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lógica e da análise da linguagem, esclarecer conceitos filosóficos e científicos. Entre seus nomes mais
destacados estão Bertrand Russel, Gottlob Frege e Ludwig Wittgenstein.
5 Corrente de pensamento desenvolvida a partir das ideias de Sigmund Freud (1856-1939), neurologista
austríaco.
6 Edgar Morin (1921), filósofo francês.
capacidade de se perceber presente no espaço e no tempo, um ente que não só testemunha
com espanto os fatos do cotidiano, relevantes ou não, senão também que deseja de algum
modo transcendê-los. Trata-se de uma necessidade de conferir sentido, de identificar algum
significado nas realidades com as quais bate de frente diariamente. Por esta razão, o
sofrimento humano é maior que o sofrimento animal e, somado às dores biológicas, faz
com que nossa existência traga consigo um desespero angustiante, como diria Kierkegaard7,
um desespero que em última análise não passa de uma confissão de que estamos
provisoriamente instalados num vasto oceano, perigoso e hostil, cujo sentido nos é
totalmente misterioso.
Não espanta, portanto, que desde o homem grego antigo busquemos compreensão
dos fenômenos que vá além dos sinais sensíveis. Com Platão, há quase 25 séculos, surgiu o
convite para uma “mudança de plano”, para a abertura da alma para a transcendência, com
o conseqüente reconhecimento de que o mundo carregue uma origem inteligível, as
famosas idéias. Transcorridos alguns séculos, veio o cristianismo e tomou para si a
responsabilidade de consolar os homens em seu desespero: ofereceu aos filhos de Deus
aquilo que Julián Marías chamou de perspectiva cristã, que é nada mais nada menos que
contemplar a realidade do mesmo modo que Santo Agostinho, ou seja: sub specie aeternitatis.
Com melhores palavras, explicou-o Olavo de Carvalho:
8 CARVALHO, Olavo de. O Jardim das Aflições: de Epicuro à ressurreição de César: ensaio sobre o
materialismo e a religião civil. 2ª ed. rev. Rio de Janeiro: É Realizações, 2000, p. 113.
9 Esta é a própria definição de filosofia segundo Olavo de Carvalho.
10 Um bom livro introdutório sobre a filosofia aristotélica, V. ADLER, Mortimer J. Aristóteles para Todos, Rio,
É Realizações, 2013.
No plano individual, biográfico, as coisas também se dão assim. Qualquer fato de
nossas vidas é melhor compreendido se conectado com outro, e mais outro, e mais outro.
Narrar a própria história é buscar o fio da meada, ou melhor ― nas palavras de Ortega y
Gasset ―, é narrar o argumento que dá coesão à existência pessoal. Voltamos nosso olhar ao
passado porque nele parece residir uma parte de nós: aquilo que já fizemos e que já fomos;
e projetamo-nos imaginativamente ao futuro para vislumbrar para o eu trajetórias possíveis
que, obviamente, ainda não foram realizadas. É isto o que nos motiva a concretizar algo. O
presente é, nestes termos, conexão fugidia; a posse, por sua vez, é mais ou menos consciente,
mais ou menos ampla e condizente com o argumento que tenhamos de nós mesmos neste
aspecto da eternidade que chamamos de tempo. Por isto, viver e narrar a própria vida é
poder olhar para si mesmo sub specie aeternitatis. Cada momento presente, para o homem
maduro, é um ensaio diante do olhar que a eternidade sempre tem sobre ele. A diferença é
que na eternidade nada é fugidio, tudo está escrito para sempre, na conformidade da
Providência e dentro da única história que nos interessa participar, segundo Santo
Agostinho: a história da Salvação.
II
Mas onde entra Machado de Assis nisso tudo? E o que faz Machado de Assis no
livro que, de certa forma, inaugura (1881) o Realismo no Brasil? O que ele nos diz,
efetivamente, com as memórias de Brás Cubas?
Antes de responder à pergunta, é preciso separar as coisas: a obra e o homem.
Machado, o Bruxo do Cosme Velho, tem gênio para a arte que manifesta. Sua vida
é no mínimo um caso enigmático, como disse Otto Maria Carpeaux:
11CARPEAUX, Otto Maria. História da Literatura Ocidental. 3ª ed. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial,
2008. v. 3. p. 1736.
profissionais, todo o sarcasmo, ironia e cinismo que julga necessários para manifestar o
brasileiro. Burilado e ensinado pelo amigo e mestre Manuel Antônio de Almeida12, Machado
de Assis se apodera do realismo, mas o adapta ao Brasil. Por isto, extirpa toda a eloqüência
das frases e cria uma arte dura porém verdadeira, que se utiliza do que há de mais revelador
e vergonhoso do “DNA” nacional. É o que nos ensina o crítico Rodrigo Gurgel quando
analisa Dom Casmurro:
14 Ibid. p. 178.
15 VERÍSSIMO apud BELO, José Maria. A Inteligência do Brasil: ensaios sobre Machado de Assis, Joaquim Nabuco e
Rui Barbosa. 3ª ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1938, p. 53. Disponível em:
<http://www.brasiliana.com.br/obras/a-inteligencia-do-brasil-ensaios-sobre-machado-de-assis-joaquim-
nabuco-euclides-da-cunha-e-rui-barbosa>. Acesso em: 5 jan. 2015.
16 Ibid. p. 55.
cemitérios se parecem.” O humorista céptico “só sabia olhar a vida sub specie
mortis”, e por meio desse “só” ele superou as limitações vitorianas,
tornando-se atual para todos os tempos. Histórias sem Data chama-se um
volume de contos seus, e “sem data” é a sua obra inteira.17
Sub specie mortis é diametralmente oposto a sub specie aeternitatis. O olhar de Brás
Cubas sobre a própria vida, que é vista “desde fora”, é o de quem não compreende nem
almeja compreender o argumento de sua própria biografia. Lembra-nos aquela máxima
orteguiana: “a vida é feita do que eu faço e do que me acontece”; nesta perspectiva, a de Cubas é
feita apenas do que lhe aconteceu. Não há princípio de autoria, tensão vocacional, altura e
profundidade. Apesar de morto, olha os fatos como se estivesse vivo e padecesse a vida.
Nada lhe abre o campo visual, pois não há eternidade que dê forma aos sucessos da sua
existência. Passada a experiência da morte, Brás Cubas está tão morto como estava em
vida; tão preso no além como estava, em vida, às condensações inconscientes e automáticas
do presente.
“A vida para mim era a pior das fadigas”, confessa o defunto. Para quantos de nós ela
também não é assim? Quantos não têm invertido a promessa de Cristo e tornado a própria
existência um fardo denso e um jugo pesado?
É compreensível, desde a perspectiva do narrador machadiano, a importância que o
acaso teve sobre a sua biografia (“o acaso determinou o contrário”). É este narrador que termina
sua história fazendo contas miseráveis do saldo de sua existência:
Somadas umas cousas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve
míngua nem sobra, e conseguintemente que saí quite com a vida. E
imaginará mal; porque, ao chegar a este outro lado mistério, achei-me com
um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas:
― Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa
miséria.
Para quem vê tudo sub specie mortis, nada resta senão ser comida para os vermes. A
morte machadiana é um fechamento fúnebre da vida. O consolo da arte, aqui, virá da
negativa deste emplasto: a vida não é apenas isso, a morte não é isso. Hipocondríacos são
os pobres de visão, pois deles será a decomposição na terra.