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Lacan põe seriamente em xeque a tendência do pensamento filosófico a

petrificar a verdade separando-a do processo da sua constituição. Como a


verdade pode ser igualmente absoluta e temporal? Talvez seja esta a mais
instigante problemática filosófica, pois, não sendo absoluta, não é verdade, se for
intemporal não será humana.
Duas estratégias - o dogmatismo e o relativismo - se debateram ao longo da
história da filosofia para rechaçar a verdade como tarefa, ou, se se quer, a tarefa da
verdade. O idealismo a situa já pronta de uma vez por todas como ideia; o
relativismo a dissolve na infinita diversidade dos pontos de vista. De um lado, a
verdade eternamente fixada, de outro, efêmera. (José Luiz Furtado, em resenha do
livro do Gilson).

- Trechos retirados da tese de Doutorado do Gilson Iannini.

Em 21 de setembro de 1897, Freud escreve a Fliess : “não existe no


inconsciente nenhum 'índice de realidade’, de tal modo que não é possível
distinguir, uma da outra, a verdade e a ficção investida de afeto” (Freud, 1956,
p.191).
*
Qual o regime de verdade apropriado a esta disciplina que descortina uma
modalidade do sujeito que não se caracteriza pela transparência dos atos de
consciência ou pela autodeterminação da vontade?
*
Como pensar o estatuto da verdade em uma disciplina cujo objeto define-se pela
sua resistência à apreensão conceitual clássica? Finalmente, uma vez que a própria
possibilidade de uma metalinguagem é problematizada 1, que modalidades
discursivas podem melhor apreender a especificidade deste estranho objeto
teórico que “quase só se manifesta por suas falhas”2?
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Neste registro do verdadeiro, quando entramos, não saímos mais. Para minorar a
verdade como ela merece, é preciso ter entrado no discurso analítico. O que o

1 Para Lacan, não há metalinguagem, isto é, não é possível distinguir níveis ou 'tipos' lingüísticos a
partir de critérios como prevalência de termos denotativos ou estruturas gramaticais profundas, que
seriam seguidos de sentidos figurados, tropos, etc
2 Escreve F. Regnault, “essa elucubração extravagante em torno de um ser que quase só é
verificável por suas falhas, o inconsciente” (Regnault, 2001, p. 75).
discurso analítico desaloja, coloca a verdade em seu lugar, mas não a abala. Ela é
reduzida, mas indispensável (S.XX, p.98).
*
Qual é, pois, este lugar da verdade que o discurso analítico designa? Com que
meios – e com que direitos – o discurso analítico desloca o lugar da verdade?
Porque, afinal, este deslocamento e esta redução não abalam a verdade
enquanto tal, a ponto de ela permanecer indispensável?
*
A orientação fundamental continua a mesma: a verdade não é o resultado feliz da
reconciliação do sujeito e do objeto; ela não pertence à ordem das essências, nem
ao campo do sentido; ela não é um predicado exterior de uma proposição; ela não é
o desvelamento de um ser original, mas um processo estruturado; ela não pode
ser justificada metalinguisticamente; sua estrutura é ficcional. Todos estes
aspectos serão comentados neste trabalho.
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Em 1973, é o célebre início de Televisão, que tomamos como segunda baliza deste
trabalho:
Digo sempre a verdade: não-toda, porque dizê-la toda (...) é impossível,
materialmente: as palavras faltam. É mesmo por este impossível que a verdade
tem a ver com o real (OE: 508).

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Um sujeito nasce quando já não lhe é possível recuar diante da força de um
acontecimento, extraindo desse não recuo (dessa não recusa) uma verdade.
Verdade aqui entendida no sentido que lhe confere Badiou: como a fidelidade a um
acontecimento de onde se extrai um ponto-sujeito. (Lúcia Castello Branco).
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Lacan afirmava que a verdade do sofrimento neurótico é ter a verdade como causa.
Essa nova forma de masoquismo é antes de tudo um tipo de paixão pela verdade,
que no mais das vezes aparece como desamparo e insegurança. (Dunker, p. 199)
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Se o sofrimento e o amor são os dois motivos de qualquer processo transformativo,
é fundamental reter que no centro de qualquer experiência de sofrimento há um
grão de Real e uma pitada de verdade, que aspira a uma nova forma de vida.
(Dunker).
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O que é uma verdade senão uma reclamação? Pelo menos isso responde ao que
nós, analistas, se é verdade que existem psicanalistas, estamos encarregados de
coletar. E não o recolhemos sem observar que a divisão a marca. Marque a
verdade. Que ela NÃO PODE contar TUDO para si mesma. (S.21, classe de 23 de
Abril de 74 via Alfredo p.59-60).
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Trata-se aqui de uma noção de verdade que é, pelo menos até certo ponto,
performativa, quer dizer, importa não sua correspondência a um estado de coisas
previamente dado, mas sua incidência no sentido de instaurar uma
reestruturação do estado de coisas.

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