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CURSO DE FILOSOFIA

JULYANO DUTRA PEREIRA TORRES

CIÊNCIA E SOCIEDADE: CETICISMO

PORTO ALEGRE
2022
Ceticismo
1.Origem cética
Em uma contraposição ao dogmatismo1, que defende a possibilidade de conhecer a
“verdade absoluta", Pirro de Elida (365-275 a. C.) aparece como primeiro pensador
cético2 ao afirmar a incapacidade humana de chegar a verdade, além de apontar a
necessidade de não dispormos de opiniões tidas como verdadeiras, justamente para não
cairmos em possibilidade de inverdades, sendo o estado mais próximo da realidade o
estado de dúvida constante. O ceticismo aparece, justamente, como o questionamento
das capacidades humanas de chegar as verdades do mundo que nos cerca, justamente
colocando em discussão e duvida, todas as razões que temos para assegurarmos que
nossas crenças ordinárias são suficientes para produzir ou reproduzir conhecimento
verdadeiro.
O ceticismo nasce classicamente da observação de que os
melhores métodos de investigação numa dada área parecem
não ser suscetíveis de nos proporcionar um contato com a
verdade (há um hiato entre a aparência e a realidade), e
menciona frequentemente os juízos contraditórios que nossos
métodos de investigação produzem, com o objetivo de
mostrar que as questões acerca da Verdade são insolúveis. O
ceticismo de Pirro e da nova academia era um sistema de
argumentação e ética que se opunham ao dogmatismo e, em
particular, a tendência sistematizadora dos estóicos. Tal como
nos chegou, sobretudo nos fragmentos de Sexto Empírico,
seu método consistia tipicamente em apresentar as razões que
levassem a considerar que uma questão era insolúvel (os
céticos dedicaram-se em particular a destruir a idéia estóica
de que algumas verdades eram acessíveis por apreensão
direta). Dicionário Oxford de Filosofia. Simon Blackbum.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar (Ed)., 1997. p.58

Ou seja, para Pirro, o ceticismo aparece como postura pratica e necessária diante de
questões que não poderiam ser nem ao menos questionadas sem causar um estado
inferior a ignorância. Além de ignorante, agora seria ignorante e infeliz por saber que é
ignorante. Questionar coloca o ser humano em agonia e sofrimento, o afastando da
própria vida e felicidade possível.

2.Grau cético
Mesmo que a origem cética seja uma, sua repercussão ganhou algumas diferenciações
essenciais, que se aplicam aos graus de negação de conhecimento que, partem do mais
brando até o mais severo, e, em suas máximas manifestações, podem ser definidas
como:

1
Dogmatismo é uma corrente filosófica que consiste em acreditar nas verdades absolutas, sem levantar
questionamento sobre qualquer possibilidade de inverdade, ou seja, estão fora do alcance de qualquer
especulação crítica
2
Cético vem da palavra grega skepsis, que significa “exame, investigação, questionamento”

1
a) Ceticismo global (global skepticism)
b) Ceticismo limitado (limited skepticism)

Na primeira definição (a), o ceticismo engloba o todo, defendendo a impossibilidade


humana de chegar a qualquer tipo de verdade, sendo assim sua versão mais radical é
insustentável, justamente por ser uma afirmação que inviabiliza qualquer tipo de
afirmação.
Na segunda definição (b), o ceticismo questiona a possibilidade de conhecimento em
certas áreas, situações ou tópicos, atribuindo a variados fatores a incapacidade humana
de chegar e compreender a verdade.
Tendências céticas surgiram também no século XVI, nos
escritos de Nicolau de Autrecourt. Suas críticas à
possibilidade de obter qualquer certeza além da informação
imediata dos sentidos e dos princípios lógicos básicos- em
particular, de qualquer conhecimento, seja de substância
intelectual, seja de substância material-, anteciparam o
ceticismo posterior de Bayle e Hume. Este último distingue
entre o ceticismo pirrônico, ou seja, excessivo, com o qual
considerava impossível viver, e um ceticismo mais brando,
que aceita as crenças cotidianas ou do senso comum (embora
não como provenientes da Razão, mas antes como resultado
do hábito) mais que, ao mesmo tempo, desconfia justamente
do poder da razão para nos proporcionar muito mais que isso.
Dicionário Oxford de Filosofia. Simon Blackbum. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar (Ed)., 1997. p.58

O ceticismo radical acaba perdendo sua significação, pois está fadado a autocontradição
e a autonegação, onde não se pode conhecer, justamente, por que não há nada o que
possamos conhecer. “Se não existirem fatos de um certo tipo, então, obviamente, não
podemos conhecer fatos desse tipo. ” FELDMAN, Richard. Epistemology.2003. p.197.
Já em sua configuração mais branda, o cético não nega a existência da verdade, mas
sim, a capacidade humana de chegar a verdade em si, sendo este o tipo cético que
possibilita discussão mais flexível e menos autodestrutiva.
Essas são perspectivas que acreditam que existem verdades
em algum domínio, mas não podemos conhecer ou não
conhecemos quais são elas. Estamos interessados em céticos
que afirmam que existem fatos sobre o passado, ou o futuro,
ou o mundo ao nosso redor, mas, por uma razão ou outra, não
podemos conhecer quais são esses fatos. Se você deseja, você
pode dizer que céticos são céticos sobre a existência do
conhecimento. Mas eles não são céticos sobre a existência de
fatos sobre o mundo. Eles afirmam que nós não sabemos ou
não podemos conhecer quais são esses fatos. Então, A
Perspectiva Cética é que existem verdades, mas nós não
somos aptos para saber quais são elas. FELDMAN, Richard.
Epistemology. Upper Saddle River, New Jersey: Prentice-
Hall, 2003. p.197

2
3 Ceticismo cartesiano
3.1 Gênio maligno e o cogito
No século XVII, a filosofia e as ciências estavam inteiramente interligadas. Não existia
um método científico propriamente dito e o pensamento filosófico ditava as regras de
compreensão do mundo e dos seus fenômenos. O pensamento de Descartes resultou
numa quebra com a filosofia tradicional, onde nada mais era somente aquilo que
aparentava, necessitando de análise da mais elaborada que se pudesse fazer, adquirindo
gradativamente o conhecimento da verdade. Justamente neste ponto que Descartes deixa
bem claro que não se apresenta como um cético, justamente por crer na possibilidade de
chegar a verdade das coisas, porém, o seu método de análise parte de um
questionamento absoluto, adentrando justamente em uma teoria cética conhecida como
‘o gênio maligno cartesiano’, o qual, com seus poderes místicos profanos, enganaria ou
conduziria ao erro todos os sentidos humanos. Então partindo de um ceticismo empírico
proposto pela máxima do gênio cartesiano, Descartes percebe que mesmo que possamos
estar enganados em tudo, devemos existir em alguma instância, pois pensamos e
questionamos. “Cogito, ergo sum! ”, ou seja, penso logo existo3! Podemos nos auto
afirmar por essa máxima cartesiana, renegando assim a ideia de ceticismo absoluto.
E, finalmente, considerando que todos os pensamentos que
temos quando acordados também nos podem ocorrem quando
dormimos, sem que nenhum seja então verdadeiro, resolvi
fingir que todas as coisas que haviam entrado em meu
espirito não eram mais verdadeiras que as ilusões de meus
sonhos. Mas logo depois atentei que, enquanto queria pensar
assim que tudo era falso, era necessariamente preciso que eu,
que o pensava, fosse alguma coisa. E, notando que esta
verdade- penso, logo existo- era tão firme e tão certa que
todas as mais extravagantes suposições dos céticos não eram
capazes de abalar, julguei que podia admiti-la sem escrúpulo
como o primeiro princípio da filosofia que buscava. São
Paulo: Martins Fontes, 2001. DESCARTES, R; SANTIAGO,
H, p.34

Com o cogito, Descartes cria uma verdade tão irrefutável que o mais cético dos céticos,
contra ela não poderia nada. Mesmo que vivêssemos como cérebros em barris4, ou
baterias humanas em uma matrix em constante deturpação de sentidos causada por uma
entidade maligna, devemos existir em alguma circunstância.

3.2 Dúvida hiperbólica


Embora Descartes não fosse um cético, desenvolveu muito de seus pensamentos em
cima de um conceito de dúvida hiperbólica, onde a definição de verdade só poderia ser
aceita com base em evidencias racionais claras e distintas, submetidas a revisões tão
gerais e rigorosas que impossibilitariam a precipitação de ter como verdadeiro algo

3
Ou ainda: "penso, logo sou”
4
Referência a hipótese de Hilary Putnam. (1926-2016) que é conhecido pelos seus argumentos contra a
identidade-tipo dos estados mentais e físicos, baseado nas suas hipóteses da realização múltipla da mente,
e pelo conceito de funcionalismo, uma teoria influente sobre o problema corpo-mente

3
falso. Então Descartes, baseado na dúvida, propõe um método analítico criterioso das
fontes de conhecimento por cadeias de razões. Devemos sujeitar TUDO ao método
cartesiano, que em suas máximas dialoga com o ceticismo, justamente por duvidar de
tudo, diferindo sempre, na condição cartesiana da capacidade humana de ser de chegar
em razões claras e inquestionáveis (o que o cético refuta justamente com o discurso da
negação, onde hipoteticamente é levantada uma questão que demostre que a certeza não
é sustentável em certas condições.)
Durante a Renascença, as pessoas tinham se tornando mais
céticas acerca da ciência e da possibilidade do conhecimento
genuíno em geral, e essa visão continuou a exercer influência
na época de Descartes .Assim, uma grande motivação para
seu "projeto de investigação pura", como sua obra ficou
conhecida, foi o desejo de livrar a ciência do ceticismo
perturbante.[...] Em meditações sobre a filosofia primeira, sua
obra mais completa e rigorosa sobre metafísica e
epistemologia, Descartes tenta demonstrar a possibilidade do
conhecimento mesmo a partir das posições mais céticas e, a
partir disso, estabelecer um alicerce firme para a ciências. O
livro da filosofia-1. Ed- São Paulo: globo livros,2016, p.118.

3.3 Moral provisória.


Outro ponto em que a filosofia cartesiana flerta com as definições céticas é justamente
na moral provisória, onde se suspende qualquer verdade para análise da mesma, ficando
até descobrir a verdade irrefutável, em estado de suspensão de definições.
No estado de moral provisória, Descartes segue as leis e convenções sociais que coloca
em cheque, justamente para fugir de situações que levaram a citações ridículas e
absurdas como no caso de Pirro (como o relato jocoso de caminhar rumo ao penhasco
ignorando-o), utilizando como metáfora, um humano que vai reformar sua casa e que ao
sair do locar da desagradável reforma, acaba hospedando-se em casa alheia. Nesta casa
que não é sua, é de bom tom reter-se a extravagancias e seguir os costumes do local
onde se faz hospede, evitando assim atritos e desavenças com outros possíveis
moradores. Neste estado de suspensão, o sujeito agiria de acordo com o costume da
maioria, enquanto suas convicções fossem desenvolvidas, para sim poder seguir com
uma vida cotidiana funcional.
Os dois movimentos de suspensão de definição que aqui notamos, diferem porem em
seu significado. Para o cético pirrônico, tal suspensão é o alcance máximo da paz e
felicidade de um ser humano, enquanto para Descartes, tal suspensão era uma
ferramenta passageira para chegar ao conhecimento gradativo e seguro, embora muitas
vezes pudesse perdurar em suspensão por se tratar de objeto incomum ou situação
extravagante, aos quais, não se observaria tão facilmente, grande apanhado de certezas
possíveis e irrefutáveis.

4 O Argumento da Possibilidade do Erro e a Matrix


Neo era um jovem trabalhador que desenvolvia softwares para uma empresa, enquanto
sustentava uma vida paralela de hacker, onde nas profundezas da internet encontra um
mistério chamado “matrix”. Em certo ponto da trama, Neo tem a possibilidade de optar
por aceitar a realidade em que vive, ou confronta-la. Ao decidir pelo confronto, Neo
4
acorda para uma outra realidade, onde maquinas escravizaram a raça humana,
utilizando-os como baterias biológicas para suprir suas necessidades. Dentro do
processo de escravização, as maquinas ligam os cérebros humanos a uma simulação de
mundo, onde todos os sentimentos, memorias, experiências e tudo mais, são somente
programações criadas artificialmente interagindo diretamente com um sistema cerebral
desconectado de qualquer possibilidade de verdade.
A tese cartesiana é que, para eu saber alguma coisa acerca do
mundo exterior, tenho de ser capaz de eliminar esta
possibilidade cética. Mas isso é algo que eu não posso fazer,
uma vez que as minhas experiências dentro da cuba seriam
indistinguíveis das experiências que eu assumo ter do mundo.
O´BRIEN Dan, introdução a teoria do conhecimento,2013,
p.218

Feldman aponta no “argumento da possibilidade do erro”, justamente a definição de


alguém preso dentro da matrix, onde não podemos simplesmente descartar a hipótese de
vivermos em ilusão por não termos como provar que não estamos em condição de
iludidos.
O Argumento da Possibilidade do Erro

4-1. Para (quase) qualquer crença que qualquer pessoa possui


sobre o mundo externo, essa crença poderia ser errada.

4-2. Se uma crença pode ser errada, então não é um caso de


conhecimento.

4-3. Então, (quase) qualquer crença que qualquer pessoa


possui sobre o mundo externo não é conhecimento (i.e,
ninguém sabe nada, ou quase nada, sobre o mundo externo).
FELDMAN, Richard. Epistemology. Upper Saddle River,
New Jersey: Prentice-Hall, 2003. p.199

Mesmo que ainda dentro de uma matrix, tal condição de cética cartesiana, não
impossibilita a evidência da existência de um ser, mesmo que este seja enganado de
todas as formas, o que dialoga justamente com o cogito cartesiano e a necessidade de
um sujeito para experiênciar e questionar mesmo baseado em inverdades.

5
Referencias:
Dicionário Oxford de Filosofia. Simon Blackbum. Rio de Janeiro: Jorge Zahar (Ed).,
1997
FELDMAN, Richard. Epistemology. Upper Saddle River, New Jersey: Prentice-Hall,
2003.
DESCARTES, R; SANTIAGO, H São Paulo: Martins Fontes, 2001.

O livro da filosofia-1. Ed- São Paulo: globo livros,2016


O´BRIEN Dan, introdução a teoria do conhecimento,2013
ESTEVES, Rogel. Metaconhecimento e ceticismo de segunda ordem, Porto Alegre:
Edipucrs, 2016
The Matrix (Matrix), Direção e roteiro: Andy Wachowski e Larry Wachowski,
produção Joel Silver, Distribuição: Warner Bros. EUA, 1999.

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