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Clifford Geertz

O SABER LOCAL
Novos ensaios em antropologia interpretativa

Tradução de Vera Mellojoscelyne

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP}


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Geertz, Clifford
O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa 8ª Edição
/ Clifford Geertz; tradução de Vera Mello Joscelyne. - Petrópolis, RJ:
Vozes, 1997.

Título original: Local Knowledge.


ISBN 85-326-1932-0

1. Etnologia - Discursos, ensaios e conferências 1. Título.

97-1995 CDD-306
Índices para catálogo sistemático: "'EDITORA
1. Antropologia interpretativa: Sociologia 306 Y VOZES
2. Etnologia: Sociologia 306 Petrópolis
2006
ironias sobre a Primeira Grande Guerra, ou aos produtos de Capítulo 3
culturas asiáticas mais r icas, como as da China e da Índia,
mas mesmo assim um papel real, que ainda não terminou e
"Do ponto de vista dos nativos": a
que foi e é, à sua moda, bastante poderoso. E também insistir uatureza do entendimento antropológico
que, por isso, o etnógrafo de Bali, como o crítico de Jane
Austen, entre outras coisas, tem como objetivo investigar
aquilo que o professor Trilling, naquele seu último, sinuoso
e interrompido ensaio, chamou de um dos mistérios impor­
tantes da vida cultural humana: como é que as criações de
outros povos podem ser tão próximas a seus criadores e, ao
I
mesmo tempo, e tão profundamente, uma parte de nós. lJá algu ns anos, um pequeno escândalo irrompeu na
111ll'Opologia: uma de suas figu ras ancestrais falou a verdade
111 público. Como cabe a um ancestral, ele o fez postuma-
1111 fHe, por decisão de sua viúva e não dele próprio. Este
ti• ·,lize fo i o bastante para que alguns conservadores em
111 1'1'10 meio elevassem a voz e clamassem que a viúva, tam­
l II m antropóloga, havia traído o clã, divulgado seus segre­
. i ,, , profanado um ídolo e decepcionado seus com­
i ' 11ll,eiros. Um caso típico de "o que é que as crianças vão
1 o l\ ar?" e isto sem indagar-se o que os leigos iriam pensar...
1 l I lamor não diminuiu com todo este cerimonial de esfrega
d, mãos pois, infelizmente, o texto maldito já tinha sido
p1 1blicado. O que realmente aconteceu foi que, mais ou
1 1 11 oos como James Watson, que, em The Double Helix,

, 1 11\Íl!ssou como a b iofísica funcionava na prática, Bronislaw


\ I 1llnowski, em A Diary in the Stríct Sense of the Term, fez
, , 11n que os relatos oficiais sobre os métodos de trabalho dos
1 1 1 1ropólogos parecessem bastante inverossímeis. O mito do
1 11 ,quisador de campo semicamaleão, que se adapta perfei­
' 1111cnte ao amb iente exótico que o rodeia, um milagre
1111bulante em empatia, tato, paciência e cosmopolitismo,
1, 11 , de um golpe, demolido por aquele que tinha sido, talvez,
1111) dos maiores responsáveis pela sua criação.

O debate que se originou com a publicação do diário


, , 111centrou-se, naturalmente, nos detalhes não essenciais,
, como era de se esperar, ignorou a questão mais importan­
,, < 1 ue o livro continha. Grande parte do choque parece ter

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sido conseqüência da mera descoberta que Malinowski não
111.1is importante que o profissional. Durante estes anos, as
era, para expressá-lo de uma forma delicada, um sujeito
1, 1rmulações do problema foram variadas: descrições que
muito simpático. Dizia coisas bastante desagradáveis sobre
.10 vistas "de dentro" versus as que são vistas "de fora", ou
os nativos com quem vivia, e usava palavras igualmente
dt''>Crições "na primeira pessoa" versus aquelas "na terceira
desagradáveis para expressar estes comentários. Passava
1 11 ssoa"; teorias "fenomenológicas" versus "objetivistas", ou
grande parte do seu tempo desejando estar em outro lugar.
, ngnitivas" versus "comportamentais"; e, talvez mais comu-
E projetava uma imagem de total intolerância, talvez uma
1 1 1 ·nte, análises "êmicas" versus análises "éticas", estas últi-
das maiores intolerâncias do mundo. (Projetava também a
111;1s resultando de uma distinção lingüística entre as
imagem de um homem que se consagrara a uma vocação
, l.1-.sificações fonêmicas ou fonéticas dos sons, de acordo
estranha a ponto de se auto-sacrificar por ela, mas isso
( 1 11n suas funções internas na linguagem, sendo que a foné-
notava-se menos.) Com tudo isso, baixou-se o nível do
1ll'a os classifica de acordo com suas propriedades acústicas
debate, concentrando-o no caráter - ou na falta de caráter -
1 ,1 opriamente ditas. A forma mais simples e direta de colocar
de Malinowski, e ignorando a questão profunda e genuina­
1 questão é, talvez, vê-la nos termos de uma distinção,
mente importante que o livro havia levantado, isto é, se não
h 11:mulada pelo psicanalista Heinz Kohut para seu próprio
é graças a algum tipo de sensibilidade extraordinária, a uma
1 1\0, entre o que ele chamou de conceitos da "experiência­
capacidade quase sobrenatural de pensar, sentir e perceber
! 1róxima" e da "experiência-distante".
o mundo como um nativo (uma palavra, que, devo logo
dizer, usei aqui "no sentido estrito do termo") como é Um conceito de "experiência próxima" é, mais ou me-
possível que antropólogos cheguem a conhecer a maneira 1111 , aquele que alguém - um paciente, um sujeito, em nosso
como um nativo pensa, sente e percebe o mundo? A questão , .1 o um informante - usaria naturalmente e sem esforço
que o diário introduz, com uma seriedade que talvez só um t 1,1ra definir aquilo que seus semelhantes vêem, sentem,
etnógrafo da ativa possa apreciar totalmente, não é uma 1 11 nsam, imaginam etc. e que ele próprio entenderia facil-
questão ética. (A idealização moral de pesquisadores de 111c:nte, se outros o utilizassem da mesma maneira. Um
campo é, em si mesma, puro sentimentalismo, quando não , 11nceito de "experiência-distante" é aquele que especialistas
uma forma de autoparabenizar-se ou uma pretensão exage­ d,• qualquer tipo - um analista, um pesquisador, um etnó-
rada.) A questão é epistemológica. Se é que vamos insistir - 1:1 ,lfo, ou até um padre ou um ideologista - utilizam para
e, na minha opinião, devemos insistir - que é necessário que 1 , var a cabo seus objetivos científicos, filosóficos ou práticos.
antropólogos vejam o mundo do ponto de vista dos nativos, \mor" é um conceito de experiência-próxima; "catexia em
onde ficaremos quando não pudermos mais arrogar-nos 1 1 1n, objeto" de experiência-distante. "Estratificação social" e,
alguma forma unicamente nossa de proximidade psicoló­ ulvez para a maioria dos povos do mundo, "religião" (e
gica, ou algum tipo de identificação transcultural com nos­ , • rcamente "sistema religioso") são de experiência-distante;
sos sujeitos? O que acontece com o verstehen quando o 1 . ta" e "nirvana" são de experiência-próxima, pelo menos
einfühlen desaparece? p.1ra hindus e budistas.
Aliás, este problema geral vem sendo tema de inúmeros Obviamente, trata-se de uma questão de grau, não de
debates na antropologia nos últimos dez ou quinze anos; a , ,posição extrema- "medo" é mais experiência-próxima que
voz de Malinowski, do túmulo, simplesmente dramatizou a f,)bia" e "fobia" é mais experiência-próxima que "ego distô-
questão, tornando-a um dilema humano que passou a ser 11lco". E, pelo menos com relação à antropologia (no caso

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da poesia e da física não seria o mesmo) a d iferença não é 1 1 , de qualquer maneira, não vão estar muito interes-
normativa, ou seja, um dos conceitos não é necessariamentt.· 1 11 ,� 11cste tipo de exercício. O que é importante é descobrir
melhor do que o outro, nem se trata de preferir um em vez 11 11 o ll.1bos eles acham que estão fazendo.
do outro. Limitar-se a conceitos de experiência-próxima 1 111 um certo sentido, ninguém sabe isto tão bem quanto
deixaria o etnógrafo afogado em m iudezas e preso em um próprios; daí o desejo de nadar na corrente de suas
emaranhado vernacular. Limitar-se aos de experiência-dis­ I " 1 i •ncias, e a ilusão posterior de que, de alguma forma,
tante, por outro lado, o deixaria perdido em abstrações e 11 ,, mos. Em outro sentido, no entanto, este truísmo
sufocado com jargões. A verdadeira questão - a que Mali­ h11ph•!. é simplesmente falso. As pessoas usam conceitos de
nowski levantou ao demonstrar que, no caso de "nativos". pt , t•ncia-próxima espontaneamente, naturalmente, por
não é necessário ser um deles para con11ecer um - relacio­ 1 1 11 d izer, coloquialmente; não reconhecem, a não ser de
na-se com os papéis que os dois tipos de conceitos desem­ 1 ,, 1 1 1, 1 passageira e ocasional, que o que d isseram envolve
penham na análise antropológica. Ou, mais exatamente, ,111 •!tos". Isto é exatamente o que experiência-próxima
como devem estes ser empregados, em cada caso, para lt 111llca - as idéias e as realidades que elas representam
produzir uma interpretação do modus vivendi de um povo t 11 1 natural e indissoluvelmente unidas. Que outro nome
que não f ique limitada pelos horizontes mentais daquele I" .. h , anmos dar a um h ipopótamo? É claro que os deuses
povo - uma etnografia sobre bruxaria escrita por uma bruxa 1, 1 1 ,oderosos, se não fossem, porque os temeríamos? A meu
- nem que fique s istematicamente surda às tonalidades de , u etnógrafo não percebe - principalmente não é capaz
sua existência - uma etnografia sobre bruxaria escrita por 1 1 wrccber - aquilo que seus informantes percebem. O que
um geômetra. l i 1 11'rcebe, e mesmo assim com bastante insegurança, é o
1 0 1 1 que", ou "por meios de que", ou "através de que" (ou
Colocando a questão nestes termos, ou seja, indagando­
se qual a melhor maneira de conduzir uma análise antropo­ I • l.1 qual for a expressão) os outros percebem. Em país de
lógica e de estruturar seus resultados, em vez de inquirir que , I ' "'• que, por sinal, são mais observadores que parecem,
tipo de constituição psíquica é essencial para antropólogos, jl•L 1 1 \ tem um olho não é rei, é um espectador.
toma-se o significado de "ver as coisas do ponto de vista dos ,\ ·tguir, para tornar tudo isto um pouco mais concreto,
nativos" menos misterioso. Isto não significa que a questão 1 t .ufa de referir-me por uns momentos a meu próprio
fique mais fácil de responder, nem que a necessidade de 11 ll 1.1lho, que, sejam quais forem seus defeitos, tem pelo
perspicácia por parte do pesquisador de campo diminua. 111, 1111s a virtude de ser meu - o que, em discussões deste
Para captar conceitos que, para outras pessoas, são de expe­ 11 1 11 1, não deixa de ser uma nítida vantagem. Em todas as três
riência-próxima, e fazê-lo de uma forma tão eficaz que nos " u•dades que estudei intensivamente, a javanesa, a baline-
permita estabelecer uma conexão esclarecedora com os 1 , .t marroquina, t ive como um dos meus objetivos princi­
conceitos de experiência-distante criados por teóricos para P , 1 tentar identificar como as pessoas que vivem nessas
captar os elementos mais gerais da vida social, é, sem dúvida, 11 , dades se defmem como pessoas, ou seja, de que se

uma tarefa tão delicada, embora um pouco menos misterio­ ,111põe a idéia que elas têm (mas, como d isse acima, que
sa, que colocar-se "embaixo da pele do outro". O truque é 1 1 '" 'labem totalmente que têm) do que é um "eu" no estilo
não se deixar envolver por nenhum tipo de empatia espiri­ 1 1, 111 '•s, balinês ou marroquino. E, em cada um dos casos,
tual interna com seus informantes. Como qualquer um de 1 1 11d chegar a esta noção tão profundamente íntima, não
nós, eles também preferem considerar suas almas como

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imaginando ser uma outra pessoa - um camponês no arro­ I • 1 uma idéia bastante peculiar. Em vez de tentar encaixar
zal, ou um sheik tribal - para depois descobrir o que este , , 1 1 •rlência das outras culturas dentro da moldura desta
pensaria, mas sim procurando, e depois analisando, as for­ ,1 , ., .1 concepção, que é o que a tão elogiada "empatia" acaba
mas simbólicas - palavras, imagens, instituições, comporta­ t , 1 ndo, para entender as concepções alheias é necessário
mentos - em cujos termos as pessoas realmente se repre­ I"' deixemos de lado nossa concepção, e b� sq� emos ver �s
sentam para si mesmas e para os outros, em cada um desses I " dências de outros com relação à sua propna concepçao
lugares. 1 1 1 •1 u". Pelo menos no caso de Java, Bali e Marrocos, esta
O conceito de pessoa é, na realidade, um veículo exce­ 1 ,111 1:pção difere significativamente não só da nossa, como
lente para examinar toda esta questão relacionada com o 1 1111t iém - de forma não menos dramática e com igual valor
andar por aí, investigando o que passa pela mente alheia. llo l.1tlco - entre si.
Em primeiro lugar, sentimo-nos razoavelmente seguros para
afirmar que algu m tipo de conceito desta categoria existe,
em forma reconhecível, entre todos os grupos sociais. Algu­ II
mas vezes, as noções que as pessoas têm sobre o que é ser l'in Java, onde trabalhei nos anos 50, estudei uma ilha
uma pessoa podem parecer, do nosso ponto de vista, bas­ p, ' Ili •na e pobre, que era uma espécie de se� e d� um
tante estranhas. Uns acreditam que pessoas voam de um lado , 1111 1,tdo: duas ruas ensolaradas, prédios de madeira caiados
para outro, durante a noite, na forma de vaga-lumes. Outros 1, 1,ranco, onde funcionavam lojas e escritórios e, atrás
acham que elementos essenciais de sua psique, tais como o 1, 11•s, barracos de bambu ainda mais pobres, amontoados
ódio, estão localizados em córpulos negros e granulares h ,, )l'denadamente. O conjunto era rodeado por um grande
dentro de seus fígados, só descobertos através de autópsias. 111, tu-círculo de aldeias densamente povoadas, onde planta-
Outros crêem compartilhar seu destino com animais doppel­ 1 ,1• arroz. A terra era pouca, os empregos raros, o sistema
giinger, de modo que, quando o animal adoece ou morre, I " 1 1,t lco instável, a saúde de má qualidade, os preços subiam,
eles também adoecem ou morrem. No entanto, é minha , 111 11uma, a vida, de um modo geral não era lá muito
experiência, que a concepção do que é um indivíduo huma­ 1 ,,. 1 1nissora. Havia uma espécie de estag�ação_ agita�a na
no, em contraste com o que é uma pedra, um animal, uma 1 , 1 .d, como observei certa vez referindo-me a cunos� � stura
floresta tropical, ou um deus, é um fenômeno universal. Ao 11, t,•agmentos importados de modernidade e rehquias da
mesmo tempo, como estes exemplos selecionados aleatoria­ li 1,llçáo ultrapassada que caracterizavam o lugar, � futuro
mente sugerem, as concepções em questão variam de un1 11 iH•cia quase tão remoto como o passado. �o �e10 �este
grupo para o outro, e, freqüentemente, existem diferenças , 1 1.irio deprimente, no entanto, havia uma v1tal1dade mte-
profundas entre elas. Por mais que, para nós ocidentais, a 1• , hlal absolutamente surpreendente, uma verdadeira pai­
concepção da pessoa como um universo cognitivo e motiva­ " , filosófica, paix ão que, além disso, era popular, con­
cional delimitado, único, e mais ou menos integrado, um ; 1 1 trada em descobrir, a fundo, os enigmas existenciais.
centro dinâmico de percepção, emoção, juízos e ações, 1 1 1 nponeses miseráveis discutiam questões relacionadas
organizado em uma unidade distinta e localizado em uma , , llll O livre-arbítrio, comerciantes analfabetos falavam sobre
situação de contraste com relação a outras unidades seme­ 1 qualidades de Deus, lavradores comuns tinham teorias
lhantes, e com seu ambiente social e natural específico, nos 1 ,1 ire a relação entre a razão e a paixão, a natureza do tempo
pareça correta, no contexto geral das culturas do mundo, 1111 ,l coo.fiabilidade dos sentidos. E, talvez ainda mais impor-

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cante, buscavam, avidamente, respostas para o problema do h11 ll> de que estamos conscientes. Refere-se mais a partes
eu - sua natureza, sua função e seu modus operandi - com l 1 , 1cla. humana que, em nossa cultura, são estudadas por
um tipo de intensidade reflexiva que, entre nós, encontra­ 1 ,11,portamentalistas radicais - as ações externas, os movi-
mos somente em ambientes altamente sofisticados. 1111 1110s, a postura, a linguagem falada. Esta também, em sua
1 ncia, era considerada igual para todos os indivíduos. Os
As idéias centrais em cujos termos estas reflexões se
1 , , , ílrupos de fenômenos - sentimentos internos e ações
desenvolviam e que, portanto, definiam seus limites e o
1, , nas - são, portanto, considerados não como funções
significado de "pessoa" para os javaneses, eram dispostas em
dois conjuntos contrastantes, que tinham como base a reli­ 1 1111 do outro, mas como esferas independentes do ser, que
1, 1 1 in ser postas na ordem apropriada também de forma
gião: um, entre '·dentro" e "fora" e o outro entre "refinado"
e "vulgar". Estas palavras são, é claro, toscas e imprecisas; a l!Hh pendente.
determinação exata do significado dos termos envolvidos, 1, em conexão com esta •·ordem apropriada" que o
selecionando suas várias nuanças, era o tema principal das 11111 . te entre alus, palavra que significa "puro", "refina­
discussões. No entanto, como um conjunto, elas formavam i•, " polido", "belo", "etéreo", "sutil", "civilizado" e "suave"
uma concepção específica do "eu" que, longe de ser simples­ l ,t,eu, que significa "indelicado", "grosseiro", "não-civiliza­
mente teórica, era a concepção através da qual os javaneses '" 'áspero", "insensível", "vulgar", tem sua importância. A
realmente se "viam" uns aos outros, e também a si próprios. 1 11, 1 l do ser humano é ser alus nas duas esferas do "eu". Na
As palavras javanesas para "dentro"f'fora", batin e lair li 1 ,t interior, chega-se ao alus através da disciplina religio­
' , 1ue é bastante, embora não totalmente, mística. Na esfera
(originalmente importadas da tradição sufi do misticismo
11 , 1or, chega-se a ser alus por meio da etiqueta, cujas
muçulmano, mas modificadas localmente) referem-se, por
um lado, à esfera dos sentimentos na experiência humana, 1 r•,1 , em Java, são extraordinariamente complicadas e tem
e, por outro, à esfera do comportamento humano observa­ 1 1 1 ,. • a autoridade de leis. Através da meditação, o homem
do. Apresso-me a esclarecer que essas palavras não têm 1 1 1111.ado dilui sua vida emocional até transformá-la em um
qualquer conexão com "alma" e "corpo" no sentido que 11111hido constante; através da etiqueta, ele não só protege
1 1 , ida emocional das interrupções externas, mas também
damos a estes termos; para tais conceitos, existem outras
palavras em javanês, com implicações bastante diferentes. 1111 1 ,triza seu comportamento externo para que este possa
Batin, a palavra que significa "dentro", não se refere a um 111 , ·r, aos olhos alheios, previsível, sereno, elegante, e um
local separado de espiritualidade encapsulada, que se des­
1 1111tnto meio frívolo de movimentos coreografados e ma-
l 1 1 ., de falar estabelecidas.
taca, ou pode ser destacado do corpo, nem mesmo a qual­
quer unidade com limites, mas sim à vida emocional dos < umo estes conceitos são também parte de uma ontolo-
seres humanos de um modo geral. Consiste no fluxo impre­ 1 1 , estética específicas incluem muitas outras sutilezas
ciso e mutante dos sentimentos subjetivos, percebido dire­ , 1111clárias. Com respeito a nossa problemática - a concep­
tamente em toda sua proximidade fenomenológica, mas, ,,, cio eu - o que temos aqui é uma concepção bifurcada,
pelo menos em suas raízes, considerado idêntico para todos 1 11 lu uma de suas partes constituída por sentimentos meio
os indivíduos, cuja individualidade ele faz desaparecer. Da 111 H •stos, e a outra por gestos meio sem sentimentos. Um
mesma forma, laü; a palavra javanesa para "fora", não tem 11, 1 11<10 interior de emoção contida e um mundo exterior de
qualquer relação com o corpo como um objeto, mesmo um , ,111portamento estruturado se confrontam sob a forma de

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esferas profundamente distintas entre si, e qualquer indiví­ 1 11 1 1.11 ,tm os balineses um povo muito mais teatral, com
duo nada mais é, por assim dizer, que um locus temporário 111 1 , 1 ,ncepção do eu tan1bém teatral. O que é .filosofia em
para este confronto, uma expressão momentânea da própria t , , 1 t.·atro em Bali.
existência destas duas partes, de sua separação permanente, \ t·«mseqüência disto é que, em Bali, existe um esforço
e de sua necessidade, também permanente, de serem man­ 1 1·,11.·nte e sistemático para estilizar todas as formas de
tidas em uma ordem apropriada. Somente quando se pre­ 1 ,, 1 <1sJo pessoal a um ponto tal, que qualquer coisa idios-
sencia, como eu presenciei, um jovem cuja esposa tinha 1111 1 Hlca e característica do indivíduo por ser ele quem é,
morrido súbita e inexplicavelmente - e esta esposa tinha sido 1 lt , p icológica ou biografican1ente, é emudecida, privile-
criada por ele e fora sempre o centro de sua vida - receber 1 1111 1,,-se o papel que ele desempenha no cortejo perma-
convidados com um sorriso fixo e desculpas formais pela 1 111, , e, na visão dos balineses, imutável, que é a vida
ausência da esposa, tentando, com técnicas místicas, aplai­ 1 , 1 1 1 11 a. São as dramatis personae, não os atores, que
nar - como ele mesmo se expressou - as colinas e vales de
1 , 1 ·,1c:m; na verdade, são as dramatis personae, e não os
suas emoções para transformá-las em uma planície ("é o que 1111 1 s que realmente existem no sentido exato da palavra.
temos que fazer", disse ele, "estar plano, por dentro e por 1 1 11 1 1inente, os homens vão e vêm, meros incidentes na
fora") pode-se, frente a nossas próprias noções sobre a Ili 1 1 11-la conjuntural, sem nenhuma importância real, nem
intrínseca honestidade de um sentimento profundo, e a 1 1 1 1 ,1 mesmos. As máscaras que usam, no entanto, o lugar
importância moral da sinceridade pessoal, levar a sério esta I"' 11 upam no palco, os papéis que desempenham, e, ainda
concepção do eu, e apreciar este tipo de poder, por mais m II Importante, o espetáculo que montam juntos perma-
inacessível que este lhe pareça. 1 11 1 1 ,11 e compreendem não a fachada, mas sim a substância

l 1 , oisas, inclusive a do eu. A visão de antigo membro de


1 1 1 1 t H· que Shakespeare tinha sobre a futilidade da ação
III 1 1 111l • da mortalidade - o mundo é um palco, e nós somente
Bali, onde trabalhei a princípio em uma outra cidadezi­ I" ,1 11 •s atores, felizes em pavonear-nos, e assim por diante -
nha provinciana, embora um pouco menos mutante e depri­ ti , , f,lZ sentido em Bali. Não existe faz-de-conta; é claro que
mente, e depois em uma aldeia na região mais alta da ilha, , .,wres morrem, mas a peça continua, e é o que foi atuado,
cujos habitantes eram fabricantes altamente qualificados de 1 1 ,, , quem atuou, que realmente importa.
instrumentos musicais, é, em muitas coisas, semelhante a lJma vez mais, tudo isto se manifesta através de uma série
Java, cuja cultura compartilhou até o século XV. No entanto, 11, tom1as simbólicas facilmente observáveis, um repertório
em urµ nível mais profundo, é também bastante diferente, 1 1horado de designações e títulos, e não através de um
pois permaneceu hindu, enquanto que Java, pelo menos em 1.ulo de espírito geral que o antropólogo, em sua suposta
nome, se tornou islâmica. A vida ritual complexa e obsessiva 1 1 1 ,ltilidade espiritual, consegue de alguma maneira captar.
- hindu, budista e polinésia em proporções mais ou menos , l halineses têm pelo menos meia dúzia de títulos princi-
iguais - cujo progresso foi quase interrompido em Java, 1 ' t l , atribuídos, fixos e absolutos que uma pessoa usaria
deixando que seu espírito índico se tornasse reflexivo e 1 , 11 ,1 designar uma outra (ou, é claro, a si mesma) como parte
fenomenológico, com tendência ao silêncio, como na estória d, "iCU grupo. Existem marcadores para a ordem do nasci-
que acabo de descrever, floresceu em Bali atingindo níveis 1111 1\to, termos de parentesco, títulos que determinam a
de grandeza e extravagância tais que assombraram o mundo

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ca1>La, indicadores do sexo, e.: tccnon1mos, e mu11w, outros 11 1 1 1 ' " fH 1m ·1ru , o :-.c.:gu1u.ln, o tcn:c,ro e o quarLo natos.
mais, e cada um deles constitui, não um mero conjunto dr p• ,1s cl,,,o, inicia-se outra vez a série, e os filllos que
etiquetas úteis e ocasionais, mas sim um sistema terminolo 1 1 11 1 1 1 ·m quinto e sexto lugar, serão, outra vez, chama­
gico distinto, delimitado e internamente muito complexo • • • p • ·civamente, de primeiro e segundo natos. Além
Quando se usa uma dessas designações ou um desses tínilrn, , , 1 1', 1\omes são dados irrespectívamente ao destino que
(ou, como é mais comum, vários deles) referindo-se a ai 1 1 t . 1111 ,Is crianças. Assim, crianças que morrem, mesmo as
guém, define-se este alguém como um ponto determinado 1 1 1111 1 1 ,.•1n ao nascer, entram na nomenclatura, e, portan-
em uma estrutura fixa, o ocupante temporário de um toem 1 11, 1 lll\ país onde existem ainda altos índices de natalida-
cultural, bastante permanente e especifico. Identificar ai 1 1 t il 1nortalidade infantil, os nomes, por si sós, não dão
guém em Bali, seja o próprio sujeito ou uma outra pessoa, 111 1 ,d ·ia muito confiável da ordem de nascimento verda-
é determinar seu lugar em um elenco conhecido de perso­ 1 1, , d · indivíduos concretos. Em um grupo de irmãos,
nagens - "rei", "avó", "o terceiro filho", "brân1ane" - qu<: 1 1 1, 111 que é chamado de prin1eiro-nato, pode, na realida-
inevitavelmente compõem o drama social, como se estl' 1 1, 1 nascido em primeiro, quinto, ou nono lugar, ou, se
fosse nada mais que alguma peça- do tipo de Chadey 's aunt 1 11 , 1 11 alguma criança, em qualquer lugar intermediário
ou Spríngtime for Henry - exibida pelas estradas por um 111 1 1 l"Rtes três; ou alguém com o nome de segundo-nato
grupo de saltimbancos. d, cr, na verdade, o mais velho. A nomenclatura da
O drama não é, obviamente, uma farsa, e principalment<: 1 d, 111 de nascimento não identifica indivíduos como indi-
não é uma farsa de travestis, embora nele existam elementos 1110-., nem é esta sua intenção; o que faz é sugerir que em
de ambas. É uma representação da hierarquia, um teatro du , 1, , os casais que procriam os nascimentos formam uma
status. Infelizmente, neste ensaio, não nos é possível descre­ 11, , • .lo circular de "primeiros", "segundos", "terceiros" e
ver as características desta representação, embora entendê­ 1 • 1 11 1os", uma réplica contínua e em quatro estágios de uma
la seja essencial para compreender os balineses. Aqui, nos 1 1 111 1 Imperecível. Fisicamente, os homens aparecem e de-
limitaremos a dizer que, tanto em sua estrutura, como na 11 1 11 ,•ct:m como coisas efêmeras que são, mas, socialmente,
forma em que operam, os sistemas terminológicos condu­ 111 1 1neros que os representam permanecem eternamente
zem a uma visão da pessoa humana como um representante 1111 , mos, à medida que novos "primeiro-natos" ou "segu n­
adequado de um tipo genérico, e não como uma criatura l 1 11.1tos" emergem do mundo atemporal dos deuses para
única, com um destino específico. Acompanhar este proces­ 111 1 lllUir aqueles que, ao morrer, dissolvem-se, uma vez
so, ou seja, como os sistemas terminológicos tendem a 11 1111, naquele mundo. Eu diria que todos os sistemas de
obscurecer as materialidades - biológicas , psicológicas e l111ln'> e designações funcionam da mesma maneira: eles
históricas - da existência individual, privilegiando as quali­ , 1 111•'lentam os aspectos da condição humana que estão
dades padronizadas do status, exigiria uma análise extensa. 11 ,1, ligados ao passar do tempo, como meros ingredientes
Talvez um único exemplo, simplificando ainda mais a parte 1 1 1 11m presente eterno que os ilumina como as luzes em

mais simples do processo, possa ser suficiente para dar uma 1111 1 •atro.
idéia de seu fu ncionamento. Nem mesmo a sensação que os balineses têm de estar
Todos os balineses recebem aquilo que poderíamos cha­ , 111prc em um palco é assim tão vaga e inefável. Ela é
mar de nomes relativos à ordem do nascimento. Estes são 1 ,r •ssa com exatidão por um de seus conceitos de "expe­
r 11 11 ia-próxima" mais comuns: o lek. Lek foi traduzido de

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várias maneiras, na maioria das vezes incorretamente ("ver­ t lc filmes americanos sem os bares e os vaqueiros. Um outro
gonha" é uma das traduções mais conhecidas), mas seu 1tpo de "eus" completamente diferentes. Meu trabalho ali,
significado mais aproximado é algo assim como o que cha­ 4 111 • começou em meados dos anos 60, concentrou-se em
mamos de "nervosismo de ator". O nervosismo de ator, 11111a cidade de tamanho médio, aos pés da cordilheira de
como sabemos, consiste naquele medo que atores sentem \1 l.1s, cerca de umas vinte milhas ao sul de Fez. O lugar é
de que, por falta de técnica ou de autocontrole, ou talvez 1111lgo, fundado provavelmente no século X, planejado até
por um simples acidente, não sejam capazes de manter a 1111";mo antes disso. Ainda conserva os muros, os portões, os
ilusão estética, deixando, assim, que o ator apareça por trás 11111\n.retes estreitos que se elevam até às plataformas de onde
do papel que desempenha. Se falha a distância estética, o , ,� l1éis são chamados para a oração, todos elementos carac-
p úblico (e o ator) perdem de vista Hamlet e em seu lugar, 11 1 1sticos de uma cidade muçulmana clássica. Pelo menos à
para desconforto geral, vêem um gaguejante John Smith que , ll!!tância, o lugar é bastante bonito: uma forma oval irregular
alguém erroneamente colocou para fazer o papel de prínci­ p, llÍundamente branca, localizada em um oásis onde cres­
pe da Dinamarca. Em Bali, acontece o mesmo: o que se teme • , tt\ oliveiras de um verde de fundo de mar. As montanhas,
é que o desempenho, em público, do papel para o qual , 1 1 1<: ali são cor de bronze e de pedra, se elevam por trás deste
fomos selecionados por nossa posição cultural, seja um 1 1.t!tls. Vista de perto, a cidade é menos imponente, mas mais
fracasso, e que a personalidade do indivíduo - ou o que nós , tlmulante: um labirinto de passagens e ruelas, três quartos
ocidentais chamaríamos de personalidade, já que os baline­ d . 1, quais sem saída, rodeado por prédios que têm a aparên­
ses não o fariam, pois não acreditam nisso - se rompa, ' 1.1 de muros e lojas à beira das calçadas, tudo isso repleto
dissolvendo sua identidade pública estabelecida. Quando , , ,m uma variedade simplesmente surpreendente de seres
isso acontece, como às vezes acontece, sente-se a proximi­ l,wnanos extremamente simpáticos. Árabes, berberes e ju­
dade do momento com uma intensidade excruciante, e as .11 1 1s; alfaiates, boiadeiros e soldados; pessoas que saem dos
pessoas, súbita e relutantemente, tornam-se criaturas reais, t ., rltórios, dos mercados, das tribos; ricos, super-ricos, po-
mutuamente constrangidas, como se, de repente, tivessem 1 11 1 -, e superpobres; nascidos no local, imigrantes, imitações
se flagrado nuas. É o medo dofauxpas, que se torna muito , l t franceses, medievalistas acirrados, e em algum lugar, de
mais provável devido à ritualização extraordinária da vida ,, ordo com o censo oficial do governo para 1960, um piloto
cotidiana, que mantém o intercâmbio social sobre trilhos de ,tvião, judeu e desempregado. Nas casas, um dos grupos
deliberadamente estreitos, e protege o sentido teatral do eu 111,1 IR esplêndidos de indivíduos fortes e vigorosos que jamais
da ameaça destruidora implícita naquela proximidade e \ 1 Ao lado de Sefrou (este é o nome da cidade) Manhattan

espontaneidade, que nem mesmo o cerimonial mais exacer­ l',ll'CCe quase monótona.
bado pode eliminar totalmente dos encontros face a face do
Porém, nenhuma sociedade consiste unicamente de ex­
cotidiano.
' , tttricos anônimos que se tocam e ricocheteiam como bolas
, h bilhar, e os marroquinos também têm seus meios simbó-
111 Cl'i de separar gentes umas das outras e de identificar o
IV
qm é que significa ser uma pessoa. Um dos meios mais
Marrocos, Oriente Médio e clima seco, em vez de Ásia 1111portantes - que não é o único, mas que eu considero o
Oriental e clima úmido. Extrovertido, fluido, ativo, masculi­ 111.11s importante e sobre o qual gostaria de falar neste ensaio
no, exageradamente informal. Um tipo do oeste selvagem 1• uma forma lingüística peculiar chamada, em árabe, de

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nisba. A palavra deriva de uma raiz triliteral, n-s-b, para • 111ht·cido, ou dele se soubesse alguma coisa, mas não se
"atribuição", "imputação", "relação", "afinidade", "correla­ t t11hcsse sua nisba. Na verdade, é mais provável que os
ção", "conexão", "parentesco". Assim, Nsíb quer dizer "pa­ 11 1l11t:10tes de Sefrou ignorem o padrão econômico de um
rente por afinidade"; nsab significa "atribuir ou imputar a"; li, 11111•m, sua faixa etária, seu caráter pessoal, ou onde ele
"munãsaba" quer dizer "uma relação", "uma analogia", "uma 1,, , do que sua nisba, ou seja, se ele é Sussi ou Sefroui,
correspondência"; mansüb quer dizer "pertencer a", "fazen­ ll1 1h,1diwi ou Adluni, Harari ou Darqawi. (Com relação a
do parte de", e assim por diante, com cerca de uma dúzia de 1111dheres que não sejam parentes, a nisba seria provavel-
derivados, desde nassãb, ("genealogista") até nisbiya ("re­ 1111 11tc a única coisa que um homem saberia delas - ou, para
latividade [física]"). 1 , 11ln.is exato, a única coisa sobre elas que lhe seria permi­
A palavra nisba, propriamente dita, refere-se portanto a fl, 1 , , onhecer.) Os "eus" que se atropelam e se acotovelam
um processo de combinação morfológica, gramatical e se­ 11 1. ruelas de Sefrou adquirem sua definição através das
mântica que consiste em transformar um substantivo naqui­ 1 1 1 t óes associativas com a sociedade que os circunda, rela-
lo que nós chamaríamos de adjetivo relativo, mas que, para ' " \ essas que lhes são atribuídas. São pessoas contextuali­
os árabes, é simplesmente um outro tipo de substantivo. ,, 1.,.,,
acrescentando-se i (ou iya, na forma feminina); Sefru/Sefrou; ,\ situação, no entanto, é ainda mais complicada; nisbas
sefruwi/filho nativo de Sefrou; Sus/região do sudoeste mar­ 1 11 ,1.1m os homens relativos a seus contextos, mas, como os
roquino -susi/homem nascido nessa região Beni Yazga/ uma 1 , , 11,rlos contextos são relativos, as nisbas também passam
tribo perto de Sefrou - Yazgi/um membro dessa tribo; Ya­ , , • relativas, e tudo, por assim dizer, é, portanto, elevado
hud/o povo judeu como um povo, Yahudi/um único judeu; 1 11111a segunda potência - relativismo ao quadrado. Assim,
Ad/un/sobrenome de uma família importante em Sc­ 1 1 1 um nível, todos os nascidos em Sefrou têm a mesma

frou/Ad/uni/um membro dessa família. Este procedimento , /1,t, ou pelo menos em potencial - isto é, todos são
não se limita a esta simples "etnização" de substantivos, mas , l 1 1 >Ui. No entanto, na própria cidade, esta nisba, justamen-
também pode ser utilizado com uma variedade enorme de 1 I " >rque não discrimina, não será nunca utilizada como
palavras para atribuir relações de propriedade às pessoas. 11 11 li' de uma designação individual. Só fora de Sefrou a
Por exemplo, ocupação (hrar/seda - hrari/mercador dt." l 1t ,10 com este contexto específico passa a ser capaz de
seda) , seita religiosa (Darqawa/uma irmandade mística - 1, 11tificar um indivíduo em particular. Em Sefrou, portanto,
Darquawi/um adepto desta irmandade ou um estado espi­ 11 1 rá Adluni, Alawi, Meghrawi, Ngadi, ou qualquer outra
ritual), (Ali/o genro do Profeta - Alawi/um descendente do 1/ h,t deste nível. E dentro de cada uma destas categorias
genro do Profeta, e, por conseguinte, também do próprio 1 1, , , lc exatamente a mesma coisa. Há, por exemplo, doze
Profeta). 1,lut. diferentes (Shakibis, Zuinis e outras) através das quais
Uma vez formadas, as nisbas são normalmente incorpo­ •,.•frou Alawis, em suas regiões, se distinguem entre si.
radas aos nomes pessoais - Umar Al-Buhadiwi/Umar da tribo lodo o processo está longe de ser regular; que nível ou
Buhadu; Muhammed Al-Sussi/Muhammed da região Sus - t' • 1 11 , de nisba será usado, ou parecerá relevante ou apropria­
este tipo de classificação adjetival atributiva é gravada publi­ i, , (p:u-a os que as usam, é claro), dependerá totalmente da
camente como parte da identidade de um indivíduo. Não 111 1 •�ão. Um conhecido meu que morava em Sefrou e tra-
pude encontrar sequer um caso em que um indivíduo fosst• i ,lla.wa em Fez, mas era originário de uma tribo Beni Yazgha

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das proximidades - além disso era da subsubfração Wula 1 1 1 f t s que são encaixados irregularmente para gerar um
Ben Ydir, da subfração Taghut da linhagem Hima - ena • 111111 global complexo, no qual a diferença individual de
conhecido como Sefroui por seus companheiros de trabalho l I f 1 .1gmento permanece intacta. Sendo diversa mais do
em Fez, como Yazghi, por todos os não Yazghis em Sefrou 1p1.1lquer outra coisa, a sociedade marroquina não ad-
como Ydiri por todos os outros Beni Yazghas que por all 111 1 , ., sua diversidade fixando-a em castas, isolando-a em
viviam, a não ser por aqueles que vinham, eles próprios, da 1 , dividindo-a em grupos étnicos, ou cobrindo-a com
fração Wulad Ben Ydir. Estes o chamavam de Taghuti, <.·n 1 11111 conceito denominador-comum como a nacio-
quanto que, é claro, os outros poucos Taghutis o chamav:un 11, 1 u lc, embora todos estes sistemas tenham sido experi-
de Himiwi. Em Marrocos, as nisbas paravam aí, mas Marro 1 1 1 ulos de forma esporádica. Gerenciam a diversidade
cos não é o limite até onde podem ir. Se, por acaso, nosso 1111 t-;llindo, com uma precisão elaborada, os contextos -
amigo viajasse para o Egito, ele se transformaria em um 11 11, 11nônio, a devoção religiosa e, até certo ponto, a dieta,
Maghrebi, a nisba formada com a palavra que, em árahc; 1 , 1 I.' a educação - nos quais os homens são segregados
significa África do Norte. A contextualização social das pl"!'I 1 1 1,\S diferenças; e outros - o trabalho, a amizade, a
soas é difusa, e na sua maneira curiosamente não-metód1lil 11111 ,1 t o comércio - onde, ainda que com desconfiança e
acaba sendo sistemática. Os homens não flutuam como 11,111 ionalmence, são unidos por elas.
entidades psíquicas fechadas, que se destacam de seu con I ' 1 1 .t este tipo de estrutura social, uma concepção do eu
texto e recebem nomes individuais. Por mais indh,idualistaa 111Jrca a identidade pública contextualmente e relati-
e até obstinados que sejam os marroquinos - e na verdade: 11, 11nente, mas o faz em condições - tribais, territoriais,
o são -, sua identidade é um atributo que tomam empresl.l ilhllcas, religiosas e familiares - que se desenvolvem nas
do do cenário que os rodeia. 1 1 •� privadas e estabelecidas da vida, onde têm uma
Como o tipo de bifurcação fenomenológica da realidad , 111. ncia profunda e permanente, parece ser particu-
dos javaneses, com seus dentro/fora e suave/tosco, e o 1 1111 nte apropriada. Na verdade, parece que a própria
sistema de títulos dos balineses que absolutiza, o mocln l1 11111ra social cria esta concepção do eu, já que produz
nisba de olhar as pessoas - como se estas fossem contorno 1\ 1 11 c)CS onde as pessoas interagem em termos de catego-
à espera de serem preenchidos - não é um costume isolado 1 , 11J0 significado é quase totalmente posicional, um lugar
e sim parte de um tipo de estrutura que abrange toda a vida 1111 ,saico global, que deixa de lado, como algo que deva
social. Esta estrutura, como as de Java e Bali, também é difídl f , 1 ildadosamente escondido em apartamentos, templos e
de ser caracterizada de forma sucinta. Mas um de scu!I 1111 ,, , o conteúdo substantivo das categorias, ou seja, o que
elementos principais é, certamente, o fato de que existe, c,n l I l14nificam subjetivamente como modos de vida experi­
situações públicas, uma promiscuidade confusa de um11 • 1 11.1dos. As discriminações da nisba podem ser mais ou
variedade de seres humanos que, na sua vida privada, sao 11 1 1 1 ,., específicas, indicar o local do fragmento no mosaico

cuidadosamente segregados: um cosmopolitismo exan· r 1 li II ma aproximada ou exata, e adaptar-se a quase todos


bado nas ruas, e um comunalismo estrito dentro de casa (do 1 q 111s de mudanças de circunstâncias. Não podem, porém,
qual a famosa segregação das mulheres é apenas o exemplo l 11 111l1ito mais que uma idéia geral, um esboço ou contorno
mais óbvio). Este é o chamado sistema mosaico de organiza 11pr, e caráter dos homens a quem os nomes são atribuí­
ção social freqüentemente considerado característico do e .hamar um homem de Sefroui é como chamá-lo de
Oriente Médio como um todo: fragmentos de formas e con·

102 103
franciscano: o nome o classifica, mas não estabelece como ,h· vista, experiências? Se afirmativo, em que sentido? O
ele é; localiza-o, sem retratá-lo. 111, ,. <.!Xatamente que afirmamos quando declaramos com­
É justamente esta capacidade do sistema de nisbas - a i ' ' , 11der os meios semióticos através dos quais, nesses
de criar um contorno no qual as pessoas podem ser inserida� 1 , • 1 as pessoas se definem e são definidas pelas outras:
de acordo com características que, supostamente, lhe são 1 1 11 l'lltendemos as palavras ou que entendemos as mentes?
inerentes (fala, sangue, fé, proveniência, e outras mais), e ao l'.tra responder a esta pergunta, creio ser necessário,
mesmo tempo minimizar o impacto que estas características 1 1 tr11l'iramente, observar que o movimento intelectual carac-
têm na determinação de relações práticas entre essas pes­ 1 , 111ico, e o ritmo conceptual interno de cada uma dessas
soas em mercados, lojas, escritórios, no campo, em cafés, ,,, 1llscs, e até de todas as análises semelhantes - mesmo as
banhos públicos, e estradas - que o torna tão essencial para 1, i\l,1linowskí - é um bordejar dialético contínuo, entre o
a concepção marroquina do eu. A categorização do tipo 11, 11nr detalhe nos locais menores, e a mais global das
nisba conduz, paradoxalmente, a um hiperindividualismn 11 muras globais, de tal forma que ambos possam ser
nas relações p úblicas, pois, ao prover unicamente um con­ h I rvados simultaneamente. Na tentativa de descobrir o
torno vazio e até mesmo mutante de quem são os atores - lr1uílcado do eu para os javaneses, balineses e marroqui-
(.

Yazghis, Adlunis, Buhadiwis, ou seja lá quem for - deixa todo 1• , oscilamos incansavelmente entre um tipo de miudeza
o resto, ou seja, praticamente tudo, para ser preenchido no , ,uca que faz com que a leitura da melhor das etnografias
próprio processo de interação. O que faz o mosaico funcio­ 1 , uma tortura (antíteses léxicas, esquemas de categoriza-
nar é a certeza de que podemos ser completamente pragmá­ 11 1 1 transformações morfofonêmicas), e caracterizações tão
ticos, adaptáveis, oportunistas, e, de um modo geral ad hoc 1 1 11 mgentes que - a não ser pelas mais comuns - se tomam
em nossas relações com outros - uma raposa entre raposa.-; . 1111 lanto implausíveis ("quietismo", "dramatismo", "contex-
um crocodilo entre crocodilos - tanto quanto quisermos, 1 1 , Ji11mo") . Saltando continuamente de uma visão da totali-
sem nenhum risco de perder o sentido de quem somos. A 1 11 fl através das várias partes que a compõem, para uma
não ser na intimidade da procriação e da oração, o "eu" , 10 das partes através da totalidade que é a causa de sua
nunca está em perigo porque somente suas coordenada.'i 1 1ência, e vice-versa, com uma forma de moção intelectual
foram declaradas. I " , p�rua, buscamos fazer com que uma seja explicação para
, , ,,,era.

V ludo isso é, claramente, a trajetória, já bastante conhe-


11 l.t , do método que Dilthey chamou de círculo hermenêu-
Sem tentar dar nós em umas quantas dúzias de pontas 1 h , , Minha intenção aqui foi mostrar que ela é tão essencial
que, durante estes relatos apressados sobre o significado do j l 1 1 ., Interpretações etnográficas como para interpretações
eu para cerca de noventa e nove milhões de pessoas, não só 1111 1 ,lrias, históricas, filológicas, psicanalíticas, ou bíblicas,
deixei penduradas, mas certamente desfiei ainda mais, rt:• ,11 ,llé mesmo para anotações informais sobre aquelas expe-
tornemos ao ponto principal, que é saber exatamente o qut· 1 1, 11 ias cotidianas que chamamos de bom senso. Para acom-
tudo isso nos diz - ou poderia dizer, se explicado de forma 1 ' ,uhar um jogo de beisebol temos que saber o que é um
adequada - sobre "o ponto de vista dos nativos" emJava, em t 1 ,t .lo, uma bastonada, um turno, um jogador de esquerda,
Bali e no Marrocos. Ao descrever o uso de símbolos, estar<:• 11111 lance de pressão, uma trajetória curva pendente, e um
mos também descrevendo percepções, sentimentos, pon-

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centro de campo fechado, e também como funciona o jogo ln ,·m suas vidas ou de que nos aceitem como seres com
que contém todos estes elementos. Quando, em uma exp/i. I' ,, 111 vale a pena conversar. Não estou, em hipótese alguma,
cation de texte, um crítico como Leo Spitzer tenta inter 1 t , ndendo a falta de sensibilidade, e espero não ter dado
pretar a "Ode sobre uma urna grega" de Keats, ele se f , impressão. Mas seja qual for nossa compreensão -
pergunta repetida e alternativamente duas questões: "Sobre ,, , � ta ou semicorreta - daquilo que nossos informantes,
o que é este poema?" e "O que é, exatamente, que Keats viu " . sim dizer, realmente são, esta não depende de que
(ou decidiu mostrar-nos) desenhado na urna que ele descrc 1 il 1,1mos, nós mesmos, a experiência ou a sensação de estar

ve?", e chega ao final de uma espiral ascendente de observa 1 1 1 lo aceitos, pois esta sensação tem que ver com nossa

ções gerais e comentários específicos com uma leitura do 1 , < tpria biografia, não com a deles. Porém, a compreensão
poema que o interpreta como uma afirmação do triunfo da 1 1 11•nde de uma habilidade para analisar seus modos de
percepção estética sobre a histórica. Da mesma forma, quan t II t.'.ssão, aquilo que chamo de sistemas simbólicos, e o
do um etnógrafo de significados e símbolos como eu ten1a 11110s aceitos contribui para o desenvolvimento desta ha-
descobrir o que é uma pessoa na visão de algum grupo de 1 il1d,lde. Entender a forma e a força da vida interior de
nativos, ele vai e vem entre duas perguntas que faz a si 11 111vos - para usar, uma vez mais, esta palavra perigosa -
mesmo: "como é a sua maneira de viver, de um modo geral( t • 1 1 1 ce-se mais com compreender o sentido de um provér-
e "quais são precisamente os veículos através dos quais es1.1 1 1,, e.apear uma alusão, entender uma piada - ou, como
maneira de viver se manifesta?" chegando ao fim de uma t ,,. , ri acima - interpretar um poema, do que com conseguir
espiral semelhante com a noção de que eles consideram o 1 1 1 1 1 1 omunhão de espíritos.

eu como uma composição, uma persona, ou um ponto em


uma estrutura. Não poderemos entender o significado de
lek a não ser que entendamos o que é o dramatismo balinês,
da mesma maneira que não saberemos o que é uma luva de
apanhador se não conhecemos o jogo de beisebol. Ou nàn
entenderemos o que significa uma organização social mos:u
ca sem saber o que é a nisba, exatamente como não é possível
compreender o platonismo de Keats, sem ser capaz de cap1ar
- para usar a própria formulação de Spitzer - "o fio du
pensamento intelectual" contido em fragmentos de frasl'!I
como "a forma de Attic", "a forma silenciosa", "noiva da
tranqüilidade" "pastoral fria", "silêncio e tempo lento", "u
dadela em paz", ou "cantigas sem nenhum tom".
Em suma, é possível relatar subjetividades alheias sem
recorrer a pretensas capacidades extraordinárias para obh
terar o próprio ego e para entender os sentimentos de outro•
seres humanos. Possuir e desenvolver capacidades norma•
para estas atividades é, obviamente, essencial, se temo•
esperança de conseguir que as pessoas tolerem nossa intru

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