Você está na página 1de 8

Sobre a perspectiva eterna

Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis

Clube do Livro ― junho de 2014

Quando um fato qualquer acontece diante de nossos olhos e então passamos a


saber de algo porque o vimos, dá-se um testemunho. Eu sei porque vi. Ainda que o grau de
certeza seja alto ― afinal, ninguém precisou me contar o fato ―, é comum que em casos
assim soframos a angústia de perceber algo sem o compreender (testemunho não é
sinônimo de domínio). Saber que vi não é exatamente saber do que vi.
Mas o que significa, então, compreender um fato? Um fato é composto de
incontáveis elementos complexamente sobrepostos que não se apresentam separada e
didaticamente, mas antes se revelam com a força brutal de uma realidade inteiriça. A análise
de qualquer fato, do menor que seja, serve para atualizar na testemunha a limitação de sua
condição: a cada vez que tentamos racionalizar os pormenores de um acontecimento,
precisamos confessar, quase imediatamente, todos os outros que nos escapam. A abstração
― que nada mais é que uma separação ― é um recurso e um desvio; através dela,
compreendemos e perdemos algo, pela simples razão de que aquilo que foi separado pela
nossa operação mental precisa ser unido novamente, o que não é garantia do conhecimento
de uma totalidade (no caso, o conhecimento de um fato). Desde Aristóteles1, passando por
Francis Bacon2, Kant3 e tantos outros, a filosofia tenta solucionar o dilema do
conhecimento da realidade em si mesma e não de suas sombras, como simboliza o mito da
caverna platônico.
A tentação da escola analítica4 é a apreensão científica e objetiva da realidade
através da capacidade de análise, ou seja, através da separação e do escrutínio das partes. É
uma obsessão hipnótica, diria Olavo de Carvalho, como igualmente são o freudismo5, o
marxismo e o pragmatismo. Essa mania de abstrair é uma doença espiritual que, por sua
impossibilidade de compreender o todo, faz um recorte apaziguador que acomoda a
realidade ao método investigativo que propõe. Para os marxistas, por exemplo, tudo tem
apenas motivo econômico: e nada mais; de modo que a teia na qual se insere qualquer fato
da realidade é “simplificada” com arremedos de “apreensões indiscutíveis”, segundo seus
defensores. Na pedagogia o mesmo erro foi cometido, o que provocou a reação de Edgar
Morin6 por meio da sua proposta, de inspiração aristotélica, de um ensino complexo que
visasse à unidade do conhecimento e não à fragmentação disciplinar moderna.
O que acontece é que o homem é um ser instalado no mundo, como ensinam os
pensadores da Escola de Madri. O ser humano sofre com a limitação imposta pelas coisas
materiais; e com estas mesmas coisas precisa ir vivendo. A substancial diferença que o
distancia das bestas e plantas cegas é que o homem tem história, tem capacidade narrativa,
e isto faz com que sua natureza seja fruto da posse de si mesmo, e não de uma imposição
existencial condicionada pela dimensão biológica da espécie a que pertence. Max Weber
destacava que o homem é objeto que escapa aos métodos das ciências naturais porque tem
consciência, pelo que pode empreender atos em nome de um valor, de uma tradição, de um
amor. O homem não é um rato de laboratório, um animal passivo, conduzido por forças
cegas que não pode compreender ou controlar. O homem é, antes, um ente que tem a

1 Aristóteles (384-322 A.C.), filósofo grego.


2 Francis Bacon (1561-1626), filósofo inglês.
3 Immanuel Kant (1724-1804), filósofo alemão.
4 A escola analítica, ou filosofia analítica, é uma corrente de pensamento do século XX que busca, através da

lógica e da análise da linguagem, esclarecer conceitos filosóficos e científicos. Entre seus nomes mais
destacados estão Bertrand Russel, Gottlob Frege e Ludwig Wittgenstein.
5 Corrente de pensamento desenvolvida a partir das ideias de Sigmund Freud (1856-1939), neurologista

austríaco.
6 Edgar Morin (1921), filósofo francês.
capacidade de se perceber presente no espaço e no tempo, um ente que não só testemunha
com espanto os fatos do cotidiano, relevantes ou não, senão também que deseja de algum
modo transcendê-los. Trata-se de uma necessidade de conferir sentido, de identificar algum
significado nas realidades com as quais bate de frente diariamente. Por esta razão, o
sofrimento humano é maior que o sofrimento animal e, somado às dores biológicas, faz
com que nossa existência traga consigo um desespero angustiante, como diria Kierkegaard7,
um desespero que em última análise não passa de uma confissão de que estamos
provisoriamente instalados num vasto oceano, perigoso e hostil, cujo sentido nos é
totalmente misterioso.
Não espanta, portanto, que desde o homem grego antigo busquemos compreensão
dos fenômenos que vá além dos sinais sensíveis. Com Platão, há quase 25 séculos, surgiu o
convite para uma “mudança de plano”, para a abertura da alma para a transcendência, com
o conseqüente reconhecimento de que o mundo carregue uma origem inteligível, as
famosas idéias. Transcorridos alguns séculos, veio o cristianismo e tomou para si a
responsabilidade de consolar os homens em seu desespero: ofereceu aos filhos de Deus
aquilo que Julián Marías chamou de perspectiva cristã, que é nada mais nada menos que
contemplar a realidade do mesmo modo que Santo Agostinho, ou seja: sub specie aeternitatis.
Com melhores palavras, explicou-o Olavo de Carvalho:

Pela razão, o homem filósofo saltava de um plano para o outro: do plano da


fenomenalidade instável, movediça, enganosa, para o plano das essências,
do ser verdadeiro. Este plano era considerado superior, por abranger e
ultrapassar o mundo dos fenômenos (ele contém todos os fenômenos
manifestos, e mais um sem-número de essências não manifestadas ou
possibilidades), e também por ser estável, imutável, eterno. Esta postura se
tornou mais clara e autoconsciente a partir do platonismo, porém já era a
dos eleáticos. Em suma, ela se baseia na crença de que todos os fatos e
todos os entes são fenômenos — “aparecimentos” — de alguma coisa: são
exteriorizações ou exemplificações das essências ou possibilidades, contidas
eternamente na Inteligência Divina. O filósofo grego contemplava as coisas,
portanto, sub specie æternitatis, isto é, na categoria da eternidade, à luz da
eternidade; buscava nelas a sua significação eterna, superior à aparência
fenomênica e transitória. Esta contemplação conferia a essas coisas,

7 Søren Aabye Kierkegaard (1813-1855), filósofo, teólogo e escritor dinamarquês.


portanto, uma dignidade e uma realidade superiores, uma consistência
ontológica superior.8

A consistência ontológica a que se refere Olavo de Carvalho era, talvez de modo


inconsciente, justamente o que o homem buscava enxergar nos fenômenos múltiplos que
testemunhava. Quando o platonismo irrompeu no cenário cultural grego e a filosofia
socrática foi posta em prática, a “unidade do conhecimento na unidade da consciência”9 se tornou o
objetivo do homem teorético, ávido do sentido e dignidade concedidos pelas realidades
superiores que conscientemente passou a amar. Cada fato, desde então, não devia ser
encarado como um instante atomístico, um caso isolado, mas como um dos inumeráveis
vértices da cadeia de fatos que compõe uma estrutura da realidade, plena de significado.
Com Aristóteles, logo em seguida, firmou-se a capacidade de captarmos as essências do que
existe no próprio mundo sensível em que vivemos, ou seja, a de intuir as formas. Por
exemplo, um cão nos oferece a forma de cão; um ato de amor, a forma correspondente10.
Neste sentido, coisas como a escola analítica, o cartesianismo e o marxismo não são
mais nada senão recuos ou tropeços, novas quedas do homem em seu caminhar filosófico.
Algo fora conquistado por nós, uma etapa havíamos atingido, ou melhor, conscientizado: a
percepção do lugar tensional a que pertencemos, percepção de uma instalação provisória
que nos impele a aceitar a realidade em sua inteireza e, para explicá-la, a confessar as nossas
limitações.
Se as possibilidades que temos de conhecer são incontáveis, também incontáveis
são as nuances da constituição do todo (ou da Presença Total, como prefere Louis Lavelle).
A compreensão de um fato ou de uma realidade qualquer, de coisas aparentemente simples
como um cão, está para além da análise. Aqui surge o “salto” que Aristóteles diz acontecer
quando entra em cena a intuição. O sentido de um fato não está na sua explicação (a qual é
impossível, dado que racionalizamos por partes); está no fundo perene que o sustenta no
tempo e no espaço e o conecta com todos os outros fatos, fundo o qual podemos chamar
de Providência Divina. O olhar contemplativo e confesso diante da realidade, intimamente
configurado pelos insondáveis mistérios do absoluto, eis o que significa enxergar as coisas
sub specie aeternitatis.

8 CARVALHO, Olavo de. O Jardim das Aflições: de Epicuro à ressurreição de César: ensaio sobre o
materialismo e a religião civil. 2ª ed. rev. Rio de Janeiro: É Realizações, 2000, p. 113.
9 Esta é a própria definição de filosofia segundo Olavo de Carvalho.
10 Um bom livro introdutório sobre a filosofia aristotélica, V. ADLER, Mortimer J. Aristóteles para Todos, Rio,

É Realizações, 2013.
No plano individual, biográfico, as coisas também se dão assim. Qualquer fato de
nossas vidas é melhor compreendido se conectado com outro, e mais outro, e mais outro.
Narrar a própria história é buscar o fio da meada, ou melhor ― nas palavras de Ortega y
Gasset ―, é narrar o argumento que dá coesão à existência pessoal. Voltamos nosso olhar ao
passado porque nele parece residir uma parte de nós: aquilo que já fizemos e que já fomos;
e projetamo-nos imaginativamente ao futuro para vislumbrar para o eu trajetórias possíveis
que, obviamente, ainda não foram realizadas. É isto o que nos motiva a concretizar algo. O
presente é, nestes termos, conexão fugidia; a posse, por sua vez, é mais ou menos consciente,
mais ou menos ampla e condizente com o argumento que tenhamos de nós mesmos neste
aspecto da eternidade que chamamos de tempo. Por isto, viver e narrar a própria vida é
poder olhar para si mesmo sub specie aeternitatis. Cada momento presente, para o homem
maduro, é um ensaio diante do olhar que a eternidade sempre tem sobre ele. A diferença é
que na eternidade nada é fugidio, tudo está escrito para sempre, na conformidade da
Providência e dentro da única história que nos interessa participar, segundo Santo
Agostinho: a história da Salvação.

II

Mas onde entra Machado de Assis nisso tudo? E o que faz Machado de Assis no
livro que, de certa forma, inaugura (1881) o Realismo no Brasil? O que ele nos diz,
efetivamente, com as memórias de Brás Cubas?
Antes de responder à pergunta, é preciso separar as coisas: a obra e o homem.
Machado, o Bruxo do Cosme Velho, tem gênio para a arte que manifesta. Sua vida
é no mínimo um caso enigmático, como disse Otto Maria Carpeaux:

[...] um mulato de origens proletárias, autodidata, torna-se o escritor mais


requintado da sua literatura, espírito cheio de arrière-pensées, que exprimiu
menos em versos parnasianos do que em romances meio satíricos à maneira
de Thackeray. Em Machado de Assis havia várias influências estrangeiras, e
são justamente as influências inglesas que o distinguem dos seus patrícios,
em geral afrancesados: Swift e Sterne, sobretudo. Mas influências não
explicam o gênio.11

O fundador da Academia Brasileira de Letras, respeitado escritor, servidor público


irretocável, verte literariamente, ao contrário do que faz nas relações pessoais e

11CARPEAUX, Otto Maria. História da Literatura Ocidental. 3ª ed. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial,
2008. v. 3. p. 1736.
profissionais, todo o sarcasmo, ironia e cinismo que julga necessários para manifestar o
brasileiro. Burilado e ensinado pelo amigo e mestre Manuel Antônio de Almeida12, Machado
de Assis se apodera do realismo, mas o adapta ao Brasil. Por isto, extirpa toda a eloqüência
das frases e cria uma arte dura porém verdadeira, que se utiliza do que há de mais revelador
e vergonhoso do “DNA” nacional. É o que nos ensina o crítico Rodrigo Gurgel quando
analisa Dom Casmurro:

A geração espontânea, teoria desprezada em ciência, merece igual


tratamento na literatura. Gênios não nascem do nada. No caso de Machado
de Assis, a leitura meticulosa de Memórias de um sargento de milícias,
quando ele revisa o livro para a edição definitiva de 1862/1863, representou
a culminância dos ensinamentos que Manuel Antônio de Almeida lhe
transmitira desde os 17 anos. Aquele que se tornaria o Bruxo do Cosme
Velho teve, sem dúvida, várias outras influências, mas seu salto sobre o
abismo da retórica nacional recebeu impulso significativo desse amigo e
protetor. Dele, Machado aprendeu que a grandiloqüência e o
sentimentalismo exacerbado dos românticos eram superfluidades — e dele
herdou [...] a sutileza da frase, a habilidade para construir narradores
irônicos e o hábito — transformado em verdadeira mania — de se dirigir ao
leitor como se este fosse seu cúmplice.13

Em outro trecho, Gurgel alude à recepção da obra machadiana entre


contemporâneos como Silvio Romero. Grande parte dos críticos da época não aceitaram
de imediato seu modo de escrever; ainda assim, a força de sua arte demonstraria todo o seu
vigor naquilo a que se propunha e que pode ser resumido desta forma:

Há quem não goste de Machado — e eu próprio sou um admirador


comedido dos seus romances —, mas é inegável que, a partir de Memórias
póstumas de Brás Cubas (1881), sua obra enfrentou com bravura a
recepção tortuosa e arrevesada — leiam-se, por exemplo, as análises de
Sílvio Romero —, pisoteou a maioria dos ficcionistas, compreendendo seus
antecedentes, contemporâneos e pósteros, e conseguiu reafirmar a lição de

12Manuel Antônio de Almeida (1831-1861), escritor fluminense.


13GURGEL, Rodrigo. Muita Retórica, Pouca Literatura: de Alencar a Graça Aranha. Campinas: Vide Editorial,
2012. p. 177-178.
Manuel Antônio de Almeida, agora de maneira irretorquível: literatura e
eloqüência são forças antagônicas.14

Se o escritor tem reconhecidamente esta força, a obra ― Memórias Póstumas de Brás


Cubas ― falha naquilo que F. R. Leavis diz ser a função máxima da literatura: promover
novas possibilidades de vida. Esta é a missão da grande literatura, que contém o
“princípio vivente”, atualizador da altura e da profundidade da vida na alma do leitor. Mas
Machado, sabemos, não oferece altura nem profundidade (e não parece querer oferecê-las,
dado o seu cinismo realista). O que ele faz, nas palavras de José Veríssimo, é compor uma
“epopéia da irremediável tolice humana”.15
Nas Memórias Póstumas não há um ato sequer de nobreza, um gesto de piedade
genuíno. Como escreveu José Maria Belo16, na leitura sentimos “mais pesado do que nunca o
tédio de viver”. Acompanhamos página após página o diário de uma “vidinha” médio-
burguesa sem nenhuma profundidade, permeada de mesquinharias que enfadam qualquer
um que aspire a consolação estética. Afinal, que devaneio é aquele em que o defunto autor,
segundo nos narra, ascende aos céus e é recebido por um hipopótamo? Haveria imagem
mais irônica e sarcástica a ser usada pelo autor?
Machado de Assis, homem da virada do século ― testemunha das benesses
modernas e do cientificismo do século XIX ― parece incorrer na mesma tentação dos
analíticos e tutti quanti: na redução do campo fenomênico, o que possibilita uma relação do
tipo “humanitista” com a realidade, como pregava o personagem Quincas Borba (vai
vivendo o mais forte). O que vemos nas memórias do defunto autor é a perspectiva avessa
à eternidade, o que já ridiculariza a situação da temática da obra: o narrador, que é um
defunto e fala do além-mundo, pinta de maneira irônica o que para outros seria a realidade
eterna. O olhar machadiano é de outro tipo, como ensinou Carpeaux:

Há quem goste dos versos de Machado de Assis; mas a sua verdadeira


poesia está antes na atmosfera, meio irônica, meio fúnebre, que envolve os
berços e os leitos de morte dos seus personagens; até uma crônica sobre o
“Velho Senado” acaba com as palavras resignadas e maliciosas: “Se valesse a
pena saber o nome do cemitério, iria eu catá-lo, mas não vale; todos os

14 Ibid. p. 178.
15 VERÍSSIMO apud BELO, José Maria. A Inteligência do Brasil: ensaios sobre Machado de Assis, Joaquim Nabuco e
Rui Barbosa. 3ª ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1938, p. 53. Disponível em:
<http://www.brasiliana.com.br/obras/a-inteligencia-do-brasil-ensaios-sobre-machado-de-assis-joaquim-
nabuco-euclides-da-cunha-e-rui-barbosa>. Acesso em: 5 jan. 2015.
16 Ibid. p. 55.
cemitérios se parecem.” O humorista céptico “só sabia olhar a vida sub specie
mortis”, e por meio desse “só” ele superou as limitações vitorianas,
tornando-se atual para todos os tempos. Histórias sem Data chama-se um
volume de contos seus, e “sem data” é a sua obra inteira.17

Sub specie mortis é diametralmente oposto a sub specie aeternitatis. O olhar de Brás
Cubas sobre a própria vida, que é vista “desde fora”, é o de quem não compreende nem
almeja compreender o argumento de sua própria biografia. Lembra-nos aquela máxima
orteguiana: “a vida é feita do que eu faço e do que me acontece”; nesta perspectiva, a de Cubas é
feita apenas do que lhe aconteceu. Não há princípio de autoria, tensão vocacional, altura e
profundidade. Apesar de morto, olha os fatos como se estivesse vivo e padecesse a vida.
Nada lhe abre o campo visual, pois não há eternidade que dê forma aos sucessos da sua
existência. Passada a experiência da morte, Brás Cubas está tão morto como estava em
vida; tão preso no além como estava, em vida, às condensações inconscientes e automáticas
do presente.
“A vida para mim era a pior das fadigas”, confessa o defunto. Para quantos de nós ela
também não é assim? Quantos não têm invertido a promessa de Cristo e tornado a própria
existência um fardo denso e um jugo pesado?
É compreensível, desde a perspectiva do narrador machadiano, a importância que o
acaso teve sobre a sua biografia (“o acaso determinou o contrário”). É este narrador que termina
sua história fazendo contas miseráveis do saldo de sua existência:

Somadas umas cousas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve
míngua nem sobra, e conseguintemente que saí quite com a vida. E
imaginará mal; porque, ao chegar a este outro lado mistério, achei-me com
um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas:
― Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa
miséria.

Para quem vê tudo sub specie mortis, nada resta senão ser comida para os vermes. A
morte machadiana é um fechamento fúnebre da vida. O consolo da arte, aqui, virá da
negativa deste emplasto: a vida não é apenas isso, a morte não é isso. Hipocondríacos são
os pobres de visão, pois deles será a decomposição na terra.

17 CARPEAUX, op. cit., p. 1737.

Você também pode gostar