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Comissão Responsável

pela organização do lançamento


das obras completas de C. G. Jung em português: AION
Dr. Léon Bonaventure
Dr. Fr. Leonardo Boff
Dora Mariana Ribeiro Ferreira da Silva
Estudos sobre
Dra. Jette Bonaventure o simbolismo do si-mesmo

A Comissão responsável
pela tradução das obra;; completas de C. G. Jung c.G.Jung
sente-se honrada em expressar seu agradecimento
à Fundação Pro Helvetia, de Zurique, pelo apoio recebido.

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"Isto aconteceu, afirmam eles, para que Jesus


se tornasse a primeira vítima do processo
de diferenciação das coisas que foram misturadas",

Doutrina de Basílides
HIPÚLITO. Elenchos, VII, 27,8

1990
Petr6polis
Ano Internacional da 1990
Alfabetização
abertos aos ataques da crítica, com os meus insuficientes co-
nhecimentos de História, colocando assim em risco a minha
reputação científica. Por certo que me empenho, na medida
de minha capacidade produtiva, em si reduzida pela enfermi-
dade bem como pela idade, em elaborar o mais seriamente
possível meu material comprobativo, apoiando o exame de
meus resultados com indicações das fontes. Ter-me-ia sido
quase impossível levar a cabo este propósito, se o fatigoso
trabalho de consulta de biblioteca não fosse retirado de meus
ombros, em grande parte, pela Sra. Dra. L. Frey-Rohn, pela
Srta. Dra. M.-L. von Franz e pela Srta. Dra. R. Scharf. A todas
elas gostaria de deixar registrado aqui o meu agradecido reco-
nhecimento por tão grande e compreensiva ajuda. Particular dívi-
da de gratidão tenho para com a Sra. Dra. Lena Hurwitz-Eisner,
A circunstância de lidar com a psicologia do inconsciente fez-
me deparar com fatos que exigem a elaboração de novos con-
pela conscienciosa elaboração. do índice deste volume, como ceitos. Um destes conceitos é o do si-mesmo (Selbst). Refiro-
também para com todos aqueles que me ajudaram de vários me, com isto, não a uma grandeza que venha ocupar o lugar
modos na leitura crítica do manuscrito e das correções, e a daquela até o momento designada pelo termo eu, mas a uma
este respeito não quero esquecer o grande merecimento de grandeza mais abrangente, que inclua o eu. Entendemos por
minha desvelada secretária, Srta. Marie-Jeanne Schmid. "eu" aquele fator complexo com o qual todos os conteúdos
Maio de 1950 conscientes se relacionam. É este fator que constitui como
que o centro do campo da consciência, e dado que este campo
inclui também a personalidade empírica, o eu é o sujeito de
todos os atos conscientes da pessoa. Esta relação de qualquer
conteúdo psíquico com o eu funciona como critério para saber
se este último é consciente, pois não há conteúdo consciente
que antes não se tenha apresentado ao sujeito.
Esta definição descreve e estabelece, antes de tudo, os limites
do sujeito. Teoricamente, é impossível dizer até onde vão os
limites do campo da consciência, porque este pode estender-se
de modo indeterminado. Empiricamente, porém, ele alcança
sempre o seu limite, todas as vezes que toca o âmbito do
desconhecido. Este desconhecido é constituído por tudo quanto
ignoramos, por tudo aquilo que não possui qualquer relação
COmo eu enquanto centro da consciência. O desconhecido se
divide em dois grupos: o concernente' aos fatos exteriores que
podemos atingir por meio dos sentidos, e o que concerne ao
mundo interior que pode ser objeto de nossa experiência ime-
diata. O primeiro grupo representa o desconhecido do mundo
ambiente, e o segundo, o desconhecido do mundo interior. Cha-
mamos de inconsciente a este último campo.
O eu considerado como conteúdo consciente em si não é um
fator simples, elementar, mas complexo; é um fator que, como
tal, é impossível descrever com exatidão. Sabemos pela expo,
riência que ele é constituído por duas bases aparentementt,
diversas: uma base somática e uma base psíquica. Conhecemos quer dizer, este grupo encerra conteúdos que ainda 11110 11'1'11111

a base somática, partindo da totalidade das sensações de natu- peram ou jamais irromperão na consciência.
reza endossomáticas, as quais, por sua vez, são de caráter psí-
Ao afirmar acima que o eu se apóia sobre o campo f.(lolml
quico e ligadas ao eu e, conseqüentemente, também conscien- da consciência, não estou, de modo nenhum, querendo dhlOr
tes. Estas sensações decorrem de estímulos endossomáticos
qUe seja constituído por ele.' Se isto acontecesse realmenl.o,
que só em parte transpõem o limiar da consciência. Parte seria impossível distingui-lo do campo da consciência. É apenas
considerável destes estímulos se processa de modo inconscien-
o ponto central, fundado e delimitado pelo fator somático acima
te, isto é, subliminar. Este caráter subliminar não implica descrito.
necessariamente um estado meramente fisiológico, o mesmo
acontecendo com relação a um conteúdo psíquico. Eles podem, A despeito do éaráter relativamente desconhecido e incons-
eventualmente, tornar-se supraliminares, isto é, podem trans- ciente de suas bases, o eu é um fator consciente por excelên-
formar-se em sensações. Não há dúvida de que parte conside- cia. Constitui, inclusive, uma aquisição empírica da existência
rável dos estímulos endossomáticos é totalmente incapaz de se individual. Parece que resulta, em primeiro lugar, do entre-
tornar consciente, e seu caráter é tão elementar, que não há choque do fator somático com o mundo exterior, e uma vez
razão para conferir-lhe uma natureza psíquica, a menos que que existe como sujeito real, desenvolve-se em decorrência de
se partilhe a opinião filosófica segundo a qual os processos entrechoques posteriores, tanto com o mundo exterior como
vitais são de fundo psíquico. Contra uma tal hipótese, que com o mundo interior.
dificilmente será comprovada, deve-se argüir, sobretudo, que
Apesar de desconhecermos os limites de suas bases, o eu
ela estende o conceito de psique além de qualquer limite vá-
nunca é mais ou menos amplo do que a consciência como tal.
lido, tomando o processo vital, deste modo, num sentido que
Como fator consciente, o eu pode ser perfeitamente descrito,
nem sempre tem o apoio dos fatos reais. Conceitos demasia-
pelo menos do ponto de vista teórico. Mas isto nada mais nos
do amplos revelam-se em geral instrumentos inadequados de
proporcionaria do que uma imagem da personalidade conscien-
trabalho, por serem vagos e nebulosos. Por isso propus que
te, à qual faltariam todos os traços que o sujeito desconhece
o conceito de psíquico só fosse aplicado àquela esfera em que
exista uma vontade comprovadamente capaz de alterar o pro- ou de que não tem consciência. Mas a imagem global da per-
cesso reflexivo ou instintivo. Sobre este ponto, sou obrigado sonalidade deveria incluir também esses traços. É absolutamen-
a remeter o leitor ao meu artigo "Der Geist der Psychologie" te impossível fazer uma descrição completa da personalidade,
(O Espírito da Psicologia *), onde trato detalhadamente desta mesmo sob o ponto de vista teórico, porque uma parcela do
definição do psíquico. inconsciente não pode ser captada. Esta parcela não é, de modo
algum, irrelevante, como a experiência nos tem mostrado até
A base somática do eu é constituída, como já apontei, por à saciedade. Pelo contrário: há qualidades perfeitamente incons-
fatores conscientes e inconscientes. Outro tanto se pode dizer cientes que só podem ser observadas a partir do mundo exte-
da base psíquica: o eu se assenta, de um lado, sobre o campo rior, ou para se chegar às quais é necessário muita fadiga, ou
da consciência global e, do outro, sobre a totalidade dos con- recorrendo até mesmo a meios artificiais.
teúdos inconscientes. Estes últimos se dividem em três grupos:
(1) o dos conteúdos temporariamente subliminares, isto é, vo- E evidente que o fenômeno global da personalidade não coin-
luntariamente reproduzíveis; (2) o dos conteúdos que não cide com o eu, isto é, com a personalidade consciente; pelo
podem ser reproduzidos voluntariamente, e (3) o dos conteú- contrário, constitui uma grandeza que é preciso distinguir do
dos totalmente incapazes de se tornarem conscientes. Pode-se eu. Tal exigência, naturalmente, só se verifica numa psicologia
deduzir a existência do grupo número 2, dada a ocorrência que se defronta com a realidade do inconsciente. Mas uma
de irrupções espontâneas na consciência de conteúdos subli- diferenciação desta espécie é da máxima relevância para essa
minares. O grupo número 3 é hipotético, isto é, uma decorrên- psicologia. Até mesmo para a aplicação da justiça é impor-
<:ia lógica dos fatos que estão na origem do segundo grupo: tante saber se determinados fatos são de natureza conscienl.o
ou inconsciente, como, por exemplo, /quando se trata de jull~lLl'
a respeito da imputabilidade ou não de um ato.
1'01' 1sso propus que a personalidade global que existe real- que encontramos em LEIBNIZ, KANT, SCHELLINO o Rell()
Ilwute, mas que não pode ser captada em sua totalidade, fosse PENHAUER e os esboços filosóficos de CARUS e de VON
denominada si-mesmo. Por definição, o eu está subordinado HARTMANN foi somente a psicologia moderna que descobri li ,
ao si-mesmo e está para ele, assim como qualquer parte está u partir do final do século XIX, com s~u. método indu~ivo, IIS
para o todo. O eu possui o livre-arbítrio - como se afirma bases da consciência, demonstrando empIncamente a eXIstência
-, mas dentro dos limites do campo da consciência. Empre- de uma psique extraconsciente. Esta descoberta relativizou a po-
gando este conceito, não estou me referindo a algo de psico- sição até então absoluta do eu, quer dizer: este conserva sua
lógico, mas sim ao conhecidíssimo fato psicológico da assim condição de centro do campo da consciênc~a.;mas coI?o. ponto
chamada decisão livre, ou seja, ao sentimento subjetivo Q.e central da PElrsonalidade tornou-se problematlCo. ConstItUl parte
liberdade. Da mesma forma que nosso livre-arbítrio se choca desta personalidade, não há dúvida, mas não r.epreser:ta a sua
com a presença inelutável do mundo exterior, assim também totalidade. Como já mencionei, é simplesmente Imposslvel saber
os seus limites se situam no mundo subjetivo interior, muito até onde vai sua participação; em outras palavras: é impossível
além do âmbito da consciência, ou lá onde entra em conflito saber se é livre ou dependente das condições da psique extra-
com os fatos do si-mesmo. Do mesmo modo que as circuns- consciente. Podemos apenas dizer que sua autonomia é limi-
tâncias exteriores acontecem e nos limitam, assim também o tada e que sua dependência tem sido comprovada de manei!a
si-mesmo se comporta, em 'confronto do eu, como uma rea- muitas vezes decisiva. Sei, por experiência, que é melhor nao
lidade objetiva na qual a liberdade de nossa vontade é incapaz subestimar a dependência do inconsciente~ É óbvio que não se
de mudar o que quer que seja. É inclusive notório que o eu pode dizer tal coisa àqueles que já sobreestimam a impor~ân-
não é somente incapaz de qualquer coisa contra o si-mesmo, cia do inconsciente. Um critério para saber em que conSIste
como também é assimilado e modificado, eventualmente, em a justa medida nos é dado pelas manifestações psíquicas subse-
grande proporção, pelas parcelas inconscientes da personalidade qüentes a uma apreciação errônea. Sobre isto voltaremos a falar
que se acham em vias de desenvolvimento. mais adiante.
É de essência das coisas a impossibilidade de apresentar Dividimos o inconsciente, acima, em três grupos, sob o ângulo
uma definição geral do eu que não seja de caráter formal. da psicologia da consciência, mas é possível dividi-Io também
Qualquer outro modo de considerar o problema deveria levar em dois campos: de um lado, o de uma psique extraconsciente,
em conta a individualidade que é inerente ao eu, como proprie- cujos conteúdos classificamos de pessoais e, d? outro,. o de
dade essencial. Embora os numerosos elementos que compõem uma psique cujos conteúdos qualificamos de zmpessoazs,. ou
este fator complexo sejam sempre os mesmos por toda parte, melhor coletivos. O primeiro grupo compreende os conteudos
variam, contudo, ao infinito, fato este que afeta a sua clareza, que fo;mam as partes constitutivas da personalidade individual
a sua tonalidade emocional e a sua amplitude. Por isso o resul- e por isso mesmo poderiam ser também de natureza cons-
tado desta composição, ou seja, o eu é, até onde podemos saber, ciente. O segundo grupo representa uma condição ou base da
algo de individual e único, que permanece de algum modo idên- psique em geral, universalmente presente e sempre idê~tic~
tico a si-mesmo. Este caráter permanente é relativo, pois em a si mesma. Evidentemente, uma afirmação como esta nao e
certos casos podem ocorrer transformações na personalidade. mais do que uma hipótese à qual fomos levados pela ~sp~cie
Estas modificações nem sempre são de natureza patológica, de material que colhemos ao longo de nossas expenencIas,
mas determinadas também pela evolução, e por isso caem na embora seja muito provável que a semelhança universal entre
esfera do normal. os processos psíquicos se deva a uma regularidade igualment~
universal da mesma forma pela qual o instinto que se mamo
Como ponto de referência do campo da consclencia, o eu é festa no~ individuos representa a expressão parcial de uma
o sujeito de todos os esforços de adaptação na medida em que
estes são produzidos pela vontade. Por este motivo é que. na base instintiva universal.
economia psíquica o eu exerce um papel altamente significativo.
A posição que aí ocupa é de tal modo importante, que o pre-
conceito segundo o qual o eu é o centro da personalidade ou
de que o campo da consciência é a psique pura é simplesmente
destituído de qualquer fundamento. Excetuando-se as alusões

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