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“Ser afetado”, de Jeanne Favret-Saada*

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PAULA SIQUEIRA TÂNIA STOLZE LIMA
Mestranda em Antropologia Social pelo PPGAS/ Professora Doutora de Antropologia pelo
MN/UFRJ e pesquisadora de grupos culturais, ICHF/UFF.
política e religião em Nilo Peçanha, no Baixo
Sul da Bahia.

Meu trabalho sobre a feitiçaria no Bocage De um modo mais geral, meu trabalho põe
francês levou-me a reconsiderar a noção de em causa o fato de que a antropologia acha-se
afeto, e a pressentir o interesse que haveria em acantonada no estudo dos aspectos intelectu-
trabalhá-la: primeiro, para apreender uma di- ais da experiência humana, nas produções cul-
mensão central do trabalho de campo (a mo- turais do “entendimento”, para empregar um
dalidade de ser afetado); depois, para fazer uma termo da filosofia clássica. É – parece-me – ur-
antropologia das terapias (tanto “selvagens” gente, reabilitar a velha “sensibilidade”, visto
exóticas, como “científicas” ocidentais); e final- que estamos mais bem equipados para abordá-
mente, para repensar a antropologia. la do que os filósofos do século XVII.
Com efeito, minha experiência de cam- Inicialmente, valem algumas reflexões sobre
po com o desenfeitiçamento, e, em seguida, o modo como obtive minhas informações de
minha experiência com a terapia analítica le- campo: não pude fazer outra coisa a não ser
varam-me a pôr em questão o tratamento pa- aceitar deixar-me afetar pela feitiçaria, e ado-
radoxal do afeto na antropologia: em geral, os tei um dispositivo metodológico tal que me
autores ignoram ou negam seu lugar na expe- permitisse elaborar um certo saber posterior-
riência humana. Quando o reconhecem, ou é mente. Vou mostrar como esse dispositivo não
para demonstrar que os afetos são o mero pro- era nem observação participante, nem (menos
duto de uma construção cultural, e que não ainda) empatia.
têm nenhuma consistência fora dessa constru- Quando viajei para o Bocage, em 1968, ha-
ção, como manifesta uma abundante literatura via uma abundante literatura etnográfica sobre
anglo-saxã; ou é para votar o afeto ao desapa- feitiçaria, composta de dois conjuntos de textos
recimento, atribuindo-lhe como único destino heterogêneos e que se ignoravam mutuamente:
possível o de passar para o registro da represen- aquele dos folcloristas europeus (que se tinham
tação, como manifesta a etnologia francesa e recentemente condecorado com o título vanta-
também a psicanálise. Trabalho, ao contrário, joso de “etnólogos”, embora não tivessem mu-
com a hipótese de que a eficácia terapêutica, dado em nada sua forma de trabalhar), e aquele
quando ela se dá, resulta de um certo trabalho dos antropólogos anglo-saxões, sobretudo afri-
realizado sobre o afeto não representado. canistas e funcionalistas.
Os folcloristas europeus não tinham nenhum
* FAVRET-SAADA, Jeanne. 1990. “Être Affecté”. conhecimento direto da feitiçaria rural: seguindo
In: Gradhiva: Revue d’Histoire et d’Archives de as prescrições de Van Gennep, eles praticavam
l’Anthropologie, 8. pp. 3-9. investigações regionais, encontrando-se com as

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elites locais (o grupo menos bem situado para sa- te erros e imaginações nativas. (Ressaltemos de
ber alguma coisa sobre o assunto) ou enviando- passagem que, para esses autores, falar não é
lhes questionários, interrogando também alguns um comportamento, nem um ato suscetível
camponeses para saber se “ainda se acreditava de ser observado). Esses antropólogos davam
nisso”. As respostas recebidas eram tão uniformes respostas precisas a uma única questão – quem
quanto as questões: “aqui, não, mas na aldeia vi- acusa quem de o ter enfeitiçado em dada socie-
zinha, são uns atrasados…”. Seguiam-se, ainda, dade? – mas ficavam mudos quanto a todas as
algumas anedotas céticas ridicularizando os cren- outras – como se entra numa crise de feitiçaria?
tes. Para ir direto ao ponto, digamos que os etnó- Como se sai dela? Quais são as idéias, as expe-
logos franceses, desde que se tratasse de feitiçaria, riências e as práticas dos enfeitiçados e dos seus
dispensavam-se tanto de observar como de par- magos? Nem mesmo um autor tão minucioso
ticipar (situação que permanece, aliás, a mesma, quanto Turner permite sabê-lo, e, para se fazer
ainda em 1990). Os antropólogos anglo-saxões uma idéia disso, é preciso voltar à leitura de
pretendiam, ao menos, pôr em prática a “obser- Evans-Pritchard (1937).
vação participante”. Levei um certo tempo para De maneira geral, havia nessa literatura um
deduzir dos seus textos sobre feitiçaria que con- perpétuo deslizamento de sentido entre vá-
teúdo empírico podia-se atribuir a essa curiosa rios termos que teria sido melhor distinguir: a
expressão. Em retórica, isso se chama oxímoro: “verdade” vinha escorrer sobre o “real”, e este,
observar participando, ou participar observando, sobre o “observável” (aqui, havia uma confu-
é quase tão evidente como tomar um sorvete fer- são suplementar entre o observável como saber
vente. No campo, meus colegas pareciam combi- empiricamente verificável, e o observável como
nar dois gêneros de comportamento: um, ativo, saber independente das declarações nativas),
de trabalho regular com informantes pagos, os depois sobre o “fato”, o “ato” ou o “compor-
quais eles interrogavam e observavam; o outro, tamento”. Essa nebulosa de significações tinha
passivo, de observação de eventos ligados à fei- por único traço comum o fato de opor-se a seu
tiçaria (disputas, consultas a adivinhos…). Ora, simétrico: o “erro” escorria sobre o “imaginá-
o primeiro comportamento não pode de forma rio”, sobre o “inobservável”, sobre a “crença” e,
alguma ser designado pelo termo “participação” por fim, sobre a “palavra” nativa.
(o informante, ao contrário, é quem parece “par- Aliás, não há nada mais incerto que o esta-
ticipar” do trabalho do etnógrafo); e, quanto ao tuto da palavra nativa nesses textos: às vezes, ele
segundo, “participar” equivale à tentativa de estar é classificado entre os comportamentos (acu-
lá, sendo essa participação o mínimo necessário sar) e, às vezes, entre as proposições falsas (in-
para que uma observação seja possível. vocar a feitiçaria para explicar uma doença). A
Portanto, o que contava, para esses antropó- atividade de fala – enunciação – é escamoteada,
logos, não era a participação, mas a observação. não restando mais do discurso nativo que seu
Desta, eles tinham, aliás, uma concepção bas- resultado, isto é, os enunciados são impropria-
tante estreita: sua análise da feitiçaria reduzia- mente tratados como proposições e a atividade
se àquelas das acusações, porque, diziam eles, simbólica reduz-se a emitir proposições falsas.
são os únicos “fatos” que um etnógrafo pode Como se pode ver, todas essas confusões gi-
“observar”. Acusar é, para eles, um “compor- ram em torno de um ponto comum: a desqua-
tamento”, é até mesmo o comportamento por lificação da palavra nativa, a promoção daquela
excelência da feitiçaria, já que é o único empiri- do etnógrafo, cuja atividade parece consistir
camente verificável, todo o resto sendo somen- em fazer um desvio pela África para verificar

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que apenas ele detém… não se sabe bem o quê, Pois então, eles falaram disso comigo somen-
um conjunto de noções politéticas, equivalen- te quando pensaram que eu tinha sido “pega”
tes para ele à verdade. pela feitiçaria, quer dizer, quando reações que
Voltemos a minha pesquisa sobre a feitiçaria escapavam ao meu controle lhes mostraram
no Bocage. Lendo essa literatura anglo-saxã para que estava afetada pelos efeitos reais – freqüen-
ajudar em meu trabalho de campo, fiquei im- temente devastadores – de tais falas e de tais
pressionada com uma curiosa obsessão presen- atos rituais. Assim, alguns pensaram que eu era
te em todos os prefácios: os autores (e o grande uma desenfeitiçadora e dirigiram-se até a mim
Evans-Pritchard não era exceção) negavam regu- para solicitar o ofício; outros pensaram que eu
larmente a possibilidade de uma feitiçaria rural estava enfeitiçada e conversaram comigo para
na Europa de hoje. Ora, não somente eu estava me ajudar a sair desse estado. Com exceção
dentro dela, como a feitiçaria era amplamente dos notáveis (que falavam voluntariamente de
verificada em várias outras regiões, ao menos feitiçaria, mas para desqualificá-la), ninguém
pelos folcloristas europeus. Por que um erro em- jamais teve a idéia de falar disso comigo sim-
pírico tão evidente, tão grande e tão comparti- plesmente por eu ser etnógrafa.
lhado? Sem dúvida, tratava-se de uma tentativa Eu mesma não sabia bem se ainda era et-
absurda de realizar novamente a Grande Divisão nógrafa. Certamente, nunca acreditei ser uma
entre “eles” e “nós” (“nós” também já acredita- proposição verdadeira que um feiticeiro pudesse
mos em feiticeiros, mas foi há trezentos anos, me prejudicar fazendo feitiços ou pronuncian-
quando “nós” éramos “eles”), e assim proteger do encantamentos, mas duvido que os próprios
o etnólogo (esse ser a-cultural, cujo cérebro so- camponeses tenham algum dia acreditado nis-
mente conteria proposições verdadeiras) contra so dessa maneira. Na verdade, eles exigiam de
qualquer contaminação pelo seu objeto. mim que eu experimentasse pessoalmente por
Talvez isso fosse possível na África, mas eu minha própria conta – não por aquela da ci-
estava na França. Os camponeses do Bocage ência – os efeitos reais dessa rede particular de
recusaram-se obstinadamente a jogar a Grande comunicação humana em que consiste a feiti-
Divisão comigo, sabendo bem onde isso de- çaria. Dito de outra forma: eles queriam que
veria terminar: eu ficaria com o melhor lugar aceitasse entrar nisso como parceira e que aí
(aquele do saber, da ciência, da verdade, do investisse os problemas de minha existência de
real, quiçá algo ainda mais alto), e eles, com o então. No começo, não parei de oscilar entre
pior. A Imprensa, a Televisão, a Igreja, a Esco- esses dois obstáculos: se eu “participasse”, o
la, a Medicina, todas as instâncias nacionais de trabalho de campo se tornaria uma aventura
controle ideológico os colocavam à margem da pessoal, isto é, o contrário de um trabalho; mas
nação sempre que um caso de feitiçaria termi- se tentasse “observar”, quer dizer, manter-me à
nava mal: durante alguns dias, a feitiçaria era distância, não acharia nada para “observar”. No
apresentada como o cúmulo do campesinato, e primeiro caso, meu projeto de conhecimento
este como o cúmulo do atraso ou da imbecili- estava ameaçado, no segundo, arruinado.
dade. Assim, as pessoas do Bocage, para proibir Embora, durante a pesquisa de campo, não
o acesso a uma instituição que lhes prestava ser- soubesse o que estava fazendo, e tampouco o
viços tão eminentes, ergueram a sólida barreira porquê, surpreendo-me hoje com a clareza das
do mutismo, com justificações do gênero: “Fei- minhas escolhas metodológicas de então: tudo
tiço, quem não pegou não pode falar disso” ou se passou como se tivesse tentado fazer da “par-
“a gente não pode falar disso com eles”. ticipação” um instrumento de conhecimento.

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Nos encontros com os enfeitiçados e desenfeiti- trar-se fora das horas de trabalho, durante as
çadores, deixei-me afetar, sem procurar pesqui- quais eram obrigados a representar diante dos
sar, nem mesmo compreender e reter. Chegando nativos. Em suma, um espaço de recreação pes-
em casa, redigia um tipo de crônica desses even- soal, no sentido literal do termo. As considera-
tos enigmáticos (às vezes aconteciam situações ções privadas ou subjetivas estão, ao contrário,
carregadas de uma tal intensidade que me era ausentes do meu próprio diário, exceto se tal
impossível fazer essas notas a posteriori). Esse evento de minha vida pessoal tivesse sido evo-
diário de campo, que foi durante longo tempo cado com meus interlocutores, quer dizer, se
meu único material, tinha dois objetivos: tivesse sido incluído na rede de comunicação
– O primeiro era a curto prazo: tentar com- da feitiçaria.
preender o que queriam de mim, achar uma Uma das situações que vivia no campo era
resposta a questões urgentes do gênero: “Por praticamente inenarrável: era tão complexa que
quem X me toma?” (uma enfeitiçada, uma desafiava a rememoração, e de todos os modos,
desenfeitiçadora), “O que Y quer de mim?” afetava-me demais. Trata-se das sessões de de-
(que eu o desenfeitice…). Eu tinha interesse senfeitiçamento a que assistia, seja como enfei-
em achar uma boa resposta, já que no encon- tiçada (minha vida pessoal estava passando pelo
tro seguinte, me pediriam para agir. Mas, em crivo e eu era instada a modificá-la), seja como
geral, não tinha os meios necessários para isso: testemunha dos clientes, mas também da tera-
a literatura etnográfica sobre feitiçaria, tanto peuta (eu era constantemente instada a intervir
anglo-saxã quanto francesa, não permitia que bruscamente). No começo, tomei muitas notas
se representasse esse sistema de lugares em que depois de chegar em casa, mas era muito mais
consiste a feitiçaria. Eu estava justamente expe- para acalmar a angústia de ter-me pessoalmente
rimentando esse sistema, expondo-me a mim engajado. Uma vez que aceitei ocupar o lugar
mesma nele. que me tinha sido designado nas sessões, prati-
– O outro objetivo era a longo prazo: por camente não tomei mais notas: tudo se passava
mais que vivesse uma aventura pessoal fasci- muito depressa, deixava-as correr sem pôr-me
nante, em nenhum momento resignei-me a questões, e, da primeira sessão até a última, não
não compreender. Na época, aliás, não sabia tinha compreendido praticamente nada do que
muito para que ou por que queria poder com- tinha acontecido. Mas registrei discretamente
preender, se para mim, para a antropologia umas trinta sessões das aproximadamente du-
ou para a consciência européia. Mas eu orga- zentas a que assisti para constituir um material
nizava meu diário de campo para que servisse sobre o qual pudesse trabalhar mais tarde.
mais tarde a uma operação de conhecimento: A fim de evitar os mal entendidos, gostaria
minhas notas eram de uma precisão maníaca de ressaltar o seguinte: aceitar “participar” e ser
para que eu pudesse, mais tarde, realucinar os afetado não tem nada a ver com uma operação
eventos, e então – como eu não estaria mais de conhecimento por empatia, qualquer que
“enfeitiçada”, apenas “reenfeitiçada” – compre- seja o sentido em que se entende esse termo.
endê-los, eventualmente. Vou considerar as duas acepções principais e
Os leitores de Corps pour Corps terão nota- mostrar que nenhuma delas designa o que pra-
do que não há nada neste diário que o asseme- tiquei no campo.
lhe àqueles de Malinowski ou de Métraux. O Segundo a primeira acepção (indicada na
diário de campo era para eles um espaço íntimo Encyclopedia of Psychology), sentir empatia con-
onde podiam enfim se deixar livres, reencon- sistiria, para uma pessoa, em “vicariously expe-

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riencing the feelings, perceptions and thoughts of tária e desprovida de intencionalidade, e que
another”1. Por definição, esse gênero de empa- pode ser verbal ou não.
tia supõe, portanto, a distância: é justamente Quando é verbal, acontece mais ou menos
porque não se está no lugar do outro que se isto: alguma coisa me impele a falar (digamos,
tenta representar ou imaginar o que seria estar o afeto não representado), mas não sei o quê, e
lá, e quais “sensações, percepções e pensamen- tampouco sei por que isso me impele a dizer jus-
tos” ter-se-ia então. Ora, eu estava justamente tamente aquilo. Por exemplo, digo a um cam-
no lugar do nativo, agitada pelas “sensações, ponês, em eco a alguma coisa que ele me disse:
percepções e pelos pensamentos” de quem ocu- “Pois é, eu sonhei que…”, e eu não teria como
pa um lugar no sistema da feitiçaria. Se afirmo explicar esse “pois é”. Ou então meu interlocu-
que é preciso aceitar ocupá-lo, em vez de ima- tor observa, sem fazer qualquer ligação: “Outro
ginar-se lá, é pela simples razão de que o que ali dia, fulano lhe disse que… Hoje, você está com
se passa é literalmente inimaginável, sobretudo essas erupções no rosto”. O que se diz aí, impli-
para um etnógrafo, habituado a trabalhar com citamente, é a constatação de que fui afetada: no
representações: quando se está em um tal lugar, primeiro caso, eu própria faço essa constatação,
é-se bombardeado por intensidades específicas no segundo, é um outro quem a faz.
(chamemo-las de afetos), que geralmente não Quando essa comunicação não é verbal, o
são significáveis. Esse lugar e as intensidades que é então que é comunicado e como? Tra-
que lhe são ligadas têm então que ser experi- ta-se justamente da comunicação imediata que
mentados: é a única maneira de aproximá-los. o termo einfühlung evoca. Apesar disso, o que
Uma segunda acepção de empatia – ein- me é comunicado é somente a intensidade de
fühlung, que poderia ser traduzida por co- que o outro está afetado (em termos técnicos,
munhão afetiva – insiste, ao contrário, na falar-se-ia de um quantum de afeto ou de uma
instantaneidade da comunicação, na fusão com carga energética). As imagens que, para ele e
o outro que se atingiria pela identificação com somente para ele, são associadas a essa intensi-
ele. Essa concepção nada diz sobre o mecanis- dade escapam a esse tipo de comunicação. Da
mo da identificação, mas insiste em seu resul- minha parte, encaixo essa carga energética de
tado, no fato de que ela permite conhecer os um modo meu, pessoal: tenho, digamos, um
afetos de outrem. distúrbio provisório de percepção, uma quase
Afirmo, ao contrário, que ocupar tal lugar alucinação, ou uma modificação das dimensões;
no sistema da feitiçaria não me informa nada ou ainda, estou submersa num sentimento de
sobre os afetos do outro; ocupar tal lugar afe- pânico, ou de angústia maciça. Não é neces-
ta-me, quer dizer, mobiliza ou modifica meu sário (e, aliás, não é freqüente) que esse seja o
próprio estoque de imagens, sem contudo ins- caso do meu parceiro: ele pode, por exemplo,
truir-me sobre aquele dos meus parceiros. estar completamente inafetado na aparência.
Mas – e insisto sobre esse ponto, pois é aqui Suponhamos que não lute contra esse esta-
que se torna eventualmente possível o gênero do, que o receba como uma comunicação de
de conhecimento a que viso –, o próprio fato alguma coisa que não saiba o que é. Isso me
de que aceito ocupar esse lugar e ser afetada impele a falar, mas da forma evocada anterior-
por ele abre uma comunicação específica com mente (“então, eu sonhei que…”), ou a calar-
os nativos: uma comunicação sempre involun- me. Nesses momentos, se for capaz de esquecer
que estou em campo, que estou trabalhando, se
1. Nota da tradutora: “experimentar, de uma forma indi- for capaz de esquecer que tenho meu estoque
reta, as sensações, percepções e pensamentos do outro”.

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de questões a fazer… se for capaz de dizer-me que não estava em condições de praticar essa
que a comunicação (etnográfica ou não, pois comunicação pobre, pois estava invadido por
não é mais esse o problema) está precisamen- uma situação e/ou por seus próprios afetos.
te se dando, assim, desse modo insuportável e Ora, nas etnografias, essas situações, apesar de
incompreensível, então estou direcionada para banais e recorrentes, de comunicação involun-
uma variedade particular de experiência huma- tária e desprovida de intencionalidade não são
na – ser enfeitiçado, por exemplo – porque por jamais consideradas como aquilo que são: as
ela estou afetada. “informações” que elas trouxeram ao etnógrafo
Ora, entre pessoas igualmente afetadas aparecem no texto, mas sem nenhuma referên-
por estarem ocupando tais lugares, acontecem cia à intensidade afetiva que as acompanhava
coisas às quais jamais é dado a um etnógrafo na realidade; e essas “informações” são coloca-
assistir, fala-se de coisas que os etnógrafos não das exatamente no mesmo plano que as outras,
falam, ou então as pessoas se calam, mas trata- aquelas que são produzidas pela comunicação
se também de comunicação. Experimentando voluntária e intencional. Poder-se-ia dizer, in-
as intensidades ligadas a tal lugar, descobre-se, clusive, que virar um etnógrafo profissional é
aliás, que cada um apresenta uma espécie par- tornar-se capaz de maquiar automaticamente
ticular de objetividade: ali só pode acontecer todo episódio de sua experiência de campo em
uma certa ordem de eventos, não se pode ser uma comunicação voluntária e intencional vi-
afetado senão de um certo modo. sando ao aprendizado de um sistema de repre-
Como se vê, quando um etnógrafo aceita sentações nativas.
ser afetado, isso não implica identificar-se com Eu, ao contrário, escolhi conceder estatuto
o ponto de vista nativo, nem aproveitar-se da epistemológico a essas situações de comunica-
experiência de campo para exercitar seu narci- ção involuntária e não intencional: é voltando
sismo. Aceitar ser afetado supõe, todavia, que sucessivamente a elas que constituo minha et-
se assuma o risco de ver seu projeto de conhe- nografia.
cimento se desfazer. Pois se o projeto de conhe- 2. Segundo traço distintivo dessa etnogra-
cimento for onipresente, não acontece nada. fia: ela supõe que o pesquisador tolere viver em
Mas se acontece alguma coisa e se o projeto um tipo de schize. Conforme o momento, ele
de conhecimento não se perde em meio a uma faz justiça àquilo que nele é afetado, maleável,
aventura, então uma etnografia é possível. Ela modificado pela experiência de campo, ou en-
apresenta, creio eu, quatro traços distintivos: tão àquilo que nele quer registrar essa experiên-
1. Seu ponto de partida é o reconhecimen- cia, quer compreendê-la e fazer dela um objeto
to de que a comunicação etnográfica ordinária de ciência.
– uma comunicação verbal, voluntária e inten- 3. As operações de conhecimento acham-se
cional, visando à aprendizagem de um sistema estendidas no tempo e separadas umas das ou-
de representações nativas – constitui uma das tras: no momento em que somos mais afetados,
mais pobres variedades da comunicação huma- não podemos narrar a experiência; no momento
na. Ela é especialmente imprópria para forne- em que a narramos não podemos compreendê-
cer informações sobre os aspectos não verbais e la. O tempo da análise virá mais tarde.
involuntários da experiência humana. 4. Os materiais recolhidos são de uma den-
Noto, aliás, que, quando um etnógrafo sidade particular, e sua análise conduz inevita-
lembra-se do que houve de único em sua esta- velmente a fazer com que as certezas científicas
da no campo, ele fala sempre de situações em mais bem estabelecidas sejam quebradas.

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Consideremos, por exemplo, os rituais de depois da efetuação do ritual. Esse dispositivo


desenfeitiçamento. Se não tivesse sido assim pode, é claro, ser descrito e compreendido, mas
afetada, se não tivesse assistido a tantos epi- somente por quem se permitir dele se aproxi-
sódios informais de feitiçaria, teria dado aos mar, quer dizer, por quem tiver corrido o risco
rituais uma importância central: primeiro, de “participar” ou de ser afetado por ele: em
porque sendo etnógrafa, sou levada a privile- caso algum ele pode ser “observado”.
giar a análise do simbolismo; segundo, porque Para finalizar, uma palavra sobre a ontologia
os relatos típicos de feitiçaria lhes dão um lugar implícita de nossa disciplina. Em Meurtre dans
essencial. Mas, por ter ficado tanto tempo en- l’Université Anglaise (L’Âne, nº 21, abril-junho,
tre os enfeitiçados e entre os desenfeitiçadores, 1985), Paul Jorion mostra que a antropologia
em sessões e fora de sessões, por ter escutado, anglo-saxã pressupõe, entre outras coisas, uma
além dos discursos de conveniência, uma gran- transparência essencial do sujeito humano a
de variedade de discursos espontâneos, por ter si mesmo. Ora, minha experiência de campo
experimentado tantos afetos associados a tais – porque ela deu lugar à comunicação não
momentos particulares do desenfeitiçamento, verbal, não intencional e involuntária, ao sur-
por ter visto fazerem tantas coisas que não eram gimento e ao livre jogo de afetos desprovidos
do ritual, todas essas experiências fizeram-me de representação – levou-me a explorar mil as-
compreender isso: o ritual é um elemento (o pectos de uma opacidade essencial do sujeito
mais espetacular, mas não o único) graças ao frente a si mesmo. Essa noção é, aliás, velha
qual o desenfeitiçador demonstra a existência como a tragédia, e a ela sustenta também, des-
de “forças anormais”, as implicações mortais da de há um século, toda a literatura terapêutica.
crise que seus clientes sofrem e a possibilidade Pouco importa o nome dado a essa opacidade
de vitória. Mas essa vitória (não podemos sobre (“inconsciente” etc.): o principal, em particular
esse assunto falar de “eficácia simbólica”) supõe para uma antropologia das terapias, é poder da-
que se coloque em prática um dispositivo tera- qui para frente postulá-la e colocá-la no centro
pêutico muito complexo antes e muito tempo de nossas análises.

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