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ORDEM EMPÍRICA E TRANS EMPÍRICA (1)

Considerações sobre a relação


Ciência/Transcendência

Eleutério Nicolau da Conceição


“A consciência cerebral criadora não pode
nascer num organismo que, por sua vez,
fosse derivado de algum funcionamento
mecânico cego e que elaborasse, sem o sa-
ber e de modo não inteligente, algum ór-
gão capaz de inventar”.

Raymond Ruyer1

INTRODUÇÃO

Na sociedade atual predomina um ideal de tolerância que, cu-


riosamente, com o passar do tempo, acabou impondo certo
modo de pensar predominante na mídia escrita, televisada e
redes sociais, como expressão da verdade aceitável. Neste con-
texto rotulam-se pensamentos divergentes como indicadores
de preconceitos e mentalidade retrograda, no que parece ser
uma atualização da antiga fábula da “Roupa nova do Rei”.

1
Raymond Ruyer foi um filósofo francês(1902 – 1987)autor de importância
reconhecida internacionalmente. Entre outros temas, ele abordou a filoso-
fia da biologia e da informática. Seu livro mais conhecido, “A Gnose de Prin-
ceton” apresenta suas concepções filosóficas com o artifício literário de se-
rem opiniões de um grupo de cientistas gnósticos da Universidade de Prin-
ceton.

1
Guardadas as proporções, é possível que no caso moderno, o
rei também esteja nu. Existem também adeptos das ideias e
ideais cientifistas, com as quais descrevem o mundo e a socie-
dade, enquanto outros que preferem olhar a vida conside-
rando aspectos transcendentais, ignorados pelo primeiro
grupo. Entendemos que a tolerância que devemos defender,
não é a ideia simplória de que “cada um tem sua verdade”, a
qual, aplicada em toda sua possível extensão conduziria ao ab-
surdo: “todas as opiniões são igualmente aceitáveis”. Certa-
mente, cada um tem sua opinião sobre a verdade, e o direito
de defende-la, mas opiniões podem estar certas ou erradas. É
necessário a existência de critérios que nos permitam decidir a
respeito do conteúdo de verdade em proposições conflitantes.

Existem temas sobre os quais se podem examinar diferentes


opiniões e decidir sobre a validade de algumas em detrimento
de outras. Outros existem, porém, para os quais um exame
acurado revelará a ausência de dados suficientes para embasar
a decisão a favor ou contra determinada posição, caindo-se en-
tão no terreno das preferências pessoais. Esse é o caso quando
se trata de questões de fé, de religião. Nenhuma religião de-
monstra seus pressupostos por meio de artifícios de lógica, de
oratória, ou descobertas científicas. Constituem chamados
para a experimentação de particulares interpretações da reali-
dade, de uma vivência prática de valores, mais do que um con-
junto de proposições filosóficas sequenciadas sobre o mundo
material. Karen Armstrog discorre de maneira profundamente
clara sobre o tema:
“As verdades da religião são acessíveis, unicamente, a quem

2
está disposto a abandonar a preocupação consigo mesmo, o
egoísmo, a cobiça que, talvez de modo inevitável, estão entra-
nhados em nossa mente e em nossa conduta e são responsá-
veis por grande parte de nosso sofrimento. Os gregos chama-
vam esse processo de kenosis (esvaziamento). Quem renuncia
ao desejo de promover-se, denegrir os outros, chamar a aten-
ção para suas qualidades únicas e especiais e garantir para si
mesmo o primeiro lugar na hierarquia, sente imensa paz.” 2
(p. 37)

Existem ensaios cujos autores procuram ridicularizar crenças


tradicionais, com a apresentação de falsas equações como a
que contrapõe teorias científicas atuais com leitura literal do
gênesis. Em outras surgem proposições infantis, como “Deus é
tão poderoso, capaz de criar uma pedra que não possa carre-
gar?”, utilizando uma linguagem que mistura conceitos comuns
com transcendentes, refletindo a incompreensão de que
“Criar” algo do nada implica em sustentar sua existência, isto
é, “carregar”, o que evidencia a fragilidade e falta de sentido
da proposição. De mesma qualidade é a falsa lógica que cria
uma equação entre a divindade e a existência do mal propondo
como alternativas uma divindade toda poderosa e má, ou bon-
dosa e impotente. As diferentes religiões existentes já discor-
reram sobre a aparentemente contraditória existência do mal
em um universo gerido por um Deus bom, dando cada uma sua
explicação. Entre as múltiplas e diferente respostas, algumas
enfatizam o mal como ausência da divindade, respeitando o

22
Karen Armstrong. Em defesa de Deus : O que a religião realmente signi-
fica. Companhia de letras, 2011

3
direito de escolha individual, assim como a escuridão surge
pela ausência da luz.

https://aminoapps.com/c/dcamino-comics/page/blog/o-deus-da-
dc-universe/0XVo_pWCkuYv1DZZaw4QRQo4DWRr3B0aMk

Outras propõem que tudo faz parte do contexto, da vida ma-


terial, como início de uma sequência que continua em outras
dimensões da realidade, com os contratempos que rotulamos
como “Mal” sendo parte das lições a serem vividas e assimila-
das. Existe também a possibilidade de se usar a linguagem atual
para falar das coisas eternas, como considerar esta existência
a semelhança de uma “Realidade Virtual”, um gigantesco “vi-
deogame” multi-interativo, com bilhões de jogadores simultâ-
neos. Isto é uma atualização da antiga interpretação da vida
material como uma peça teatral, onde cada um vive um perso-
nagem. Todas as formulações tem como ponto comum a ideia
que este mundo não é a realidade final, completa, é apenas
“Vaidade” (no sentido de vão, efêmero) como diz o Eclesiastes

4
bíblico, ou “Maya”, ilusão, como queriam os antigos Hindus,
ou, guardadas as imensas e incomparáveis proporções, asse-
melhado a uma “realidade virtual”, na linguagem atual.

─ Mas nenhuma dessas proposições pode ser provada cientifi-


camente! Diriam os autores daqueles ensaios.

Claro que não. Elas supõem a existência de outra ordem de re-


alidade, fora do alcance de nossos instrumentos de medida,
uma ordem transempírica.

Do mesmo modo, tampouco se pode provar que elas sejam


falsas.

Karen Armstrong, no livro já citado, nos traz outra contribuição,


agora dentro do contexto hinduísta:
“(...) toda discussão dos Upanishads a respeito do atman sempre
acaba no silêncio, no reconhecimento de que a realidade última
ultrapassa a capacidade da linguagem. O verdadeiro discurso re-
ligioso não pode levar à verdade clara, definida, verificada empi-
ricamente. Como o brahman, o atmam3 é inapreensível.”(p.38)

E a seguir, ela apresenta um tópico importante para nossa re-


flexão pessoal:
“Hoje, existem pouquíssimos filósofos socráticos, cientes que
pouco sabem. Muitas pessoas acham que só elas sabem das coi-
sas e, em questões seculares, bem como religiosas, não parecem

3
Brahman – o todo transcendente; Atman- o núcleo transcendente da in-
dividualidade humana

5
dispostas nem mesmo a ouvir o ponto de vista rival ou avaliar
evidências que poderiam enfraquecer sua posição.”

Trazemos aqui duas reflexões: A primeira: existe um princípio


utilizado em arqueologia, que também serve aos nossos pro-
pósitos – “A ausência de evidências, não é evidência de ausên-
cia”. O fato de até o momento não terem sido encontradas evi-
dencias científicas comprobatórias dessas realidades, não é,
em si prova que elas não existem. Talvez, no futuro essas evi-
dências sejam encontradas.

A segunda é um questionamento: Será possível, com instru-


mentos de uma ordem inferior de realidade, captar dados de
uma ordem superior?

Há quem diga que o instrumento por excelência para captar


essas informações é a mente humana. Atenção! Não o inte-
lecto comum, funcionando no nível costumeiro, tradicional, no
qual nos encontramos em estado de semiconsciência, mais se-
guindo nosso próprio fluxo de pensamentos e sentimentos par-
ticulares, do que interagindo conscientemente com o mundo
que nos rodeia. É a proposição da existência de diferentes ní-
veis de consciência, que podem ser acessados por todos que a
isso realmente se dispuserem.

ORDEM EMPÍRICA

Muitos homens de ciência consideram a realidade composta

apenas pelos fenômenos passíveis de serem descritos matema-


ticamente, pelo que se pode pesar e medir, que podemos cha-
mar de “ordem empírica”. Evidentemente, deste ponto de

6
vista, dentro deste modelo de realidade não existe lugar para
fenômenos transcendentais, e a própria ideia de religião esta-
ria excluída. Contudo, um número crescente de cientistas não
compartilha dessa perspectiva limitada. Admitem ser o mundo
dos fenômenos que se podem manipular, pesar e medir (or-
dem empírica) o objeto por excelência da investigação cientí-
fica, mas que estes não perfazem em si a totalidade do cosmos.
Como nos relatam os pesquisadores das civilizações primitivas,

o relacionamento dos
nossos ancestrais com
o universo parece ter-
se iniciado dentro de
uma perspectiva má-
gica Viam-se criaturas
especiais fantasmagó-
https://cyberclio.worpress.com/2015/06/12/os-in-
ricas, de qualidades
cas/

divinas ou demoníacas como causa de cada fenômeno natural4.


A essa percepção da natureza associavam-se também aqueles
outros fenômeno, reflexos do mundo interior: os sonhos e as
visões experimentados por alguns indivíduos em estado de
consciência alterada. Os ritos religiosos desenvolveram-se

4
Carl Jung et alii, O Homem e seus Símbolos, Nova Fronteira, 1964. Neste
livro iniciado por Jung, seus discípulos apresentam uma análise dos símbolos
comuns a diferentes agrupamentos humanos através das eras e sua ligação
com a realidade subjetiva coletiva e individual.

7
como reação à manifestação daqueles seres incompreensíveis,
causadores dos fenômenos naturais. Era um esforço para fazer
corresponder o mundo mágico dos sonhos e das visões (onde
aqueles seres também se manifestavam), ao mundo palpável
do cotidiano. Em sua formulação original tinham o objetivo de
apaziguá-los ou de ganhar os seus favores. Podemos, entre-
tanto, perceber mesmo nessas formulações primitivas, certa
vinculação com a postura do futuro pensamento científico,
pois também buscavam nas manifestações as causas para os
efeitos observados. As observações da posição do sol nascente
e poente sobre o horizonte, por exemplo, indicavam o mo-
mento propício para as plantações e a colheita; a posição de
outros astros no céu coincidia com as cheias dos rios e as con-
dições do céu ao entardecer indicavam como seria o tempo no
dia seguinte.

De modo semelhante, a pro-


cura de poções e fórmulas má-
gicas, bem como a observação
acurada das plantas e com-
portamento animal, propiciou
o descobrimento de proprie-
dades curativas de plantas e
substâncias químicas. Os Pri-
meiros homens de ciência fo-
ram os xamãs, feiticeiros e

sacerdotes. Mesmo em povos com alto grau de civilização,


como os mesopotâmios e os egípcios, a medicina era praticada

8
principalmente pelos sacerdotes, e os primeiros astrônomos
foram também astrólogos.

O mundo ocidental teve, por muitos séculos, diversos aspectos


da vida controlados por uma organização religiosa. Do compor-
tamento cotidiano às concepções a respeito da natureza e ori-
gem do Universo, havia normas, orientações, quando não defi-
nições enfáticas a respeito do correto modo de viver e pensar.
Durante muito tempo, discordar ou questionar as definições
religiosas era temeridade que podia levar à tortura e morte. As
descobertas científicas ocorridas a partir do renascimento, (fins
do século XIV ao início do século XVI), começaram a deslocar o
homem e a terra do centro do Universo e foram lentamente,
trazendo novas maneiras de entender os processos observados
no mundo natural e humano, fazendo ruir antigos dogmas.

O conturbado período que sucedeu à implantação da reforma


Luterana/Calvinista na Europa, com seus conflitos religiosos
contra a até então tradicional dominação católica, deixou pro-
fundas cicatrizes no meio social, modificando costumes e influ-
indo decisivamente na revisão de antigos dogmas e maneiras
de interpretar a própria existência humana. Assim, durante os
séculos XVII e XVIII surgiram pensadores interessados em reto-
mar as antigas questões existenciais quanto à posição da hu-
manidade frente ao universo. Abandonando o tradicional para-
digma religioso, procuraram sua fundamentação na razão, na
capacidade de compreensão humana, revigorada com as cres-
centes descobertas da ciência. As vertentes principais de in-
fluências inspiradoras daqueles filósofos tinham sua origem

9
tanto na nova visão de mundo a eles apresentada pela “filoso-
fia natural”, a ciência, quanto nos antigos filósofos gregos

Galileu mostra suas descobertas a cardeais

traduzidos e apresentados à Europa pelos sábios renascentis-


tas que estimularam o desenvolvimento do pensamento filosó-
fico europeu. Os historiadores têm se referido à essa época
como a “Idade da razão”, e o movimento intelectual que a ca-
racterizou como “Iluminismo”. Defendendo o exame livre do
universo à luz da razão, os iluministas do século XVIII conside-
ravam os dados obtidos através dos sentidos como a única
fonte confiável de conhecimento. Viam a corroboração dessas
ideias nas descobertas científicas de Isaac Newton, cujas obras

10
científicas no campo da filosofia natural (hoje física), expressas
na linguagem precisa da matemática, assombravam a Europa,
e encontraram na pessoa de Voltaire um ardoroso divulgador.
Como consequência dessa visão cósmica fundamentada na ra-
zão, os postulados religiosos, por muitos séculos incontestes,
começaram a ser questionados. Durante muito tempo asso-
ciou-se o livre pensar ao exercício intelectual de refutação dos
dogmas religiosos que por séculos limitaram o pensamento hu-
mano. Esse livre pensar era inspirado em novas filosofias e nas
crescentes e estonteantes descobertas em todos os ramos da
ciência. Os iluministas, descontentes com a descrição do uni-
verso apresentada pela religião tradicional e suas consequên-
cias na vida comum, propunham a criação de uma religião na-
tural igual para todos os homens, com seus fundamentos no
conhecimento científico, o qual viria responder a todas as
questões e esclarecer todas as dúvidas. Nos anos que se segui-
ram, entre as revoluções e restaurações políticas, ora a Igreja
predominava e impunha suas diretrizes, ora os filósofos e radi-
cais liberais tentavam fazer valer sua visão de mundo. Os
pensadores que contribuíram para o crescimento desse movi-
mento foram muitos, separados no tempo e no espaço, perten-
centes a diferentes nações europeias. Desde o século XVI, Co-
pérnico, Galileu, Bacon, depois Descartes e Newton, entre ou-
tros, vinham minando o conhecimento rigidamente

11
estruturado e estabelecido sobre bases aristotélicas, formado-
res da cosmovisão aceita e subscrita pela Igreja, por mil anos.

Sir Isaac Newton

As contribuições de Newton, com a formulação da lei


de gravitação universal, explicando em novas bases toda a me-
cânica do sistema solar encantava os intelectuais. Voltaire, na
França, o maior admirador e divulgador da obra de Newton,
considerava-o a maior expressão do gênero humano. Essa con-
fiança exaltada na razão humana conduziu à busca pelo direito
de livre expressão, de livre exame de todas as questões com
fundamento apenas no poder do intelecto. Contestando ver-
dades estabelecidas, advogava-se para cada um o direito de
livre e publicamente expor suas ideias. As igrejas, com sua in-
tolerância, não tinham podido resolver os problemas sociais, e
em épocas historicamente recentes tinham sido a causa de
muitos deles. Governos totalitários, que controlavam e mani-
pulavam a opinião pública, também contribuíam para agravar

12
o quadro de incerteza e injustiça social, contra as quais clama-
vam os iluministas.

RELIGIÃO VERSUS CIÊNCIA

No campo religioso, apesar de as afirmações bíblicas


sobre a criação e ordem natural serem diretamente confronta-
das, muitos pensadores continuavam aceitando a ideia de um
Deus criador do mundo e formulador das leis que regem o uni-
verso. Esta particular visão, que teve e ainda tem muitos segui-
dores, foi chamada de deísmo. Os deístas propunham uma re-
ligião universal, baseada na razão e nas leis naturais. Do estudo
comparado dos diversos povos do mundo destacavam os pon-
tos de contato. A semelhança de comportamento humano,
mesmo em diferentes culturas, eram interpretados como indi-
cativo de uma unidade essencial da humanidade, de uma fra-
ternidade humana5 . Outros, porém opunham-se frontal-
mente à ideia de Deus, por ser impossível encontrá-lo através
da razão, num ateísmo explícito. Filósofos como David Hume,
John Locke, Immanuel Kant e Jean Jacques Rosseau defende-
ram essas ideias, inspiradoras do desenvolvimento de um oti-
mismo risonho e simplista em relação ao futuro da humani-
dade. Com leis adequadas e a força da razão, os humanos con-
quistariam a natureza, num progresso científico e intelectual
crescentes rumo ao paraíso na terra. O iluminismo prosperou
na Europa até à Revolução Francesa, quando muitos de seus
mentores foram confrontados com a imensa diferença entre
uma proposição teórica e sua aplicação prática. Curiosamente,

5
Ibid., pp.120-126.

13
as ideias iluministas foram obliteradas por reavivamentos reli-
giosos no final do século XVIII e início do século XIX. Mesmo
assim, muitas de suas consequências persistem até hoje. Os re-
flexos do pensamento científico na sociedade e seu confronto
com a visão religiosa merecem ser estudados.

Um místico em meditação, ultrapassando a “esfera das estrelas”.

A grande controvérsia entre o cristianismo tradicional e a ciên-


cia, que já se manifestava desde o tempo dos enciclopedistas
franceses, alcançou seu ápice quando da publicação da Evolu-
ção das espécies, de Charles Darwin. Os religiosos costumavam
interpretar o livro do gênesis (como muitos fundamentalistas o
fazem até hoje), como sendo a descrição sequenciada de fatos
históricos. Seguindo as genealogias bíblicas, calculou-se a data
da fundação do mundo no ano 4004 a C. Dentro deste ponto

14
de vista, claramente não há lugar para fósseis com milhares e
milhões de anos. Essa visão fundamentalista, que foi monopo-
lizadora do pensamento religioso no passado, já não tem a
mesma expressão em nossos dias, mesmo entre religiosos.
Pensadores cristãos, católicos e de denominações evangélicas,
têm publicado estudos eruditos sobre história, linguística e
exegese bíblica que modificaram profundamente a posição tra-
dicional6. Contudo e curiosamente, vários escritores e até ci-
entistas de renome, ao abordarem a controvérsia ciência/reli-
gião, o fazem considerando apenas a interpretação fundamen-
talista, como se esta fosse a única possível.

Ora, admitir aspectos transcendentes da realidade, não implica


em acreditar na literalidade do gênesis, na terra jovem ou nos
antigos dogmas eclesiásticos. E o oposto também é verdadeiro:
Aceitar a possibilidade das atuais teorias cosmogônicas evolu-
cionistas, não implica em negar aspectos transcendentes do
cosmos e da existência humana. Têm-se a impressão que esses
autores aprenderam na infância a interpretação fundamenta-
lista e até hoje a mantém, ainda que rejeitada. Parecem não ter
alcançado a compreensão que Isaac Newton, no século XVIII já
tinha sobre este tema, falando da divindade7:

6
Ver, entre outros, Jean Bottero, O Nascimento de Deus, Paz e Terra, 1993;
Diego Arenhovel, Assim se formou a Bíblia, Edições Paulinas, 1978; Alfred
Lappel, A Bíblia Hoje, Edições Paulinas, 1979.
7
Isaac Newton, Princípios Matemáticos, Os Pensadores, Abril Cultural, 1979,
p. 21.

15
(...) mas de certo modo, não é, em absoluto, corpóreo, de certo
modo, é totalmente desconhecido para nós. Assim como um ho-
mem cego não tem ideia das cores, nós também não temos ideia
da maneira pela qual o todo-sábio Deus percebe e entende todas
as coisas. Ele é completamente destituído de todo corpo e figura
corporal, e não pode, portanto, nem ser visto, nem ouvido, nem
tocado; nem deve ser adorado sob a representação de qualquer
coisa corporal.(...) muito menos, temos qualquer ideia da subs-
tância de Deus. (...) Mas, para servir de alegoria, Deus é dito ver,
falar, rir, amar, odiar, desejar, dar, receber, regozijar-se, estar
faminto, lutar, inventar, construir; pois todas as nossas noções
de Deus são tomadas dos caminhos da humanidade, por
uma certa similitude que, apesar de não ser perfeita, tem en-
tretanto, alguma semelhança.” (grifo nosso)

Os citados escritos dão a entender que uma “fé cega” nas atu-
ais proposições científicas é sinal de uma condição intelectual
superior, o que não é verdade. O conhecimento científico atual,
apesar de todo seu avanço, não alcançou o máximo desenvol-
vimento possível em todos os campos, não está, portanto,
isento de incoerências, erros e da necessidade de correções. O
desenvolvimento que por certo ocorrerá nas décadas e séculos
que virão, trarão alterações em muitas das proposições hoje
tidas como verdadeiras. As teorias cosmogônicas, por exemplo,
não cessam de sofrer alterações, com novos aspectos sendo
propostos, ainda que em sua maioria não cheguem ao grande
público, que repete as mais conhecidas teorias como se fossem
verdades incontestáveis, absolutas. Na verdade, esse campo,
da cosmogonia, é dos mais espinhosos. Conheço alguns físicos
que se recusam a considera-lo, dado seu caráter extrema-
mente “metafísico”. O que costuma ocorrer obedece a

16
seguinte sequência: Observações astronômicas recolhem da-
dos sobre o que existe no cosmos. De posse desses dados e se-
guindo proposições existentes, cria-se uma simulação matemá-
tica em computador propondo uma explicação para a realidade
observada, e compara-se os resultados da simulação com da-
dos de novas observações. Dessa comparação, introduzem-se
correções na simulação e continua-se o processo. Não existe
uma simulação cujos resultados concordem totalmente com as
observações e há quem diga que o conhecimento que cresce
vertiginosamente a cada dia é apenas sobre simulações de
computador, não sobre a realidade que aquelas pretendem si-
mular. Foi dessa maneira que surgiram os conceitos de “maté-
ria escura” e “energia escura”, como sugestão de correção
para as inconsistências entre as previsões das simulações e os
dados coletados. Dizem os astrofísicos que a matéria nos esta-
dos em que a conhecemos (sólido, líquido, vapor, plasma)
constitui apenas cerca de 4% da matéria total do Universo.
Uma reflexão então se impõe: O conhecimento parcial de 4%
da matéria existente, nos habilita a descrever processos e leis
gerais para o Universo como um todo?

─ Mas as simulações em computador seguem leis matemáticas


invariáveis, coerentes, dirão alguns. Ora, a coerência matemá-
tica não implica em existência real. Explico, de modo bem sim-
ples. Todos aqueles que passaram pelos estudos do ensino mé-
dio aprenderam equações do segundo grau, que produzem
dois resultados matematicamente válidos. Em um simples

17
exercício de dinâmica, no qual um móvel parte com velocidade
inicial e aceleração conhecidas, pergunta-se em quanto tempo
ele percorrerá uma distância conhecida. A equação que dá a
posição em função do tempo é do segundo grau, e dá dois pos-
síveis resultados para o tempo, um positivo e outro negativo.
Todos devem lembrar que nesses casos se desprezava o resul-
tado negativo, pois o tempo negativo não tem sentido. O móvel
não poderia chegar a certa distância do ponto de partida em
um instante antes de ter saído. O resultado desprezado, que
não tem realidade física, é, contudo, matematicamente coe-
rente, válido. Outro exemplo. Tomamos uma régua com 1,0m
de comprimento, com um orifício a certa distância de seu cen-
tro e inserimos a régua por esse orifício em um pino fixo em
uma parede. Afastando-se a régua da posição vertical por um
pequeno ângulo, ela oscilará por algum tempo como um pên-
dulo físico. Pergunta-se a que distância do centro da régua
deve estar o orifício para que ela oscile com um período dese-
jado. O cálculo cai novamente em uma equação do segundo

18
grau, e dará dois resultados de validade matemática idêntica.
Mas, dependendo do valor do período desejado, um desses
pontos estará em uma posição fora da régua, o que é absurdo.
As simulações em computador utilizam equações diferenciais e
matemática superior, muito além das simples equações co-
mentadas acima, mas também seguem leis inflexíveis: alimen-
tados com dados, seguirão seu desenvolvimento e produzirão
seus resultados, matematicamente inquestionáveis. Esses re-
sultados são apresentados como novas descobertas, quando,
na verdade são suposições matematicamente fundamentadas,
sim, mas que precisam de um volume razoável de dados expe-
rimentais comprobatórios antes de serem aceitos como possí-
vel verdade. É preciso demonstrar, comprovar, se essas formu-
lações têm alguma correspondência com o universo físico.

O QUE DARWIN NÃO EXPLICA

Voltando ao darwinismo, a admissão tácita da verdade da teo-


ria da evolução está tão arraigada em nossa sociedade atual, a
ponto de perder-se de vista o fato primordial de sua natureza:
é apenas uma teoria — uma formulação intelectual tentando
descrever processos ocorridos no mundo material, com base
em alguns fatos observados, reunidos dentro de um acervo
conceitual que procura dar a eles sentido lógico, mas que em
seu desenvolvimento apresenta incertezas, interpretações for-
çadas e até incorreções. Ora, essa formulação, além de procu-
rar embasamento em dados objetivos, reflete também o pen-
samento vigente em sua época. Uma abordagem interessante
desse tema foi feita por Alfred Locker, em seu ensaio “Evolução

19
e teoria da 'evolução' sob análise da teoria de sistemas e aná-
lise metateórica”:
A teoria da 'evolução' ('TE') é tida hoje como algo semelhante a
uma teoria universal e como ápice do conhecimento científico. O
processo denominado 'evolução', por ela descrito, é interpre-
tado como acontecimento abrangente, que vai uniformemente
da 'evolução' do cosmo à 'evolução' da razão e da cultura, viabi-
lizando uma grandiosa visão geral da realidade. Sem considerar
a dificuldade de definir o processo 'evolução', ele é tomado por
fato incontestável, e a teoria de mesmo nome é tida como tão
certa, que seus adeptos não vêm motivo para verificar a legiti-
midade de sua 'menina dos olhos’, isto é, para examiná-la meta-
teoricamente e avaliar suas hipóteses e sua validade. Tal inves-
tigação parece-lhes ainda menos necessária, já que quase diari-
amente é apresentado novo material reforçando a compreensão
aparentemente inabalável da 'evolução'. Não há motivo evi-
dente para ir além e tornar a 'TE' objeto de investigação, já que
ela tudo explica suficientemente, de forma maravilhosa (no du-
plo sentido da palavra). No entanto, evitando ser confundido
pela aparência e mantendo distância crítica, constata-se facil-
mente que a 'TE' não é ápice do conhecimento científico, mas
ponto final de um movimento intelectual que, partindo de Des-
cartes e Galileu se manteve erguido em otimismo embriagante
por muito tempo, hoje só conseguindo disfarçar seu descaminho
(e conversão em destruição da natureza) com ruidosa propa-
ganda em causa própria. A 'ciência galileana', sobre a qual ba-
seia a 'TE', chancela o resultado de uma abstração metódica da

20
mente como única realidade e assim inevitavelmente passa ao
largo da verdadeira realidade. 8

Os registros fósseis constituem indicação indiscutível de que a


flora e fauna de nosso planeta conheceram formas diferentes
das atuais em intervalos de tempo localizados em um pas-
sado remoto. Todavia, não existem evidências que confirmem
ter ocorrido o processo de descendência com modificações. Os
originadores do modelo evolucionista revelam em seu pensa-
mento três suposições fundamentais9:

1. A vida aparece na terra por geração espontânea através de


micro-organismos

2.Esses micro-organismos multiplicaram-se e difundiram-se,


terminando por reagruparem-se em agregados de colônias,
constituindo gradualmente, com o decorrer do tempo geoló-
gico, estruturas pluricelulares sempre mais complexas e diver-
sificadas até formar a diversidade biológica atual.

3. Na Gênese da vida e no seu processo sucessivo de transfor-


mações complexificação, não houve a operação de causas

8
A. Locker Evolução e teoria da 'evolução' sob análise da teoria de sistemas
e análise metateórica”:Traduzido por Karl Heinz Kienitz. www.free-
webs.com/kienitz/Locker_pt2.pdf - acessado em 07/01/2015.

9
Situazione Atualle del Evolucionismo Biológico - Entrevista com o Professor
Roberto Fondi, da Universidade de Siena, publicada na revista Hiram, no.
9/10, settembre-Ottobre, 1991, Grande Oriente D’Itália.

21
desconhecidas, de natureza metafísica, mas apenas leis pura-
mente físicas e portanto, suscetíveis de, ao menos em parte,
serem manipuladas e reproduzidas.

As formas mais antigas de vida conhecidas são constituídas de


micro-organismos surgidos no período Cambriano. Dentro de
700 milhões de anos apareceram micro-organismos unicelu-
lares dotados de núcleo, mas incapazes de se associarem em
colônias para originar a vida pluricelular. Nos 100 milhões de
anos seguintes surgiu toda a diversidade de flora e fauna de
micro-organismos pluricelulares complexos, como corais, ver-
mes, medusas, trilobitas, sem qualquer evidência de estágios
intermediários anteriores. 10
“Tudo se passa não como um fluxo de mudanças graduais, con-
duzindo sempre a formas mais complexas, mas sim com descon-
tinuidade, entremeando-se grupos biológicos que não são deri-
vados um do outro, mas que são apenas sucessivos no trans-
curso do tempo. As mudanças na flora e na fauna ocorridas de
uma era para outra não apresentam um aumento progressivo
de complexidade e diversificação, parecem constituir antes
variações sobre um tema fundamental imutável desde o mo-
mento de sua primeira aparição.”

Arthur Koestler nos apresenta alguns argumentos interessan-


tes comentando os paradoxos das espécies animais onde, de
acordo com o evolucionismo, sentidos e órgãos surgem para
atender necessidades de adaptação ao ambiente:

10
Ibid., pp. 23,24 (tradução livre)

22
“Mas é de todo surpreendente que a natureza dote uma espécie
de um órgão de luxo, extremamente complexo, excedendo em
muito suas necessidades efetivas e imediatas, órgão que a espé-
cie empregará milênios para aprender a usar (o cérebro) .” 11

Não foram encontrados quaisquer registros fósseis de espécies


intermediárias, sucedendo-se no tempo, descendendo umas
das outras, entre invertebrados e vertebrados, peixes e anfí-
bios, etc. As espécies parecem surgir diferenciadas, prontas,
completas. E existem também os casos dos “fósseis vivos”,
como é o caso do morcego, cujo fóssil com 50 milhões de anos
apresenta características idênticas ao animal vivo atual.

Costuma-se apresentar o desenho da sequência evolutiva do


homem (ver figura) como sendo um fato comprovado. Dos vá-
rios livros examinados que apresentam a figura, apenas um tra-
zia a seguinte nota: “Os desenhos baseiam-se em ossos fossili-
zados existentes, mas a cor da pele e dos olhos, assim como a
distribuição pilosa, são puramente especulativos.”12 E com re-
lação aos citados “ossos fossilizados”, tudo o que se encontrou
nesse campo foram fragmentos de maxilares, crânios incom-
pletos, dentes, e através deles o artista “reconstituiu” aquela
sequência de figuras.

11
Arthur Koestler, O Homem e o Universo, Ibrasa,1989.
12
Uma equipe de 32 autores escreveu A História do Homem nos Últimos
Dois milhões de anos, publicada pela editora Reader’sDigest de Portugal,
1975. A figura citada encontra-se nas páginas 12 e 13.

23
Sequência evolutiva humana de acordo com o darwinismo

http://www.ahistoria.com.br/da-evolucao-humana/

http://ciencia.estadao.com.br/noticias/geral,fossil-encontrado-nos-
eua-revela-a-evolucao-dos-morcegos,124087

http://actividadesonline.blogspot.com.br/2010/09/nautilus-fossil-
vivo.html

Esclarecendo: não se está aqui negando a possibilidade da


evolução, ou defendendo o ponto de vista fundamentalista da
leitura literal do livro bíblico do gênesis, apenas argumentando
que a teoria da evolução tem também suas inconsistências.

(continua na parte 2)

SUGESTÕES BIBLIOGRÁFICAS

ARMSTRONG, Karen. Em defesa de Deus : O que a religião re-


almente significa. Companhia de letras, 2011.

24
CHALMERS, A.F. O que é ciência afinal? São Paulo, Editora Bra-
siliense,1993.

GLEISER, Marcelo. A Ilha do Conhecimento: os limites da ciên-


cia e a busca por sentido. Rio de Janeiro, Record, 2014.

HEISENBERG, W. Física e Filosofia. Brasília: UnB, 1995.

JUNG, Carl et alii, O Homem e seus Símbolos, Nova Fronteira,


1964

KANT, Immanuell. Crítica da Razão Pura. São Paulo, Editora


Martin Claret, 2002. MORIN, Edgar Para Sair do Século 20, Nova
Fronteira, 1986

PAGELS, H. R. O Código Cósmico. Lisboa: Gradiva, 1982.

RUYER, Raymond. A gnose de Princeton. São Paulo, Cultrix,


1995.

SEGRÉ, Emílio. Dos Raios X aos Quarks. Brasília, Editora Univer-


sidade de Brasília

SOKAL, Alan, BRICMONT, Jean. Imposturas intelectuais. Rio de


Janeiro, Record, 1999.

STEWART, I. Será que Deus Joga Dados?: A Nova Matemática


do Caos. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 1991.

25

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