conteúdo, por meio de codificação e categorização
temática, bem como à elaboração micrológica benjaminiana, subsidiando recomendações para
um repensar das práticas de gestão.

Palavras-Chave: participação; subjetividade; afetividade ético-política; teoria crítica;


psicanálise; tecnologias sociais

3
2. ANTECEDENTES QUE GERARAM O NOVO PROBLEMA DE PESQUISA E SEUS
OBJETIVOS

2.1. Antecedentes e Problema de pesquisa

A pesquisadora vem se dedicando ao estudo da dimensão sóciopolítica da administração


pública societal, que envolve os direitos dos cidadãos e a participação na gestão pública, desde
seu doutoramento em 2003, que originou o livro “Por uma nova gestão pública” (PAES DE
PAULA, 2005). Dessa forma, no ciclo de pesquisa CNPQ 2017-2019, abordou a questão da
participação social, que subsidiou o Observatório de Práticas Participativas, ativo entre 2016-
2018 no Núcleo de Pesquisa sobre Participação e Subjetividade (NEPS), sob sua coordenação
no CEPEAD-UFMG. Os resultados dessa investigação evidenciaram que a afetividade ético-
política é uma dimensão pouco explorada nas investigações sobre a gestão de práticas
participativas.

Além disso, averiguou-se que, apesar da importância desse aspecto nas relações e práticas
sociais, no campo das organizações, o tema é comumente abordado em uma perspectiva
instrumental no domínio da inteligência emocional, do fenômeno da liderança e da gestão da
subjetividade e emoções. Há também algumas pesquisas sobre emoções nas organizações, que
procuram abordar sua importância e a perspectiva do indivíduo (CONRAD; WHITTE, 1984;
RAFAELI, A.; SUTTON, 1987; MAANEN; KUNDA, 1989; MUMBY; PUTNAM, 1992;
KELLY; BARSADE, 2001; FINEMAN, 2002; NORD, W. R.; FOX, 2004), mas muito poucas
exploram a questão da emoção enquanto motor das práticas sociais organizacionais. Uma
exceção é o trabalho de Leitão, Fortunato e Freitas (2006), que faz uma abordagem a partir da
visão biológica. A pesquisadora busca no projeto que está sendo proposto, uma visão mais
psicanalítica e, além disso, pretende investigar não o conceito de emoção, mas o conceito de
afetividade, que é mais complexo (e ainda mais inexplorado na literatura), na medida em que
abrange a história do sujeito e sua construção subjetiva e, não somente, suas reações emocionais
às situações que se colocam em sua vida e trabalho.

Dessa forma, no ciclo Universal 2019-2021, a pesquisadora voltou suas atenções para a
dimensão da afetividade em seu entrelaçamento com o social, de modo que buscou abordar,
para constituir um marco teórico, a afetividade ético-política, definida como aquela que é
“inconcebível sem a presença do outro”, que demanda a construção de “espaços sociais de

4
construção subjetiva e de fortalecimento da individualidade e da sociabilidade” (BRANDÃO,
2012, p.16).

Já o conceito de afeto considerado nessa pesquisa, partiu da elaboração de Brandão (2012), que
procura situá-lo no campo ético-político, fazendo recurso às contribuições de Vygostky,
Espinosa e Adorno, às quais a pesquisadora somou aportes habermasianos e psicanalíticos. De
uma concepção negativa e irracional de afetividade, buscou-se transitar para uma concepção
positiva, reconhecendo a importância das emoções, bem como considerando as mesmas como
condição indispensável para qualquer ação ético-política e para a própria gestão.

À primeira vista, a afetividade se revela como um tabu. Na década de 1960, Adorno (2006) já
admitia que a formação cultural requer amor, mas colocava isso com ressalvas, temendo ser
interpretado equivocadamente como um “sentimental”. No entanto, a subjetividade e a
afetividade como elementos que interferem na construção e na gestão de processos
democráticos e participativos, são dimensões que não deveriam ser esquecidas, pois como
aponta Brandão (2012), o homem modifica o mundo na medida em que confere significado a
tudo que constrói coletivamente, com a mediação da comunicação intersubjetiva.

Nesse sentido, a subjetividade é fruto de uma relação entre história, cultura e psique, que resulta
em ações que se situam em um horizonte de sentido, permeadas pela afetividade e pela ética.
Assim, “...revolucionário é o agir consciente e afetivo de sujeitos que transformam as suas
realidades, não apenas em um momento político de ruptura, mas cotidianamente, através do
encontro com outro” (BRANDÃO, 2012, p. 178).

Essa noção de afetividade ético-política, que enfatiza principalmente a alteridade e a


intersubjetividade, gerou mais um ciclo de pesquisa apoiado pelo Edital Universal CNPQ
(2022-2024), no qual se pretende fazer uma interlocução com aportes teóricos habermasianos,
em especial o agir comunicativo (HABERMAS, 2012a; 2012b). Em trabalhos anteriores (PAES
DE PAULA, 2015), a pesquisadora constatou que a ação comunicativa se baseia em um
consenso fundado, que depende de uma situação linguística ideal, na qual “[...] a comunicação
não é perturbada nem por coações externas ao processo comunicativo, nem por distorções
internas a esse processo, resultantes de uma deformação sistemática da comunicação”
(ROUANET, 2001, p. 294).

5
No entanto, essa situação linguística ideal sofre deformações que vão além de nossas
percepções conscientes, pois estão enraizadas em processos subjetivos e afetivos, que também
são inconscientes. Em seu trabalho, a pesquisadora averiguou que os sujeitos “... sofrem
obstruções de caráter psíquico ou ideológico, o que ameaça seus atos representativos – ou seja,
a expressão livre de atitudes, sentimentos e intenções isentos de ilusão – que estão sujeitos, [...]
à falsa identificação e à falsa projeção” (PAES DE PAULA, 2015, p. 235).

O próprio Habermas admite que a teoria da ação comunicativa tem lacunas, uma vez que não
aponta saída para a superação da falsa identificação e da falsa projeção, que são fenômenos
psíquicos que se manifestam coletivamente, engendrando a ideologia. Para preenchê-las,
Habermas recorre ao modelo freudiano. É nessa trilha, recorrendo à aportes da psicanálise, que
a pesquisadora seguiu para explorar a afetividade ético-política, pois como aponta Rouanet
(2001, p. 320-321):

A psicanálise é uma sistematização da intersubjetividade sui generis que se


produz entre analista e analisando – um diálogo no início assimétrico, entre
duas partes objetivamente desiguais, mas visando induzir no paciente um
trabalho de autorreflexão que o leve a emancipar-se de causalidades
incompreensíveis, e o torne apto a participar, em condições de igualdade dos
processos discursivos.

Em outras palavras, analogamente, a pesquisadora buscou compreender a possibilidade de


transposição da psicanálise para grupos sociais como forma de superar assimetrias discursivas
e provocar autorreflexão individual e coletiva, aprimorando a ação comunicativa, ou seja, os
processos intersubjetivos e as condições de alteridade – a afetividade ético-política, bem como
suas repercussões na formação de sujeitos políticos e coletivos.

Em síntese, no atual ciclo de investigação (2019-2021) a pesquisadora consolidou o objeto


teórico que gerou o problema de pesquisa do próximo ciclo de 36 meses do Universal CNPQ
(2022-2024): como aspectos da afetividade ético-política influenciam a gestão de práticas
participativas nas organizações, partindo desse conceito enquanto elemento que dinamiza a
intersubjetividade e a alteridade?

6
Tomando como ponto de partida esse marco conceitual esboçado entre 2019-2021, que indica
aportes teóricos para investigação da influência de aspectos da afetividade ético-política na
gestão de práticas participativas nas organizações, a pesquisadora pretende, no ciclo 2022-2024,
fazer uma consolidação e validação desses aportes em uma pesquisa empírica, de modo a
realizar recomendações para aprimorar a gestão. Para operacionalizar isso, a intenção é abordar
a experiência exemplar da Gabinetona da Câmara Municipal de Belo Horizonte, que se destaca
pelos seus traços de gestão coletiva e compartilhada de questões de interesse público e popular,
bem como pela utilização tecnologias sociais, compreendidas conceitualmente como “...um
conjunto de técnicas, metodologias transformadoras, desenvolvidas e/ou aplicadas na interação
com a população e apropriadas por ela, que representam soluções para a inclusão social e a
melhoria das condições de vida” (ITS, 2004).

2.2 Objetivo Geral:


O objetivo geral é validar e consolidar aportes teóricos que possibilitem a investigação da
influência de aspectos da afetividade ético-política na gestão de práticas participativas nas
organizações, de modo a fazer recomendações para seu aprimoramento e para a incorporação
de tecnologias sociais.

2.3. Objetivos Específicos:


Os objetivos específicos são:
• consolidar o conceito de afetividade ético-política proposto por Brandão (2012),
desenvolvido por meio de aportes habermasianos e psicanalíticos, para abordar sua
influência na gestão das práticas participativas nas organizações;
• investigar, validando os aportes teóricos construídos, como aspectos da afetividade
ética-política podem influenciar a gestão de práticas participativas, por meio de uma
experiência exemplar - a Gabinetona da Câmara Municipal de Belo Horizonte;
• apontar, tomando como base esses aportes teóricos, recomendações para o
aprimoramento da gestão de práticas participativas, bem como para a incorporação de
tecnologias sociais;
• disseminar, paralelamente, o conhecimento produzido por meio de participações em
eventos científicos, além da produção de artigos e de uma proposta de livro sobre a
temática.

7
3. METODOLOGIA DA PESQUISA
Tendo em vista o objetivo geral e os objetivos específicos anteriormente apresentados, a
pesquisadora compôs a investigação em três partes: Fase Teórica, Fase Empírica e Fase de
Consolidação de Resultados.

Na Fase Teórica, a pesquisadora se dedicará à reconstrução de teorias, conceitos e ideias, bem


como quadros de referências e condições explicativas da realidade, buscando rigor conceitual,
análises acuradas e argumentação diversificada (DEMO, 1994; 2000). Nessa fase da pesquisa,
o estudo se insere em na perspectiva de metodologia qualitativa de investigação, uma vez que
focaliza a palavra escrita, bem como os processos que engendram os fenômenos políticos, de
modo que a análise dos mesmos será feita de forma indutiva, enfatizando os sentidos
apreendidos, combinando inferência descritiva e explicativa (BOGDAN; BIKLEN, 1994).

Partindo do marco conceitual esboçado no ciclo 2019-2021, que a pesquisadora está


terminando de elaborar em artigo a ser submetido ao ENEO 2022, se retomará a exploração
bibliográfica, reforçando a inter-relação dos conceitos anteriormente apontados (afetividade
ético-política, ação comunicativa, participação, intersubjetividade, alteridade, processos
psíquicos conscientes e inconscientes, inconsciente político), aprofundando ainda mais a
discussão principalmente a partir pensamentos de Lev Vygostky (1991; 2001; 2004), Baruch
Espinosa (1989; 2003), Theodor Adorno (2006; 2009; 2015), Juergen Habermas (1989; 2012a;
2012b) e Sigmund Freud (1996a; 1996b; 1996c; 1996d; 1996e; 1996f) e também fazendo
recurso às elaborações de Brandão (2012), Chauí (2005; 2006) e Rouanet (1999; 2001; 2006).
Esse percurso auxiliará a pesquisadora a fazer uma consolidação dos aportes teóricos que
guiarão em seguida a fase empírica prevista nesse projeto.

Na Fase Empírica, a pesquisadora pretende fazer uma investigação, também de natureza


qualitativa, que se organizará em três momentos: exploratório, de coleta de dados e de
análise de dados. O propósito dessa fase é obter dados e realizar análises que possibilitem
validar os aportes teóricos previamente consolidados, evidenciando como aspectos da
afetividade ético-política podem influenciar a gestão das práticas participativas, na contínua
constituição de sujeitos políticos e coletivos, por meio do estudo da experiência exemplar da
Gabinetona da Câmara Municipal de Belo Horizonte. A partir desse estudo empírico, a
pesquisadora buscará apontar, na Fase de Consolidação de Resultados, recomendações para
o aprimoramento da gestão das práticas participativas e para o uso de tecnologias sociais.

8
Objeto empírico dessa pesquisa, a Gabinetona da Câmara Municipal de Belo Horizonte é o
mandato coletivo (https://gabinetona.org), aberto e popular constituído a partir de 2016 pela
Frente de Esquerda BH Socialista, que elegeu Áurea Carolina e Cida Falabella, incorporando
Bella Gonçalves, que era uma das suplentes com co-vereadora, que passaram a trabalhar em
uma equipe única, estratégias compartilhadas e posicionamentos coletivos. Em 2017, Áurea
Carolina se elege deputada federal e Andreía de Jesus, deputada estadual, sendo que Bella
Gonçalves assume a posição de vereadora e a experiência é ampliada para as três esferas de
governo – municipal, estadual e federal. Em 2020, Bella Gonçalves se elege vereadora e Iza
Lourença também, dando continuidade à experiência.

A Gabinetona é definida no site https://gabinetona.org, como “... uma experiência de ocupação


cidadã da política institucional”, um projeto “sem precedentes na política brasileira” que “reúne
quatro mandatos parlamentares em um mandato coletivo com ações e estratégias
compartilhadas”, sendo que envolve “mais de 90 ativistas, trabalhadoras e pesquisadoras em
estreito diálogo e cooperação com cidadãs e movimentos, em sintonia com as lutas populares”.
Nessa pesquisa, interessa focalizar como essa experiência é gerida, de forma compartilhada,
pelas mandatárias em conjunto e junto aos envolvidos, identificando como aspectos da
afetividade ético-política, delineados no marco teórico erigido pela investigadora, influenciam
práticas participativas imbricadas nessa gestão, que se apoiam, segundo as idealizadoras, em
tecnologias sociais que buscam construir um mandato aberto, coletivo e popular. Considerando
essas características da experiência, que apontam para aspectos que envolvem afetividade e
dialogicidade, ela se configura como exemplar para essa investigação.

Assim, será realizada a investigação empírica qualitativa prevista na segunda fase, envolvendo
levantamento documental e entrevistas semi-estruturadas com as mandatárias da Gabinetona e
outros potenciais entrevistados. Em um primeiro momento exploratório, será realizada uma
pesquisa preliminar sobre a experiência da Gabinetona, abordando o material documental e
bibliográfico que já tenha sido produzido a respeito e se realizará uma discussão dos conceitos-
chave utilizados nessa fase da pesquisa, a partir da literatura existente, buscando estabelecer
seu marco conceitual: a gestão de práticas participativas no que se refere à incorporação de
tecnologias sociais (DAGNINO; BRANDÃO; NOVAES, 2004; NEDER, 2010; FRAGA,
2011; FEENBERG, 2012; DAGNINO, 2014; DIAS, 2014; DAGNINO, 2019).

9
Após esse momento exploratório, a pesquisadora pretende passar para o momento de coleta
de dados, elaborando um instrumento para apoiar as entrevistas semi-estruturadas a serem
realizadas com as mandatárias e outros potenciais entrevistados indicados por elas. Essas
entrevistas serão realizadas e gravadas mediante o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
(TCLE – Anexo 1) e roteiro preliminar (Anexo 2), com aprovação do Comitê de Ética em
Pesquisa (COEP) da UFMG. Em seguida serão transcritas, para posterior momento de análise
dados, que contará com duas etapas. Em uma primeira etapa de análise de dados, se fará
uma análise de conteúdo (BARDIN, 1977; KRIPPENDORFF, 1990; MORAES, 1994;
MATTOS, 2010), por meio de processos de codificação e categorização de unidades temáticas,
guiadas pelo marco teórico, identificadas no material coletado.

Em uma segunda etapa da análise de dados, a pesquisadora pretende realizar uma elaboração
micrológica benjaminiana, que é a metodologia de análise de dados desenvolvida por ela em
seu livro “Estilhaços do Real” (PAES DE PAULA, 2012) e em sua monografia para conclusão
da formação teórica em psicanálise, no Círculo Psicanalítico de Minas Gerais (CPMG) (PAES
DE PAULA, 2014). A base da elaboração micrológica é “...a ideia benjaminiana de que os
estilhaços da história precisam ser recolhidos segundo uma associação livre, para que a uma
constelação se constitua e sua imagem seja reveladora das contradições sociais, mostrando de
um lado a catástrofe e de outro, a possibilidade utópica” (PAES DE PAULA, 2012, p. 104).
Em outras palavras, ao lidar com uma realidade incompleta e fragmentada, bem como as
“deformações” próprias de toda pesquisa, atentar para os elementos singulares, como
recomenda a perspectiva epistemológica freudiana, para vislumbrar nos dados analisados
possíveis percursos de transformação.

Em seguida ocorrerá a Fase de Consolidação de Resultados, na qual a análise de dados e os


achados da investigação serão discutidos e validados junto às entrevistadas para posterior
confecção de artigos e do relatório de pesquisa, nos quais se discutirá a validação dos aportes
teóricos da afetividade ético-política, além de se fazerem recomendações para o aprimoramento
da gestão de práticas participativas e para o uso de tecnologias sociais, tendo em vista uma
disseminação mais ampla das descobertas realizadas na pesquisa.

4. RESULTADOS ESPERADOS, PLANO DE TRABALHO E CRONOGRAMA DE


ATIVIDADES

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4.1 Resultados Esperados
O projeto, que terá duração de 36 meses, tem em vista os seguintes resultados, voltados para a
investigação proposta, que compõem o plano de trabalho apresentado a seguir:
• Publicação de um artigo sobre a pesquisa em periódico Qualis A1 ou A2;
• Submissão de um artigo sobre a pesquisa em periódicos Qualis A1 ou A2;
• Participação em dois eventos científicos da área em grupos temáticos afins ao projeto:
apresentação e publicação em anais;
• Formação de Recursos Humanos (Mestrados, Doutorados, Bolsistas) de acordo com a
captação de discentes e conclusão de trabalhos;
• Relatório Técnico a ser apresentado ao CNPQ no final do projeto de pesquisa;
• Elaboração de uma proposta de livro baseada no projeto a ser submetido a uma editora
no término do projeto de pesquisa.

A partir dessas atividades, a pesquisadora obterá os resultados do projeto, que vão além dos
achados esperados na investigação a ser realizada, envolvendo a produção técnica e científica
anteriormente apontadas.

4.2. Plano de Trabalho


Para alcançar os objetivos e resultados anteriormente previstos, a implementação deste projeto
foi estruturada em um plano de trabalho de seis semestres, totalizando trinta e seis meses, nos
quais se distribuem as fases teórica, empírica e de consolidação de resultados da pesquisa.

Semestre 1:
Fase Teórica:
• Pesquisa bibliográfica sobre o tema da investigação;
• Retomada dos textos produzidos e do relatório apresentado (ciclo 2019-2021) para
consolidação do marco conceitual da afetividade ético-política.

Semestre 2:
Fase Teórica:

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• Pesquisa bibliográfica sobre o tema da investigação;
• Retomada dos textos produzidos e do relatório apresentado do (ciclo 2019-2021) para
consolidação da afetividade ético-política.

Semestre 3:
Fase Empírica:
• Momento Exploratório: levantamento de dados documentais, definição do marco
teórico sobre gestão de práticas participativas e tecnologia social, elaboração de
instrumentos de coleta de dados e contatos com potenciais entrevistados;
• Confecção de artigo para participação em evento científico e posterior submissão para
periódico qualificado.

Semestre 4:
Fase Empírica:
• Momento de Coleta de Dados: realização de entrevistas;
• Momento de Análise dos dados: Etapa de Análise de Conteúdo e Etapa de Elaboração
Micrológica.

Semestre 5:
Fase de Consolidação de Resultados:
• Validação da análise dos dados e dos resultados junto às entrevistadas, discussão da
validação do marco teórico da afetividade ético-política, recomendações para
aprimoramento da gestão de práticas participativas e para o uso de tecnologias sociais;
• Confecção de artigo para participação em evento científico e posterior submissão para
periódico qualificado.

Semestre 6:
Fase de Consolidação de Resultados:
• Confecção de Relatório Técnico para o CNPQ;
• Elaboração e submissão de proposta de livro para uma editora.

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4.3. Cronograma de Atividades
ATIVIDADES Fase Fase Fase de
Teórica Empírica Consolidação
de Resultados
Semestre 1: X
Semestre 2: X
Semestre 3: X
Semestre 4: X
Semestre 5: X
Semestre 6: X

4.4. Equipe e Parcerias

Equipe
• Coordenadora Geral do Projeto
• Profa. Ana Paula Paes de Paula (CEPEAD-UFMG).
• Pesquisadoras Envolvidas:
Profa. Cristiane Costa (FURG)
Profa. Juliana Pinto (UFES)
Profa. Ketlle Paes (FURG)
Profa. Mariana Mayumi (UFV)
Profa. Renata Bicalho (UFJF)

Parcerias:
• Grupo Organizações, Racionalidade e Desenvolvimento (UFSC)
• Instituto de Estudos Avançados Transdisciplinares (IEAT-UFMG)

5. RELEVÂNCIA E IMPACTO DO PROJETO PARA O DESENVOLVIMENTO


CIENTÍFICO, TECNOLÓGICO OU DE INOVAÇÃO

A afetividade ético-política é uma dimensão pouco explorada nas atuais investigações sobre a
gestão de práticas participativas nas organizações. Além disso, averiguou-se que, apesar da
importância desse aspecto nas relações e práticas sociais, no campo das organizações, o tema é

13
comumente abordado em uma perspectiva instrumental, no domínio da Inteligência emocional
e da gestão da subjetividade e emoções. No âmbito desse projeto de pesquisa abordaremos a
afetividade em seu entrelaçamento com o social, de modo que trataremos de uma afetividade
ético-política, que é aquela que “inconcebível sem a presença do outro”, que demanda a
edificação de “espaços sociais de construção subjetiva e de fortalecimento da individualidade
e da sociabilidade” (BRANDÃO, 2012), levando a um repensar da gestão. Ilustraremos isso
empiricamente com uma experiência inédita e relevante nesse campo que é a gestão coletiva e
compartilhada na Gabinetona da Câmara Municipal de Belo Horizonte.

O impacto esperado desse projeto é que o estudo da afetividade ético-política e suas


repercussões sobre a ação comunicativa, exemplificada pela experiência da Gabinetona da
Câmara Municipal de Belo Horizonte, possa nos ajudar a compreender melhor o que este
dificultando a gestão de práticas participativas nas organizações e a incorporação de tecnologias
sociais, de modo a nos munir de conteúdos para fazer recomendações para melhoria da
comunicação e da dialogicidade nos mesmos. Dessa forma, o projeto tem como propósito
avançar no contexto do conhecimento científico, com proposições teóricas, e no âmbito do
conhecimento técnico, fazendo recomendações para aprimoramento de práticas de gestão no
campo da administração pública.

Assim, de um modo geral, trata-se do desenvolvimento de uma abordagem teórica e


metodológica inovadora no campo da administração pública, uma vez que investiga a
afetividade ético-política e suas repercussões no campo da ação comunicativa e da participação,
tendo em vista um repensar da gestão e a ampliação do uso de tecnologias sociais. Além disso,
a experiência da gestão compartilhada e coletiva da Gabinetona da Câmara Municipal de Belo
Horizonte também é inédita, sendo que o projeto oportuniza divulgá-la nacionalmente e
internacionalmente, sob o fomento do CNPQ. Por outro lado, ao abordar a gestão pública, a
participação e as tecnologias sociais, esse projeto se mostra aderente às áreas de Tecnologias
para o Desenvolvimento Sustentável e para Qualidade de Vida do CNPQ, apontadas no presente
Edital.

14
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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19
7. ANEXO 1: TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

Título do Projeto de pesquisa: “A Afetividade Ético-Política e a Gestão de Práticas


Participativas nas Organizações: a Experiência da Gabinetona da Câmara Municipal de Belo
Horizonte”
Pesquisadora Responsável: Profa. Ana Paula Paes de Paula
Nome do participante:

Você está sendo convidado (a) para ser participante do Projeto de pesquisa intitulado “A
Afetividade Ético-Política e a Gestão de Práticas Participativas nas Organizações: a
Experiência da Gabinetona da Câmara Municipal de Belo Horizonte” de responsabilidade
do (a) pesquisador (a) Profa. Dra. Ana Paula Paes de Paula.

Leia cuidadosamente o que se segue e pergunte sobre qualquer dúvida que você tiver. Caso se
sinta esclarecido (a) sobre as informações que estão neste Termo e aceite fazer parte do estudo,
peço que assine ao final deste documento, em duas vias, sendo uma via sua e a outra do
pesquisador responsável pela pesquisa. Saiba que você tem total direito de não querer participar.

1. O trabalho tem por objetivo validar e consolidar aportes teóricos que possibilitem a
investigação da influência de aspectos da afetividade ético-política na gestão de práticas
participativas nas organizações, de modo a fazer recomendações para seu aprimoramento e para
a incorporação de tecnologias sociais.

2. A participação nesta pesquisa consistirá em uma entrevista de cerca de uma hora e meia,
realizada por uma das investigadores que compõem a equipe da pesquisa, por meio de questões
de um roteiro semi-estruturado, com gravação mediante autorização, que será realizada
presencialmente ou por videoconferência em dia e horário previamente agendados com o/a
participante.

3. Durante a execução da pesquisa poderão ocorrer riscos de relação à privacidade e


confidencialidade, mas a abordagem e o tratamento de dados serão realizados de forma cuidadosa
de modo a evitar esse tipo de prejuízo aos participantes.

20
4. Os benefícios com a participação nesta pesquisa serão possa nos ajudar a compreender
melhor o que este dificultando a gestão de práticas participativas nas organizações e a
incorporação de tecnologias sociais, de modo a nos munir de conteúdos para fazer
recomendações para melhoria da comunicação e da dialogicidade nos mesmos. Dessa forma, o
projeto tem como propósito avançar no contexto do conhecimento científico, com proposições
teóricas, e no âmbito do conhecimento técnico, fazendo recomendações para aprimoramento de
práticas de gestão no campo da administração pública que beneficiarão os gerentes e os
cidadãos.

5. Os participantes não terão nenhuma despesa ao participar da pesquisa e poderão retirar sua
concordância na continuidade da pesquisa a qualquer momento.

6. Não há nenhum valor econômico a receber ou a pagar aos voluntários pela participação, no
entanto, caso haja qualquer despesa decorrente desta participação haverá o seu ressarcimento
pelos pesquisadores.

7. Caso ocorra algum dano comprovadamente decorrente da participação no estudo, os


voluntários poderão pleitear indenização, segundo as determinações do Código Civil (Lei nº
10.406 de 2002) e das Resoluções 466/12 e 510/16 do Conselho Nacional de Saúde.

8. O nome dos participantes será mantido em sigilo, assegurando assim a sua privacidade, e se
desejarem terão livre acesso a todas as informações e esclarecimentos adicionais sobre o estudo
e suas consequências, enfim, tudo o que queiram saber antes, durante e depois da sua
participação.

9. Os dados coletados serão utilizados única e exclusivamente para fins desta pesquisa, e os
resultados poderão ser publicados.

Qualquer dúvida, pedimos a gentileza de entrar em contato com Profa. Ana Paula Paes de Paula,
pesquisadora responsável pela pesquisa, telefone: (31) 99558-7807, e-mail:
appp.ufmg@gmail.com, com o Comitê de Ética em Pesquisa da UFMG, localizado na Av.
Antônio Carlos, 6627, Pampulha – Belo Horizonte – MG – cep 31270-901, Unidade
Administrativa II – 2º andar – sala 2005, telefone: (31) 3409-4592, e-mail: coep@prpq. Ufmg.
br, atendimento de segunda a sexta-feira das 09:00 – 11:00hs – 14:00 – 16:00, e/ou com a

21
Comissão Nacional de Ética em Pesquisa-CONEP, telefone (61) 3315-5877, e-
mail: conep@saude.gov.br.

Eu, __________________________________________, RG nº _____________________


declaro ter sido informado e concordo em sem participante do Projeto de pesquisa acima
descrito.

Cidade, _____ de ___________________ de 20____.

____________________________________________________
Assinatura do participante

22
8. ANEXO 2: ROTEIRO PRELIMINAR DE ENTREVISTA

1. Relate sua trajetória profissional e como ela se relaciona com a “Gabinetona”.

2. Descreva como as práticas cotidianas na “Gabinetona” contribuem para uma gestão


participativa e colaborativa das questões de interesse público.

3. Você considera que as relações de afeto e a ética entre com as pessoas envolvidas contribui
para que a participação e colaboração se estabeleçam? Ou trata-se de um obstáculo?

4. Você considera que a ausência de presença física interfere na construção de relações sociais
e no desenvolvimento dos afetos?

5. Como as práticas da “Gabinetona” contribuem para o aprimoramento e evolução de


tecnologias sociais?

6. Você considera que a predominância do gênero feminino na “Gabinetona” contribui para que
a participação e colaboração se estabeleçam? Ou trata-se de um obstáculo?

7. Você gostaria de acrescentar alguma declaração sobre sua atuação na “Gabinetona” no que
se refere à contribuição para que as relações sejam mais participativas, colaborativas e
dialógicas?

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