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Belo Horizonte
2022
...mas são estátuas de murta que, em levantando a mão e a tesoura o jardineiro, logo
perdem a nova figura, e tornam à bruteza antiga e natural, e a ser mato como dantes
eram”.
Padre Antônio Vieira, Sermão do Espírito Santo
“Você está lá… porque eu estava lá” (CLIFFORD, 2008, p.18): um olhar
crítico sobre a autoridade etnográfica em meio à crise da representação
na antropologia a partir de meados do século XX
1 – INTRODUÇÃO
O presente ensaio buscará compreender e trazer resposta a uma pergunta instigante: a
mudança havida na Antropologia em meados do século XX se tratou de uma quebra de
paradigma, uma revolução na ciência nos moldes da teoria de Thomas Kuhn? O
desenvolvimento do tema se dará a partir da leitura de textos de dois antropólogos
daquele período, Clifford Geertz e James Clifford, cujas obras, em palavras e prática,
trouxeram novas formas de se fazer etnografia, ao mesmo tempo em que se questionava
a autoridade do etnógrafo perante seu objeto de estudos. Geertz, por um lado, prescreve
que a etnografia deve ser mais que mera descrição: deve ser uma descrição densa, o que
significa trazer para a escrita elementos interpretativos do autor e do “outro”, o
interlocutor, o informante, num sentido dialógico. 1 Já Clifford relaciona autoridade
2
etnográfica com relações de dominação. O discurso dominante até então é o de que
somente a presença do etnógrafo validaria os conteúdos dos textos etnográficos
produzidos. E ambos trouxeram novas formas de fazer e de se posicionar no método
antropológico por excelência, a etnografia.
Assim, o ensaio procura responder à indagação: as novas posições assumidas na
disciplina por estes autores significariam ruptura, estariam diante de uma crise, na
verdade, uma revolução, uma quebra de paradigmas como Thomas Kuhn via nas demais
ciências ditas “duras”? Ao final, em reforço à resposta apresentada, serão trazidos
ensinamentos de Tim Ingold3 que, metaforizando o caminhar por um labirinto, nos leva a
refletir sobre o que um caminhante (no caso, um etnógrafo), pode e deve absorver das
coisas que encontra em seu percurso.
2 – DESENVOLVIMENTO/DISCUSSÃO
Para se iniciar a compreensão do tema a ser desenvolvido no presente ensaio é preciso
estabelecer um ponto de partida. Para tanto, e não exatamente de forma aleatória, o início
1 GEERTZ, Cliford. "Uma descrição densa: por uma teoria interpretativa da cultura". In: A Interpretação das
Culturas. Rio de Janeiro, LTC, 2008.
2 CLIFFORD, J. Sobre a autoridade etnográfica. In: A experiência etnográfica: Antropologia e literatura no século
XX. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1998., pp. 17-62.
3 INGOLD, Tim. 2015. “O dédalo e o labirinto: caminhar, imaginar e educar a atenção”, Horizontes Antropológicos,
Porto Alegre, ano 21, n. 44, p. 21-36, jul./dez. 2015.
da década de 60 do século XX surge como um período que trouxe importantes mudanças
e movimentos no sentido de ruptura de paradigmas, precedendo o que se chamou mais
tarde de “virada ontológica” da antropologia.
Sherry Ortner4 aponta que ao fim dos anos 50 o funcionalismo estrutural britânico
(Radcliffe-Brown e Malinowski), a antropologia cultural e psicocultural norte-americana
(Margaret Mead e Ruth Benedict) e a antropologia evolucionista norte-americana (Leslie
White e Julian Steward) se viram frente a frente com novas posições, outras escolas,
ideias, autores e movimentos, tais como a antropologia simbólica, a ecologia cultural e o
estruturalismo que viriam representar mudanças importantes na forma de pensar e se
fazer antropologia a partir daquele momento.
4 ORTNER, Sherry. 2011(1984). “Teoria na antropologia desde os anos 60”. Mana. 17 (2): 421-422.
A partir de uma pesquisa etnográfica com observação participante em uma das aldeias
em Bali, Geertz nos apresenta “Um jogo absorvente: Notas sobre a Briga de Galos
Balinesa”, que traz a relação dos balineses com a briga de galo perpassando pela
simbologia dessa atividade que não é exclusiva daquela localidade, tendo sido comum a
sua prática em diversas partes do mundo em algum momento.
Geertz se propôs ainda a demonstrar com sua etnografia como a cultura, com suas teias
de significados, seria tecida sob uma superfície e não seria acessível ao pesquisador sem
a participação de nativos/informantes, porque segundo ele “a cultura é a mediação entre
o poder e o objetivo de sua ação”. Em suma, um trabalho etnográfico deve permitir as
5 (GEERTZ, Cliffort.”Um jogo absorvente: notas sobre a briga de galos balinesa” In: A Interpretação das Culturas.
Rio de Janeiro: Ed. LTC 1989. p.212
6 (GEERTZ, Cliffort.”Um jogo absorvente: notas sobre a briga de galos balinesa” In: A Interpretação das Culturas.
Rio de Janeiro: Ed. LTC 1989. p.212
sociedades pesquisadas uma participação ativa, em que a sua voz seja elemento
considerado na construção do autor.
“A cultura de um povo é um conjunto de textos, eles mesmos conjuntos,
que o antropólogo tenta ler por sobre os ombros daqueles a quem eles
pertencem. Existem enormes dificuldades em tal empreendimento, abismos
metodológicos que abalariam um freudiano, além de algumas
perplexidades”.7
Geertz ( 1989 ) quis com sua teoria argumentar que a cultura é incorporada pelas
pessoas em forma de símbolos, com os quais os membros das sociedades comunicam
sua visão de mundo uns aos outros, dentro de seus grupos e mesmo aos antropólogos –
e cabe a estes interpretar as informações recebidas daqueles que as constroem. A cultura
é usada para dar sentido ao mundo, às coisas do mundo. Além disso, quando traz a
metáfora do jogo para a cena da Briga de galos balinesa, o autor mostra o quão os
balineses são absorvidos por todos momentos da atividade e como um evento pode
influenciar na vida cultural e religiosa dos balineses o que nos remete à importância dada
pelos brasileiros aos jogos e times de futebol , como é o caso do Clube Atlético Mineiro ,
que tem como mascote , um galo carijó, que diziam que era um campeão imbatível das
rinhas de galo de uma época.
7 (GEERTZ, Clifford. “Um jogo absorvente: notas sobre a briga de galos balinesa”. In. A interpretação das culturas.
Rio de Janeiro: LTC Editora, 1989, p. 212)
8 CLIFFORD, J. Sobre a autoridade etnográfica. In: CLIFFORD, J. A experiência etnográfica: Antropologia e
literatura no século XX. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1998., p. 18.
final do período colonial. Pois justamente foram as relações de dominação para com as
colônias que por muito tempo sustentaram a visão de superioridade, que mais tarde
passaria a ser afastada dos trabalhos dos antropólogos a partir de meados do século
passado.
A etnografia de então, para Clifford, que enfatiza a autoridade do pesquisador
antropólogo, deve rever seus métodos pois ao trazer apenas uma imagem esta cria a
ilusão de que ela é um retrato fiel da realidade. A antropologia precisa ser interpretativa, a
autoridade deve ser dispersada, a etnografia pode conter crítica e a cultura deve ser
polifônica, trazer vozes dissonantes, não se dirigir a um único leitor; enfim, a etnografia
como produção de escrita deve ter abertura para múltiplas interpretações. Ele aconselha:
“Estratégias alternativas de autoridade etnográfica podem ser visualizadas em
recentes experiências feitas por etnógrafos que conscientemente rejeitam cenas de
representação cultural ao estilo do frontispício do livro de Malinowski. (…) Nos
novos paradigmas de autoridade o escritor não está mais fascinado por
personagens transcendentes - uma deidade hebraico-cristã, ou seus substitutos no
século XX, o Homem e a Cultura. Nada permaneceu daquele quadro celestial, a não
ser a imagem desbotada do antropólogo num espelho. O silêncio da oficina
etnográfica foi quebrado - por insistentes vozes heteroglotas e pelo ruído da escrita
de outras penas. 9
O trabalho do etnógrafo deve se assemelhar a uma caminhada por uma trilha que lhe
permite absorver conhecimentos ao mesmo tempo em que se observa o contexto, aquele
mundo, seus elementos culturais e objetos O conhecimento obtido e aquele produzido
são fruto da interpretação do autor, como Ingold descreve: 13
Decerto, não há nada de novo ou radical em sugerir que o conhecimento é
relativo ao seu ambiente cultural. Que cada mundo não é mais que uma
visão de mundo, e que essas perspectivas ou interpretações são múltiplas e
13 INGOLD, Tim. 2015. “O dédalo e o labirinto: caminhar, imaginar e educar a atenção”, Horizontes Antropológicos,
Porto Alegre, ano 21, n. 44,jul./dez. 2015, p.27.
possivelmente conflitantes, tem sido o ponto de partida da filosofia da
educação moderna, e mesmo pós-moderna. Os alunos são familiarizados
com a ideia de que o conhecimento consiste em representações, e são
sabidos o suficiente para perceber que as representações não devem ser
confundidas com as “coisas em si”.
A atividade etnográfica não vai deixar de existir. O objeto da etnografia, da própria ciência
da Antropologia, não desaparecerá por se alterarem regras do método. Porque ciência é
método, mas além deste sempre existirá o objeto, a diferença, a curiosidade e o espírito
do pesquisador. Neste sentido, nos cabe concordar com Lévi-Strauss(1962-26) quando
este diz que “enquanto as maneiras de ser ou de agir de certos homens forem problemas
para outros homens, haverá lugar para uma reflexão sobre essas diferenças, que, de
14
forma sempre renovada, continuará a ser o domínio da antropologia”.
3 – CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente ensaio nos levou a refletir acerca de mudanças de paradigma nas ciências e
até que ponto isto se tornaria questão de preocupação. Uma ciência, mesmo que não
pertencendo ao grupo das exatas ou naturais, também pode sofrer mudanças em seus
métodos, sem que isto signifique ruptura. Assim, se viu que o questionamento sobre o
método etnográfico, precisamente a partir da segunda metade do século XX, significaria
mais aprimoramento que uma mudança de rota.
A etnografia é método da Antropologia por excelência. Mas pode – como pôde – passar
por aperfeiçoamentos, assim como a posição do observador pode ser menos autoridade e
mais elemento do contexto. Foi um pouco desta mudança de método, o que se pôde
observar das leituras de textos de etnografia de Clifford Geertz e de James Clifford.
Autores que, ao trazer suas discussões e questionamentos sobre algo que se julgaria
pacificado, proporcionaram à ciência antropológica uma renovação. Novos termos, a
presença do “outro”, a práxis, o interlocutor, a cultura como guia, a dominação
questionada, a validação da autoridade são novas formas de fazer conhecimento num
sentido de se percorrer um labirinto absorvendo mais do que seria possível com a
observação participante.
14 LÉVI-STRAUSS, Claude. A crise moderna da antropologia. Currier de l'Unesco, nov. 1961. Traduzido e
republicado em Revista de Antropologia, v. 10, n. 1/2, 1962 p. 26.
4 – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CLIFFORD, J. Sobre a autoridade etnográfica. In: A experiência etnográfica: Antropologia
e literatura no século XX. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1998., pp. 17-62.
GEERTZ, Cliford. "Uma descrição densa: por uma teoria interpretativa da cultura". In: A
Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro, LTC, 2008.
GEERTZ, Clifford. Um Jogo Absorvente: Notas sobre a Briga de Galo Balinesa. In: A
interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008.
INGOLD, Tim. 2015. “O dédalo e o labirinto: caminhar, imaginar e educar a atenção”,
Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 21, n. 44, p. 21-36, jul./dez. 2015.
http://dx.doi.org/10.1590/S0104-71832015000200002
KUHN, T. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo, Perspectiva, 1978.
LÉVI-STRAUSS, Claude. A crise moderna da antropologia. Currier de l'Unesco, nov. 1961.
Traduzido e republicado em Revista de Antropologia, v. 10, n. 1/2, 1962.
OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. “Antropologia e a crise dos modelos explicativos”.
Palestra apresentada no seminário Ciência e sociedade: a crise dos modelos, realizado
em 19 de novembro de 1993, na Universidade Federal do Paraná. Acessado em:
https://www.revistas.usp.br/eav/article/view/8898
ORTNER, Sherry. 2011(1984). “Teoria na antropologia desde os anos 60”. Mana. 17 (2):
419-466.