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A capitulação de Jung foi um momento seminal para a psicologia analítica porque ela
reconhecia pela primeira vez na natureza teleológica, propositiva, do inconsciente. De fato, aquela
decisão pode ser considerada como o nascimento da função transcendente no pensamento de
Jung – um reconhecimento explícito do fato de que o crescimento psicológico requer uma parceria
entre a consciência e o inconsciente.
Durante os vários anos que se seguiram, Jung se defrontou com as turbulentas forças do
inconsciente. Ele sonhou de forma abundante, foi tomado por visões simbólicas e dialogou com
figuras fantasiosas. Visando a lidar com isso, Jung se submeteu a uma série de formas de auto-
cura: Usando pedras ao redor do lago que havia atrás de sua casa, ele construiu uma cidade em
miniatura, recordou-se de suas experiências e se engajou em interações com as visões que
apareciam a ele. Jung descreve a produção de imagens inconscientes nestes termos:
“Uma onda incessante de fantasias se desencadeou com essa atividade; fiz todo o possível para
não perder a orientação e para descobrir um caminho. Eu estava mergulhado, sem qualquer
ajuda, num mundo totalmente estranho, onde tudo me parecia difícil e incompreensível. Vivia
numa tensão extrema e muitas vezes tinha a impressão de que blocos gigantescos desabavam
sobre mim Os trovões sucediam-se ininterruptamente.” (MDR, p. 157)
As descrições dos confrontos de Jung com o inconsciente levaram alguns a acreditar que
Jung estava substancialmente debilitado, até mesmo do ponto de vista clínico, durante pelo
menos parte do tempo. De fato, o próprio Jung usa este tipo de linguagem: “às vezes, [a pressão
interna] era tão forte que cheguei a supor que havia em mim alguma perturbação psíquica”.
(MDR, p. 154). Se os eventos que se seguiram nos diversos anos que se sucederam à ruptura com
Freud levaram a um surto ou não, sem dúvida alguma esse período reflete uma luta intensa
travada por Jung para conversar e chegar a bons termos com os conteúdos do inconsciente.
A emergência de Jung tanto da sua ruptura com Freud quanto de sua descida ao
inconsciente ocorreu em 1916, um ano chave no qual ele escreveu três de suas maiores obras de
sua fase inicial: “A Função Transcendente” (1957/1960); a “Estrutura do Inconsciente”, que foi
posteriormente revista e se tornou “Relações entre o Ego e o Inconsciente” e os Sete Sermões aos
Mortos, publicado anonimamente. Um ano mais tarde, ele escreveu um outro grande trabalho: “A
Psicologia dos processos inconscientes”, que foi mais tarde revisada e se tornou “Sobre a
Psicologia do Inconsciente”. Embutido nessas obras está o cerne de muitas das mais importantes
idéias de Jung que foram de desenvolvidas de forma mais completa mais tarde. Esses conceitos
básicos, particularmente a função transcendente, surgiram diretamente da conversação entre os
materiais conscientes e inconscientes a que Jung se submeteu. Nesse sentido, o ensaio “A Função
Transcendente” é a função transcendente em ação, um produto mediatório surgido diretamente
de um diálogo entre as forças conscientes e inconscientes em Jung que o transformaram
psicologicamente e possibilitaram, pelo menos em parte, a sua mudança de paradigma teórico
durante esse período.
A versão de “A Função Transcendente” que nós vemos no Volume 8 das Obras Completas não é o
trabalho original que Jung escreveu em 1916, mas é uma revisão que ele preparou 42 anos mais
tarde. Jung escreveu o ensaio na sua forma original em alemão, em 1916, sob o título de “Die
Transzendent Funktion”. Inexplicavelmente, o artigo não foi publicado até 1957, quando ele foi, de
acordo com Jung “descoberto por estudantes do Instituto C. G. Jung de Zurique” (Vol. VIII,
prefácio), traduzido para o inglês e publicado sob o título de “The Transcendent Function” pela
associação de estudantes do Instituto C. G. Jung, de Zurique, no que Jung chamaria, mais tarde, de
sua “versão original provisória” (Vol. VIII, prefácio). Em 1958, Jung revisou de forma considerável a
versão original alemão para republicação em conjunto com um prefácio.
O PREFÁCIO
Escrito em sua forma final apenas dois anos antes de sua morte, em 1961, e 42 anos
depois da versão original, o prefácio fornece um insight importante acerca dos pensamentos de
Jung sobre o significado do ensaio e dos conceitos que ele contêm. Nas passagens de abertura,
Jung indica que o ensaio pode dar ao leitor “alguma idéia dos esforços de compreensão, exigidos
pelas primeiras tentativas de se chegar a uma visão sintética do processo psíquico no tratamento
analítico” (Vol. VIII, prefácio). Uma das maiores divergências da psicologia junguiana de outras
abordagens constitui a sua rejeição da noção de que as manifestações psicológicas podem ser
reduzidas exclusivamente a eventos dos anos iniciais de vida, a assim chamada “visão redutiva”. A
visão sintética junguiana é a de que, além das experiências iniciais da vida, a existência psicológica
também é influenciada pela energia de elementos de caráter prospectivo do inconsciente que nos
guiam adiante. Como Jung declara mais tarde, no seu ensaio “O tratamento construtivo do
inconsciente, isto é, a questão do seu significado e de sua finalidade nos fornece a base para a
compreensão do processo que se chama função transcendente”(§ 147). De acordo com a
perspectiva da visão sintética, a psicologia não diz respeito apenas a um escavar e descobrir os
traumas da infância, mas também acerca de um aprendizado sobre a direção em que a psique está
nos levando:
“Jung é crítico do método redutivo porque o sentido completo do produto inconsciente (sintoma,
sonho, imagem, lapsos de linguagem) não é revelado. Ao conectar uma produção inconsciente ao
passado, o seu valor presente para o indivíduo pode ser perdido... Jung estava mais interessado
em onde a vida de uma pessoa a estava levando, em vez de desvendar as supostas causas da
situação. O ponto de vista dele era teleológico. Jung descreve a orientação dele como “sintética”.”
(Samuels, Shorter e Plaut, A critical Dictionary of Jungian Analysis, p. 127).
Jung via o inconsciente como uma chave não só para revelar e curar velhas feridas, mas também
para se aprender sobre o próprio destino, o telos da sua própria vida. Em contraste com a visão
redutiva, que procura ligar fenômenos psicológicos aos eventos do passado, a visão sintética
implica sentido, propósito e destino. Visto nessa forma, o inconsciente assume uma qualidade
mística. Como declara Jung no prefácio:
“Depois de quarenta e dois anos, o problema nada perdeu de sua atualidade [...] E esse problema
se identifica com a questão universal: De que maneira podemos confrontar-nos com o
inconsciente? [...] Indiretamente, porém, é a questão fundamental, na prática, de todas as
religiões e de todas as filosofias. O inconsciente, com efeito, não é isto ou aquilo, mas o
Desconhecimento do que nos afeta imediatamente.” ( Vol. VIII, prefácio).
Embora Jung não diga isso explicitamente,o fato de ele colocar com letra maiúscula
“Desconhecimento” e relacionar isso a “todas as religiões e filosofias” pode nos levar à conclusão
de que ele acredita que o inconsciente tem um tipo de qualidade divina que nos afeta de um
modo inexplicável e numinoso.
No seu curto prefácio, Jung nos fornece importantes informações sobre a função
transcendente, o método da imaginação ativa e a abordagem sintética. Jung também salienta que
ele está lidando não só com técnicas, mas também com o que ele vê como sendo o cerne da
psique: sentido e propósito, nenhum dos quais pode ser procurado ou obtido sem um risco real.
DEFINIÇÕES
Jung não perde tempo para dizer ao leitor o que ele quer dizer com função transcendente. O
primeiro parágrafo do artigo dá uma definição inicial do conceito:
“Por função transcendente não se deve entender algo de misterioso e por assim dizer supra-
sensível ou metafísico, mas uma função que, por sua natureza, pode-se comparar com uma função
matemática de igual denominação, e é uma função de números reais e imaginários. A função
psicológica e “transcendente” resulta da união dos conteúdos conscientes e inconscientes.” § 131.
Jung curiosamente diz que não há nada de sensível ou de metafísico na descrição da função
transcendente, muito embora ele, no prefácio, tenha dito que ela trata da questão fundamental
de todas as religiões e de todas as filosofias. Podemos pensar que o Jung científico está reagindo
ao Jung metafísico.
A função é chamada de transcendente porque ela permite que um indivíduo transcenda a sua
atitude e chegue a uma nova. Ela potencializa o crescimento psicológico. Além disso, Jung nos diz
que a mudança ocorre organicamente. Isso prefigura um outro tema a ser abordado mais tarde: a
de que a função transcendente (e a transformação propiciada por ela) é um processo natural
produtor de mudança no curso normal dos eventos psíquicos.
Jung cita quatro razões para a relação complementar e compensatória entre a consciência
e o inconsciente:
Aqui Jung delineia as diferenças significantes entre a concepção dele de inconsciente a visão
freudiana: Freud via o inconsciente como um depósito de material que era desagradável, violento
ou poderoso para ser mantido na consciência, enquanto Jung proclama que o inconsciente é um
sistema psíquico independente em parceria dinâmica com a consciência. Jung acredita que a
consciência contém material pessoal, adaptativo e dirigido, ao passo que o inconsciente abriga o
material menos dirigido do passado, traços de comportamento do resto da humanidade (aqui se
encontra a semente do trabalho posterior de Jung sobre os arquétipos) e material fantasístico.
Pela primeira vez na psicologia profunda se vê a idéia da consciência e do inconsciente como co-
iguais na psique. A consciência permite que a gente funcione no dia-a-dia de nossas vidas, ao
passo que o inconsciente compensa e complementa fornecendo símbolo, fantasia, e imagens
coletivas.
“O julgamento se baseia, por sua vez, na experiência, isto é, naquilo que já é conhecido. Via de
regra, ele nunca s baseia no que é novo, no que é ainda desconhecido e no que, sob certas
circunstâncias poderia enriquecer consideravelmente o processo dirigido. É evidente que não
pode se basear, pela simples razão de que os conteúdos inconscientes estão a priori excluídos da
consciência. Por causa de tais atos de julgamento, o processo dirigido se torna necessariamente
unilateral, mesmo que o julgamento racional pareça plurilateral e despreconcebido.. Por fim, até a
própria racionalidade do julgamento é um preconceito da pior espécie, porque chamamos de
racional aquilo que nos parece racional. [...] A unilateralidade é uma característica inevitável,
porque necessária, do processo dirigido, pois direção implica unilateralidade. A unilateralidade é,
ao mesmo tempo, uma vantagem e um inconveniente.” (§136, 137 e 138).
Jung claramente delineia a desvantagem significativa do processo dirigido: ele nos afasta
do novo e do desconhecido que residem no inconsciente.
Além disso, Jung salienta que, quanto mais a contraposição do inconsciente for
pressionada, maior será a sua força e as chances de que ele irromperá na consciência com
resultados desagradáveis:
“A contraposição é inócua, enquanto não contiver um valor energético maior. Mas se a tensão dos
opostos aumenta, em conseqüência de uma unilateralidade demasiado grande, a tendência
oposta irrompe na consciência, e isto quase sempre precisamente no momento em que é mais
importante manter a direção constante. [...] Quanto mais capazes formos de nos afastar do
inconsciente por um funcionamento dirigido, tanto maior é a possibilidade de surgir uma forte
contraposição, a qual, quando irrompe, pode ter conseqüências desagradáveis.” (§ 138, 139).
Aqui Jung dá voz ao que é amplamente aceito e com freqüência citado na psicologia
profunda: quando nós ignoramos, subvertemos ou negamos o inconsciente por meio de uma
ênfase demasiada no processo dirigido, consciente, o inconsciente se manifesta e um modo
trágico ou desagradável. A esse respeito, esclarece Hillman:
“Um axioma da psicologia profunda afirma que aquilo que não é admitido à consciência irrompe
de formas literais, obsessivas e desagradáveis, afetando a consciência precisamente com as
qualidades que ela tenta excluir.” (Hillman, Revisioning Psychology, p. 46).
“A terapia analítica nos proporcionou uma profunda percepção da importância das influências
inconscientes e, com isto aprendemos tanto, para a nossa vida prática, que julgamos insensato
esperar a eliminação ou a parada do inconsciente depois do chamado término do tratamento. “§
140.
De fato, ele diz que nós podemos esperar constantes intrusões do inconsciente: essa é a
natureza da vida psíquica. Em uma adição ao texto original, de 1916, ele afirma:
“A esperança de Freud no sentido de que se poderia esgotar o inconsciente, não se realizou. A
vida onírica e as instruções do inconsciente continuam – mutatis mutandis – desimpedidas”. §
141.
Para Jung, esta é uma verdade psíquica fundamental: o inconsciente está sempre
presente, influenciando a vida consciente. Mesmo quando algo do inconsciente se torna
consciente, emerge então uma outra contraposição ao que acabou de se tornar consciente. Em
vez de encorajar uma atitude falsamente onipotente de que a análise pode ar ao paciente uma
solução para o inconsciente, Jung reconhece os efeitos do inconsciente e exorta um
comportamento analítico que assista o paciente ensinando-o como lidar continuamente com ele:
É interessante notar que todo esse trecho não existia na versão de 1916, tendo sido
acrescentado por Jung na revisão de 1958. Isso mostra a importância do papel do inconsciente na
compensação da unilateralidade da consciência e do papel que o analista desempenha em assistir
o paciente a descobrir isso. Além disso, mostra a convicção de Jung a esse respeito e a de que a
saúde psicológica de um indivíduo requer uma constante troca entre o inconsciente a consciência.
Jung não só acreditava na onipresença do inconsciente, mas também em que nele havia
um centro de novas atitudes que procuravam nos guiar de um modo teleológico. Jung discordava
amplamente da afirmação de Freud de que o inconsciente apenas continha material reprimido. Ele
dizia:
“O inconsciente possui, além deste, um outro aspecto, incluindo não apenas conteúdos
reprimidos, mas todo o material psíquico que subjaz ao limiar da consciência. [...] Acentuamos,
portanto, que além do material reprimido, o inconsciente contém todos aqueles componentes
psíquicos subliminais, inclusive as percepções subliminais dos sentidos. Sabemos, além disso,
tanto por uma farta experiência como por razões teóricas, que o inconsciente também inclui
componentes que ainda não alcançaram o limiar da consciência. Constituem elas as sementes de
futuros conteúdos conscientes.” (JUNG, O. C. Vol. VII, §203 e 204).
Esse é o centro da crença de Jung no método sintético ou construtivo. Em vez de reduzir o
inconsciente ao que ele representa acerca dos primórdios da vida do indivíduo, Jung insistia em
que ele fosse recebido como algo que poderia ser construído ou sintetizado como um propósito,
um sentido, um destino:
A função transcendente está fortemente ligada à visão construtiva da psique. Ela nos
assiste a mudar de uma velha atitude para a qual a nossa consciência unilateral nos guiava, para
um novo modo de ser, trazendo-nos para mais próximo do propósito a que nos destinávamos.
Como Jung salienta:
Jung, no trecho abaixo, nos mostra como o processo sintético ou construtivo e a função
transcendente têm, em suas essências, sentido e finalidade:
Jung afirma que o analista tem um papel central em assistir o paciente em reconhecer e integrar
os conteúdos do inconsciente:
“Na prática é o médico adequadamente treinado que faz de função transcendente para o
paciente, isto é, ajuda o paciente a unir a consciência e o inconsciente e, assim, chegar a uma nova
atitude.” (§ 146).
A afirmação que Jung faz acima não é completamente clara. Como o analista desempenha
essa função?
Dirigindo-se ao assunto da transferência, Jung enuncia o que pode ser chamado de “transferência
construtiva”. O paciente transfere para o analista uma função ainda não desenvolvida: o acesso e
a integração de material inconsciente para produzir uma transformação de atitude. Jung explica
que o paciente naturalmente se apega ao analista, uma vez que o analista tem aquilo que é
necessário para o crescimento do paciente:
“Nesta função do médico está uma das muitas significações importantes da transferência: por
meio dela o paciente se agarra à pessoa que parece lhe prometer uma renovação de atitude; com
a transferência, ele procura esta mudança que lhe é vital, embora não tome consciência disto.
Para o paciente, o médico tem o caráter de figura indispensável e absolutamente necessária para
a vida. Por mais infantil que esta dependência possa parecer, ela exprime uma exigência de suma
importância, cujo malogro acarretará um ódio amargo contra a pessoa do analista. Por isso o
importante é saber o que é que esta exigência escondida na transferência tem em vista: a
tendência é considerá-la em sentido redutivo, como uma fantasia infantil de natureza erótica. Isto
seria tomar esta fantasia, que em geral se refere aos pais, em sentido literal, como se o paciente,
ou seu inconsciente, tivesse ainda ou voltasse a ter aquelas expectativas que a criança outrora
tinha em relação a seus pais. Exteriormente, ainda é aquela mesma esperança que a criança tem
de ser ajudada e protegida pelos pais; mas, no entanto, acriança se tornou um adulto e o que era
normal na criança é impróprio para o adulto. Tornou-se expressão metafórica da necessidade de
ajuda não percebida conscientemente em situação crítica. Historicamente é correto explicar o
caráter erótico da transferência, situando sua origem no eros infantil, mas, procedendo desta
maneira, não entenderemos o significado e o objetivo da transferência, e interpretá-la como
fantasia sexual infantil nos desvia do verdadeiro problema. A compreensão da transferência não
deve ser procurada nos seus antecedentes históricos, mas no seu objetivo.” (§ 146).
Jung então pondera acerca de uma inconsistência lógica no seu pensamento: Se o inconsciente
está organicamente em ação fornecendo uma contraposição à consciência, por que deveria ser
necessário induzir artificialmente um confronto entre os conteúdos conscientes e inconscientes?
Ele pergunta: “Será absolutamente necessário trazer à tona conteúdos inconscientes? Não basta
que eles próprios se manifestem por si mesmos?[...] Para que forçar o inconsciente vir à tona?” (§
156) “Por que não se pode deixar o inconsciente agir como bem entender?” (§ 159). Primeiro,
Jung declara aquilo que se tornaria um importante fundamento da sua metapsicologia, a natureza
auto-regulatória da psique:
“Visto que a psique é um sistema auto-regulador, como o corpo vivo, é no inconsciente que se
desenvolve a contra-reação reguladora.” (§ 159). No entanto, Jung adverte que o mecanismo
auto-regulador pode ser derrotado pelo excessivo desenvolvimento da mente consciente e que
isso ocorreu na moderna civilização ocidental:
“Mas sua influência reguladora é eliminada pela atenção crítica e pela vontade orientada para um
determinado fim, porque a contra-reação como tal parece incompatível com a direção da atitude.
Por isso, a psique do homem civilizado não é mais um sistema auto-regulador, mas pode ser
comparado a um aparelho cujo processo de regulagem automático da própria velocidade é tão
imperceptível, que pode desenvolver sua atividade ao ponto de danificar-se a si mesma.” (§ 159).
Além disso, quando a contraposição inconsciente é suprimida, ele não só perde a sua
influência reguladora, mas fortalece a função dirigida da mente consciente:
“Começa, então, a ter efeito acelerador e intensificador no sentido do processo consciente. É
como se a reação consciente perdesse sua influência reguladora e, como conseqüência, toda a sua
energia, pois se cria uma situação na qual não somente não há uma reação inibidora, mas sua
energia parece acrescentar-se à energia da direção consciente.” (§ 160).
Jung dá exemplos desse tipo de supressão e da megalomania que dela resulta. Ele conclui
que é imperativo que nós nos lembremos da importância das influências reguladoras do
inconsciente para o bem-estar do corpo, da mente e da psique:
“As pessoas que presenciam estes fatos acontecerem repetidamente sob todas as formas e
gradações possíveis são obrigadas a refletir. Percebem claramente como é fácil ignorar as
influências reguladoras e, por isso, deveriam preocupar-se em não perder de vista a regulação
inconsciente, tão necessária à nossa saúde mental e física.” (§ 165).
Ao afirmar que a moderna civilização ocidental por meio do seu excessivo desenvolvimento as
funções dirigidas do ego criou um perigoso desequilíbrio psíquico que inibe a operação natural do
inconsciente, Jung estabelece o pano de fundo para discutir o papel da função transcendente e da
imaginação ativa na restauração do equilíbrio da relação entre a consciência e o inconsciente.
O objetivo não é eliminar o sintoma, mas o de mergulhar na energia trancada dentro dele.
O objetivo da imaginação ativa é o de encontrar um caminho para dentro do sintoma ou do estado
emocional. Só então pode o sintoma ser visto de forma construtiva, como estando envolvido no
impulso de um indivíduo em uma trajetória de propósitos. Como um modo de obter direção a
partir do sintoma, Jung instrui que o paciente contacte o afeto e registre as fantasias e associações
que emergem, seguindo-as não importa aonde elas levem:
“Deve-se tomar, portanto, o estado afetivo inicial como ponto de partida do procedimento, a fim
de que se possa fazer uso da energia que se acha no lugar errado. O indivíduo torna-se consciente
do estado de ânimo em que se encontra, nele mergulhando sem reservas e registrando por escrito
todas as fantasias e demais associações que lhe ocorrem. Deve permitir que a fantasia se expanda
o mais livremente possível, mas não a tal ponto que fuja da órbita de seu objeto, isto é, do afeto,
realizando, por assim dizer, uma interminável cadeia de associações cada vez mais ampla. Esta
assim chamada “associação livre” desvia o indivíduo de seu objeto, conduzindo-o a todos os tipos
de complexos a respeito dos quais nunca se tem certeza se estão relacionados com o afeto e não
são deslocamentos que surgiram em lugar dele. É desta preocupação com o objeto que provém
uma expressão mais ou menos completa do estado de ânimo que reproduz, de maneira um tanto
quanto concreta e simbólica, o conteúdo da depressão. Como esta não é produzida pela
consciência, mas constitui uma intromissão indesejada do inconsciente, a expressão assim
elaborada do estado de ânimo é como uma imagem dos conteúdos e das tendências do
inconsciente que se congregaram na depressão.” (§ 167)
Jung imaginava que, por meio desse processo, os conteúdos inconscientes se tornavam
mais poderosos e se moviam para mais próximo da consciência. Ele sentiu que, concedendo
energia psíquica a elas, as imagens ficariam mais vivas e emergeriam para o âmbito da consciência
onde elas começariam a promover uma mudança:
Jung, em seguida, discute como se lida com o material inconsciente gerada pela imaginação ativa.
Ele identifica “duas tendências principais” que emergem: “o caminho da formulação criativa” e o
“caminho da compreensão” (§173 – 174). No caminho da formulação criativa, responde-se de uma
forma intuitiva ou artística, processando-se o material através da geração de motivos estéticos. No
caminho do entendimento, o indivíduo tende a responder de um modo mais intelectual, e “há
uma intensa luta para compreender o sentido do produto inconsciente” (§174).
Jung salienta que para se engajar o material inconsciente de forma completa, deve-se
buscar um engajamento tanto das tendências criativas/estéticas quando das intelectuais
/compreensivas. As duas compensam uma à outra e a supervalorização de uma delas pode levar a
um resultado desviante.
“Um dos caminhos em questão parece ser o princípio regulador do outro; ambos estão ligados
entre si por uma relação compensadora. A experiência confirma esta afirmação. Até onde é
possível, no momento, tirar conclusões de caráter mais genérico, a formulação estática precisa da
compreensão do significado material, e a compreensão, por sua vez, precisa da formulação
estética. As duas se completam, formando a função transcendente. (§ 177).
Essa passagem é importante, pois é a primeira vez no ensaio que Jung usa a expressão
“aproximação dos opostos”.
“O ego deve receber o esmo valor, no processo, que o inconsciente e vice-versa. Isto constitui uma
advertência por demais necessária, pois justamente do mesmo modo como a consciência do
homem civilizado exerce uma influência limitadora sobre o inconsciente, assim também um
inconsciente novamente descoberto age perigosamente sobre o eu. Assim como o eu reprimira o
inconsciente, assim também um inconsciente libertado pode pôr de lado o eu e dominá-lo.”
(§183).
Esse trecho é de suma importância. A despeito de todo o seu trabalho com o inconsciente,
Jung não advoga a dominação da consciência pelo inconsciente, mas, sobretudo uma parceria de
igual entre os dois. Os opostos da consciência e do inconsciente se aproximam para entrarem em
acordo um com o outro.
“A confrontação, portanto, não justifica apenas o ponto de vista do eu, mas confere igual
autoridade ao inconsciente. A confrontação é conduzida a partir do eu, embora deixando que o
inconsciente também fale [...] É exatamente como se se travasse um diálogo entre duas pessoas
com direitos iguais, no qual cada um dos interlocutores considerasse o outro capaz de lhe
apresentar um argumento válido e, por conseqüência, achasse que valeria a pena aproximar os
pontos de vista contrastantes, mediante uma comparação e discussão minuciosa e exaustiva, ou
distingui-los claramente um do outro.” (§186).
Um outro salto conceitual é feito quando Jung faz uma analogia entre a habilidade em se
dialogar com o “outro” intrapsiquicamente (por meio da função transcendente) e
interpessoalmente (nos relacionamentos). Ele enfatiza que a inabilidade para ouvir os outros
inibirá a habilidade de ouvir o outro intrapsíquico, e a inabilidade de dialogar com o inconsciente
impedirá os relacionamentos humanos.
“Todos os que têm em vista uma confrontação consigo próprios devem contar sempre
com esta dificuldade geral. Na medida em que o indivíduo não reconhece o valor do outro, nega o
direito de existir também ao “outro” que está em si, e vice-versa. A capacidade de diálogo interior
é um dos critérios básicos da objetividade.” (§ 187).
Em essência, Jung está dizendo que a habilidade em dialogar tanto com o outro externo
quanto com o outro interno é central para os seus conceitos de individuação e de bem-estar
psicológico.
“Como o processo de confrontação com o elemento contrário tem caráter de totalidade, nada fica
excluído dele. Tudo se acha envolvido na discussão, embora se tenha consciência de alguns
fragmentos. A consciência é ampliada continuamente, ou – para sermos mais exatos – poderia ser
ampliada pela confrontação dos conteúdos até então inconscientes, se se desse ao cuidado de
integrá-los.” (§ 193).
Mas Jung nos adverte que a função transcendente não é algo automático: ela necessita de
coragem, perseverança e de esforço por parte do indivíduo:
“E mesmo quando se tem suficiente inteligência para compreender o problema, falta coragem e
autoconfiança, ou a pessoa é espiritual e moralmente demasiado preguiçosa ou covarde para fazer
qualquer esforço.” (§193).
Isso fornece uma importante resposta à noção de que a função transcendente seja um processo
psíquico inato. Aqui, pelo menos, Jung vê a função transcendente como algo que pode ser afetado
pela vontade e pela coragem de uma pessoa, um conceito que vai de encontro com a concepção
de uma função transcendente puramente “natural”.
A conclusão de Jung indica tanto o modo como um indivíduo pode produzir a função
transcendente e como a função transcendente é parte integral do processo de individuação:
Traduzido com adaptações de “MILLER, J. The Transcendent Function. New York: State University
of New York, 2004. p. 10-30.”)