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PARTE II ente, dado fixo ou realidade feita; mas exercício,


O TRANSCENDER DO SER DIALÓGICO E RELIGIOSO DO HOMEM 67
AO INFINITO E INEFÁVEL atividade. É "ESSE UT ACTUS"; não "ESSE IN ACTU". Ser por determinar-
se; não já determinado.
65 Evidencia-se também que a atividade de ser vai se concretizando e
CAPÍTULO II essencializando em ente e, por isso, ser aparece como o mais primitivo e
fundamental. A ordem ontológica precede a ordem ôntica.
Incumbe-nos, agora, revelar o "sendo" humano no seu ato de ser. Que é o
homem em sua situação original? em sua estrutura ontológica? em seu
TRANSCENDER DO SER DIALÓGICO E RELIGIOSO DO HOMEM dinamismo natural?
- COMO NECESSIDADE DE PERGUNTAR E a todas essas perguntas acrescentaremos esta que envolve o nosso
objetivo final:
- AO INFINITO E INEFÁVEL Ser humanamente incluirá uma versão essencial a Deus?

Reflexões anteriores determinaram bem o sentido original do problema 1.1. Fenomenologia existencial ou o homem como "ex-sistentia".
No preâmbulo desta segunda parte, acompanhamos o desenvolvimento da
filosófico de Deus: existe espaço humano para a realidade divina? há
fenomenologia, que culminou na análise de atitudes do sujeito-como-cogito.
possibilidade de experiência religiosa natural?
Essa caminhada, contudo, somente se definiu na fenomenologia existencial, que
Tentaremos encontrar a resposta a essas perguntasse campo da
desvelou o homem como "ex-sistentia".
fenomenologia existencial. Nela a questão coloca-se nestes termos: pode o
Já a redução fenomenológica, ao remeter as demais experiências à
homem, por estrutura ontológica, estar vertido para o ser de Deus?
experiência inicial e fundamental, "longe de ser uma fórmula de filosofia
A busca da solução exige, preliminarmente, o desvelamento do homem
idealista é antes o método de uma filosofia existencial. O ser-no-mundo somente
até as entranhas mais profundas de seu ser para, com olhar desimpedido,
sobrevive se nela fundado" (Merleau-Ponty, 1945, prefácio).
descortinarmos todo o raio possível de sua projeção e compreendermos o âmbito
De fato, esse novo modo de conceber o homem como "ex-sistentia" nasce
total a que se estende seu conhecimento.
da noção da consciência intencional, conquista da fenomenologia autêntica
ainda não adulterada pelos reflexos idealistas do "ego transcendental". A
l. O HOMEM COMO SER-CONSCIENTE-NO-MUNDO.
intencionalidade caracteriza-se pela presença imediata do sujeito no ser ou
sentido do mundo — seu objeto correlato de consciência — e conduz à
Que significa revelar o homem no seu ser? A palavra "ser", em certo
revelação do homem como ser-no-mundo. Comparando essas duas concepções
sentido, consta, imediata e univocamente, a todos nós. Movemo-nos numa
— a de intencionalidade e a de "ex-sistentia" — sentimos as coincidências. Na
sumária e prévia compreensão de sua significação fundamental que não depende
primeira, o homem somente "é" consciente ao intencionar a essência dos entes
de qualquer análise anterior. Sempre afirmamos e negamos as coisas e pessoas
cósmicos e, por seu turno, o mundo somente "é" se intencionado pelo homem:
no ser dizendo que as coisas e as pessoas são ou que não são. Distinguimos um
não há sujeito sem mundo nem mundo sem sujeito. Na segunda, o homem
palácio real dum palácio encantado. Classificamos os existentes de acordo com
revela-se "ex-sistentia", ser-no-mundo: não há sujeito humano isolado do'
o seu ser: este mel é melhor do que aquele; este é o Pedro e não o João; parece
mundo, nem objeto mundano separado do sujeito. Em ambas, pois, o homem se
farinha, mas é açúcar... Aliás, tudo se manifesta ao homem neste seu traço co-
abre essencialmente como clareira e horizonte do ser de todo ente.
mum e essencial: ser. É a árvore, é o cavalo, é a Maria; todos os indivíduos são;
A "ex-sistentia" faz parte do processo natural para chegar a Deus e, por
é o conjunto dos entes: o mundo. São também as relações entre os existentes.
isso, seu estudo será desenvolvido nos itens seguintes. Agora, apenas
Tudo "é". Dizemos que as coisas são, o que são, por que e para que são.
advertimos que, para engajá-la nesse processo, é necessário não restringir o
Desde logo percebemos que "ser" se diferencia de ente. Ser não é como
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método transcendental de a revelar à pura descrição fenomenológica do homem O método experimental das ciências explica o estar-aí, o cheio, o
como ser-no-mundo. Há muito mais conteúdo na essência humana. Limitá-la mensurável, o determinado, o observável, o objeto cósmico, mas não atinge o
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à versão para as coisas imediatamente circundantes é não percebê-la
plenamente e ceder ao empirismo de Hume. A fenomenologia existencial 69
precisa manifestar a plenitude da estrutura ontológica do homem e completar-se "nada". Como vemos, não se trata de um "nada negativo", mas de um nada do
com um segundo grau de reflexão transcendental que explicite o conteúdo ente, "NIHIL ENTIS".
global implícito, compreendido essencialmente no humano ser. O outro-que-o-sendo é, pois, sujeito de realização que, em seu "nada",
abre espaço para acolher as respostas das ciências às perguntas do por quê,
1.2. Sendo, o homem é sujeito-como-cogito ou ser-consciente. como e para que do ente. Não é o nada absoluto, é o "não-uma-coisa". Sua
Ser humanamente não é o mesmo que ser coisa. Ser coisa é ser fechado e positividade consiste no "dei-xar-ser" ("Seinlassen") o sentido dos entes
limitado em si: essencializado, compacto, cheio, sem fenda. Pedra não pode ser cósmicos no sujeito humano (Heidegger, 1969, p. 21-44).
mais pedra do que é. Animal não pode ser mais animal do que é. Pedra e animal,
quando são, essencializam-se totalmente. 1.2.2. No uso das potências, o homem é sujeito consciente.
Ser humanamente, ao contrário, é o mesmo que ser abertamente, por O homem não é um fragmento da natureza nem "resultado das influências
fazer-se; transcender o que é aqui e agora, ultrapassar a essencialização. O físicas, fisiológicas e sociológicas que o determinariam de fora e fariam dele
homem pode ser mais homem do que é. O seu ato de ser ultrapassa a própria uma coisa entre as coisas" (Merleau-Ponty, 1948, p. 142).
entificação. Ora, tudo isso revela o homem como sujeito; não como objeto de No âmbito da vida animal, as potências ou faculdades atualizam-se e
realização. Vejamo-lo mais de perto. entram em ação pelo contato com a natureza. As Impressões, vindas dos entes,
necessariamente provocam impulsos nas faculdades e são os estímulos externos
1.2.1. O nada como ser do sujeito. que produzem a respectiva reação. Entre a potência (faculdade) e seu exercício
A subjetividade humana é uma conclusão muito certa da análise não intervém um terceiro elemento. Pelo estímulo, surge "ipso facto" a reação e
heideggeriana do nada. Nas ciências "só deve ser investigado o ente e mais o exercício da potência. Por isso, os animais não estão à distância da natureza;
nada". No propósito de explicá-los, o sujeito-como-cogito projeta-se sobre os mas dela fazem parte.
seres cósmicos procurando reduzi-los aos seus antecedentes, que são as forças e Na vida humana, porém, não acontece assim. Entre a potência e o seu
os processos físicos que os lançam no ser. Ora, se o sujeito humano fosse um exercício intervém um terceiro elemento: o uso da potência. O homem usa a sua
ente igual aos outros entes, por ele explicáveis cientificamente, então seria faculdade e projeta ("projicit") o seu exercício sobre as coisas. Os atos humanos
opaco e Obscuro totalmente e, em nenhuma parte do mundo, brilharia a luz dos não nascem só da potência que os capacita, mas também das possibilidades de
conhecimentos da ciência. Simplesmente não existiria locanda para a uso da potência para agir. É que o homem está "frente", "face" às coisas e não
manifestação do ente, e o homem nada teria a dizer a respeito dele. imergido nelas. Embora essencialmente voltado para elas, está contudo, à
Mas o "é" do "sendo" cósmico manifesta-se, e o homem pode pensá-lo e distância delas, em oposição a elas. Essa distância das coisas permite ao homem
dizê-lo porque, como eis-aí-ser ("Dasein"), não é totalmente "sendo". Para usar as possibilidades de sua potência projetando-as, pelo exercício, sobre
referir-se ao ente e manifestá-lo, precisa transcender-se. Enclausurado e aquelas coisas que lhe são oferecidas.
derramado em si, não tem como relacionar-se nem aos outros nem a si mesmo. As coisas não são dadas como estímulos de reação às potências, mas
Que possibilita ao eis-aí-ser transcender, a sua entificação, saindo do oferecidas ao seu uso, impondo às faculdades humanas apenas a sua presença e
escondimento para desvelar-se a si mesmo e mostrar, em seu ser, o sentido dos obrigando-as a dizer "que elas, as coisas, são". É que as faculdades estão
entes? Só o outro-que-o-sendo: o nada. A revelação do ente acontece então em vertidas necessariamente para as coisas do mundo sem as quais não podem ser.
conseqüência da .anulação do nada. Elas exercem a sua atividade de ser só em ligação com os entes mundanos.
Apesar desse contato imprescindível, as faculdades estão distantes das coisas e
se projetam sobre elas, dando-lhes significação e sentido e dizendo "o que e por
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que as coisas são". Essa atitude não é pura reação aos estímulos provenientes mesmo, e as coisas têm sentido para o homem: diz que e o que ele e as coisas
das coisas, mas o uso das possibilidades das potências que se projetam sobre são. Luz no coração do mundo, o eis-aí-ser ilumina os 'entes em sua
elas. significação: os animais, na sua animalidade; os homens, na sua humanidade.
Portanto, a resposta do homem às coisas é sua caminhada para elas: a Ser humanamente é, pois, ser sujeito consciente, posto no ser, relacionado ao
realização de um pro-jeto. Nesse projetar-se, o homem ser, coincidindo com o ser.
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usa as possibilidades de suas faculdades e decide o que e como vai fazer com as Ser consciente ou sujeito-como-cogito é o modo mais original e primitivo
coisas. Nisso consiste a liberdade humana. Entre a potência e seu exercício está de o homem existir no mundo. Goza de absoluta prioridade e fundamenta as
o uso da potência decidido pelo homem; não o uso imposto pelas coisas, mas "o outras maneiras de ser: não-sou-dor, não-sou-amor, não-sou-querer, não-sou-
que se quer fazer". As coisas não lhe são "dadas" de forma que decretem o sentir sem ser ego-cogito. Não havendo consciência, também não há dor, amor,
sentido que vai ter a ação da potência humana, mas lhe são "oferecidas" para querer, sentir. Basicamente, todos os modos humanos de existir são sempre
que a potência humana determine o sentido que vai ter a sua ação sobre elas. As modos conscientes de ser. No seu mais fundamental e originário ser, o homem é
coisas sempre aí estão, mas não se manifestam na plenitude de seu ser. O sujeito-como-cogito.
homem "arroja-se" sobre elas, desvenda-lhes o significado e lhes dá sentido.
À medida que revela o sentido do ser dos entes, o homem traz à tona 1.4. Desvelando o "no-mundo" do sujeito consciente.
novas possibilidades, decide o modo de usá-las pelas suas faculdades, e destina O "ego" do "cogito" cartesiano permanece isolado do mundo e, por
o ser no mundo. O ser humano sempre teve potência de voar, e as coisas ou conseguinte, absoluto. A fenomenologia, contudo, mostra um sujeito não
materiais para isso também sempre aí estavam. Mas foi só com Santos Dumont absoluto, mas vertido necessária e essencialmente aos entes circundantes. Sem
que a potência passou ao exercício. Antes ninguém fizera uso dela. As coisas, eles, não pode ser. Somente é quando "ex-siste" no mundo, seu objeto
portanto, não determinaram o exercício da potência humana, mas o homem lhes necessário e natural.
desvelou o sentido, descobriu os recursos que as coisas lhe ofereciam e deu-lhes No preâmbulo desta segunda parte, descrevemos, pormenorizadamente,
destino: decretou o fato de voar. No século XVI, o homem não voava; hoje, o esse fato como consciência intencional. Em vista disso, algumas idéias já são
homem voa graças à decisão de usar das possibilidades de suas potências. Foi o conhecidas. No entanto, há necessidade 'de fazê-las voltar ao texto, para não
homem que criou esse fato histórico. Fatos em que não entra a decisão humana, destruir o novo contexto em que vamos inseri-las.
fatos que procedem das potências determinadas cegamente para o exercício por 1.4.1. Os entes do mundo constituem o homem no ser.
fatores extrínsecos, como o econômico, ou fatos que nascem das potências que Ser-consciente-no-mundo não tem o sentido de presença do sujeito no
evoluem necessariamente para o ato não são fatos históricos; são resultados e espaço à semelhança dos palitos de fósforo que estão na caixa. O "ser-no" é o
não acontecimentos. correlato do sujeito que intenciona os "sendos" do mundo por exigência
E de que modo acontecem os fatos? Todos os homens, em todos os necessária e tendência natural. As coisas e as pessoas não são ajuntadas e
tempos, tiveram as mesmas potências. Todos tiveram a capacidade de voar, no somadas ao ser do homem como se existissem as coisas e mais o sujeito
entanto não voaram. É que não fizeram das potências o mesmo uso que Santos humano. O homem "não é" ao lado dos entes, mas nos entes que lhe servem de
Dumont fez. Variaram no uso das mesmas potências. E essa variação, decidida estrutura ontológica: como "ex-sistentia", radica nas coisas enquanto reais, e as
pelo homem,) constitui a história, que não é, portanto, puro exercício das potên- coisas, enquanto reais, radicam nele. Sem mundo, não existe sujeito humano e,
cias determinadas por fatores extrínsecos (Zubiri, 1948, p. 337-359). sem sujeito humano, não existe mundo. O mundo é, por essa razão, constitutivo
formal do ser consciente; não fato exterior e acrescentado. Não que as coisas
1.3. Sujeito-como-cogito ou ser consciente: modo fundamental de ser do sejam postas pelo sujeito como no idealismo, mas o homem é abertura pela qual
homem. os entes entram para o constituírem no ser. Abandonado a si, sozinho, o sujeito
Ao sujeito humano os entes concretos sempre se revelam como o "não- humano é niilidade ontológica, um não-ser-nada sem os outros. Somente é com
ser-eu". O homem não se identifica com as coisas. Seu tipo de ser é diferente. e pelas coisas.
Presença imediata a si mesmo e no ser dos entes, o homem tem sentido para si
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1.4.2. O ser humano como acontecer. essencialmente ao aqui e agora: é no espaço e no tempo. Para conhecer e para
A correlação entre sujeito e seu mundo que, juntos, constituem a essência conhecer-se, precisa do mundo. É, por natureza, mundanidade.
do ser consciente, está muito bem expressa na palavra "Ereignis", que significa O ser humano, como acontecimento no qual se dá a "alétheia" ou
acontecimento. A essência do; homem ACONTECE porque nasce a luz que desocultação do sentido das coisas do mundo, não é saber total: o "acontecer da
constitui o ser humano. luz" é essencialmente temporalidade e finitude. Nasce sempre de novo, e sempre
72 de novo se essencializa.
Nesse nascer da luz, que é o homem, acontece a verdade das coisas do mundo 73
porque a desocultação do ser dos entes cósmicos está ligada necessariamente ao E, no seu nascer reiterado, revela o sentido das coisas do mundo. A "alétheia" ou
"acontecer da luz" ou ao acontecer do sujeito "ex-sistente". revelação processa-se pois, em momentos. A luz imanente ao mundo acende-se
A "Ereignis" — o acontecimento misterioso do ser humano — é, por sua e apaga-se. Está ligada ao aqui e agora do mundo. Não é luz ou consciência nem
vez, o acontecer da coisa em seu sentido. A verdade dos entes, como "alétheia", absoluta nem eterna.
equivale ao acontecer da essência humana.
O ser humano, em sua situação original e fundamental ("Ereignis"), é, 2 SER-CONSCIENTE-NO-MUNDO COMO NECESSIDADE DE
portanto, ser-presença, ser-diálogo, ser-encontro, ser-compreensão, ser-vivência, PERGUNTAR.
numa palavra: ser-consciência-no-mundo. Esse acontecimento funda o
conhecimento posterior, e todo o juízo é a afirmação desse viver primitivo que 2.1. Ser-consciente-no-mundo é ser dialógico.
constitui o homem essencialmente. Mesmo a demonstração científica e filo- Para acontecer, o homem precisa dos entes do mundo. "É" com eles e por
sófica desenvolve, racionalmente, essa vivência originária do ser. eles; sem eles, "não é". No seu acontecer, o sentido das coisas revela-se.
O "acontecer", porém, não é configurado arbitrariamente segundo os Fundamental e originariamente, ar "Ereignis" - o acontecimento do homem -
caprichos do sujeito. A essência ou ser das coisas a ele se impõe: a cadeira manifesta a verdade dos entes. O ser consciente do homem, como "encontro" e
representa significado inteligível diferente que cão ou flor. Não se pode dar um "coincidência", desvela-se, dessa forma essenciahnente dialógico. Só no diálogo
sentido qualquer ao mundo. com as coisas, essas lhe mostram a sua significação. Desde as suas origens, o
homem, por natureza, é "colocar em questão o ser". E, para saber, tem de
1.4.3. Ser-sujeito-como-cogito não é saber total. transcender a sua essencialização. Compreende o ser tematizando ora este, ora
O "acontecer" da essência humana mostra claramente que não há aquele ente. Sabendo, fica limitado a isto ou aquilo, enquanto os outros e ele
desocultação do ser, em sua totalidade, de uma só vez. O ser não se doa ao próprio permanecem apenas implicitamente descobertos. O ser não se doa ao
homem num ápice. O seu desvelamento processa-se por "momentos" e supõe o homem na sua clareza e na sua totalidade, mas manifesta-se e esconde-se:
"deixar-ser" ("Seinlassen") do sujeito-como-cogito que, assim, abre clareiras oferece-se e retira-se. O sujeito-como-cogito só existe como diálogo.
para a desocultação do sentido dos entes. Essa manifestação do ser humano ou a
sua saída do escondimento que, simultaneamente, constitui a origem da verdade,
é um verdadeiro "acontecer", pois consiste num contínuo e sempre reiterado vir 2.2. O ser dialógico do sujeito consciente é necessidade de perguntar.
a si mesmo, a sua raiz, a sua situação original na qual não se encontra No seu caráter dialógico, o sujeito consciente, para existir, necessita da
essencializado e onde sempre nasce de novo para sempre de novo morrer no resposta dos entes e, por isso, sendo, é necessidade de perguntar pelo ser das
ente. Por isso, o ser do homem é essencialmente futuro, incessante por-vir, inter- coisas e dos coexistentes. No exercício do seu próprio ser, é pergunta. Por si,
minável ad-vir ao seu mais autêntico si-mesmo. Nada mais passageiro, fortuito, niilidade ontológica, o homem somente chega a ser sujeito preenchendo o seu
provisório do que ser humanamente. Nada de mais temporal e histórico. Sendo, "nada" com o sentido dos outros existentes.
o homem sustenta-se na abertura de seu ser. Na sua última e originária estrutura ontológica, portanto, o ser humano
O sujeito-como-cogito — ser-em-momentos ou acontecer — não se anuncia-se como ser em questão. É no ser e, contudo, não o possui. Não há
revela consciência absoluta e pensar absoluto. Está, portanto, vertido revelação de sentido de ser mais primitiva do que esta: "necessidade de
perguntar". Toda pergunta por um sentido ulterior revela, sempre de novo, o ser
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em questão no homem que interroga. A realidade na qual desponta o primeiro privilegiado de existir. Fundamental e originariamente, sem perguntar a
sentido de ser é "ser-necessidade-de-perguntar". O ser-consciente-no-mundo só ninguém e antes de qualquer afirmação, acontece — ao transcender — como
pode existir como pergunta pelo ser. É fato irredutível a outro fato. O "ser revelando-se". A manifestação prévia do ser constitui sua característica
"acontecer" humano, como luz na qual as coisas "são", realiza-se no ser própria. A partir de si mesmo, é iluminação, "a-léthela". Sendo, toma cons-
perguntando (Rahner, 1963, p. 73-77). ciência de seu ser, apercebe-se de estar aí no mundo.
Esse saber o ser "a priori". independente de respostas a elucidações
74 anteriores, decorre da própria natureza da pergunta:
A primeira e mais original revelação do sentido ontológico verifica-se, 75
pois, no "ser perguntando pelo ser". Ao fugir de seu determinismo ôntico, seu quem interroga já sabe de alguma forma o ser pelo qual indaga. Se não
fechamento, sua fixidez, numa palavra, no "ex-sistir" o homem é-no-mundo- soubesse, nem perguntar por ele poderia. No "eu", o ser dá-se de maneira
interrogando-pelo-ser. espontânea, transparente, auto-atingida. Somos de tal modo imersos e solidários
Ao questionar, o ser humano mostra-se a partir dele mesmo: "ex-siste", no ser comum de toda a realidade, que ele se constitui em nosso próprio viver. A
fundamentalmente, como pergunta pelo ser do ente e se desoculta como revelação do ser é a nossa vida. "Homo est omnia alia" dizia, por isso, Santo To-
transcendência. Todo outro saber funda-se sobre este fato originário: interrogar más. O homem, imanente ao mundo como luz e consciência, é essencialmente
é a indigência e a necessidade para o homem desembaraçar-se do ôntico, medida de ser na qual se clareiam as significações dos entes cósmicos. E, para
transcender a sua essencialização e ser. Todas as situações do mundo, medir e interpretar o ser dos outros, se requer saber "a priori" o sentido
interpretadas e criadas pelo homem, fundamentam-se nessa situação original: o fundamental que ele tem. Quem mede e esclarece o ser compreende,
homem "é" necessidade de perguntar. previamente, como ele deve ser.
Portanto, a pergunta é o "aí" onde o ser se anuncia. Não se anuncia, Nessa tarefa de clarificação, o acontecer do sujeito-como-cogito não se
porém, plenamente. É o "aí" onde o ser se coloca como questão. "Por Da-sein restringe em apresentar as coisas e as pessoas na sua característica de existentes.
designa-se muito mais o que, antes de tudo, deve ser experimentado como lugar, O pensar não se imobiliza diante da simples afirmação de "que os entes são". A
a saber, como o campo da verdade do ser e, em seguida, pensado conforme essa esse primeiro contato com o fáctico, "à raiz mesma de nossa existência, lá onde
experiência" (Heidegger, 1969, p. 33). "Ex-sistentia" ou ser-consciente-no- ela é mais autêntica e original, declara-se uma inquietação típica que pouco
mundo é a emergência do ser, que o homem descobre antes de qualquer depois se faz movimento. Movimento que nós compreendemos, a partir de nós
definição de si próprio, antes de todo pensamento e de toda linguagem; é a mesmos, como o ímpeto em direção ao ato de perguntar e a partir do mundo
interrogação que o homem traz em si antes de formulá-la porque ele é essa circundante, como movimento do que se está problematizando" (Welte, 1966, p.
interrogação. 8 ss.).
Por que essa inquietação interior nossa que se movimenta e desenvolve
em pergunta? Porque o fato "de que as coisas são" não aquieta a compreensão
2.3. Perguntar pelo ser equivale a sabê-lo "a priori" e a não sabê-lo do sentido fundamental de ser que nos constitui ontologicamente. Se não
totalmente soubéssemos "a priori" esse sentido de ser, aceitaríamos tranqüilos a
O sujeito consciente tem de perguntar pelo sentido do ente, seu correlato; significação oferecida imediatamente pela positividade dos existentes e não
dele precisa para existir como consciência: o sujeito é-no-mundo. questionaríamos a partir dela. Mas já que questionamos o dado que nos é
Essa indigência e essa necessidade brotam de dois elementos iniciais que transmitido, concluímos, com acerto: somos saber prévio e fundamental do ser.
estruturam todo e qualquer interrogar e que devem ser esclarecidos: saber "a Comprova-se, outrossim, que, ao perguntar, o homem não é
priori" o ser pelo qual pergunta e "não sabê-lo totalmente". subjetivamente um vazio absoluto — nada negativo — que possa ser preenchido
sem critério e a bel-prazer. Ao contrário, o homem revela-se autêntica medida
2. 3.1. O saber apriorístico manifestado no perguntar que o homem é. do ser de tudo o que é, dizendo como os existentes devem ser e dando certeza às
O sujeito-como-cogito revela-se "saber-previamente-o-ser" porque está afirmações decisivas do sujeito: "é" — "não é". Essa medida apriorística
inserido no mundo como luz e compreensão. É seu modo excepcional e assegura também a tranqüilidade da vida prática e cotidiana interpretando, com
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firmeza, o sentido dos entes que nos rodeiam e dirigindo os nossos passos sem a própria totalidade. Sendo, vivo o ser de todo existente; sendo, "sou" no
hesitação rumo ao futuro. mundo, e o mundo "é" em mim.
2. 3.2. A pergunta que o homem é revela-se não-saber-o-ser. 3.2. A pergunta pelo sentido (qüididade, essência) dos entes do mundo.
No "acontecer humano", apesar de sua transcendência luminosa e O sujeito-como-cogito vai além desse primeiro nível de conhecimento
transparente, o ser não se revela na sua claridade total. O homem, por isso, que desvela o posicionamento dos entes no ser, afirmando o fato de que algo é.
somente existe referindo-se ao outro, intencionando o sentido dos entes e "Ex-sistindo", não só afirma "que as coisas são"; mas a positividade ou o fato
perguntando por ele. Não é saber infinito ou consciência absoluta. O "não- "de que as coisas são" o inquieta e o provoca em outras direções.
sabido" o 76 77
constitui essencialmente: sem os entes, não é "ser sabendo". Esse nada Essa inquietude e provocação interiores se constituem no ser intrínseco e
preenchível oportuniza a aparição das coisas em sua significação. O homem é a intencional do próprio homem, que se movimenta em direção aos entes feito
"locanda", o horizonte, o espaço onde o ser dos existentes se manifesta e é pergunta: "o que são"? A "ex-sistencia" tomou-se ato de perguntar pelo sentido
interpretado. Os dois elementos elucidativos da estrutura ontológica do eis-aí- daquilo que é, e aquilo que é, por sua vez, tomou-se problemático à mesma "ex-
ser, portanto, completam-se assim: sendo, o homem é pergunta pelo que não sistentia". Reafirmamos, pois, em matizes diferentes, o que já dizíamos
sabe, mas, ao perguntar pelo que não sabe, é, "a priori", critério, medida, sentido anteriormente sobre a presença imediata do sujeito consciente ao seu objeto
fundamental do ser em cujas dimensões a alteridade é apreciada e afirmada correlato, que é o sentido ou a essência dos entes do mundo. Sendo, o homem
segundo o padrão do dever-ser. vive, originariamente, na pergunta que ele é por essência, o ser das coisas que,
posteriormente, afirma no juízo.
A vivenda originária do sentido (qüididade. essência) tem por base o
3. A PERGUNTA PELO SENTIDO DE SER DIRIGE-SE AOS ENTES. nível da "ex-sistentia": o mundo será aquele que o sujeito-como-cogito
intenciona. O mundo da consciência é sempre o mundo vivido pelo sujeito. Para
3.1. Aos entes do inundo há que perguntar pelo sentido do ser. o agricultor o mundo vivido originalmente é o mundo da lavoura; para o
Nas análises precedentes, o ser-no-mundo manifestou-se de diversas botânico, o mundo das plantas; para o filósofo, o mundo do ser radical. No "ser-
formas: como ego-cogito que só existe pensando alguma coisa; como padrão" ou "ser-medida", serão iluminados e medidos os objetos de consciência,
consciência intencional que consiste no sujeito que intenciona o objeto e no que sempre são objetos de um sujeito.
objeto que é para o sujeito; como "ex-sistentia" que é versão essencial aos entes
e imanência como luz reveladora no ser de conjunto do mundo. 3.3. A pergunta pelo porquê dos entes do mundo.
O homem tem, pois, sua estrutura ontológica no mundo: "é com e pelos" Na vida cotidiana, o sujeito fica, geralmente, absorvido nas vivências de
entes cósmicos e, sem eles, não pode ser. Para existir, portanto, como pergunta seu mundo imediato que não causam maiores problemas. Os objetos
— e assim se constituir formalmente no ser — é aos entes do mundo que tem de intencionados são domésticos, e seu sentido de ser exaure-se na categoria
perguntar. A eles está ligado por natureza e somente a eles tem acesso imediato. superficial do utilitário. Esses utensílios não inquietam muito a consciência
E o ser das coisas mundanas "é" no ser-medida-revelação-interpretação. Por mundana, pois, as mais das vezes, a sua significação responde exatamente ao
isso, todos os entes se presentificam na clareira humana exercendo o ato de ser. "como deve ser" do ego-medida. Ficamos tranqüilos e não interrogamos. Essa
"É" a pedra, "é" a árvore, "é" o homem... Também "eu sou" a cada momento que significação está de acordo com o sentido de ser de todo existente buscado por
passa. "São", outrossim, os conteúdos meus e os das coisas: sou isto ou aquilo... nossas perguntas, sentido que já é interior à natureza do sujeito consciente antes
"é" a brancura da farinha... a bondade das pessoas. "São" as relações dos de qualquer referência concreta ao seu objeto. A mais leve anormalidade,
homens com as coisas: vemos, receamos, desejamos, isto é, somos — vendo, porém, que se verifique no sentido do fáctico interrogado, basta para produzir a
receando, desejando — e "são" as relações das coisas entre si. Tudo "é". "Ser" é inquietação e fazer surgir a problematidade que gera perguntas mais profundas
o traço fundamental da minha existência e que também penetra até o âmago de com o fim de esclarecer o assunto: "por que é assim?"
cada coisa e de cada relação. De tal modo domina e avassala o real, que abrange
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Donde nasce essa necessidade de apelar para novas perguntas? Sem Portanto, o homem imanente ao mundo, como luz e medida do ser, nunca se
dúvida, da diferença que se instalou entre a "medida de ser" do sujeito e o aquietará com as respostas que os entes dão à sua pergunta: o ser que nele se
sentido de ser do objeto. A consciência mundana não se tranqüilizou com a revela e o constitui formalmente é transcender a essencialização e, por isso, ser
resposta do ente. Por isso, tenta chegar a uma nova síntese conciliatória. Aliás, liberto, desoculto. O ser objetivado, coisificado e parcializado, que as ciências
toda vivenda da significação dos objetos é sempre uma vivência crítica que se empíricas explicam, nunca poderá devolver ao eis-aí-ser esse sentido funda-
expressa em juízos como estes: "é bom", "é regular", "não presta", "que mental e essa totalidade sem determinações pelas quais indaga.
calamidade"...
A interpretação do ser dos entes levanta muitos problemas. Alguns 4. A PERGUNTA DIRIGIDA AO SER MESMO DE TODO EXISTENTE.
intrincados e difíceis de resolver, isto é, difíceis de conformar com a "medida de 4.1. A viragem no ato de perguntar.
ser", principalmente quando ultrapassamos as camadas mais superficiais da Cansado de peregrinar em vão e de procurar o sentido originário e a
realidade, que interpretamos pela experiência da vida e pelo senso comum. verdade total do ser na diversidade e singularidade do real, o espírito pode
78 efetuar uma viragem no seu ato de perguntar. Ao invés de se endereçar a "isto
E o sujeito-como-cogito sempre procurou exercer a sua missão reveladora do ou aquilo", a um ente ou a outro, a pergunta assume contornos radicais e dirige-
sentido ou essência dos entes intencionando o ser nas suas razões, nos seus se 79
fundamentos, nas suas causas. Somente podemos dizer que entendemos alguma diretamente ao ser como ser, ao que pensamos propriamente quando dizemos
coisa quando começamos a saber por que ela é, donde vem ou em que está que "existe alguma coisa'' e que "ela é deste ou daquele modo". O método
fundada. objetivo das ciências, que encaminha o pensar às coisas, cede o seu lugar ao
Em seu afã de aclarar a realidade, o pensar preocupa-se mais com o ente método transcendental, que conduz ao ser como tal de todo ente.
do que com o fato de que o ente é. Pensamos em pessoas, casas, livros, pedras, Na viragem, o homem "ex-siste", como necessidade de perguntar, no ser
plantas e em outros entes determinados. E, para iluminar até as raízes o aspecto de todo ente. O sujeito consciente intenciona o ser mesmo de todo existente, e o
ôntico do mundo, o conhecimento científico criou um sistema de representações ser mesmo de todo existente se torna sua vivência.
objetivas em que se desloca do ser vivido e o racionaliza através de conceitos e Como é possível essa pergunta ao ser radical e original? Na vida
teorias. A fim de poder falar sempre mais claramente, precisa, com exatidão, os ordinária e até na vida científica, assinalamos o ente; não o ser e o "é".
seus objetos e tenta obter deles respostas certas, universais e necessárias. O Apesar de dado nos fenômenos, o ser permanece totalmente na sombra e
objeto do conhecimento não é o ser, mas a sua objetivação e representação. completamente desatendido. Tirá-lo do seu escondimento e marcar encontro
Ora, essa atitude do cientista que intenciona as essências enquanto com ele eis a nossa próxima meta.
fácticas e que, por conseguinte, pergunta pelos entes empíricos, quanto mais
respostas obtém mais objetos novos de investigação cria. Dessa forma o ser 4.2. Deixar ser o ser de tudo o que é (a "Gelassenheit"),
resulta cada vez mais parcializado, mais objetivado, mais racionalizado, mais
coisificado e, por isso, mais afastado de seu sentido fundamental. Em fenomenologia, costuma denominar-se "Gelassenheit" (deixar o ser-
Se ponderarmos que o sentido fundamental do ser é o de ser não ser) o método transcendental que leva o ser de todo ente à mostração de si
escondido, des-oculto, des-velado, liberto, "alétheia" ou verdade, chegaremos à mesmo, desocultando a situação original do acontecer humano e manifestando,
conclusão que, nas ciências, esse sentido recua progressivamente: ilumina-se em imediatamente, sem qualquer intermediação, o logos do real. Palavras como
cada um de seus elementos parciais; mas não se revela na sua totalidade. O coincidência, encontro, presença, diálogo, vivência, consciência, realizam então
método objetivo das ciências elucida a verdade de objetos; não, porém, a o seu significado formal com perfeição. O ser de todo existente "é" no ser do
verdade do ser. O eis-aí-ser, com isso, não se afirma na sua autenticidade, pois homem.
revela os hóspedes do ser — os entes — e esquece o ser mesmo. Vive em
4.2.1. O processo desse estilo de pensar.
situações criadas e num mundo interpretado, organizado; mas não vive a
Compete ao homem deixar o ser dos entes ser ("Seinlassen"). É atitude
situação original do seu ser "no" mundo. indispensável para intencionar o ser radical da totalidade e vivê-lo na situação
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mais fundamental e originária ultrapassando, assim, a sua diferenciação 4.2.2. A revelação do ser como ser.
racionalizada em conceitos e afirmações. O pensar atinge então a sua dimensão A atitude silenciosa de deixar "ser-ser" é uma atitude de abertura total e
mais autêntica: deixa ser não só aquilo que nele se manifesta, mas também o de atenta escuta da voz do ser que palpita na raiz de toda realidade.
modo dessa manifestação. Conhecer é identificar e superar a alteridade enquanto Que nos fala e comunica essa voz? De imediato, nos diz que o ser, como
alteridade. ser, não é coisa ou objeto, mas um "nada": o não ocupado, o vazio. Mas esse
Não pretendemos dizer que não existam outros tipos de pensar que "nada", desoculto na base mais profunda do ente, seria o nada absoluto? O
vivenciem o ser. A "Gelassenheit", no entanto, evoca essa vivência à significado dessa indagação difere de todos os outros; o próprio ser, no seu
consciência explícita e fá-la presença lúcida e diáfana manifestando o ser na sua sentido totalizante e coligido, autoluminoso e autovivido, não como objeto posto
pureza original, não envolto nos véus do conceito: "deixa-o-ser-vir-a-si- a sua frente, mas de dentro de si mesmo — ab infra e não ab extra — coloca-se
mesmo". em questão e transforma-se, "in persona", na pergunta mais englobante e mais
A caminhada, para chegar à nascividade do ser, começa de modo inaudita: "há simplesmente o ente ou há o nada?" de que raiz vem o ente? do
negativo. Sendo, "sou o acontecer" que se apropria do ser dos entes: "connaître" nada? é o nada o fundamento no qual descansa?
— nascer junto ou co-nascer — como precisa o verbo francês. Nada de ente, nada de determinado, nada de definido, nada de
A viragem, no ato de perguntar, intende "deixar o ser dos existentes ser" essencializado se manifesta nessa zona silenciosa. Por isso, ao "cogito", que
na sua interioridade nascitiva sem violá-lo por determinações e parcializações. retoma da área de domínio exclusivo do pensar objetivante para a fonte
80 originária
Que ele fale, que se anuncie e se mostre a si mesmo. Antes de mais nada, é 81
mister que eu cale, que não conceptualize, que não afirme, que não defina, que desse mesmo pensar, impõe-se esta pergunta decisiva: existe ou não o ente? "é"
não objetive. A atividade da inteligência deve parar porque, objetivando o ser, o ente ou nada "é"?
ela o racionaliza, prende-o em conceito e rouba-lhe o frescor da originalidade. O Maravilha das maravilhas! Respondendo a essa pergunta "nadificante e
pensar precisa manter a sua abertura e cuidar de não se aprisionar nos entes pela nadigerante", das profundezas originais e do berço nativo de todo ente emerge a
conceptualização ("begreifen"). Enclausurado nos conceitos, o "cogito" voz poderosa e avassaladora do "não-nada-do-ser": "HA o ente! O ente é!"
fragmenta-se e identifica-se ou com os indivíduos: este homem, este animal; ou Além das essencializações, além das objetivações, na raiz de todo existente,
com as espécies: humanidade, irracionalidade; ou com os gêneros: animalidade. palpita o é dos entes, anunciando alto e bom som: "é" aquilo-que-é! O fato de
A "Gelassenheit" não pensa a realidade em categorias que, por mais universais que o ente é domina e permeia, profunda e inteiramente, tanto a totalidade como
que sejam, sempre limitam a verdade total. a singularidade do que existe. O ente que não se funda no ato de ser não é nem
Para revelar o ser, em seu sentido primitivo, o meu pensar não pode pode ser aquilo que é: o ato de ser confere a realidade ao ente. Arrebata-o do
ocupar-se com o ente. Deve pre-ocupar-se descobrindo no ser do "cogito" a nada e fá-lo ser!
coincidência com o ser do ente. Assim surpreende o ser no nascedouro do Esse estilo típico de pensar colige e concentra, na mais simples e total
pensar antes de o destinar e essencializar pela ação cogitativa que, por natureza, unidade, sem divisão nem multiplicação, o é de todo ente, conteúdo original e
tende a defini-lo e objetivá-lo. realidade transcendental que tudo compreende. Eu que penso e o meu pensar
O SILÊNCIO é, portanto, o momento essencial desse peculiar processo também estão envolvidos nessa globalidade. O pensar coligido e concentrado
de pensar: o ser de todo ente fica entregue totalmente a si mesmo e identifica-se é, portanto, o encontro e a coincidência do ego-cogito, do seu "cogitare" e de
com o meu viver. Em virtude desse incondicional e ilimitado abandono tudo o que existe, na transcendência e na unidade do ser.
("Gelassenheit"), o pensar "deixa somente ser-ser o que é". O ser radical da totalidade não se revela como objeto de um sujeito, mas
Liberta-se do seu aprisionamento em conceitos categoriais e contorna coincide com o eis-aí-ser, que o invade e permeia com a sua luz, e toma-se
qualquer cercamento ou definição que nasça de sua atividade. "Deixa ser" autocogitativo. O sentido do ser explicita-se, ele mesmo, como ser, na "ex-
exclusivamente o fato de que o ente "é". Pensar torna-se, então, viver o ser em sistentia", que é então "in-sistentia" clarificadora no ser de conjunto do universo;
sentido radical.
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coligido na transobjetividade e na unidade, o ser de todo ente - diáfono e condição possibilitante do existente. Descrevendo exclusivamente o fenômeno
translúcido - autocompreende-se pensando a si mesmo, por si mesmo. do ente mundano, não se lhe pode desocultar outro logos que o ato de ser
Essa a figura ("Gestalt") fundamental, originária de todo conhecimento: radicalmente finito e temporal: no mundo, o ser nunca se dá em estado puro,
conceitos, juízos e afirmações são essencializações do ser, que se revela como mas sempre ligado ao ente e à finitude.
ser no pensar coligido. Toda demonstração, que não assenta nesse fato
primitivo, simplesmente não se baseia em nada e está fora da realidade. 5.3. Diferença ontológica no segundo grau do método transcendental.
Entretanto, o ser que o pensar coligido revela, na raiz de todo ente
5. A DIFERENÇA ONTOLÓGICA. mundano, não devolve ao perguntante o seu sentido fundamental. A derradeira
Na sua silenciosa unidade e na sua misteriosa simplicidade, a questão e a possibilidade extrema do interrogar humano não encontram solução
"Gelassenheit" abre espaço para tudo. A pergunta que o homem é, manifestou, nem resposta na descrição fenomenológica do ato de ser que se manifesta na
no pensar recolhido e concentrado, o ser como ser de todo ente. Nessa sua base de tudo aquilo que é no mundo. Permanece em aberto o que se cogita
epifania, que nos dirá ele? Deixemo-lo falar. propriamente no dizer que há alguma coisa e que ela é desta ou daquela
maneira. Não aparece plenamente evidente aquilo "que faz e funda, afinal, a
5.1. Ser como diferença ontológica. diversidade dos seres assim como a unidade que os liga entre si" (Dondeyne,
Na raiz da realidade, o "ser mesmo" revelou-se como o original e 1957, p. 17).
fundamental: fundamenta e faz ser tudo o que é; erige-se e edifica-se em ente e Agora, a inquietação e a necessidade de perguntar nascem do interior do
é, por isso, uma força, uma virtualidade, "virtus essendi", que se alimenta por si próprio ser, coligido e concentrado, de todo ente e assumem proporções
mesma. inauditas que reclamam nossa atenção.
82 A "GELASSENHEIT" deixou claro que o ser radical não é ente nem
O ser, portanto, é o logos do on, o fundamento do ente. Entre ser e ente nada negativo: opondo-se ao nada, é ato de ser e, opondo-se ao ente, é ato
há, pois, uma diferença: o ser (fundamento) funda o ente (fundado). Ser 83
possibilita o ente, confere-lhe realidade: sem ser nada é e, por conseguinte, sem de ser não essencializado, não determinado, não limitado, não diferenciado, não
ser não há ente. parcializado.
Portanto, o ser revela-se como diferença onto-lógica: o ser fundante é o Que é então esse ser fundamental, não-ente e não-nada? Logo salta à
logos do ente fundado ("tou ontos"). O ser como ser não deve confundir-se com vista que a pura descrição fenomenológica do ser básico, enquanto condição
"existência", tomada neste sentido escolástico: realização de algo (essência) que possibilitante do ente, não elucida totalmente a diferença ontológica. O ato de
individualiza e limita o ato de ser a isto ou àquilo. Existência ou esse in actu ser de todo ente continua questionável como ato de ser mesmo. O método
distingue-se do ato de ser mesmo ou esse ut actua. transcendental não objetivo, para atingir a sua amplitude total de clarificação,
precisa elevar-se a um segundo grau de intensidade que ultrapasse a
5.2. Diferença ontológica no primeiro grau do método transcendental. fenomenologia descritiva e avance a uma fenomenologia plenamente
O método transcendental, limitado à pura fenomenologia descritiva do compreensiva do ato de ser desvelado na base dos entes cósmicos. Então o
ato de ser de todo ente, revela o seguinte: o ser que, no pensar coligido, pensar coligido talvez possa compreender, mais exaustivamente, o sentido da
aparece como a raiz fundamental do "sendo" cósmico, manifesta-se apenas voz que clama nas profundezas radicais da realidade, e aquietar a sua
como jogado-aí ou já-ser-em. Na sua facticidade, não passa de puro poder-ser necessidade de perguntar, aplainando a diferença ainda existente entre a sua
("ex-sistentia") que sempre, de novo, emerge do ente para sempre, de novo, nele medida — sabedora "a priori" de como ser deve ser — e o ato de ser de todo
decair (decadência). Sem ente, não há ato de ser e esse, em conseqüência, é ente concreto.
temporal e finito por essência: além do fundamento que possibilita o ente, nada Que questões serão essas que nascem do logos de tudo aquilo que é? que
mais revela. diferenças ainda subsistem entre o ser radical da realidade mundana e o sentido
Esse primeiro grau do método transcendental, que se esgota com a fundamental de ser? Em primeiro lugar, a compreensão fenomenológica
descrição fenomenológica, de fato somente descobre o ser fundamental como descobre que, no mundo, o ato de ser nunca existe separado do ente e, por isso,
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sempre está limitado e finitizado. Esse "é" básico da realidade ôntica, apesar de * Como o ser consciente aparece como modo fundamental de ser do homem?
tão distante da pureza autêntica e sem negatividade do ser, contudo, revela-se (1.3)
não-nada e impõe-se como ato de ser legítimo; difere, porém, do ser mesmo, o
esse tantum, que exclui toda e qualquer contaminação de não-ser. O ato de ser 2. SER-CONSCIENTE-NO-MUNDO COMO NECESSIDADE DE
jogado nos entes — assim o revela o pensar coligido - pode ser e pode não ser; PERGUNTAR
surge e desaparece sem cessar: não existe necessariamente e, por isso, é radi- * Como a necessidade de perguntar desvela o ser dialógico do sujeito
calmente contingente, temporal e finito. O ente, que não é necessariamente, consciente? (2.1 e 2.2)
não precisa ser e, conseqüentemente, não existe por virtualidade de sua essência
e não está embasado em si mesmo: não é decidido para ser em virtude de sua 3. A PERGUNTA PELO SENTIDO DE SER DIRIGE-SE AOS ENTES
própria força. * Por que o homem, como ser consciente, pergunta pelo ser dos entes? (3.1)
Mas o ente concreto "é", existe, e a ele compete o ato de ser:
está colocado na ordo essendi. Ora, ser, mas ser não por virtude própria, torna o 4. A PERGUNTA DIRIGIDA AO SER MESMO DE TODO
"é" de todo ente sumamente questionável, pois persiste a necessidade de EXISTENTE
perguntar. A fenomenologia descritiva, portanto, não esclarece devidamente * Em que consiste a viragem no ato de perguntar? (4. l)
tudo o que se encontra nas dobras ocultas do fundamento em que repousa e de * O que é GELASSENHEIT? (4.2)
que nasce a realidade total do mundo. 5. A DIFERENÇA ONTOLÓGICA
A essa primeira soma-se uma segunda consideração: ser como ser pode * Como o SER aparece como diferença ontológica? (5. l)
ser isto ou aquilo. Intrinsecamente, não é decisão, mas indiferença: pode ser * O que é diferença ontológica no primeiro grau do método transcendental?
pão ou pedra, homem ou animal, espírito ou matéria, substância ou acidente... (5.2)
Por natureza, é nulidade completa como força decisória. Decidido no ente, mas * O que é diferença ontológica no segundo grau do método transcendental? (5.3)
indeciso em sua essência, o ato de ser, desvelado na raiz de tudo o que é, con -
tinua ainda interrogável e não plenamente inteligível: é de fato, mas não é 84
por si mesmo. E, se não é por virtude própria, por virtude de quem é então no
ente? qual o seu fundamento ou razão de ser? quem o decide para ser?
A razão dessa questionabilidade está na diferença entre o ser radical
subjacente a todo existente e o "saber 'a priori' o sentido fundamental de ser" que
constitui o homem: a medida de ser e o ser da facticidade não coincidem, mas
diferenciam-se.
O ser mesmo de todo existente, na sua interioridade mais profunda e
universal, assume um caráter dramático de alta problematicidade, e nós próprios
estamos implicados e envolvidos nessa pergunta englobante e transcendente
que emerge das entranhas da realidade total para desembocar numa região
completamente nova e misteriosa.

1. O HOMEM COMO SER-CONSCIENTE-NO-MUNDO


* O que é ser?
* Diferença entre SER e ENTE?

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